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O sonho eletrificado: humanos sonham com ovelhas elétricas?1 1 Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no GT Imagem e Imaginários Midiáticos do 32º Encontro Anual da Compós (2023) e está disponível nos anais da edição. 2 2 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

The electrified dream: do humans dream of electric sheep?

Resumo

A partir da campanha publicitária lançada em 2021 pela empresa norte-americana de cerveja Coors, na qual foi utilizado o protocolo conhecido como Target Dream Incubation (TDI) que tinha como objetivo o uso dos sonhos para fins publicitários, construímos no presente artigo uma reflexão teórico-filosófica do fenômeno que designamos como eletrificação das imagens oníricas. Aprofundamos a discussão sobre o processo histórico pelo qual as imagens vêm sendo destituídas de seu poder simbólico, até atingirmos o atual estágio que conta cada vez mais com intervenções do espaço onírico para fins mercadológicos com base na lógica do capital. Para isso, retomamos ideias de teóricos como Edgar Morin, Norval Baitello Jr., Jean Baudrillard e C. G. Jung, entre outros. Exploramos também a necessidade de pensar saídas criativas, imaginais e imaginativas para que a dimensão arquetípica da vida humana não seja negada, irrompendo assim de maneira patológica, individual e coletiva.

Palavras-chave
imagem; imaginário; sonho; publicidade; comunicação

Abstract

Based on the advertising campaign launched by the North American beer company Coors in 2021, in which the protocol known as Target Dream Incubation (TDI) was used aiming at the use of dreams for advertising purposes, we constructed a theoretical and philosophical reflection of the phenomenon that we designate as electrification of dream images. We deepen the discussion about the historical process through which images have been stripped of their symbolic power, until we reach the current stage that increasingly relies on interventions from the dream space for marketing purposes based on the logics of capital. To do this, we return to ideas from theorists such as Edgar Morin, Norval Baitello Jr., Jean Baudrillard and C. G. Jung, among others. We also explore the need to think about creative, imaginal, and imaginative escapes so that the archetypal dimension of human life is not denied, thus erupting in a pathological way, individually and collectively.

Keywords
image; imaginary; dream; advertising; communication

Ovelhas elétricas

O que nos torna humanos? Obviamente, qualquer resposta para essa pergunta será insuficiente e, se for uma resposta que traga reflexões interessantes, será hipercomplexa, mesmo que formulada de maneira simples. Poderíamos fazer, talvez, uma lista, provavelmente interminável, de itens que possam compor essa resposta. Entre eles, acreditamos que estaria a nossa capacidade de criar, espontaneamente, imagens endógenas, de acordo com a definição proposta por Hans Belting (2014)BELTING, Hans. Antropologia da imagem: para uma ciência da imagem. Lisboa: KKYM+ EAUM, 2014.. Dentro dessa categoria de imagens encontramos o sonho, que, talvez devido a uma leitura superficial e à popularização da psicanálise freudiana ortodoxa, acaba sendo confundido popularmente com o desejo. Mesmo Freud chegou a reformular essa visão em suas obras mais tardias (Pontalis e Laplanche, 2001PONTALIS, Jean-Baptiste; LAPLANCHE, Jean. Vocabulário da psicanálise. Santos: Martins Fontes, 2001.), porém, por meio de estudos de diferentes áreas, como a biologia, a sociologia e a própria psicologia, podemos afirmar hoje que o sonho é muito mais do que simples mecanismo de compensação ou revelação do desejo, carregando, por exemplo, importantes funções adaptativas relacionadas ao aprendizado, à resolução de traumas e ao desenvolvimento de estratégias de resiliência para o presente e para o futuro (Balestrini Jr., 2023BALESTRINI JR., José Luiz. Sonho, imagem, imaginação e o coração onírico. São Paulo: Eleva Cultural, 2023.).

Os séculos XIX e XX foram períodos de grandes revoluções nas condições e nos ritmos de vida, como sabemos, mas entre os fenômenos mais transformadores das condições de vida humana está o que designamos como a eletrificação da vida, a profunda transformação decorrente da eletricidade e de tudo a que a ela se seguiu como decorrência das suas possibilidades de uso concreto e de seu poder simbólico. Filmes como Metrópolis de 1927, de Fritz Lang, e Tempos modernos de 1936, de Charles Chaplin, anunciaram a força e o impacto da revolução advinda da eletricidade, chamado por Marshall Berman (2007)BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2007. de terceira fase da Modernidade. Uma discussão ficcional interessante sobre o tema foi proposta pelo escritor Phillip Dick em seu livro Androides sonham com ovelhas elétricas?, publicado originalmente em 1968. Na narrativa, o protagonista sentia uma frustração grande pelo fato de possuir uma ovelha elétrica, quando gostaria de ter uma real. Seu desejo era de estabelecer contato com um animal vivo e não com um simulacro, contemporaneamente, nos parece que acontece o contrário: os humanos gostariam de possuir ovelhas elétricas em vez de reais; a opção pela ilusão de perfeição oferecida pelo simulacro (Baudrillard, 1991BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Editora Relógio D’água, 1991.).

O presente texto busca, de forma geral, refletir sobre o impacto gerado por essa eletrificação da vida e de tudo que a cerca em nossa relação com as imagens. O que vale dizer, causa reflexos no imaginário e nas práticas imaginativas, já que tratamos esses processos como indissociáveis (Contrera e Torres, 2022CONTRERA, Malena; TORRES, Leonardo. Imagem e consciência. 31º Encontro Anual da Compós. Imperatriz., 2022.).

Partindo de uma revisão bibliográfica e desdobrando algumas das questões que temos aprofundado em trabalhos anteriores, tratamos mais especificamente do impacto da eletrificação das imagens ante aos seus aspectos exógenos e endógenos, sobretudo à dimensão endógena das imagens, na qual as figuras oníricas ocupam um lugar especial, não apenas por sua importância desde as culturas arcaicas, mas também pelo fato de serem os sonhos um dos últimos redutos de resistência às investidas ideológicas e mercantis do capitalismo predatório que marca a contemporaneidade (Crary, 2016CRARY, Jonathan. 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Ubu Editora LTDA-ME, 2016.). Para isso, com base em trabalhos de neurocientistas (Stickgold; Zadra; Haar, 2021STICKGOLD, Robert; ZADRA, Antonio; HAAR, Ajh. Advertising in Dreams is Coming: Now What? DXE, 2021. Disponível em: https://dxe.pubpub.org/pub/dreamadvertising/release/1. Acesso em: 03 abr. 2023.
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), propomos uma reflexão teórico-filosófica a partir do ponto de vista dos estudos da comunicação e do imaginário, tendo como referências os trabalhos e ideias de autores como Edgar Morin, Carl Gustav Jung, Aby Warburg, Hans Belting, Norval Baitello Jr., entre outros.

O espaço onírico: território a ser conquistado?

O pesquisador Robert Stickgold, professor de psiquiatria na Universidade de Harvard e estudioso dos fenômenos oníricos por mais de 20 anos, disse a seguinte frase numa entrevista para o jornal americano The Guardian em janeiro de 2021:

Durante toda a noite, seu cérebro está reprocessando memórias do dia anterior, conectando-as com outras memórias, vasculhando o resíduo para decidir quais manter e estabilizando-as. Nossos sonhos estão literalmente criando quem somos

(Gabbat, 2021GABBAT, Adam. Nightmare scenario: alarm as advertisers seek to plug into our dreams. The Guardian, 2021. Disponível em: https://www.theguardian.com/media/2021/jul/05/advertisers-targeted-dream-incubation. Acesso em: 03 abr. 2023.
https://www.theguardian.com/media/2021/j...
, tradução nossa).

A entrevista se deu em volta de uma polêmica causada pela empresa americana fabricante de cerveja Coors que, na mesma época, anunciou uma campanha publicitária por meio da qual utilizariam o conceito de Target Dream Incubation (TDI) para tentar inserir no material onírico dos consumidores ideias que, através da ativação de memórias durante os sonhos, gerassem imagens relacionadas aos seus produtos. Obviamente, o objetivo principal da campanha era levar as pessoas a consumirem ainda mais as mercadorias fabricadas pela empresa. O problema principal eram as questões éticas envolvidas no processo, talvez a maior delas era a possibilidade real de invasão predatória do espaço onírico com intenções mercadológicas capitalistas num primeiro momento. Mas não podemos deixar de imaginar que isso poderia se desdobrar para usos políticos e ideológicos junto às massas, até mesmo com fins militares; sabemos da importância do papel da propaganda na construção cultural e de justificativas na criação de estratégias de legitimação das guerras (Pereira, 2003PEREIRA, Wagner Pinheiro. Cinema e propaganda política no fascismo, nazismo, salazarismo e franquismo. História: Questões & Debates, v. 38, n. 1, 2003.).

O TDI caracteriza um protocolo de ações que tem como objetivo reativar memórias durante o sono de uma maneira que leve o indivíduo a incorporar aquilo que foi definido como a memória alvo. Sua eficácia já está documentada, principalmente para a resolução de problemas e melhoria e consolidação de aprendizados (Horowitz et al, 2020HOROWITZ, Adam Haar; CUNNINGHAM, Tony J; MAES, Pattie; STICKGOLD, Robert. Dormio: A targeted dream incubation device. Consciousness and cognition, v. 83, p. 102938, 2020.). A memória-alvo precisa ser escolhida anteriormente às vivências oníricas que se seguirão e, no caso da campanha da Coors, ela seria definida um pouco antes das pessoas adormecerem. Os espectadores/sujeitos assistiam a um vídeo de 91 segundos que trazia cenas do produto intercaladas com uma figura humana que se movimentava entre montanhas, rios e cachoeiras, imagens que normalmente já são utilizadas pela empresa em seus anúncios publicitários regulares. Os sujeitos do experimento sabiam de antemão que a memória alvo a ser recuperada e consolidada durante os sonhos era diretamente conectada com a cerveja Coors. O vídeo tem também uma trilha sonora que varia entre a suavidade e uma certa cacofonia que, juntamente com as imagens coloridas e vivas, parecem buscar induzir à psicodelia característica dos estados alterados de consciência. Segundo outros experimentos, o TDI parece funcionar melhor quando induzido nos estados hipnagógicos3 3 Estado de consciência semilúcida entre a vigília e o sono. (Horowitz et al, 2020HOROWITZ, Adam Haar; CUNNINGHAM, Tony J; MAES, Pattie; STICKGOLD, Robert. Dormio: A targeted dream incubation device. Consciousness and cognition, v. 83, p. 102938, 2020.), logo, as escolhas de imagens e sons feitas para construir o vídeo e a experiência do espectador não nos parecem aleatórias, ao contrário, parecem ter o objetivo específico de causar o rebaixamento da consciência necessário para a implantação da memória alvo. Tentativas de manipulação do comportamento e da implantação de ideias em estados subliminares existem de maneira consistente ao longo da história (Marlan, 2023MARLAN, Dustin. The Nightmare of Dream Advertising. [S.l.]: Available at SSRN 4361477, 2023.
SSRN 4361477...
) e, até agora, a maneira mais fácil de produzir resultados é reduzindo as capacidades de percepção e reflexiva do indivíduo por meio de mecanismos que o transforme em um autômato (Morin, 2007MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX – Vol. 1, Neurose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.).

Antes de levar a campanha ao ar, a empresa procurou a doutora Deirdre Barret, psicóloga especialista em sonhos e professora na Universidade de Harvard. Ela e sua equipe de cientistas criaram o vídeo e o protocolo a ser utilizado para a inserção do que podemos considerar anúncios publicitários oníricos nos sonhos das pessoas que decidissem se sujeitar à experiência. Os experimentos contaram com sujeitos que foram pagos para participar dessa parte do processo e com o estabelecimento do protocolo que seria utilizado mais tarde pela Coors na campanha publicitária em questão. Barret afirma que os sujeitos precisam estar dispostos a colaborar para que o TDI funcione. Em um vídeo que conta um resumo do experimento, os pesquisadores deixam claro que é preciso que o sujeito diga a si mesmo que deseja sonhar com os conteúdos do vídeo antes de adormecer. Bobbi Gould, uma das participantes do experimento teste, disse em entrevista para o site de notícias The Hustle que recebeu o pagamento de mil dólares para ser parte do grupo de sujeitos do teste. Ela conta que no decorrer do experimento ela se sentia como um “rato de laboratório” e que, após assistir ao clipe e adormecer ouvindo os sons utilizados no vídeo, teve vários sonhos com imagens diretamente relacionadas ao produto, como: “Eu tive um em que estava em um pula-pula brincando com produtos da Coors”; “Em outro, eu estava em um avião jogando latas de Coors para as pessoas e elas estavam torcendo por mim” (Crockett, 2022CROCKETT, Zachary. Are advertisers going to infiltrate our dreams? The Hustle, 2022. Disponível em: https://thehustle.co/are-advertisers-going-to-infiltrate-our-dreams/. Acesso em: 03 abr. 23.
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, tradução nossa). Esse é apenas um exemplo dos resultados considerados positivos pelos pesquisadores e que levaram ao estabelecimento do método utilizado pela Coors.

Segundo uma pesquisa feita pela The American Marketing Association durante o ano de 2021, 77% dos profissionais de marketing afirmaram desejar reproduzir anúncios antes das pessoas dormirem para influenciar seus sonhos e 39% dos consumidores entrevistados aprovam a iniciativa (Dignan, 2021DIGNAN, Larry. Marketers want to influence your dreams, consumers not so much. ZD Net, 2021. Disponível em: https://www.zdnet.com/article/marketers-want-to-influence-your-dreams-consumers-not-so-much/. Acesso em: 03 abr. 2023.
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). Esses dados mostram que a ideia de utilizar o sonho como espaço para propaganda é algo de fato considerado por uma grande parcela daqueles que trabalham nessa área e que a Coors acabou sendo apenas uma das primeiras a ganhar destaque ao tentar fazer algo nesse sentido. Anteriormente a esse fato, em 2018, a rede de restaurantes Burguer King lançou um hambúrguer que diziam causar pesadelos naqueles que o comessem (Handley, 2018HANDLEY, Lucy. Burger King creates ‘nightmare’ burger with green bun – and says it will actually give people bad dreams. CNBC, 2018. Disponível em: https://www.cnbc.com/2018/10/18/burger-king-creates-nightmare-burger-with-green-bun.html. Acesso em: 03 abr. 2023.
https://www.cnbc.com/2018/10/18/burger-k...
) e, em 2020 a Microsoft tentou utilizar o TDI para induzir sonhos nos usuários do videogame Xbox (Munsee, 2020MUNSEE, Josh. Powering the Dreams of Gamers with Xbox. News Xbox, 2020. Disponível em: https://news.xbox.com/en-us/2020/12/07/powering-the-dreams-of-gamers-with-xbox/. Acesso em: 03 abr. 2023.
https://news.xbox.com/en-us/2020/12/07/p...
). Em inglês, já podemos encontrar um nome para esse tipo de prática: dreamvertising (Kirilenko e Bukhovetskaya, 2022KIRILENKO, Renata; BUKHOVETSKAYA, Valeria. Dreamvertising. 2022.), que vem da junção da palavra dream, que significa sonho e advertising, que pode ser traduzido como anúncio. Dada a dificuldade de traduzirmos um neologismo desse tipo, em português adotamos a expressão publicidade onírica. Impossível não relacionarmos isso ao processo apontado por Baudrillard como o fascínio dos indivíduos à “experimentação ilimitada” (Baudrillard, 1991BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Editora Relógio D’água, 1991.) situação que ele aponta como própria do estado pós-orgiástico gerado pela sociedade do consumo do século XX.

Três dos pesquisadores mais renomados na área de estudos e pesquisas do sono e sonho: o professor Robert Stickgold, da Harvard Medical School (acima referido), Antonio Zadra, da Université de Montréal, e Adam Haar, do M.I.T. Cambridge, publicaram, no dia 7 de julho de 2021, uma carta aberta revelando suas preocupações com esses acontecimentos (Stickgold; Zadra; Haar, 2021STICKGOLD, Robert; ZADRA, Antonio; HAAR, Ajh. Advertising in Dreams is Coming: Now What? DXE, 2021. Disponível em: https://dxe.pubpub.org/pub/dreamadvertising/release/1. Acesso em: 03 abr. 2023.
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). Em determinada parte do texto eles dizem: “Nossos sonhos não podem se tornar apenas mais um parque de diversões para anunciantes corporativos” (Stickgold; Zadra; Haar, 2021STICKGOLD, Robert; ZADRA, Antonio; HAAR, Ajh. Advertising in Dreams is Coming: Now What? DXE, 2021. Disponível em: https://dxe.pubpub.org/pub/dreamadvertising/release/1. Acesso em: 03 abr. 2023.
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, tradução nossa). E um pouco mais adiante:

Como pesquisadores do sono e dos sonhos, estamos profundamente preocupados com os planos de marketing que visam gerar lucros ao custo de interferir no processamento de nossa memória noturna natural. A ciência do cérebro ajudou a projetar várias tecnologias viciantes, de telefones celulares a mídias sociais, que agora moldam grande parte de nossas vidas despertas; não queremos que o mesmo aconteça com nosso sono. Acreditamos que uma ação proativa e novas políticas de proteção são necessárias com urgência para impedir que os anunciantes manipulem um dos últimos refúgios de nossas mentes conscientes e inconscientes já sitiadas: nossos sonhos

(Stickgold; Zadra; Haar, 2021STICKGOLD, Robert; ZADRA, Antonio; HAAR, Ajh. Advertising in Dreams is Coming: Now What? DXE, 2021. Disponível em: https://dxe.pubpub.org/pub/dreamadvertising/release/1. Acesso em: 03 abr. 2023.
https://dxe.pubpub.org/pub/dreamadvertis...
, tradução nossa).

A técnica do TDI pode não ser considerada concretamente invasiva, já que, por enquanto, não há implantes neurológicos no protocolo, mas com certeza é transgressora das fronteiras imaginais, tanto do ponto de vista psicológico quanto do sociológico. Porém, isso não quer dizer que o caminho da incursão neurológica também não esteja sendo trilhado, o que certamente vai reforçar o desequilíbrio ecológico das imagens, decorrente do desdobramento e ampliação do fenômeno da iconofagia proposto por Norval Baitello Jr. (2014)BAITELLO JR, Norval. A era da iconofagia: reflexões sobre imagem, comunicação, mídia e cultura. São Paulo: Paulus, 2014. e Balestrini Jr. e Contrera (2022)CONTRERA, Malena; TORRES, Leonardo. Imagem e consciência. 31º Encontro Anual da Compós. Imperatriz., 2022.. Técnicas advindas da própria neurociência, como a decodificação de imagens oníricas (Horikawa et al, 2013HORIKAWA, Tomoyasu; TAMAKI, Masako; MIYAWAKI, Yoichi; KAMITANI, Yukiyasu. Neural decoding of visual imagery during sleep. Science, v. 340, n. 6132, p. 639-642, 2013.), a identificação da ativação de neurônios específicos perante a apresentação de imagens (Quiroga; et al, 2005QUIROGA, R Quian; REDDY, Leila; KREIMAN, Gabriel; KOCH, Christof et al. Invariant visual representation by single neurons in the human brain. Nature, v. 435, n. 7045, p. 1102-1107, 2005.) e o estabelecimento de comunicação entre experimentadores e sujeitos durante episódios de sonhos lúcidos (Konkoly et al, 2021KONKOLY, Karen R; APPEL, Kristoffer; CHABANI, Emma; MANGIARUGA, Anastasia et al. Real-time dialogue between experimenters and dreamers during REM sleep. Current Biology, v. 31, n. 7, p. 1417-1427 e1416, 2021.) podem levar ao desenvolvimento de tecnologias que permitam a invasão literal do mundo onírico através da inserção de imagens exógenas no espaço que supostamente deveria ser de expressão natural das imagens endógenas (Balestrini Jr. e Contrera, 2022BALESTRINI JR, José Luiz; CONTRERA, Malena Segura. Desequilíbrio ecológico das imagens: A importância das imagens oníricas para os processos de resiliência. Revista Eco-Pós, v. 25, n. 1, p. 459-481, 2022.). Portanto, como estudiosos da teoria da imagem, da imaginação e do imaginário, compartilhamos a preocupação dos pesquisadores acima e podemos afirmar que estamos alinhados quando lemos em sua carta:

Por enquanto, a publicidade baseada em TDI requer nossa participação ativa, por exemplo, escolhendo tocar uma trilha sonora de Coors de 8 horas enquanto dormimos. Mas é fácil imaginar um mundo em que alto-falantes inteligentes (40 milhões de americanos atualmente os têm em seus quartos) se tornem instrumentos de publicidade passiva e inconsciente durante a noite, com ou sem nossa permissão. Essas trilhas sonoras personalizadas se tornariam cenários de fundo para nosso sono, assim como os intermináveis outdoors que cobrem as rodovias americanas se tornaram para nossa vida desperta

(Stickgold; Zadra; Haar, 2021STICKGOLD, Robert; ZADRA, Antonio; HAAR, Ajh. Advertising in Dreams is Coming: Now What? DXE, 2021. Disponível em: https://dxe.pubpub.org/pub/dreamadvertising/release/1. Acesso em: 03 abr. 2023.
https://dxe.pubpub.org/pub/dreamadvertis...
, tradução nossa).

Se o conjunto de características e memórias que formam a nossa personalidade são determinadas durante o sono e pelo sonho (Genova, 2021GENOVA, Lisa. Remember. [Australia]: Simon and Schuster, 2021.), o que poderíamos dizer sobre o desenvolvimento cognitivo e comportamental de pessoas que têm seu espaço onírico invadido por anúncios de propagandas? Em certa medida, podemos dizer que essa invasão já acontece de forma indireta, quando podemos constatar que uma grande parte da população utiliza de maneira exagerada as redes sociais nos momentos que antecedem o sono, o que influencia diretamente a qualidade do sono aumentando a chance de parassonias4 4 Transtornos do sono que se caracterizam por experiências, comportamentos ou eventos psicológicos anormais que podem ocorrer em várias fases do sono ou mesmo durante a transição do sono para a vigília e vice-versa. Alguns exemplos desses distúrbios são: sonambulismo, terrores noturnos, bruxismo, pesadelos e transtornos de movimento (Wikipedia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Parassonia. Acesso em: 20 nov. 2023) Silva et al, 2017SILVA, Alison Oliveira da; OLIVEIRA, Luciano Machado Ferreira Tenório de; SANTOS, Marcos André Moura dos; TASSITANO, Rafael Miranda. Tempo de tela, percepção da qualidade de sono e episódios de parassonia em adolescentes. Revista Brasileira de Medicina do Esporte, [n.] 23, p. 375-379, 2017.) e, consequentemente, distorcendo o funcionamento natural e regulador do sonho, seja do ponto de vista biológico ou psicológico (Balestrini Jr.; Contrera; Maia, 2024BALESTRINI JR, José Luiz; CONTRERA, Malena Segura; MAIA, Sandra. Vício nas telas, tempo de sono e a crise do pensamento simbólico. Revista Eco-Pós, 2024.).

Estamos aqui diante de uma situação típica do desejo humano de controle do mundo natural e de seus processos na longa história da arrogância (Zoja, 2000ZOJA, Luigi. História da arrogância: psicologia e limites do desenvolvimento humano. São Paulo: Axis Mundi, 2000.) que crê poder controlar todas as forças naturais sem maiores contraindicações ao equilíbrio sistêmico. Na ânsia de controlar a eletricidade, trouxemos os raios, armas de Zeus, para cada vez mais perto dos nossos corpos e mentes; talvez o próximo passo seja permitir que elas invadam nossos corpos de maneira ainda mais contundente, por enquanto por meio de protocolos como o TDI e, talvez num futuro não muito distante, de implantes que permitam o acesso direto ao nosso mundo interno, ambiente natural das imagens endógenas.

A eletrificação das imagens

A fantasia humana de buscar soberania sobre as forças da natureza deu origem à construção histórica do fenômeno de dominação e direcionamento da própria espécie humana e seu comportamento individual e coletivo, e isso vem se intensificando nas últimas décadas. A vida e o corpo do ser humano atual não são mais sentidos exatamente como próprios, como pontua David Le Breton (2003)LE BRETON, David. Adeus ao corpo. Campinas: Papirus Editora, 2003. ao falar da dessubjetivação do corpo. Certamente a cultura midiática tem papel fundamental nessas transformações, considerando a onipresença dos aparatos eletrônicos de comunicação e o fenômeno da imersão digital. Não queremos afirmar de maneira maniqueísta que a responsabilidade ou culpa desse processo é da tecnologia em si, mas sim de seu uso compulsivo que surge principalmente da manipulação ideológica capitalista e predatória do processo. O vício e a dependência das telas não é algo que pode mais ser ignorado na contemporaneidade (Balestrini Jr.; Contrera; Maia, 2024).

Em seu livro A serpente, a maçã e o holograma (2010), Norval Baitello Jr. reflete sobre o tema do fenômeno da eletrificação afirmando que, de certa forma, Aby Warburg identificou o início desse processo. Diz o autor:

O que Warburg notou não foi se não os primórdios da onipresença dos meios elétricos e suas capilaridades. O que vislumbrou aí com seu olhar agudo foi o princípio da eletrificação do planeta, uma epopeia que transformou a vida humana e sua sociabilidade, encurtando distâncias, anulando espaços (às vezes mesmo ignorando e invadindo as demarcações) e acelerando os fluxos de temporalidades, impondo aos meios de comunicação o ritmo do raio

(Baitello Jr., 2010, p. 61).

Num exercício de ampliação das ideias dos dois autores, questionamos se essa eletrificação do planeta teve de fato seu princípio neste ponto, ou se, fazendo um exercício de amplificação simbólica, podemos localizar esse início na domesticação do fogo. Atualmente, acredita-se que nossos antepassados primitivos se aproximaram do fogo já o utilizando como ferramenta há cerca de 1,5 milhão de anos, porém, os primeiros sinais da existência de lareiras e fogões, datam de cerca de 790 mil anos; controle, aprendizado e criação manual do fogo surgiram lentamente e seguiram desse processo. Porém, o mais importante aqui, é o fato de que inicialmente os incêndios que assustaram e fascinaram esses hominídeos foram resultado de raios caídos do céu (Gowlett, 2016GOWLETT, John AJ. The discovery of fire by humans: a long and convoluted process. Philosophical Transactions of the Royal Society B: Biological Sciences, v. 371, n. 1696, p. 20150164, 2016.).

A eletricidade está, portanto, no âmago do surgimento, controle e aprendizado da utilização do fogo e, consequentemente, de sua luz e calor. Prometeu, antes de entregar o fogo aos humanos, seus protegidos, o roubou de Zeus, senhor do Olimpo, cujas armas eram os raios e a eletricidade (Brandão, 2014BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis, RJ: Vozes, 1, 2014.). Podemos encontrar vários autores que indicam esse mito como uma das principais narrativas que ilustram o surgimento e desenvolvimento da consciência no ser humano (Chevalier e Gheerbrant, 1990CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.; Jung, 2013JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. Petrópolis: Editora Vozes Limitada, 2013.; Kerényi, 1997KERÉNYI, Carl. Prometheus: Archetypal image of human existence. Princeton University Press, 1997.). A luz e o calor utilizados pelo ser humano surgem, portanto, como resultado da transformação dos elementos causada pelo encontro da eletricidade com outros combustíveis. Foi por causa do fascínio humano e consequente busca pela criação e manipulação consciente do fogo e tudo o que decorreu de sua domesticação que chegamos também na busca pelo controle da sua raiz, a própria eletricidade. Eletricidade, calor e luz se misturam hoje nas telas que carregamos e consultamos frequentemente em nossa rotina diária. Numa ampliação alternativa, poderíamos dizer que o próprio Zeus, lançando seus raios na direção da terra, acabou fornecendo o que a espécie humana precisava para iniciar sua utilização do fogo. Devemos lembrar que os deuses são representações arquetípicas e, como tal, são fundamentalmente formados por ambiguidades, paradoxos e antinomias (Jung, 2018JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Vol. 9/1. Petrópolis: Editora Vozes Limitada, 2018.). Zeus, ao mesmo tempo que volta sua fúria contra os homens que cometem a hubrys, fornece as ferramentas para que eles ultrapassem os limites estabelecidos por ele mesmo. O deus quer e não quer que a espécie humana crie consciência.

Aby Warburg, em seu texto publicado em 1939 chamado A lecture on serpente ritual, mostrou como a humanidade, por meio do encarceramento da eletricidade, apagou os mitos pagãos, desconectando-se da natureza, abandonando a sacralidade que ela carregava e que anteriormente era experienciada poética e metaforicamente:

A eletricidade escravizada, o raio preso no fio, produziu uma civilização que não tem uso para a poesia pagã. Mas o que ele coloca nesse lugar? As forças da natureza não são mais vistas em formas antropomórficas; elas são concebidas como uma sucessão infinita de ondas, obedientes ao toque da mão de um homem. Com essas ondas, a civilização da era mecânica está destruindo o que a ciência natural, ela própria emergindo do mito, conquistou com tão grande esforço – o santuário da devoção, o afastamento necessário para a contemplação

(Warburg, 1939WARBURG, Aby. A lecture on serpent ritual. Journal of the Warburg Institute, v. 2, n. 4, 1939., p. 292, tradução nossa).

Podemos encontrar aqui uma correspondência entre o fenômeno descrito por Aby Warburg e o processo nomeado por Max Weber (2013)WEBER, Max. A ética protestante e o “espirito” do capitalismo: o problema. São Paulo, Companhia das Letras, 2013. como o desencantamento do mundo, o que coincide também com aquilo que Mircea Eliade (2018)ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018. chama de dessacralização da natureza. Em suma, esses autores apontam para o fato de que as forças da natureza, considerando especialmente aqui a eletricidade, antes reconhecidas como anímicas, ou seja, portadoras de alma, e participantes da totalidade da anima mundi (Hillman, 2010HILLMAN, James. O pensamento do coração e a alma do mundo. Campinas: Verus, 2010.) foram transformadas pelo ser humano em meros objetos desalmados, para seu uso, abuso, controle e exercício de poder. O ser humano desde há muito vem colocando a si mesmo em nível de superioridade em relação a todo o resto do mundo natural e passou a usar cada vez mais os recursos do planeta em nome da predação de tudo aquilo que antes era sagrado.

Observando o processo evolutivo da espécie humana até a contemporaneidade, podemos afirmar que não bastava para o ser humano domesticar apenas algumas das espécies que habitam nosso planeta. Pode-se constatar que, muito além das necessidades adaptativas básicas, o comportamento compulsivo, o excesso e a necessidade imperativa de cometer a hubrys, que é característica fundante da experiência humana (Morin, 1979MORIN, Edgar. O enigma do homem: para uma nova antropologia. In: O enigma do homem: para uma nova antropologia. [S.l.: s.n.], 1979. p. 227-227.), o levaram à busca de dominação de todas as forças conhecidas da natureza. Porém, um dos problemas principais desse processo é que, esquecendo que ele mesmo é parte da natureza e que, por mais que tente, não consegue se dissociar de sua condição biológica, cai numa contradição sem solução (Jung, 2011aJUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. Petrópolis: Editora Vozes Limitada, 2011a.). Dessa forma, inclui sua própria espécie no processo de predação e, por mais que acredite que, do ponto de vista coletivo ou individual, não esteja sendo atingido pelo mal que causa aos outros, sempre vai sentir, por meio do desenvolvimento de comportamos patológicos e das mais variadas doenças, sejam elas físicas ou psicológicas, os efeitos da ilusão de poder e controle que cria sobre as forças arquetípicas — incluindo as forças naturais sistêmicas — que na verdade determinam o seu próprio comportamento (Jacobi, 2016JACOBI, Jolande. Complexo, arquétipo e símbolo na psicologia de CG Jung. Petrópolis: Editora Vozes Limitada, 2016.; Jung, 2018JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Vol. 9/1. Petrópolis: Editora Vozes Limitada, 2018.). A dominação, manipulação, exploração e destruição a que submete a natureza sempre vão incluir a sua própria espécie (Lewis, 2017LEWIS, Clive Staples. A abolição do homem. São Paulo: Thomas Nelson Brasil, 2017.).

Figura 1
Desenho feito por Cleo Jurino, integrante da tribo dos índios Pueblo.

Com a intenção de dar continuidade à construção histórica e antropológica do fenômeno iniciada por Aby Warburg e continuada por Norval Baitello Jr. (2010)BAITELLO JR, Norval. A serpente, a maçã e o holograma. São Paulo: Paulus, 2010., queremos retomar aqui, obviamente de maneira resumida, a linha cronológica da eletrificação das imagens. Quando seguimos na análise do texto de Warburg, encontramos a produção artística de um xamã integrante da tribo dos índios Pueblo chamado Cleo Jurino (Figura 1). Segundo Warburg, essas pinturas registravam a evocação das forças da natureza e os pedidos dos indígenas por bênçãos das chuvas e das tempestades. As forças da natureza eram consideradas entidades vivas, autônomas e participantes ativas de tudo aquilo que acontecia na vida humana; determinavam o destino do indivíduo e do povo e por isso deveriam ser reverenciadas. A produção dessas imagens era parte, portanto, de um ritual mágico. A relação simbólica e metafórica entre a expressão artística que os Pueblo mantinham com o mundo natural pode ser observada na semelhança da serpente, assim como na descrição detalhada que o acompanha, com os raios elétricos que caem dos céus (Warburg, 1939WARBURG, Aby. A lecture on serpent ritual. Journal of the Warburg Institute, v. 2, n. 4, 1939.).

Na medida em que a serpente é um símbolo da Grande Mãe, como atestam os estudos da História das Religiões e da Mitologia Comparada, e como encontramos claras referências em Erich Neumann (Neumann, 1995NEUMANN, Erich. História da origem da consciência. São Paulo: Editora Cultrix, 1995.), essa imagem também nos remete à percepção simbólica da migração do poder das deusas da terra para os deuses celestes própria do estabelecimento do monoteísmo e do patriarcado.

Figura 2
Pintura de areia do povo Moki ilustrando uma tempestade.

Essas imagens são, portanto, representações advindas da dinâmica de funcionamento psíquico descrita pelo sociólogo francês Lévy-Bruhl como participation mystique, estado em que o ser humano acreditava ser uno com o mundo, portanto, totalmente conectado àqueles que eles acreditavam serem os deuses, ao inconsciente coletivo, aos instintos e arquétipos que eram representados, evocados e invocados por meio das imagens e dos rituais (Jung, 2018JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Vol. 9/1. Petrópolis: Editora Vozes Limitada, 2018.). Nesse estado, a experiência do imaginário é marcada pelo fato de que as forças e os objetos da natureza são seres dotados de alma (animismo), os quais, muitas vezes, aparecem antropomorfizados; são seres autônomos, maiores e mais poderosos que o ser humano. Por isso, não devem ser provocados sem motivos, precisam ser respeitados e venerados para que abençoem a coletividade com fartura e boa sorte. A cisão ilusória, causada principalmente pelo racionalismo exagerado da sociedade contemporânea, de que somos seres que se encontram separados e acima da natureza, serviu em grande escala para transformar o mundo em matéria-prima que serve para a industrialização de tudo; para reforçar isso de maneira dissimulada, utilizamos o rótulo de uma falsa unificação entre os povos chamando a nós mesmos de humanidade (Krenak, 2019KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.).

Não queremos sugerir que deveríamos simplesmente retornar incondicionalmente às formas de pensamento arcaicas, mas sim, por meio do pensamento simbólico e metafórico, compreender que, apesar de nos percebermos como seres individuais, somos parte da totalidade e que nossas ações, sejam elas políticas5 5 Utilizamos a expressão aqui de acordo com a etimologia da palavra. Política tem raízes no grego em politikos, se referindo ao cidadão de uma cidade ou estado; alguém que se percebe parte de uma coletividade. ou egóicas têm efeito sobre a coletividade, fato que a ciência da ecologia e da ecossistêmica tornou perfeitamente possível de ser compreendido a partir de recursos cognitivos advindos da própria racionalidade. Percebemos, portanto, que o problema não está na razão em si, mas na unilateralidade patológica do caminho histórico que a espécie humana escolheu e que continua a reforçar, ainda que os resultados catastróficos já sejam evidentes. Por outro lado, um retorno para o estado de participation mystique seria tão doentio quanto o reforço do “monoteísmo da consciência” que vivemos hoje (Hillman, 2019HILLMAN, James. Uma investigação sobre a imagem. Petrópolis: Editora Vozes Limitada, 2019.). Esses efeitos retroagem sobre a nossa própria vida causando sofrimento a todo o mundo vivo. Minimamente, essa compreensão é necessária para que seja possível pensar o mundo de maneira ecológica. O pensador indígena Ailton Krenak afirma que:

Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos humanidade. Enquanto isso – enquanto seu lobo não vem – fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza

(Krenak, 2019KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 16-17).

Ainda no texto de Warburg, encontramos outra pintura que ilustra o simbolismo ao qual nos referimos. Nessa pintura (Figura 2), vemos os raios representados exatamente como serpentes que são lançadas em direção à terra. Por último, no texto do autor, chegamos a uma foto feita pelo próprio Warburg (Figura 3) na década de 1920, na cidade de São Francisco, EUA. A foto é intitulada Uncle Sam, e nela podemos ver um homem caminhando pelas ruas da cidade. Logo atrás dele, enxergamos uma fila de postes elétricos. Entre as diversas ampliações simbólicas e metafóricas que poderíamos fazer desse registro de Warburg, gostaríamos de chamar a atenção para algumas das diferentes dimensões da transformação que a própria imagem sofreu com o processo de eletrificação. Do ponto de vista das tecnologias de representação, os desenhos tornaram-se fotografias. Ao lado do desenvolvimento tecnológico e da fantasia de dominação da eletricidade, ocorre também a mutação da representação imagética do fenômeno. Os raios, que antes eram serpentes que caíam do céu, foram transformados em postes e fios que conduzem a eletricidade; dessa maneira, são concretos, feitos de cimento e emaranhados de fios de cobre e, ao mesmo tempo, simbólicos, imagens da fantasia de dominação humana dos deuses. Porém, o deus trovão não morreu, ainda existe nos raios e serpentes do nosso mundo interior. Na verdade, ele ocupou cada vez mais espaço, ganhou novas representações e passou a existir também nos postes espalhados pelas cidades. Estes possibilitaram que sua capilaridade divina se embrenhasse em nossas vidas por meio de todos os aparatos eletrônicos que invadem nossas casas.

Figura 3
Foto feita por Aby Warburg na cidade de São Francisco, EUA, na década de 1920.

Acreditando que dominamos e controlamos as forças da natureza, submetemos nossa vida à eletricidade (Baitello Jr., 2010BAITELLO JR, Norval. A serpente, a maçã e o holograma. São Paulo: Paulus, 2010.); a conduzimos para dentro das nossas casas e locais de trabalho, passamos a carregá-la próxima aos nossos corpos durante praticamente todo o tempo; vivemos com os olhos vidrados em imagens eletrificadas e abandonamos outras ricas experiências corporais para ficar apenas com as imagens visuais — algumas vezes com as auditivas, mas mesmo essas parecem reduzidas à recepção de sons repetitivos e sem um contexto que lhes confira uma potência simbólica. Até os momentos de lazer, mesmo que buscados fora do ambiente da casa, estão contaminados pela eletricidade que nos persegue: os aparelhos, com suas baterias carregadas, não precisam mais estar diretamente conectados numa tomada para funcionarem. Os próprios fios vão, aos poucos, sumindo ou sendo enterrados, tornando-se invisíveis, porém, continuam gerando uma aura eletrizante onipresente, conforme propõe Derrick de Kerckhove (1991)DE KERCKHOVE, Derrick. Brainframes: mente, tecnologia, mercato: [come le tecnologie della comunicazione transformano la mente umana]. Baskerville: [s.n.] 1991.. Atualmente, populariza-se cada vez mais o carregamento por indução, feito sem fio e que permite, inclusive, que um usuário forneça energia do seu próprio celular para que o do amigo não fique descarregado e, este último, desconectado da rede.

O monoteísmo da consciência e o império da razão negam a influência do inconsciente em nossas vidas e essa atitude faz com que as forças arquetípicas constituintes da psique humana surjam de maneira tirânica causando patologias individuais e coletivas (Jung, 2018JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Vol. 9/1. Petrópolis: Editora Vozes Limitada, 2018.). Porém, não podemos deixar de lado o fato de que o arquétipo vai se realizar independentemente da vontade da consciência (Jung, 2011bJUNG, Carl Gustav. Resposta a Jó. Petrópolis: Editora Vozes Limitada, 2011b.), pois ele busca sua própria concretização, por isso, a união entre a concretude da eletricidade e os deuses que habitam o imaginário caracteriza o fenômeno aqui estudado. Nesse sentido, podemos dizer que os aparelhos funcionam como avatares tecnológicos dos deuses que, por meio deles, tomam conta da vida do indivíduo e da massa, servindo aos propósitos da possessão divina. Zeus não precisa mais lançar os raios do Olimpo, sua arma, a eletricidade, é carregada pelos próprios seres humanos que a mantêm grudada em seus corpos, dentro e fora de suas habitações, em completa inconsciência dessa potência. A grande massa acredita que detém o controle, enquanto é manipulada por forças divinas, isto é, arquetípicas.

Figura 4
Foto de uma rua da cidade de São Francisco, EUA, em 2022.

Como podemos perceber, o processo é cumulativo, isso fica evidenciado e facilmente identificado quando olhamos para uma foto atual da mesma cidade que Aby Warburg utilizou para ilustrar suas ideias na década de 1920. Na Figura 4, apresentamos uma imagem de São Francisco na atualidade. O emaranhado de cabos e os postes tomam conta da visão do observador. A imagem revela uma espécie de gradeado, uma cerca eletrificada que aprisiona os indivíduos que passam a enxergar o mundo — ou partes recortadas dele — através dela, exatamente como se estivessem enclausurados em celas. O mito de Zeus é ironicamente atualizado pelas forças arquetípicas negadas, mas o deus continua direcionando e influenciando, como soberano, a vida dos humanos.

Talvez seja hora de reconhecermos a existência de uma inteligência maior do que a da consciência, assim como de uma estratégia de adaptação e evolução das forças do inconsciente coletivo, porque nos parece que, até agora, seu plano foi infalível. Como disse o teólogo e linguista Clive Staples Lewis:

A conquista da Natureza pelo Homem, revela-se, no momento de sua consumação, a conquista do Homem pela Natureza. Cada uma das vitórias que aparentemente estávamos conquistando nos levou, passo a passo, a essa conclusão. Todos os aparentes reveses da Natureza não foram mais do que retiradas estratégicas. Achávamos que a estávamos golpeando quando, na verdade, ela nos estava seduzindo mais adiante. Quando pensávamos que ela estava de mãos levantadas em atitude de entrega, na verdade, ela estava nos dando o abraço mortal que nos prenderia para sempre

(Lewis, 2017LEWIS, Clive Staples. A abolição do homem. São Paulo: Thomas Nelson Brasil, 2017., p. 66).

Insistimos que na era do monoteísmo da consciência e da razão quem vence são as energias arquetípicas que direcionam a vida do indivíduo, quer ele aceite ou não, mesmo que essa condução nos direcione para enormes catástrofes naturais, cujas vítimas humanas são as mais atingidas. Sempre que negados, os habitantes do inconsciente coletivo acumulam energia até o momento em que irrompem de maneira destrutiva na consciência (Balestrini Jr. e Contrera, 2021BALESTRINI JR, José Luiz; CONTRERA, Malena Segura. A destruição do espírito crítico: uma expressão do ur-fascismo na atualidade. Revista Mediação, 2021.; Contrera; Torres; Balestrini Jr, 2021CONTRERA, Malena Segura; TORRES, Leonardo de Souza; BALESTRINI JR, José Luiz. Fake News e a irrupção do Imaginário. ANAIS DO 30° ENCONTRO ANUAL DA COMPóS, 2021.). Mas será somente numa irrupção que elas se revelam? Se prestássemos atenção cuidadosa e minuciosamente no movimento da consciência e nos símbolos reguladores enviados pelas imagens endógenas, será que não conseguiríamos enxergar que caminhamos lentamente, de maneira automatizada e sistemática, para a extinção da imaginação simbólica, fundamento do humano?

Acreditamos que, como estudiosos da imagem, da imaginação e do imaginário, não é nossa responsabilidade apenas apontar problemas, mas também propor saídas criativas para a situação na qual nos colocamos como coletividade. Dentro do nosso campo de atuação, ressaltamos a importância de reflexões que contribuam para uma educação tecnológica e para uma educação do uso dos meios, não somente tendo como foco o uso da tecnologia na educação e nas práticas de consumo. A sociedade do final do século XX negligenciou essas questões, e talvez já não seja mais possível controlarmos alguns processos que se colocaram em ação, como apontado no texto. No entanto, seguimos propondo abordagens que considerem os mútuos imbricamentos entre sociedade, cultura e tecnologia, sem negligenciar os aspectos que nos constituem como humanos (Lima Filho e Queluz, 2005LIMA FILHO, Domingos Leite; QUELUZ, Gilson Leandro. A tecnologia e a educação tecnológica: elementos para uma sistematização conceitual. Educação & Tecnologia, v. 10, n. 1, 2005.). Sabemos que o desenvolvimento da personalidade se dá desde o início da vida até o seu final (Jung, 2011aJUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. Petrópolis: Editora Vozes Limitada, 2011a.), portanto, essa educação imaginal e ecológica pode acontecer a qualquer momento do nosso desenvolvimento, desde que tenhamos prontidão consciente para isso.

Considerações finais

Dentro do protocolo do TDI, o que eles chamam de incubation é na verdade uma tentativa de manipulação das imagens oníricas e da construção de memórias especificamente escolhidas de acordo com o monoteísmo da razão e da consciência. Infelizmente, essa noção está muito afastada dos sonhos de incubação característicos dos tratamentos praticados na Antiguidade nos tempos de Esculápio, quando a mensagem onírica revelava o caminho para a cura das doenças. C. G. Jung fala, já em sua época, como na modernidade os sonhos já haviam perdido tal característica, mas, felizmente, ainda mantêm a potencialidade para servir de guia para os indivíduos:

Não queremos dizer que os sonhos dos homens modernos apontem imediatamente os meios terapêuticos apropriados, como se conta a respeito dos sonhos tidos durante a incubação (sono noturno ou incubation-dream) nos templos de Esculápio, mas eles esclarecem a situação do paciente, de uma maneira que pode favorecer grandemente o processo de cura. Esses sonhos nos trazem recordações, reflexões; relembram acontecimentos vividos outrora; despertam coisas que dormiam no seio de nossa personalidade, e revelam traços inconscientes nas suas relações com o meio ambiente

(Jung, 2011aJUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. Petrópolis: Editora Vozes Limitada, 2011a., p. 265).

A manipulação do comportamento por meio da utilização ideológica das imagens já se dá quando o tempo de tela da vigília povoa a mente com uma quantidade absurda de imagens exógenas, não permitindo o tempo do devaneio para as imagens endógenas. Sabemos que as memórias são consolidadas durante o sono a partir das liberações químicas das vivências diurnas ao provocarem reações e marcos emocionais (Genova, 2021GENOVA, Lisa. Remember. [Australia]: Simon and Schuster, 2021.); sabemos também que as emoções estão na base dos processos de atribuição de valor realizados pelos sentimentos (Jung, 2013JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. Petrópolis: Editora Vozes Limitada, 2013.). Logo, qualquer processo que interfira no sonho e na elaboração que ele realiza das imagens derivadas dessas experiências emocionais vai interferir igualmente na formação de valores e associações psicológicas que direcionam o comportamento humano. Por isso a busca de controle pela consolidação de memórias gera uma situação em que não é mais a psique e as necessidades adaptativas do sujeito que escolhem as imagens que serão fixadas, mas sim um programa ideológico que conta com um funcionamento algorítmico. Isso influencia os principais mecanismos psicológicos do sonho – compensação, pedagogia e prognóstico (Von Franz, 1992VON FRANZ, Marie-Louise. O caminho dos sonhos. São Paulo: Cultrix, 1992.) —, assim como os descritos pela biologia — aprendizado e simulação de situações de perigo (Revonsuo, 2000REVONSUO, Antti. The reinterpretation of dreams: An evolutionary hypothesis of the function of dreaming. Behavioral and Brain Sciences, v. 23, n. 6, p. 877-901, 2000.). O mesmo processo se apresenta como uma ferramenta perfeita e desejada por toda a ideologia totalitária e de controle social.

Em defesa do TDI, seus propositores afirmam que ele ajudaria na execução de tarefas específicas, no entanto, isso é proposto como um implante que não participa da dinâmica psíquica total do indivíduo; responde às necessidades diretas do mercado, do capitalismo, da produção e do consumo, mas não à subjetividade humana mais essencial. Falando especificamente do nosso exemplo, para a Coors, seria como um processo automatizado e a serviço apenas dos resultados buscados por sua campanha publicitária. Como temos atestado nas últimas décadas, toda tentativa do discurso cibernético de parecer neutro apenas denuncia mais explicitamente estar ele a serviço de segmentos muito específicos da sociedade, ou seja, do capital e de sua ação antierótica pelo poder. Não basta que o tempo dedicado ao sono seja considerado inútil na sociedade da produção (Crary, 2016CRARY, Jonathan. 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Ubu Editora LTDA-ME, 2016.), mas já que, por ora não temos como evitar o sono, parece que a saída é atacar os sonhos (Balestrini Jr.; Contrera; Maia, 2024). Se o indivíduo não está produzindo nesse tempo, ao menos vai criar e consolidar memórias que o levem na direção da produção e do consumo desenfreados.

Se temos em Gilbert Durand (1988)DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix, 1988. a denúncia do empobrecimento do pensamento simbólico e do ataque à potência criativa da imaginação e do imaginário, estamos agora diante de um quadro radical de ataque às imagens endógenas, em seu berço mais profundo: o sonho e as imagens oníricas. Nas sociedades arcaicas o sonho era considerado um canal de comunicação com os deuses e suas imagens eram a revelação de algo fundamental para toda a comunidade (Eliade, 2018ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018.). Temos hoje, ao contrário, um cenário no qual o sonho começa a ser reduzido a veículo publicitário, encerrando o ciclo de transformação do homem em mercadoria de si mesmo, como apontou tão precisamente Jean Baudrillard (1995)BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Elfos, 1995..

A arma de Zeus invade assim o mundo onírico, como um raio que cai do céu, lançado do Olimpo e que se espalha praticamente no exato momento em que toca o chão; essa descarga elétrica invade e permeia o território em torno do ponto de impacto, se espalha pela superfície da consciência e se embrenha na profundidade, buscando seu contato com a dimensão arquetípica que se esconde nas profundezas da psique. Imaginemos agora cada tela levada pelas pessoas durante o dia e a vigília ligada na tomada e colocada ao lado da cabeça daqueles que dormem — mesmo que mal — durante a noite como ponto de conexão com a eletricidade que, dessa maneira, não cai como descargas eventuais que surgem com as tempestades, mas sim de maneira constante, viciante e aprisionadora.

Afinal, não seria esse fascínio pela eletricidade uma espécie de saudades dos deuses, a busca autônoma da psique pelo equilíbrio e harmonia em um mundo desencantado, uma tentativa de reintegração de energias arquetípicas (os deuses celestes) negadas pelo monoteísmo da consciência, mas que, infelizmente, surge de maneira sintomática e patológica? Essa expressão patológica do encantamento pelos aparatos eletrônicos leva a se atribuir às estratégias neoliberais da cibercultura um fascínio que esconde o ataque direto e contínuo às práticas imaginativas e ao pensamento simbólico.

Uma sociedade que não se escandaliza com esses processos revela seu rebaixamento e anestesiamento e anuncia não apenas a irrupção da sua pulsão de morte (Contrera, 2018CONTRERA, Malena Segura. Imaginação e dimensão simbólica da imagem. Revista Latinoamericana de Ciencias de la Comunicación, v. 15, n. 29, 2018.), muitas vezes por meio do ataque à nossa potência simbólica, mas, de maneira dissimulada por máscaras sociais e uma profusão de imagens exógenas, também retiram o sujeito de sua própria interioridade, promovendo a produção e o consumo como valores fundamentais da vida. Dessa maneira, a sociedade atual parece se apressar a preparar um futuro em sua pior versão imaginável, no qual grande parcela da espécie humana será formada de mortos-vivos aprisionados pelos mecanismos de funcionamento dos algoritmos que têm sua recepção garantida por meio do fascínio que exercem sobre nós as telas iluminadas pela eletricidade e pela cegueira branca que acabam por gerar.

Essa imagem dos mortos-vivos já foi de fato exaustivamente anunciada pela produção audiovisual das últimas duas décadas, com a profusão de seriados, filmes e livros de ficção que têm como figura central o zumbi. A sociedade atual está diante de um dilema ético da maior importância que, no entanto, não parece estar claro para muitos: deixaremos que todos os espaços interiores sejam invadidos pelas imagens midiáticas trazidas pelas mãos da deusa eletricidade? Por quanto tempo ainda poderemos sonhar com ovelhas oriundas de nossas memórias elaboradas a partir de vivências concretas? Quando nem o espaço do sonho pode ser salvaguardado da invasão das imagens exógenas da publicidade, sobreviverá o homo simbolicus? E com a extinção do homo simbolicus, o que restará de nossa espécie que tenha valido a pena nossa história? Se a vida é sonho, sem o sonho, haverá algo que se possa chamar propriamente de vida? Uma das saídas possíveis é retomar a ideia de que, por enquanto, ainda podemos imaginar e sonhar com liberdade; seja do ponto de vista dos desejos futuros que gostaríamos de alcançar, seja na dimensão onírica harmonizadora e reveladora de caminhos possíveis. De uma forma, ou de outra, ainda é possível sonhar com ovelhas reais. Façamos isso, antes que seja tarde demais.

  • 1
    Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no GT Imagem e Imaginários Midiáticos do 32º Encontro Anual da Compós (2023) e está disponível nos anais da edição.
  • 2
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
  • 3
    Estado de consciência semilúcida entre a vigília e o sono.
  • 4
    Transtornos do sono que se caracterizam por experiências, comportamentos ou eventos psicológicos anormais que podem ocorrer em várias fases do sono ou mesmo durante a transição do sono para a vigília e vice-versa. Alguns exemplos desses distúrbios são: sonambulismo, terrores noturnos, bruxismo, pesadelos e transtornos de movimento (Wikipedia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Parassonia. Acesso em: 20 nov. 2023)
  • 5
    Utilizamos a expressão aqui de acordo com a etimologia da palavra. Política tem raízes no grego em politikos, se referindo ao cidadão de uma cidade ou estado; alguém que se percebe parte de uma coletividade.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    21 Nov 2023
  • Aceito
    17 Abr 2024
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