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Favela, cartão-postal do Brasil? Representações ambivalentes sobre cultura e identidade nacionais na performance de Anitta em palco estrangeiro1 1 Um versão deste artigo foi apresentada no 46º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, no GP Comunicação, Música e Entretenimento.

Favela, a Brazilian postcard? Ambivalent representations of national culture and identity in Anitta’s performance on a foreign stage

Resumo

O objetivo deste trabalho é compreender como a cantora Anitta, na condição de estrela pop em ascensão internacional, promove a favela como cultura e identidade brasileiras e também discutir quais as implicações dessa abordagem ante as representações ambivalentes desse espaço, tratado ora como território da pobreza e da violência, ora como reserva de manifestações culturais autênticas. Para isso, descrevemos e analisamos uma apresentação da cantora no festival americano Coachella em abril de 2022 com referencial teórico baseado em estudos culturais (Hall, 1992, 2003, 2016; Martín-Barbero, 1995, 2015; García Canclini, 1998) e estudos de performance (Amaral; Soares; Polivanov, 2018; Pereira de Sá; Holzbach, 2010). Observamos que Anitta se apoia em referências consagradas da cultura e da identidade brasileiras, ao mesmo tempo que introduz o seu ponto de vista, relacionado a uma cultura urbana periférica. Consideramos que, ao explorar um espaço ambivalente como a favela, a artista provoca tensionamentos em torno dos símbolos nacionais e do que pode ou não ser considerado parte da cultura e da identidade brasileiras.

Palavras–chave
comunicação e consumo; favela; identidade nacional; cultura brasileira; Anitta

Abstract

This work aims to understand how the singer Anitta, as a rising international pop star, promotes the favela as a part of Brazilian culture and identity, and also discuss the implications of this approach in light of the ambivalent representations of this space, which is sometimes viewed as a place of poverty and violence and at other times as a reservoir of authentic cultural expressions. To do this, we describe and analyze one of Anitta’s performances in the American Coachella festival in April 2022, drawing on theoretical frameworks based on cultural studies (Hall, 1992, 2003, 2016; Martín-Barbero, 1995, 2015; García Canclini, 1998) and performance studies (Amaral; Soares; Polivanov, 2018; Pereira de Sá; Holzbach, 2010). We observe that Anitta draws on established references of Brazilian culture and identity while also introducing her own perspective, which is related to an urban peripheral culture. We believe that, by exploring an ambivalent space like the favela, the artist sparks debate about national symbols and what can or cannot be considered part of Brazilian culture and identity.

Keywords
communication and consumption; favela ; national identity; Brazilian culture; Anitta

Introdução

Nos últimos anos, a cantora Anitta tem vivenciado uma trajetória de ascensão internacional evidenciada por sua presença em eventos de destaque no exterior, parcerias com artistas consagrados, como Madonna, Miley Cyrus e Missy Elliott, e pelo sucesso comercial em paradas musicais de diversos países, alcançando espaços e uma notoriedade que nenhum outro artista brasileiro desfruta atualmente. Alguns de seus principais feitos estão concentrados em 2022: Anitta foi indicada como artista revelação no Grammy Awards de 2023; tornou-se a primeira brasileira a se apresentar como artista solo e vencer um prêmio no Video Music Awards, tradicional premiação da MTV americana para os videoclipes; foi a primeira brasileira a alcançar o topo mundial da parada do Spotify, um dos streamings de música mais populares; foi a primeira brasileira a se apresentar no palco principal do festival americano Coachella.

Nascida e criada num bairro periférico da cidade do Rio de Janeiro, Anitta começou a carreira como cantora de funk em 2012, mas foi com um repertório de músicas pop que despontou nacionalmente, tendo como carro-chefe a canção Show das poderosas (2013). Em 2016, a carioca lançou sua primeira parceria internacional, a música Sim ou não, com o cantor colombiano Maluma. Desde então, Anitta tem lançado regularmente músicas em outros idiomas, principalmente o espanhol e o inglês, incorporando gêneros que estão em alta, como o reggaeton, numa tentativa de se inserir no mercado internacional. Prova disso é que seu principal sucesso internacional até agora, a canção Envolver (2021), é um reggaeton cantado em espanhol.

No entanto, a cantora não deixa de revisitar suas raízes no funk e na periferia carioca. O primeiro aparece em músicas como Terremoto e No chão novinha, já o segundo é destaque nos clipes de Vai malandra, filmado na favela do Vidigal, e Girl from Rio, gravado no Piscinão de Ramos, frequentado por um público carioca de baixa renda. Além disso, os shows da cantora costumam ter um segmento dedicado ao funk, no qual Anitta executa o passo do quadradinho, assinado por ela, ao som da música Movimento da sanfoninha. Em suas performances ao vivo, a artista também faz referência à favela, como é o caso do festival Coachella, cujo cenário foi inspirado na estética e cotidiano das favelas.

Tendo em vista essa trajetória2 2 Para um relato mais completo sobre a trajetória de Anitta, conferir a tese de Arantes (2023). , consideramos que Anitta tem condições de se posicionar como uma ponte entre o Brasil e o mundo e, assim, assumir um lugar de destaque na mobilização de sentidos a respeito de como a identidade e a cultura brasileiras devem ser interpretadas e percebidas. Nosso interesse, então, é compreender como Anitta promove a favela como cultura e identidade brasileiras e discutir quais as implicações dessa abordagem, considerando as representações ambivalentes formadas sobre esses espaços, tratados ora como território de violência e sínteses dos problemas sociais e econômicos do país ― pobreza, falta de planejamento urbano, desigualdade social ―, ora como reserva de manifestações culturais autênticas e exemplo de vida comunitária integrada (Freire-Medeiros, 2009FREIRE-MEDEIROS, Bianca. Gringo na Laje: Produção, circulação e consumo da favela turística. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2009.; Valladares, 2005VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da favela: do mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.).

Para tanto, vamos nos centrar em um caso específico: a performance de Anitta no Coachella, em abril de 2022. A justificativa para trabalhar com a apresentação é: 1) o fato de a imprensa nacional ter se dedicado a instruir o público a respeito da relevância do evento e da importância de se ter uma artista brasileira no palco principal (Lorentz; Ortega, 2022LORENTZ, Braulio; ORTEGA, Rodrigo. Anitta canta no Coachella nesta sexta-feira: qual a importância de se apresentar no festival? G1, 15 abr. 2022. Disponível em: https://encurtador.com.br/ejpy4. Acesso em: 05 out. 2022.
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); e 2) o fato de Anitta ter utilizado símbolos nacionais em sua apresentação, como um figurino com as cores da bandeira, o que evidencia, ao mesmo tempo, um interesse em assumir um papel de representante do Brasil para o mundo e a utilização da identidade e da cultura nacionais como uma estratégia de diferenciação num mercado competitivo como o da música e do entretenimento. Em linha com a proposta de pensar a performance como um “processo comunicativo ancorado na corporeidade” (Pereira de Sá; Holzbach, 2010PEREIRA DE SÁ,Simone; HOLZBACH, Ariane Diniz. #U2youtube e a performance mediada por computador. SP, Revista Galáxia, n. 20, p. 146-160, 2010., p. 148) e a Anitta como uma “potência comunicativa e política” na cena audiovisual contemporânea (Arantes, 2023ARANTES, Dariane Lima. Presenças de Anitta, sentidos sobre o Brasil: uma leitura interseccional das audiovisualidades de uma estrela do pop. 2023. 259f. Tese (Doutorado em Comunicação e Práticas de Consumo) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo, Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), São Paulo, 2023.), tratamos a apresentação da carioca no Coachella ― a qual tivemos acesso por via digital ― como uma materialidade comunicacional capaz de revelar sentidos socioculturais sobre o Brasil.

O artigo está dividido em quatro partes. Na primeira, apresentamos uma revisão breve de estudos que abordam Anitta do ponto de vista das representações da favela e das articulações entre local e global. Em seguida, resgatamos um pouco as origens das representações ambivalentes sobre a favela, destacando que o funk, como um gênero vinculado a esse território, também é alvo de representações semelhantes. Na terceira parte, descrevemos o show e apontamos os elementos que podem ser associados à cultura e à identidade brasileiras. Por último, discutimos as implicações de se abordar a favela como cultura e identidade brasileiras com base em autores relacionados aos estudos culturais (Hall, 1992HALL, Stuart. The question of cultural identity. In: HALL, Stuart; HELD, David; McGREW, Tony (org.). Modernity and its futures. Cambridge: Polity Press, 1992. p. 273-326., 2003HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte/Brasília: Editora UFMG/Representação, 2003., 2016HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Editora Apicuri-PUC-RJ, 2016.; Martín-Barbero, 1995MARTÍN-BARBERO, Jesus. América Latina e os anos recentes: o estudo de recepção em comunicação social. In: SOUSA, Mauro Wilton (org.). Sujeito, o lado oculto do receptor. ECA-USP/Brasiliense, 1995. p. 39-68., 2015; García Canclini, 1998GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas. São Paulo: Edusp, 1998.; Ortiz, 1994ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994.).

Anitta: na favela, entre o local e o global

Este estudo se soma a outros que abordaram as representações da favela mobilizadas por Anitta (Arantes, 2023ARANTES, Dariane Lima. Presenças de Anitta, sentidos sobre o Brasil: uma leitura interseccional das audiovisualidades de uma estrela do pop. 2023. 259f. Tese (Doutorado em Comunicação e Práticas de Consumo) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo, Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), São Paulo, 2023.; Castro; Libardi, 2018CASTRO, Luiz Henrique; LIBARDI, Guilherme Barbacovi. “Vocês pensaram que eu não ia militar hoje?” Cultura popular, gênero e classe no funk Vai malandra. In: Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, II, 2018. Anais eletrônicos [...] São Leopoldo: Unisinos, 2018. Disponível em: encurtador.com.br/xzENP. Acesso em: 20 dez. 2023.; Caminha; Lapera, 2018CAMINHA, Marina; LAPERA, Pedro. Vai Malandra: a percepção do negro, da favela e do popular no videoclipe de Anitta. In: Comunicon, 2018. Anais eletrônicos [...] São Paulo: ESPM, 2018. Disponível em: encurtador.com.br/AENY6. Acesso em: 20 dez. 2023.) e os tensionamentos entre o local e o global presentes na trajetória da artista (Pereira de Sá, 2020, 2019). No primeiro caso, notamos que as discussões se inspiram principalmente na produção audiovisual da cantora, como o clipe Vai malandra (2017), gravado na comunidade do Vidigal. Com um interesse em analisar as interseccionalidades presentes na obra de Anitta, Arantes (2023)ARANTES, Dariane Lima. Presenças de Anitta, sentidos sobre o Brasil: uma leitura interseccional das audiovisualidades de uma estrela do pop. 2023. 259f. Tese (Doutorado em Comunicação e Práticas de Consumo) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo, Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), São Paulo, 2023. mostra como as representações que a artista faz da favela se mesclam a recortes raciais, de gênero e de classe, particularmente no que chama de “conveniência racial” da cantora. Com um posicionamento racial ambíguo, Anitta é acusada de se aproximar de estereótipos e elementos associados à negritude quando representa a favela e outros espaços periféricos, ao passo que se “embranquece” quando performa uma imagem de sofisticação e riqueza (Arantes, 2023ARANTES, Dariane Lima. Presenças de Anitta, sentidos sobre o Brasil: uma leitura interseccional das audiovisualidades de uma estrela do pop. 2023. 259f. Tese (Doutorado em Comunicação e Práticas de Consumo) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo, Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), São Paulo, 2023.). Outros dois trabalhos (Castro; Libardi, 2018CASTRO, Luiz Henrique; LIBARDI, Guilherme Barbacovi. “Vocês pensaram que eu não ia militar hoje?” Cultura popular, gênero e classe no funk Vai malandra. In: Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, II, 2018. Anais eletrônicos [...] São Leopoldo: Unisinos, 2018. Disponível em: encurtador.com.br/xzENP. Acesso em: 20 dez. 2023.; Caminha; Lapera, 2018CAMINHA, Marina; LAPERA, Pedro. Vai Malandra: a percepção do negro, da favela e do popular no videoclipe de Anitta. In: Comunicon, 2018. Anais eletrônicos [...] São Paulo: ESPM, 2018. Disponível em: encurtador.com.br/AENY6. Acesso em: 20 dez. 2023.) são focados no clipe Vai malandra e destacam como Anitta apresenta na obra uma visão mais fidedigna e positiva do cotidiano da favela, com potencial para desconstruir estereótipos. As ressignificações que os autores percebem envolvem retratar os corpos presentes na cena funk de uma forma mais plural, com a inclusão de pessoas transexuais e corpos femininos não idealizados (Castro; Libardi, 2018CASTRO, Luiz Henrique; LIBARDI, Guilherme Barbacovi. “Vocês pensaram que eu não ia militar hoje?” Cultura popular, gênero e classe no funk Vai malandra. In: Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, II, 2018. Anais eletrônicos [...] São Leopoldo: Unisinos, 2018. Disponível em: encurtador.com.br/xzENP. Acesso em: 20 dez. 2023.), e abordar a favela como uma comunidade de afeto, distante do imaginário de violência que a mídia hegemônica alimenta (Caminha; Lapera, 2018CAMINHA, Marina; LAPERA, Pedro. Vai Malandra: a percepção do negro, da favela e do popular no videoclipe de Anitta. In: Comunicon, 2018. Anais eletrônicos [...] São Paulo: ESPM, 2018. Disponível em: encurtador.com.br/AENY6. Acesso em: 20 dez. 2023.).

Um conjunto adicional de trabalhos explora as tensões e diálogos que Anitta, inserida numa “rede de música pop periférica brasileira”, constrói com a cultura pop global na sua busca por uma carreira no exterior (Pereira de Sá, 2020, 2019). Um dos estudos aborda como as parcerias entre artistas ― os chamados feats3 3 O termo é uma abreviação da palavra inglesa featuring, que significa com participação de. — de gêneros e nacionalidades distintas tem se tornado uma estratégia de visibilidade da música pop periférica brasileira, particularmente o funk, permitindo, ao mesmo tempo, um redesenho das fronteiras de tais gêneros e uma negociação entre as marcas identitárias locais, territoriais e globais (Pereira, 2020PEREIRA DE SÁ, Simone. Anitta no Rock in Rio: negociações de corpos e territórios em performances de divas pop-periféricas. In: SOARES, Thiago; MANGABEIRA, Alan; LINS, Mariana (org.). Divas pop: o corpo-som das cantoras na cultura midiática. Belo Horizonte: Selo Editorial UFMG, 2020. p. 36-57.). Outro trabalho discorre sobre a participação de Anitta em duas edições do festival Rock in Rio: uma em Lisboa (2018) e outra na cidade do Rio de Janeiro (2019).

A autora aborda como Anitta, em ambas as apresentações, explora clichês associados ao Brasil e ao Rio de Janeiro para performar narrativas de conquista contra-hegemônica (Pereira de Sá, 2019PEREIRA DE SÁ, Simone. Os feats de videoclipes como estratégias de consolidação da rede de música pop periférica. In: Encontro da Compós, XXVIII, 2019. Anais eletrônicos [...] Porto Alegre: PUC, 2019. Disponível em: encurtador.com.br/wyBSU. Acesso em: 18 dez. 2023.). Em Lisboa, trata-se da chegada de uma brasileira ao mundo. Já no Rio, o movimento é da periferia ao centro, com a chegada do funk ao palco de um dos mais tradicionais festivais do país, considerando que o criador do evento, Roberto Medina, era inicialmente avesso à inclusão do gênero (Pereira de Sá, 2019PEREIRA DE SÁ, Simone. Os feats de videoclipes como estratégias de consolidação da rede de música pop periférica. In: Encontro da Compós, XXVIII, 2019. Anais eletrônicos [...] Porto Alegre: PUC, 2019. Disponível em: encurtador.com.br/wyBSU. Acesso em: 18 dez. 2023.). Com base nesses estudos, Pereira de Sá (2020, 2019) destaca que as relações entre global e local não devem ser entendidas como mutuamente exclusivas, isto é, a partir da ideia de que a inserção no mercado global se daria às custas de um apagamento das marcas locais. Ao contrário, a autora observa que as performances têm um caráter negociado, no qual as marcas locais e globais se combinam de múltiplas maneiras em termos sonoros, territoriais e de linguagem (Pereira de Sá, 2020PEREIRA DE SÁ, Simone. Anitta no Rock in Rio: negociações de corpos e territórios em performances de divas pop-periféricas. In: SOARES, Thiago; MANGABEIRA, Alan; LINS, Mariana (org.). Divas pop: o corpo-som das cantoras na cultura midiática. Belo Horizonte: Selo Editorial UFMG, 2020. p. 36-57., 2019PEREIRA DE SÁ, Simone. Os feats de videoclipes como estratégias de consolidação da rede de música pop periférica. In: Encontro da Compós, XXVIII, 2019. Anais eletrônicos [...] Porto Alegre: PUC, 2019. Disponível em: encurtador.com.br/wyBSU. Acesso em: 18 dez. 2023.).

Como um acréscimo a essa literatura, pretendemos mostrar que, aos atravessamentos de classe, gênero e raça que a Anitta mobiliza, se articulam também ideias e tensionamentos sobre a nação quando a artista incorpora, em suas performances, a favela ao repertório cultural-identitário brasileiro. Nesse sentido, nosso interesse é não apenas abordar a trajetória e o posicionamento de Anitta como uma diva pop periférica num cenário global, mas partir das representações que a artista elabora para desenvolver uma reflexão mais abrangente sobre os sentidos ambivalentes atribuídos à favela quando a imagem desse território se vincula à do país, tornando-se uma chave para interpretá-lo e concebê-lo. Por isso, na seção seguinte, resgatamos um pouco da história das origens da favela.

Favela e funk: representações ambivalentes

Em 1996, o cantor Michael Jackson veio ao Brasil para gravar o clipe da canção They don’t care about us. Os cenários escolhidos foram o Pelourinho, na Bahia, e a favela de Santa Marta, no Rio de Janeiro. Naquela época, as autoridades brasileiras acusaram a gravadora do artista, a Sony, de explorar a pobreza comercialmente e reforçar o estereótipo da favela como lugar da miséria e da violência (Freire-Medeiros, 2009FREIRE-MEDEIROS, Bianca. Gringo na Laje: Produção, circulação e consumo da favela turística. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2009.). No entanto, vinte anos depois, durante os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, um cenário que remetia à favela figurou na abertura do evento. Essa mudança de atitude mostra, por um lado, que a favela tem sido incorporada à cultura pop com uma série de produções midiáticas que a retratam e que suas manifestações culturais e estéticas são celebradas e levadas para fora do país (Villaça, 2012VILLAÇA, Nizia. A periferia pop na idade mídia. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2012.). Por outro, a favela continua a ser vista como um território da pobreza e dos problemas sociais (Valladares, 2005VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da favela: do mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.), algo de que o país, portanto, não poderia se orgulhar.

Talvez nenhuma outra atividade como o turismo expresse melhor essa ambivalência. Desde pelo menos 1992, são realizadas excursões guiadas nas favelas do Rio de Janeiro, mas a atividade só obteve reconhecimento oficial em 2006, quando um projeto de lei tornou a Rocinha um dos pontos turísticos oficiais da cidade (Freire-Medeiros, 2009FREIRE-MEDEIROS, Bianca. Gringo na Laje: Produção, circulação e consumo da favela turística. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2009.). Os críticos argumentam que o turismo em favelas é uma “exploração da miséria”, um “safári de pobres”, algo que é prejudicial à imagem do país, enquanto os defensores alegam que se trata de uma forma de desenvolver econômica e socialmente as áreas onde ocorre a atividade turística (Freire-Medeiros, 2009FREIRE-MEDEIROS, Bianca. Gringo na Laje: Produção, circulação e consumo da favela turística. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2009.). Nesta seção, vamos considerar que a ambivalência que acompanha as representações da favela também está presente no funk, em se tratando de um gênero originado nas favelas e que fez parte da trajetória da cantora Anitta. Para isso, vamos apresentar brevemente algumas das representações sobre a favela ao longo de sua história.

Desde os anos 1920, as favelas têm atraído a atenção de artistas. Com uma orientação nativista, o movimento modernista brasileiro, por exemplo, encontrou nas favelas um exemplo de expressão cultural e estética puramente brasileira e a alçou à condição de símbolo da cultura nacional (Jacques, 2000JACQUES, Paola Berenstein. As favelas do Rio, os modernistas e a influência de Blaise Cendrars. Interfaces - Revista do Centro de Letras e Artes, v. 7, p. 185-200, 2000.). Não só as favelas passaram a ser temas de pinturas de artistas como Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Lasar Segall e Cândido Portinari, como também artistas e intelectuais estrangeiros que vinham ao Brasil eram convidados a conhecê-las (Jacques, 2000JACQUES, Paola Berenstein. As favelas do Rio, os modernistas e a influência de Blaise Cendrars. Interfaces - Revista do Centro de Letras e Artes, v. 7, p. 185-200, 2000.), antecedendo, em algumas décadas, a profissionalização do turismo nesses espaços. No entanto, apesar das representações artísticas terem conferido às favelas uma imagem positiva, parte da sociedade enxergava esses espaços como uma completa antítese da modernidade e uma “lepra estética” que deveria ser erradicada (Jacques, 2000JACQUES, Paola Berenstein. As favelas do Rio, os modernistas e a influência de Blaise Cendrars. Interfaces - Revista do Centro de Letras e Artes, v. 7, p. 185-200, 2000.).

O uso de termos epidemiológicos não era por acaso. Foi pelas lentes higienistas e civilizatórias que as favelas do Rio de Janeiro começaram a ser vistas como um problema: temia-se que as condições insalubres em que viviam os moradores tornassem essas localidades propícias à proliferação de doenças, ameaçando, por consequência, o restante da cidade (Valladares, 2005VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da favela: do mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.). Assim, a postura inicial da administração pública foi promover uma política que visava a eliminar as favelas e substituí-las por alojamentos em conformidade com os critérios técnicos (Valladares, 2005VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da favela: do mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.). O auge dessa orientação se deu nos 1960 e 1970, em meio ao autoritarismo do regime militar (Burgos, 2004BURGOS, Marcelo Baumann. Dos parques proletários ao Favela-Bairro: as políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro. In: ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos (orgs). Um século de favela. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 25-60).

No entanto, tais intervenções não conseguiram conter o crescimento das favelas, especialmente porque os moradores removidos retornavam aos morros porque não conseguiam manter-se nos conjuntos habitacionais (Valladares, 2005VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da favela: do mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.). Além disso, passou a haver uma mobilização maior dos moradores e da sociedade civil, como Organizações Não Governamentais (ONGs), a Igreja Católica, contra as remoções. Diante do fracasso das políticas habitacionais, da resistência da população e do custo eleitoral implicado nas remoções, a favela deixou de ser vista como um problema para ser uma “solução”, que passava por levar serviços públicos e urbanização a esses espaços (Valladares, 2005VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da favela: do mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.).

Mais recentemente, a partir da década de 1980, a presença de grupos paraestatais, como bicheiros e traficantes de droga, se intensificou nas favelas (Burgos, 2004BURGOS, Marcelo Baumann. Dos parques proletários ao Favela-Bairro: as políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro. In: ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos (orgs). Um século de favela. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 25-60), o que resultou num aumento na percepção da violência na cidade do Rio de Janeiro e num temor dos habitantes do “asfalto” sobre o morro (Valladares, 2005VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da favela: do mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.). É nesse contexto que podemos compreender por que o funk, como uma manifestação originada na favela e um gênero vinculado a esse território, foi inicialmente estigmatizado e associado ao crime (Facina, 2009FACINA, Adriana. “Não me bate doutor”: Funk e criminalização da pobreza. V Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura – Enecult, Bahia, 2009. Anais... Salvador: Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, maio 2009. Disponível em: encurtador.com.br/tY038. Acesso em: 27 nov. 2022.; Pereira de Sá, 2008PEREIRA DE SÁ, Simone. Som de preto, de proibidão e tchutchucas: o Rio de Janeiro nas pistas do funk carioca. In: PRYSTHON, Angela; CUNHA, Paulo (orgs.). Ecos urbanos: a cidade e suas articulações midiáticas. Porto Alegre: Sulina, 2008. p. 228-247.). Não só o gênero em si, mas todas as práticas e agentes com ele envolvidos. Os bailes funk nas favelas foram vistos, por exemplo, como propícios ao comércio de drogas, postura que levou a medidas que impediam, na prática, que as festas funcionassem, como a exigência de que tivessem a presença de policiais (Facina, 2009FACINA, Adriana. “Não me bate doutor”: Funk e criminalização da pobreza. V Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura – Enecult, Bahia, 2009. Anais... Salvador: Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, maio 2009. Disponível em: encurtador.com.br/tY038. Acesso em: 27 nov. 2022.). No entanto, a despeito de a música ser considerada de mau gosto, com letras e produção pouco sofisticadas, os artistas e profissionais do funk passaram a figurar com mais frequência na mídia e atrair públicos de diferentes classes sociais, o que foi favorecido pela presença do gênero em festivais de música alternativa e pela atenção que recebeu de artistas internacionais, como a cantora britânica M.I.A. e o produtor norte-americano Diplo (Facina, 2009FACINA, Adriana. “Não me bate doutor”: Funk e criminalização da pobreza. V Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura – Enecult, Bahia, 2009. Anais... Salvador: Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, maio 2009. Disponível em: encurtador.com.br/tY038. Acesso em: 27 nov. 2022.; Pereira de Sá, 2008PEREIRA DE SÁ, Simone. Som de preto, de proibidão e tchutchucas: o Rio de Janeiro nas pistas do funk carioca. In: PRYSTHON, Angela; CUNHA, Paulo (orgs.). Ecos urbanos: a cidade e suas articulações midiáticas. Porto Alegre: Sulina, 2008. p. 228-247.).

Se a favela sempre produziu manifestações culturais, como o samba, que se tornaram símbolos da cultura e da identidade brasileiras, e foi, desde os primórdios, inspiração para artistas e intelectuais, vamos observar, na próxima seção, como a cantora Anitta atualiza na performance do Coachella a concepção da favela como parte da cultura e da identidade brasileiras.

#Anichella: a visão de Anitta sobre o Brasil no Coachella

Realizado desde 1999, o Coachella é um festival de música norte-americano que ocorre na cidade de Indio, no deserto da Califórnia. Com a proposta inicialmente de ser uma atração mais alternativa com raízes no rock, o festival se expandiu e se diversificou ao longo do tempo, tornando-se um palco importante para artistas emergentes e de carreira mais consolidada (Lorentz; Ortega, 2022LORENTZ, Braulio; ORTEGA, Rodrigo. Anitta canta no Coachella nesta sexta-feira: qual a importância de se apresentar no festival? G1, 15 abr. 2022. Disponível em: https://encurtador.com.br/ejpy4. Acesso em: 05 out. 2022.
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). Em 2018, por exemplo, a cantora Beyoncé fez história como a primeira mulher negra a ser atração principal do festival, fato que, aliado à aclamação de público e crítica, fez a apresentação ficar conhecida como “Beychella” (Porfirio, 2018PORFIRIO, Anita. Beychella: 10 motivos por que Beyoncé fez história no Coachella. Vogue, 15 abr. 2018. Disponível em: https://encurtador.com.br/ozIL3. Acesso em: 07 dez. 2022.
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). Para mostrar que o show de Anitta também foi um marco, os fãs da cantora, em referência à Beyoncé, promoveram no Twitter (atual X) a hashtag #Anichella.

A carioca aproveitou o espaço para apresentar sua visão sobre a cultura brasileira a um público estrangeiro, conforme a artista afirmou em uma entrevista ao portal de notícias G1: “Eu vou fazer um show super diferente, mais voltado para um público internacional. Vou cantar minhas músicas, claro, em português. Mas a intenção é mostrar o ritmo do funk, a cultura brasileira como é. Vai ser um show mais cultural do que qualquer outra coisa” (Lorentz; Ortega, 2022LORENTZ, Braulio; ORTEGA, Rodrigo. Anitta canta no Coachella nesta sexta-feira: qual a importância de se apresentar no festival? G1, 15 abr. 2022. Disponível em: https://encurtador.com.br/ejpy4. Acesso em: 05 out. 2022.
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). Por essa fala, percebe-se que Anitta buscou se posicionar, de certo modo, como uma mediadora do público com a cultura brasileira.

O show de Anitta teve duração aproximada de 45 minutos e foi dividido em três atos, marcados pela mudança de cenário e de figurino (Figura 1). No primeiro, a artista apresentou-se vestida com as cores da bandeira brasileira num ambiente que evoca uma favela. No segundo, a carioca surgiu vestida com uma calça e um top estampados, tendo como fundo uma parede grafitada, que remete a uma cultura urbana4 4 García Canclini (1998) afirma, por exemplo, que o grafite é um gênero híbrido relacionado a disputas pelo controle territorial. . No último ato, Anitta recria um baile funk, com um cenário que remete às festas da produtora Furacão 2000, onde Anitta iniciou a carreira. O setlist é composto principalmente de parcerias internacionais de Anitta com artistas do mercado americano e hispânico: Onda diferente (com o rapper americano Snoop Dogg, presente no palco, e a brasileira Ludmilla); Me gusta (com a rapper americana Cardi B); Downtown (com o colombiano J. Balvin). Ao longo da apresentação, Anitta explora um conjunto de clichês relacionados ao Brasil e à cidade do Rio de Janeiro e dedica o último segmento ao funk, de forma semelhante às apresentações do Rock in Rio (Pereira de Sá, 2019PEREIRA DE SÁ, Simone. Os feats de videoclipes como estratégias de consolidação da rede de música pop periférica. In: Encontro da Compós, XXVIII, 2019. Anais eletrônicos [...] Porto Alegre: PUC, 2019. Disponível em: encurtador.com.br/wyBSU. Acesso em: 18 dez. 2023.).

Figura 1
Troca de cenários e figurinos nos três atos da apresentação de Anitta no Coachella.

Em linha com a ideia de que as performances “acionam memórias” e “colocam em perspectiva experiências” (Amaral; Soares; Polivanov, 2018AMARAL, Adriana; SOARES, Tiago; POLIVANOV, Beatriz. Disputas sobre performance nos estudos de comunicação: desafios teóricos, derivas metodológicas. Intercom: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, v. 41, n. 1, p. 63-79, 2018., p. 70), nossa análise será focada em elementos da apresentação da cantora no festival americano que nos parecem evocativos da identidade e da cultura brasileiras: o figurino; a cultura sonora; o cotidiano da favela; os corpos. O intuito é destacar como Anitta se posiciona como uma articuladora/mediadora entre o global e o local e como atualiza a vinculação da favela ao repertório cultural-identitário brasileiro. O primeiro ― e talvez ― mais óbvio elemento de vinculação da imagem da cantora ao Brasil ocorreu por meio de sua escolha de figurino ao vestir, no primeiro ato do show, uma roupa com as cores da bandeira brasileira (Figura 2). Podemos considerar que o fato de Anitta ter nascido e se criado no Brasil já a legitimava naturalmente a falar em nome do país, mas, seguindo o pensamento de Hall (1992)HALL, Stuart. The question of cultural identity. In: HALL, Stuart; HELD, David; McGREW, Tony (org.). Modernity and its futures. Cambridge: Polity Press, 1992. p. 273-326., entendemos que as identidades nacionais, por mais que pareçam essencialistas, impressas em nosso ser, são formadas dentro e em relação a sistemas de representação que se mantêm por meio da participação dos membros de uma sociedade. Como afirma Hall (1992, p. 292)HALL, Stuart. The question of cultural identity. In: HALL, Stuart; HELD, David; McGREW, Tony (org.). Modernity and its futures. Cambridge: Polity Press, 1992. p. 273-326., “as pessoas não são apenas cidadãs legais de uma nação; elas participam da ideia da nação representada em sua cultura nacional”5 5 No original: “People are not only legal citizens of a nation; they participate in the idea of the nation as represented in its national culture” (Hall, 1992, p. 292). . Dentro desse sistema de representação com o qual nos engajamos, estão os símbolos nacionais, como a bandeira.

Alguns fãs brasileiros questionaram a escolha do figurino porque, desde as eleições presidenciais de 2018, as cores da bandeira passaram a ser associadas com apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, de extrema-direita. Em resposta, Anitta afirmou no Twitter (atual X) que “a bandeira do Brasil e as cores da bandeira do Brasil pertencem aos BRASILEIROS. Representam o BRASIL em GERAL. NINGUÉM pode se apropriar do significado das cores das bandeiras do nosso país. Fim.”6 6 Disponível em: https://x.com/Anitta/status/1515191195885989889?s=20. Nesse aspecto, além da tentativa de realizar uma transferência simbólica por meio da escolha da roupa, a cantora investiu esse consumo de um significado político, promovendo um deslocamento de sentidos que se tornaram comuns.

Figura 2
Figurino de Anitta com as cores da bandeira brasileira.

Se, a princípio, a vinculação da cantora com o Brasil se dá por meio dos símbolos nacionais, durante o show, a artista expande a brasilidade para uma cultura sonora — traduzida em gêneros, ritmos musicais e danças ― que é produzida, consumida no país e identificada com certos territórios: a favela, a cidade do Rio de Janeiro, a Bahia, entre outros. Explorando esse conjunto de referências, percebemos que Anitta se propõe a falar, ao mesmo tempo, do Brasil como um todo, mas sempre em articulação com sua própria trajetória como uma artista proveniente da periferia carioca e com raízes no funk. Para isso, a cantora se apoia em referências mais consagradas da cultura brasileira, como o samba e a bossa nova, ao mesmo tempo que introduz o seu ponto de vista, relacionado a uma cultura urbana periférica. Essa mescla é sintetizada na execução da música Girl from Rio, releitura de Garota de Ipanema, uma das canções brasileiras mais conhecidas internacionalmente. Se a última exalta uma beleza branca e representa um estilo musical ― a bossa nova ― associado a um consumo refinado e elitizado, Girl from Rio é construída do ponto de vista de uma mulher periférica e não branca. Nela, Anitta apresenta o ouvinte a um Rio de Janeiro diferente, aquele que só quem “não tem um real” conhece7 7 Os versos da música dizem: “Let me tell you about a different Rio (yeah)/The one I’m from, but not the one that you know (hey)/The one you meet when you don’t have no Real (ay)”. Em tradução livre: “Deixe-me contar sobre um Rio diferente/Aquele de onde venho, mas não o que você conhece/Aquele que você conhece quando não tem um real”. . No Coachella, o movimento de releitura é representado pela transição entre a canção original, cujos versos são entoados por Anitta, e a versão da artista.

No entanto, ainda que ancore sua identidade no Brasil, a cantora, na condição de uma estrela pop com aspiração internacional, já não é mais apenas brasileira quando canta em outros idiomas, como o espanhol e o inglês, e orienta sua produção visando a conquistar mercados externos, como o dos países sul-americanos e o estadunidense. Como observa Pereira de Sá (2019PEREIRA DE SÁ, Simone. Os feats de videoclipes como estratégias de consolidação da rede de música pop periférica. In: Encontro da Compós, XXVIII, 2019. Anais eletrônicos [...] Porto Alegre: PUC, 2019. Disponível em: encurtador.com.br/wyBSU. Acesso em: 18 dez. 2023., 2020)PEREIRA DE SÁ, Simone. Anitta no Rock in Rio: negociações de corpos e territórios em performances de divas pop-periféricas. In: SOARES, Thiago; MANGABEIRA, Alan; LINS, Mariana (org.). Divas pop: o corpo-som das cantoras na cultura midiática. Belo Horizonte: Selo Editorial UFMG, 2020. p. 36-57., Anitta executa uma performance negociada em que as marcas locais se combinam com as globais sem que uma necessariamente anule a outra. Tal orientação remete ao cosmopolitismo da cultura pop, que possibilita situar indivíduos, por meio de pertencimentos, compartilhamento de afinidades, formas de fruição e consumo, dentro de um sentido transnacional e globalizante (Soares, 2014SOARES, Thiago. Abordagens teóricas para estudos sobre cultura pop. Logos, Rio de Janeiro, v. 24, n. 2, 2014. Disponível em: https://encurtador.com.br/qIKM5. Acesso em: 08 nov. 2022.
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). E evidencia também um modo de construção identitário mais aberto, móvel e fragmentando, que assume que nenhuma identidade pode alinhar todas as outras (Hall, 1992HALL, Stuart. The question of cultural identity. In: HALL, Stuart; HELD, David; McGREW, Tony (org.). Modernity and its futures. Cambridge: Polity Press, 1992. p. 273-326.).

Pode-se considerar então que a performance de Anitta mobiliza ao menos duas identidades: uma brasileira, que é construída na articulação do geral com o particular, e outra de estrela pop, que se dá na articulação do global com o local. A nosso ver, é essa capacidade da artista de mobilizar diferentes identidades e escalas que a legitima para mediar concepções a respeito da identidade e da cultura brasileiras para um público estrangeiro. Pode-se considerar, a princípio, que tal mobilização da identidade e da cultura brasileiras seja apenas uma estratégia de diferenciação de Anitta num mercado internacional e competitivo, mas acreditamos que a performance não se reduza a isso, pois também provoca tensionamentos em torno dos símbolos nacionais e do que pode ou não ser considerado parte da cultura e da identidade brasileiras. Nesse aspecto, queremos chamar a atenção para a maneira como a favela é representada, assumindo que, se Anitta, no momento do show, personifica o Brasil para um público estrangeiro, por extensão, alguns dos elementos da performance também podem ser compreendidos como parte da identidade e da cultura brasileiras.

Embora o foco deste artigo não seja discutir questões estéticas, percebemos que o show estetiza a favela ao utilizar cenários e adereços cênicos que remetem à paisagem e ao cotidiano dos morros cariocas, como a mesa de sinuca de bar e grades de cerveja que formam uma espécie de arquibancada. Para Jacques (2003)JACQUES, Paola Berenstein. Estética das Favelas. Rizoma.Net, p. 99-106, 2003., a estética da favela, num plano arquitetônico, é caracterizada pela fragmentação, pelo traçado labiríntico e pela estrutura rizomática, sem um centro definido. Em contraposição à arquitetura formal, que elabora um projeto para então construir e finalizar uma casa ou uma malha urbana, na favela, as construções e o traçado urbano são mais maleáveis e flexíveis: vão sendo feitos e refeitos conforme os usos, as necessidades e a disponibilidade de recursos (Jacques, 2003JACQUES, Paola Berenstein. Estética das Favelas. Rizoma.Net, p. 99-106, 2003.). O show reproduz essa estética por meio dos adereços cênicos e de um cenário com casas sem acabamento. A moto que Anitta utiliza para entrar no palco ― uma referência ao clipe Vai malandra ― remete, por exemplo, ao traçado irregular e labiríntico das vias de uma favela, que só pode ser atravessado por um meio de transporte de menor porte. Já as grades de cerveja, que formam assentos para os bailarinos, se associam ao improviso. É importante destacar que Anitta, ao longo da apresentação, não retrata nenhuma favela em específico, mas opta por uma representação mais genérica com certos elementos que tais territórios, em toda a sua diversidade, teriam em comum.

De forma ora sutil, ora controversa, percebemos que a questão racial também atravessa a carreira da artista. No show do Coachella, por exemplo, os dançarinos eram em sua maioria negros e pardos (Figura 3), o que, relacionado ao contexto de celebração da brasilidade da apresentação, pode remeter não apenas a um compromisso com a diversidade, mas à concepção de que a mestiçagem é um traço do país, tal como propunham intelectuais brasileiros no final do século XIX (Ortiz, 1994ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994.). Já a identidade racial de Anitta suscita debates. Por diversas vezes, a cantora foi acusada de uma alegada “conveniência racial” pela maneira como, sem afirmar um pertencimento ou identidade racial, alterna entre um visual mais “enegrecido” (pele bronzeada, tranças ou cabelos cacheados) quando ressalta as periferias e outro mais “embranquecido” (pele mais clara, cabelo liso) quando deseja performar riqueza e sofisticação (Arantes, 2023ARANTES, Dariane Lima. Presenças de Anitta, sentidos sobre o Brasil: uma leitura interseccional das audiovisualidades de uma estrela do pop. 2023. 259f. Tese (Doutorado em Comunicação e Práticas de Consumo) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo, Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), São Paulo, 2023.).

Figura 3
Anitta, de costas, rodeada por dançarinos na apresentação de Movimento da sanfoninha.

Mesmo que a favela tenha sido cenário apenas do primeiro ato, é possível considerar que todo o show é marcado por referências a uma cultura originada na periferia carioca, que refletem a própria trajetória de Anitta: o funk, a indumentária, a dança, a estética da favela. Como se trata de uma performance para representar o Brasil a um público estrangeiro, consideramos que a cantora tenha explorado a favela e suas manifestações culturais e artísticas como parte de cultura e identidade nacionais, indo além dos símbolos e referências já consagrados do país, como o samba, a bossa nova, a natureza exuberante, entre outros. Na próxima seção vamos discutir as implicações dessa abordagem.

Favela: ser ou não ser identidade e cultura nacionais

Para inspirar a reflexão sobre as implicações de tratar a favela como parte da cultura e da identidade nacional, recorremos, de forma exploratória, a alguns comentários do Twitter (atual X)8 8 Para realizar a pesquisa, utilizamos uma combinação de termos relacionados aos objetivos ou problematizações deste estudo: Anitta favela Brasil; Anitta favela realidade; Anitta favela pobreza; Anitta Coachella favela Brasil. sobre a maneira como Anitta aborda esses territórios em suas apresentações ao vivo e produções audiovisuais. Numa categorização livre, identificamos que os usuários levantam três pontos: 1) o reforço ― ou quebra ― de estereótipos sobre o Brasil; 2) os interesses comerciais de Anitta; 3) avalições sobre quão verossímil, próxima do real, é a representação feita pela artista.

No primeiro caso, a artista é acusada de promover uma imagem hipersexualizada dos moradores da favela, especialmente de mulheres negras, o que pode levar a interpretações de que o Brasil é um destino de turismo sexual (“Anitta apenas mais uma oportunista, usando a favela de fundo para se promover. E ainda de quebra reforça os esteriótipos [sic] da mulher de favela ‘insaciável’ que todo gringo alimenta na cabeça9 9 Decidimos conservar a escrita original. ” ― @gabr1s4, 28 jan. 2023). Em diálogo com Arantes (2023)ARANTES, Dariane Lima. Presenças de Anitta, sentidos sobre o Brasil: uma leitura interseccional das audiovisualidades de uma estrela do pop. 2023. 259f. Tese (Doutorado em Comunicação e Práticas de Consumo) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo, Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), São Paulo, 2023., entendemos que, numa proposta de conceber a favela como imagem/representante do país, os recortes raciais, de gênero e de classe devem ser considerados, ao mesmo tempo, chaves de leitura essenciais e elementos mobilizados/tensionados por tal prática de representação.

Ainda relacionado aos estereótipos, outra preocupação é que se consolide e perpetue a ideia de que o Brasil é um grande conjunto de favelas (“unpopular opinion: anitta foi pro coachella reforçar o esteriótipo [sic] de que brasil é só favela, futebol e samba” ― @nicmuhlbauer, 17 abr. 2022). O autor do comentário não deixa claro o que haveria de indesejável nos estereótipos, mas podemos especular que, no caso da favela, seriam os sentidos negativos comumente atribuídos a esse território ― pobreza, infraestrutura urbana inadequada, violência. Se, de um lado, há usuários que percebem que Anitta se apoia em estereótipos, outros enxergam a representação que a artista faz da favela como uma oportunidade para ampliar o repertório cultural-identitário brasileiro, mostrar pontos de vista que são ignorados/marginalizados (“Anitta levou o funk pro palco principal do Coachella, Esse deslocamento que ela promove, enaltecer aquilo que é tão discriminado no Brasil” ― @caroldartora13, 18 abr. 2022).

Também não escapa da percepção dos usuários os supostos interesses comerciais de Anitta quando ressalta a favela em suas produções. Enquanto alguns acreditam que essa abordagem pode ser infrutífera porque presumem que não agrada ao gosto do público estrangeiro (“O conceito de favela q a Anitta resolveu trabalhar nunca será consumido por americanos; Americano não celebra a pobreza, ele esconde” ― @Ly0nard0, 12 ago. 2023), outros entendem que se trata de uma forma de torná-la identificável para o mesmo público de gringos (“Quando a Anitta assume esse visual ‘periférico’ e a ‘estética de favela’, ela precisa eu os gringo olhem pra isso a saquem logo de cara ― ‘hmm, ela é brasileira!” ― @sociocronica, 24 set. 2023). Ainda na mesma temática, acusações mais graves giram em torno da ideia de que Anitta estaria explorando, em proveito próprio e de forma indevida, a situação de vulnerabilidade socioeconômica que marcaria a favela (“não acusando a anitta de nada, mas acho no mínimo estranha que TODA notícia que sai dela na favela, é gravando clipe. ta feio já, ela quer desesperadamente monetizar uma realidade triste, essa glamourização da pobreza é ridícula” ― @miaentrelinhas, 07 nov. 2023).

Essa crítica se relaciona com o último ponto que identificamos: as avaliações sobre quão próximas ou não da realidade estariam as representações sobre a favela feitas por Anitta. As posições se dividem entre acusar a artista de se distanciar do real, seja por meio do estereótipo, seja por meio de uma estetização que mascara/reduz as complexidades desses territórios, ou de considerar que a cantora apenas lança luz sobre condições de vida existentes no Brasil (“vai malandra incomoda simplesmente pq é o retrato da realidade de um país que tenta ao máximo mascarar tudo, anitta mostrou que a favela tem voz e ela pode e vai gritar o mais alto possível” ― @candynitta, 09 jan. 2018). No último caso, a favela é tratada como se fosse uma realidade em si mesma, transparente. Torná-la visível já seria uma forma de evidenciar as mazelas sociais brasileiras. Nesse sentido, percebemos que se articulam dois parâmetros para avaliar o real da representação de Anitta: a realidade (cotidiano) da favela e a realidade (contexto socioeconômico) do país projetada em territórios que simbolizam a pobreza, as desigualdades. Submetida a esse jogo de visibilidade e ocultamento, a favela atua como um elemento no qual se projetam, se debatem e se tensionam sentidos sobre o Brasil.

Podemos elaborar e depreender desses comentários algumas implicações decorrentes de incorporar a favela ao patrimônio e repertório cultural-identitário brasileiro e vinculá-la à imagem do país. Sem pretensão de ser exaustivo, listamos aqui três delas: tal proposta equivaleria a: 1) afirmar que as favelas não são um problema de ordem social, urbana e política e, pelo contrário, devem ser preservadas; 2) admitir que as mazelas sociais comumente associadas a esses territórios são algo que nos constitui, o que entraria em conflito com a tentativa de projetar uma imagem positiva do país; e, como último ponto, 3) dissimular as complexidades desses territórios por meio de uma representação estetizada e homogeneizante.

Podemos contrapor essas visões em linha com as proposições de Martín-Barbero (2015, 1995)MARTÍN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2015., García Canclini (1998)GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas. São Paulo: Edusp, 1998. e Stuart Hall (2003)HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte/Brasília: Editora UFMG/Representação, 2003. sobre a cultura popular. Em primeiro lugar, podemos assumir que, mesmo que a favela venha a ocupar um espaço de igualdade simbólica, a relação da cultura popular, da qual a favela é representante, com a cultura dominante é sempre marcada por tensionamentos e dinamicidade. A esse respeito, Hall (2003, p. 258) parte da ideia de que as formas e atividades culturais são compostas de elementos instáveis e contraditórios para defender uma definição de cultura popular de caráter relacional, que leve em conta, em vez de questões de autenticidade e integridade, a maneira como essa cultura é tensionada com a dominante e a maneira como os significados atribuídos às formas culturais são provisórios.

Sob esse ponto de vista, podemos entender que a ambivalência é peça inerente da maneira como a favela é percebida como parte da identidade nacional. Ambivalência que se expressa, de um lado, por uma desqualificação cultural dos seus habitantes e das manifestações que ali se originam, como o funk, e da estigmatização do seu território como local da violência e da pobreza, de outro, pela inserção da favela, da estética e cultura que lhe são associadas em circuitos comerciais e midiáticos internacionais, como a performance da Anitta no Coachella e a Abertura dos Jogos Olímpicos do Rio. Tal ambivalência encontra sentido, ao mesmo tempo, tanto na concepção das classes populares como uma classe sem gosto, incapaz de promover distinção social (Martín-Barbero, 1995MARTÍN-BARBERO, Jesus. América Latina e os anos recentes: o estudo de recepção em comunicação social. In: SOUSA, Mauro Wilton (org.). Sujeito, o lado oculto do receptor. ECA-USP/Brasiliense, 1995. p. 39-68.), quanto na tentativa dos países latino-americanos de funcionalizar sua diferença cultural, seja projetando-a sobre o conjunto da nação quando é grande demais, seja transformando-a em algo exótico, folclórico (Martin-Barbero, 2015).

Seguindo por esse caminho, podemos conceber a favela como uma síntese das hibridações de que é constituída a América Latina, com base no que propõem Martín-Barbero (2015MARTÍN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2015., 1995)MARTÍN-BARBERO, Jesus. América Latina e os anos recentes: o estudo de recepção em comunicação social. In: SOUSA, Mauro Wilton (org.). Sujeito, o lado oculto do receptor. ECA-USP/Brasiliense, 1995. p. 39-68. e García Canclini (1998)GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas. São Paulo: Edusp, 1998.. Em primeiro lugar, a favela é um espaço de articulação do rural com o urbano, seja por ter sido associada, em seus primórdios, com o ambiente rural (Valladares, 2005VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da favela: do mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.), seja por ter acomodado imigrantes de áreas rurais que ali tentaram adaptar-se aos modos de vida da cidade. Em segundo, é um espaço de articulação do popular, do massivo e do culto por meio de processos de desterritorialização e do reordenamento das classificações culturais, apontados por García Canclini (1998)GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas. São Paulo: Edusp, 1998. como evidência da hibridação.

A favela já não diz respeito apenas a um território, mas se move por diferentes produções midiáticas e circula em diferentes contextos dentro e fora do Brasil, como evidencia o show da Anitta. O funk é outro exemplo dessas articulações, já que suas músicas se compõem de mesclas com a cultura pop internacional e até mesmo com música erudita, caso da canção Bum bum tam tam, de Mc Fioti, que traz um sample de uma obra do compositor Johann Sebastian Bach. Em certa medida, na favela também se projetam questões sobre o desenvolvimento e a modernidade latino-americanas. Sob a chave do “atraso constitutivo” (Martín-Barbero, 2015MARTÍN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2015.), a favela pode ser vista como um sinal inequívoco do subdesenvolvimento e da estagnação social e econômica dos países latino-americanos.

Como último ponto, podemos abordar a distância que há entre a favela objeto de representação positiva e a favela real. Stuart Hall (2016, p. 143)HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Editora Apicuri-PUC-RJ, 2016. afirma que toda tentativa de fixar um significado é “uma prática representacional que intervém nos vários significados potenciais de uma imagem e tenta privilegiar um deles”. Nesse aspecto, a representação que Anitta faz do Brasil pode ser entendida como uma visão seletiva, que parte da sua própria trajetória de vida como uma mulher não branca, nascida e criada na periferia carioca. Por extensão, a identidade nacional pode ser pensada também como uma prática representacional ou, como propõe Renato Ortiz (1994, p. 138)ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994., uma virtualidade, que se manifesta como um “projeto que se vincula às formas sociais que a sustentam”. Ortiz (1994)ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994. argumenta que a memória e a identidade nacional derivam da cultura popular e se situam no quadro de um projeto político-ideológico patrocinado pelo Estado, mas não se confundem com as memórias e os valores concretos dos grupos populares, pois “dissolvem a heterogeneidade da cultura popular na univocidade do discurso ideológico” (Ortiz, 1994ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994., p. 138). De maneira correlata, podemos considerar que a favela que Anitta representa não é a favela real, com sua complexidade, heterogeneidade, seus problemas, mas é uma favela virtual.

No entanto, acreditamos que a representação da favela como parte da identidade nacional não dissimula por completo as lutas entre classes e a segregação socioespacial, mas chama a atenção justamente para as contradições e ambivalências do país. García Canclini (1998, p. 350)GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas. São Paulo: Edusp, 1998. afirma que “as práticas culturais são, mais que ações, atuações. Representam, simulam as ações sociais, mas só às vezes operam como uma ação”. Sob esse ponto de vista, o valor de representar a favela não pode ser medido pela sua eficácia ou capacidade de modificar a realidade ou condições de vida de quem ali habita, mas por aquilo que torna evidente, inclusive o fato de que favela é culturalmente significativa. Considerar que a favela é apenas um problema e, portanto, não pode ser objeto de representações positivas é impor uma concepção única sobre o espaço urbano e negar a relação afetiva que os moradores da favela têm com o espaço em que vivem.

Considerações finais

Neste artigo, buscamos discutir de que maneira a favela é abordada como parte da identidade e da cultura brasileiras por meio da performance da cantora Anitta no festival do Coachella. Mostramos que, desde os primórdios, as favelas são tema de artistas e intelectuais, que a elegeram como um dos símbolos da cultura nacional num momento de busca por elementos puramente brasileiros. Em certa medida, num contexto já atravessado por uma cultura pop global, a cantora Anitta atualiza essa abordagem, mas, do ponto de vista enunciativo, se diferencia dos modernistas porque, ao contrário deles, assume uma origem periférica, o que lhe permite abordar a favela e suas manifestações culturais, como o funk, de um ponto de vista pessoal, como parte de sua trajetória. No entanto, a legitimidade da artista ao falar como uma local também pode ser questionada pelo fato de que ela não é proveniente propriamente de uma favela, mas sim de um bairro periférico do Rio de Janeiro.

Se, a princípio, pode-se considerar que Anitta tem interesse em explorar a identidade e a cultura brasileiras apenas como uma estratégia de diferenciação num mercado internacional competitivo, acreditamos que sua performance também mobilize tensionamentos entre a cultura popular e a dominante, especialmente em torno dos símbolos nacionais e do que pode ou não ser considerado parte da cultura e da identidade brasileiras. Partindo disso, tratamos de três implicações ao se abordar a favela como parte dessa cultura e identidade: 1) admitir que as mazelas sociais comumente associadas a esses territórios são algo que nos constitui, o que entraria em conflito com a tentativa de projetar uma imagem positiva do país; 2) a dissimulação das complexidades da favela por meio de uma representação estetizada e homogeneizante; 3) a concepção de que incorporar a favela ao patrimônio cultural nacional equivaleria a aceitar a favela tal como é.

Argumentamos que a ambivalência é parte inerente da maneira como a favela é percebida e que o valor de representá-la está em tornar evidente justamente as ambivalências e contradições de que é constituído o país, assim como chamar a atenção para o fato de que as favelas são culturalmente significativas. Além disso, destacamos que, na proposta de conceber/interpretar a imagem do país por meio da favela, entram em jogo recortes raciais, de gênero e de classe, como evidenciam as críticas à objetificação de mulheres negras da periferia nas obras de Anitta e a preocupação de que o Brasil seja visto como um destino de turismo sexual. A interpretação que fizemos, é claro, é uma das possíveis a respeito da apresentação da artista no Coachella, pois a favela é acionada também como um cenário de performatização do funk, como um território afetivamente vinculado a esse gênero.

De todo modo, apesar de as políticas que visavam a erradicar as favelas terem sido substituídas por uma política de integração à cidade via urbanização, consideramos que no imaginário ainda existe a ideia da favela como problema ― território da pobreza e da violência. Como este estudo teve caráter exploratório e focou num caso específico, os resultados que apresentamos são limitados. Recomenda-se que novos estudos sejam realizados, com uma amostra maior e outras técnicas, inclusive entrevistas e questionários com consumidores, para aprofundar a discussão sobre a articulação da favela com a identidade e a cultura brasileiras.

  • 1
    Um versão deste artigo foi apresentada no 46º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, no GP Comunicação, Música e Entretenimento.
  • 2
    Para um relato mais completo sobre a trajetória de Anitta, conferir a tese de Arantes (2023)ARANTES, Dariane Lima. Presenças de Anitta, sentidos sobre o Brasil: uma leitura interseccional das audiovisualidades de uma estrela do pop. 2023. 259f. Tese (Doutorado em Comunicação e Práticas de Consumo) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo, Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), São Paulo, 2023..
  • 3
    O termo é uma abreviação da palavra inglesa featuring, que significa com participação de.
  • 4
    García Canclini (1998)GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas. São Paulo: Edusp, 1998. afirma, por exemplo, que o grafite é um gênero híbrido relacionado a disputas pelo controle territorial.
  • 5
    No original: “People are not only legal citizens of a nation; they participate in the idea of the nation as represented in its national culture” (Hall, 1992HALL, Stuart. The question of cultural identity. In: HALL, Stuart; HELD, David; McGREW, Tony (org.). Modernity and its futures. Cambridge: Polity Press, 1992. p. 273-326., p. 292).
  • 6
  • 7
    Os versos da música dizem: “Let me tell you about a different Rio (yeah)/The one I’m from, but not the one that you know (hey)/The one you meet when you don’t have no Real (ay)”. Em tradução livre: “Deixe-me contar sobre um Rio diferente/Aquele de onde venho, mas não o que você conhece/Aquele que você conhece quando não tem um real”.
  • 8
    Para realizar a pesquisa, utilizamos uma combinação de termos relacionados aos objetivos ou problematizações deste estudo: Anitta favela Brasil; Anitta favela realidade; Anitta favela pobreza; Anitta Coachella favela Brasil.
  • 9
    Decidimos conservar a escrita original.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    25 Set 2023
  • Aceito
    13 Fev 2024
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