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Circulação exacerbada: experiências comunicacionais na midiatização da saúde

Exacerbated Circulation as a process of mediatization of health

Resumo

Atualmente, no cenário da comunicação e saúde, pacientes ascendem às plataformas digitais para produzir conteúdo, interagir, buscar informações e criar uma comunidade de apoio. Nesse contexto, esses sujeitos elaboram a si mesmos e a enfermidades com base em diferentes sentidos produzidos e postos em circulação. Diante do exposto, este artigo tem como objetivo investigar como se constituem as experiências comunicacionais de pacientes com Síndrome de Turner (ST) e de seus familiares no contexto da midiatização da saúde, assim como averiguar como estas configuram o processo de circulação exacerbada. Para tanto, foram analisados comentários da página do Facebook da Turner Syndrome Global Alliance e do canal do YouTube Butterfly TV. Assim, a Circulação Exacerbada pode ser compreendida como uma processualidade na qual há a exaltação, o redimensionamento, a reconfiguração e o reforço dos sentidos por meio dos aspectos da vida íntima dos sujeitos. É por meio dela que sentidos são modificados e criados sobre o viver com a desordem cromossômica. Ou seja, a circulação exacerbada permite que as pacientes meninas e mulheres elaborem a si mesmas e deem novas configurações ao que é ter ST. Isso muda a relação de poderes existentes, colocando as pacientes como protagonistas no processo de compreender essa doença rara.

Palavras-chave
circulação exacerbada; midiatização; Síndrome de Turner

Abstract

Currently, in the communication and health scenario, patients turn to digital platforms to produce content, interact, seek information and create a support community. In this context, these subjects elaborate themselves and illnesses based on different meanings produced and put into circulation. Given the above, this article aims to investigate how the communicational experiences of patients with Turner Syndrome (TS) and their families are constituted in the context of health mediatization, as well as to investigate how these configure the process of exacerbated circulation. To this end, comments from the Turner Syndrome Global Alliance Facebook page and the Butterfly TV YouTube channel were analyzed. Thus, exacerbated circulation can be understood as a process in which there is exaltation, resizing, reconfiguration and reinforcement of the senses through aspects of the subjects’ intimate lives. It is through exacerbated circulation that meanings about living with a chromosomal disorder are modified and created. In other words, exacerbated circulation allows these girls and women to elaborate themselves and create new understandings of what it is to have TS. This changes power relations, placing patients as protagonists in the process of comprehending this rare disease.

Keywords
exacerbated circulation; mediatization; Turner Syndrome

Introdução

O papel da comunicação na área da saúde não é novo, uma vez que as duas trabalham em interface há muitas décadas. Contudo, esse cenário se atualiza constantemente com a midiatização, uma vez que novas inter-relações se estabelecem — e a participação dos sujeitos ganha contornos mais complexos. Isso acontece porque pacientes e seus familiares questionam, pesquisam e tiram dúvidas. Esse fenômeno é mais evidente ao falarmos de doenças raras, uma vez que além de terem menos destaque midiático, as informações disponíveis sobre essas enfermidades são mais escassas. Esse é o caso da Síndrome de Turner (ST).

A ST ou monossomia1 1 Neste artigo, os termos monossomia, síndrome e desordem cromossômica serão utilizados como sinônimos de Síndrome de Turner. do X é uma desordem cromossômica causada pela perda total ou parcial de um cromossomo sexual, causando afetações físicas, sistêmicas e cognitivas, como baixa estatura, infertilidade, perda auditiva, problemas cardíacos e renais, dificuldades de orientação temporal e espacial, transtorno de aprendizagem não verbal, entre outros. A ST ocorre exclusivamente em mulheres, afetando uma a cada 2.500 meninas no mundo todo, e apenas 2% dos fetos sobrevivem ao nascimento, por isso é considerada uma doença rara (Laranjeira et al, 2010LARANJEIRA, Carla; et al. Síndrome de Turner. Acta Pediátrica Portuguesa, v. 41, n. 1, p. 38-43, 2010. Disponível em: https://cutt.ly/pmo8MRK. Acesso em: 21 out. 2022.
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).

Inseridas nesse cenário, as pacientes com ST ascendem às plataformas digitais para produzir conteúdo, interagir, buscar informações e criar uma comunidade de apoio. Porém, no contexto de uma sociedade em midiatização, percebe-se que as mulheres com a síndrome vão além disso, elaborando a si mesmas e à monossomia com base em diferentes sentidos produzidos e postos em circulação (Falchi, 2023FALCHI, Maria do Carmo Experiências comunicacionais em efeito borboleta: elaborações da doença e de si na ambiência da midiatização. 2023. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2023.).

Diante do exposto, este artigo2 2 Este artigo traz resultados de uma pesquisa de doutorado desenvolvida na área de ciências da comunicação. tem como objetivo investigar como se constituem as experiências comunicacionais de pacientes com Síndrome de Turner (ST) e de seus familiares no contexto da midiatização da saúde, assim como averiguar como estas configuram o processo de circulação exacerbada. Para tanto, foram utilizados os conceitos de midiatização e circulação de sentidos e analisados comentários da página do Facebook da Turner Syndrome Global Alliance3 3 Disponível em: https://www.facebook.com/TSGAlliance. e do canal do YouTube Butterfly TV 4 4 Disponível em: https://www.youtube.com/@ButterflyTV1. .

Midiatização e circulação

O estudo e a reflexão de relações, procedimentos e sentidos novos, que são produzidos de forma mais complexa na esfera das práticas sociais e midiáticas, fazem parte da midiatização. Os processos descritos são tentativos, incompletos e não lineares, e ocorrem por meio das experiências comunicacionais de diversos sujeitos. Dessa forma, o cenário desta pesquisa engloba as plataformas digitais e os múltiplos recursos de interação e comunicação inseridos nas práticas sociais, na cultura e na sociedade. Portanto, a midiatização possibilita a análise, de forma crítica, da inter-relação entre as mudanças na mídia e nas comunicações e as alterações na cultura e na sociedade (Couldry e Hepp, 2020COULDRY, Nick.; HEPP, Andreas. A construção mediada da realidade. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2020.). As interações e experiências online de meninas e mulheres com ST resultam desses fenômenos, não somente das mudanças societais e midiáticas, mas também das novas possibilidades de inter-relações entre os diversos campos sociais (Falchi, 2023FALCHI, Maria do Carmo Experiências comunicacionais em efeito borboleta: elaborações da doença e de si na ambiência da midiatização. 2023. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2023.), pois compreendemos a midiatização:

[...] como um processo viabilizador e favorecedor de circuitos de complexidade ampliada, pondo em conjunção circunstâncias que antes podiam se compartimentar em sistemas quase estanques, em “mundos separados”, [assim] propiciam uma zona de confluência geral de “códigos” e “lógicas” os mais diversos

(Braga, 2013BRAGA, José Luiz. O que a comunicação transforma? In: BRAGA, J. L; et al. Dez perguntas para a produção de conhecimento em comunicação. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2013. p. 156-172., p. 164).

Nesse contexto, Ferreira (2016)FERREIRA, Jairo. Adaptação, disrupção e regulação em dispositivos midiáticos. Matrizes, São Paulo, v. 10, n. 2, p. 135-153, 2016. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/matrizes/article/view/120016/117268. Acesso em: 9 fev. 2022.
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enfatiza que a midiatização emerge na contemporaneidade e é um processo heterogêneo. Dessa forma, é por meio da midiatização que se percebe a complexidade das relações sociais existentes, principalmente por meio da análise dos dispositivos tecnológicos de produção, criação e difusão (Faxina e Gomes, 2016FAXINA, Elson; GOMES, Pedro Gilberto. Midiatização: um novo modo de ser e viver em sociedade. São Paulo: Paulinas. 2016.). Sendo assim, Rosa (2017)ROSA, Ana Paula da. Imagens que pairam: a fantasmagoria das imagens em circulação. In: XXVI Encontro Anual da Compós, 2017, São Paulo. Anais... Disponível em: http://www.compos.org.br/data/arquivos_2017/trabalhos_arquivo_C1YVJC1FFEN4O5ZID70Z_26_5247_12_02_2017_11_51_34.pdf. Acesso em: 17 jul. 2019.
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destaca que a complexificação das relações entre os sujeitos e da produção de sentidos que emergem delas é típica da midiatização, sendo uma transformação das configurações transmidiais. Seguindo esse pensamento, Sbardelotto (2016, p. 69)SBARDELOTTO, Moisés. “E o verbo se fez rede”: Uma análise da circulação do “católico” em redes comunicacionais online. 2016, 498f. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2016. ressalta que a midiatização acontece quando “as condições de possibilidade de interação humana, de comunicação social e de organização societal passam a ser condicionadas (não necessariamente determinadas) por lógicas e dinâmicas midiáticas”. Em vista disso, pode-se dizer que a midiatização:

[...] é marcada por transformações em diversos níveis: na inter-relação entre os campos, na diluição das fronteiras entre as gramáticas de produção e de reconhecimento, assim como na forma de ordenamento da sociedade e na complexificação das relações existentes em todos os âmbitos. Essas mudanças ocorrem de forma processual, ou seja, vão se dando de acordo com a intensidade da intercambialidade entre as ações dos sujeitos e a interpenetração dos dispositivos midiáticos. Não se trata de colocar a mídia e os meios de comunicação como centrais no processo, mas sim compreender a importância crescente que eles vêm tendo nas relações e interações sociais, assim como nas práticas dos indivíduos

(Falchi, 2023FALCHI, Maria do Carmo Experiências comunicacionais em efeito borboleta: elaborações da doença e de si na ambiência da midiatização. 2023. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2023., p. 69).

Diante do exposto, compreende-se que por meio da midiatização ocorrem alterações na maneira de validar conhecimentos e nas interações, criando novos e diversos contratos de leitura. Isso vem a permitir um deslocamento da produção de sentido, tornando-a mais múltipla e abrangente. Ou seja, procedimentos e dispositivos que anteriormente eram exclusivos dos meios de comunicação, agora podem ser acessados pelos sujeitos sociais, possibilitando a produção e o compartilhamento de conteúdo, assim como a ressignificação dos produtos midiáticos. Ao se falar dos construtos comunicacionais de pacientes com ST nas plataformas digitais, há a publicação de imagens elaboradas, vídeos com efeitos sonoros e gráficos, assim como comentários e interações. Portanto, há uma atualização dos fazeres midiáticos, permitindo que a cultura midiática faça parte dos processos sociais.

Sobre a circulação

Dessa forma, o conceito de circulação, elaborado por Fausto Neto (2018)FAUSTO NETO, Antonio. Circulação: trajeto conceituais. Rizoma, v. 6, n. 2, p. 8-40, 2018. Disponível em: https://online.unisc.br/seer/index.php/rizoma/article/view/13004. Acesso em: 20 jan. 2022.
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, se faz fundamental para a discussão aqui proposta. O autor diz que a produção de sentidos e de discursos se tornam mais complexas com a circulação. Outrossim, o pesquisador ainda enfatiza que os indivíduos deixam de ser apenas receptores e passam a ser colaboradores da esfera produtiva, se inserindo no cenário midiático. Esse fenômeno acontece pois o avanço tecnológico desvela as múltiplas dimensões da circulação, modifica os contextos e altera as temporalidades, as práticas em sociedade e os discursos dos sujeitos. Sendo assim, Fausto Neto (2010, p. 12)FAUSTO NETO, Antonio. A circulação além das bordas. Mediatización, sociedad y sentido: Diálogos Brasil y Argentina. Rosário: UNR, 2010. p. 2-17. diz que a esfera da produção se transforma em receptora de sistemas de produção enunciativa, uma vez que a circulação:

[...] passa a se constituir em um dispositivo central, uma vez que as possibilidades e a qualidade das interações sócio-discursivas se organizam cada vez mais em decorrência da natureza do seu trabalho em dar forma à arquitetura dos processos comunicacionais

(Fausto Neto, 2010, p. 12).

Nesse cenário, a circulação é o espaço no qual sentidos são produzidos e interações são efetivadas, uma vez que é na circulação e por meio desta que as gramáticas de produção e reconhecimento se formam. Os observáveis desta pesquisa se inserem nesse contexto, uma vez que as experiências comunicacionais sobre Síndrome de Turner emergem da colaboração entre os administradores dos perfis e canais do YouTube (gramática de produção) e dos seguidores (gramática de reconhecimento) (Falchi, 2023FALCHI, Maria do Carmo Experiências comunicacionais em efeito borboleta: elaborações da doença e de si na ambiência da midiatização. 2023. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2023.). Ou seja, os sentidos produzidos sobre ST resultam da combinação entre os conteúdos publicados nas plataformas digitais, as vivências compartilhadas pelos seguidores em comentários e o contexto no qual os sujeitos estão inseridos. Portanto, entende-se a circulação como:

[...] o lugar de acoplamentos de dois conjuntos de relações — produção/reconhecimento — que são colocados em contato segundo manifestações de feedbacks complexos, como possibilidade de acesso às regras de materialização dos sentidos. Lugar de produção e de trânsito de discursos, onde sentidos são ao mesmo tempo engendrados e disputados, ele é fonte de complexidade ao explicitar atravessamentos de lógicas diversas

(Fausto Neto, 2018FAUSTO NETO, Antonio. Circulação: trajeto conceituais. Rizoma, v. 6, n. 2, p. 8-40, 2018. Disponível em: https://online.unisc.br/seer/index.php/rizoma/article/view/13004. Acesso em: 20 jan. 2022.
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, p. 30).

Posto isso, é somente por meio da identificação e análise das marcas existentes na circulação que se pode entender a extensão e as dimensões das experiências comunicacionais. Deste modo, Rosa (2017)ROSA, Ana Paula da. Imagens que pairam: a fantasmagoria das imagens em circulação. In: XXVI Encontro Anual da Compós, 2017, São Paulo. Anais... Disponível em: http://www.compos.org.br/data/arquivos_2017/trabalhos_arquivo_C1YVJC1FFEN4O5ZID70Z_26_5247_12_02_2017_11_51_34.pdf. Acesso em: 17 jul. 2019.
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destaca que a circulação é invisível e pode ser identificada por meio de rastros, permitindo a apreensão dos sentidos que permeiam os diferentes e diversos espaços. Sendo assim, a circulação é um processo dinâmico e que, por meio da sua análise, se faz possível entender os sentidos produzidos. Outrossim, a circulação caracteriza uma conferência de valor ao processo comunicacional (Rosa, 2017ROSA, Ana Paula da. Imagens que pairam: a fantasmagoria das imagens em circulação. In: XXVI Encontro Anual da Compós, 2017, São Paulo. Anais... Disponível em: http://www.compos.org.br/data/arquivos_2017/trabalhos_arquivo_C1YVJC1FFEN4O5ZID70Z_26_5247_12_02_2017_11_51_34.pdf. Acesso em: 17 jul. 2019.
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), uma vez que os produtos midiáticos fazem parte da circulação. Esta estabelece novos sentidos, que só podem ser apreendidos quando somos incitados a dar um valor a um discurso com a intenção de levá-lo adiante.

Ademais, compreende-se que as pesquisas que trabalham com circulação devem abranger as facetas existentes entre as gramáticas de produção e reconhecimento, analisar as marcas deixadas no processo, e ainda identificar de que forma isso se faz presente no contexto da midiatização. Ou seja, é preciso compreender o que está implícito, para além do que pode ser visto na superfície do objeto em estudo. Nessa perspectiva, a circulação é vista como abstrata, sendo concretizada somente na observação dos dispositivos midiáticos (Ferreira, 2016FERREIRA, Jairo. Adaptação, disrupção e regulação em dispositivos midiáticos. Matrizes, São Paulo, v. 10, n. 2, p. 135-153, 2016. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/matrizes/article/view/120016/117268. Acesso em: 9 fev. 2022.
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). Por conseguinte, como diz Fausto Neto (2010)FAUSTO NETO, Antonio. A circulação além das bordas. Mediatización, sociedad y sentido: Diálogos Brasil y Argentina. Rosário: UNR, 2010. p. 2-17., a circulação está sempre em constante construção, gerando indícios, destacando novos objetos de pesquisa e processos analíticos, que permitem a apreensão de seus efeitos e operacionalidades.

Atualmente, os sujeitos têm maior abrangência de comunicação e mais formas de criar e compartilhar conteúdo. Com a interconexão dos campos sociais e a inclusão dos indivíduos na gramática de produção, Rosa (2017)ROSA, Ana Paula da. Imagens que pairam: a fantasmagoria das imagens em circulação. In: XXVI Encontro Anual da Compós, 2017, São Paulo. Anais... Disponível em: http://www.compos.org.br/data/arquivos_2017/trabalhos_arquivo_C1YVJC1FFEN4O5ZID70Z_26_5247_12_02_2017_11_51_34.pdf. Acesso em: 17 jul. 2019.
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, cita duas formas de circulação: intramidiática e intermidiática. A primeira acontece dentro do próprio dispositivo, já a outra é quando a disseminação da informação ocorre em dispositivos diferentes. No conjunto de empíricos elencados para este artigo, esses dois movimentos estão presentes, uma vez que a circulação acontece ao mesmo tempo dentro das mesmas plataformas digitais e nos rastros encontrados. Isso demonstra que a interação acontece tanto em conversas privadas quanto em diferentes espaços das plataformas digitais. Além disso,

[...] todo processo de circulação tem como condição algo que a precede, portanto, é ver o que vem adiante. Para que isso ocorra, é preciso que tenha um movimento anterior, e que por meio de articulações, se possa ver o que se segue. [...] A produção dos sentidos na sociedade contemporânea não respeita um equilíbrio, uma vez que não se sabe a sua movimentação, pois os processos por meio da circulação só são compreendidos pela dinamicidade existente

(Falchi, 2023FALCHI, Maria do Carmo Experiências comunicacionais em efeito borboleta: elaborações da doença e de si na ambiência da midiatização. 2023. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2023., p. 74-75).

Em vista disso, como aponta Braga (2012)BRAGA, José Luiz. Circuitos versus campos sociais. In: JANOTTI JR, J.; MATTOS, M. A.; JACKS, N. (orgs). Mediação & Midiatização. Salvador: EDUFBA, 2012. p. 31-52., a concretude da circulação se dá por meio de circuitos, uma vez que ela que é assimétrica, ocorrendo em fluxos contínuos. Esses circuitos podem ser observados e estudados pelos pesquisadores, uma vez que são socialmente reconhecidos. Ou seja, os circuitos perpassam os diversos campos sociais, alterando sua estrutura e dissolvendo barreiras. Portanto, na midiatização, os circuitos são efêmeros, uma vez que se constituem e se desfazem conforme as interações de um momento específico.

Desse modo, no conjunto de observáveis sobre os fazeres comunicacionais, nas plataformas digitais, de pacientes com ST e seus familiares, há a presença de uma grande variedade de sentidos sobre a síndrome, uma reconfiguração de como a monossomia é vivenciada e o aporte para as elaborações que existem no ambiente online. Assim, mesmo que os administradores que compartilham o conteúdo tenham uma única intenção, as interpretações dos sujeitos são variadas, tentativas e inventivas, já que a circulação resulta das interações entre os indivíduos durante o processo comunicacional.

Além do mais, no contexto das plataformas digitais, os dispositivos conduzidos pelos sujeitos são chamados por Carlón (2020)CARLÓN, Mario. Circulación del sentido y construcción de colectivos en una sociedad hipermediatizada. San Luis: Nueva Editora Universitaria, 2020. de meios individuais, uma vez que têm discursos específicos com níveis de interação e escalas diversos, o que altera o processo de circulação na sociedade atual. Ainda para o autor, essas mudanças levam a novas práticas sociais, lógicas e discursos. Nesse contexto, as meninas e mulheres com ST produzem conteúdos e novos sentidos, pondo-os em circulação, fazendo com que cheguem a novos indivíduos, e que estes, por sua vez, criem novos conteúdos e sentidos.

Isto posto, as experiências comunicacionais se fazem essenciais para quem nasce com ST, pois como destaca Carlón (2020, p. 58)CARLÓN, Mario. Circulación del sentido y construcción de colectivos en una sociedad hipermediatizada. San Luis: Nueva Editora Universitaria, 2020. a identidade se constrói na circulação, como resultado de processos complexos de produção e reconhecimento. Dessa forma, os posts e vídeos criados, e a posterior circulação e (re)interpretação realizadas por pacientes com a síndrome são primordiais para as elaborações e percepções que elas terão sobre a monossomia e sobre si mesmas. Assim, as experiências comunicacionais em questão abrangem a autopercepção dessas mulheres e a percepção dos outros indivíduos, que “reconfiguram e atualizam os sentidos existentes sobre ST, o que não seria possível sem a circulação e a emergência de novos circuitos” (Falchi, 2023FALCHI, Maria do Carmo Experiências comunicacionais em efeito borboleta: elaborações da doença e de si na ambiência da midiatização. 2023. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2023., p. 76).

O processo da circulação exacerbada

Essas inter-relações e reconfigurações existentes na circulação podem ser observadas nas plataformas digitais devido aos movimentos constantes presentes. Para este artigo, optou-se por analisar comentários na página do Facebook da Turner Syndrome Global Alliance (TSGA) e do canal do YouTube Butterfly TV. A página e o perfil foram selecionados porque apresentam duas dimensões diferentes da ST: a TSGA, além de ter um caráter organizacional, cria conteúdos com foco em aspectos médicos; já o canal do YouTube é formado por vídeos que destacam o dia a dia e a vida de quem tem a síndrome. A escolha por analisar comentários se deu por causa dos fluxos e contrafluxos interacionais existentes nesses espaços. Ou seja, são os comentários que problematizam a temática dos posts e dos vídeos, trazendo diferentes pontos de vista sobre o assunto (tanto positivos, quanto negativos).

Como processo metodológico, optou-se pela Análise da Circulação Discursiva (ACD), estabelecida por Verón (2004)VERÓN, Eliseo. Fragmentos de um tecido. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2004.. Para o autor, a ACD deve ser sempre intertextual, uma vez que:

[...] além da parte escrita, deve-se analisar imagens, sons, movimentos: qualquer “pista” que possa ajudar na compreensão dos sentidos do objeto analisado. Portanto, de acordo com Verón (2004)VERÓN, Eliseo. Fragmentos de um tecido. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2004., para se compreender os sentidos da gramática de produção e de reconhecimento é preciso analisar as marcas deixadas nas operações discursivas, que podem ser linguísticas, não linguísticas ou um conjunto dos dois

(Falchi, 2023FALCHI, Maria do Carmo Experiências comunicacionais em efeito borboleta: elaborações da doença e de si na ambiência da midiatização. 2023. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2023., p. 124).

Dessa forma, se analisam texto, gravuras, onomatopeias, uso de cores e imagens, além de qualquer expressão (imagética, textual ou audível) que possam construir sentidos. Assim, optou-se por apresentar neste artigo 3 comentários (2 da página do Facebook e 1 do canal do YouTube). Esse recorte se dá por dois motivos, o primeiro é que os comentários selecionados são representativos da forma como as pessoas entrelaçam sua história de vida pessoal com os diferentes aspectos da ST; o segundo motivo é que esse conjunto demonstra a maneira pela qual os assuntos das postagens são deslocados e ganham novas camadas de complexidade com as vivências dos sujeitos.

A TSGA é uma organização não governamental (ONG) dos Estados Unidos criada por pais de meninas com Síndrome de Turner com o objetivo de divulgar informações sobre a monossomia. Em 2015, a ONG criou uma página no Facebook, na qual faz postagens diariamente sobre aspectos médicos e psicológicos da síndrome. São posts que falam de sintomas, características e possíveis tratamentos, sempre acompanhados de fotos de meninas e mulheres que nasceram com a síndrome. Os comentários, na maioria das vezes, são feitos por pais ou parentes de meninas com ST, promovendo uma rede de interações entre estes.

Já o canal Butterfly TV foi desenvolvido pela estadunidense Brooke Gonsalves, uma mulher com Síndrome de Turner. Desde 2016, ela produz vídeos dando dicas, falando sobre a rotina, mostrando os desafios e abordando aspectos médicos relacionados à ST. Ela compartilha várias dimensões sobre o cotidiano e os tratamentos em uma perspectiva que mescla questões médicas e suas experiências pessoais. Os comentários do canal são feitos por mulheres que nasceram com ST e que, de diferentes formas, se identificam com a youtuber.

Figura 1
Comentário na página TSGA 15 5 “Essa é uma razão pela qual eu dei a minha filha o nome de Myracle” (Tradução nossa).

A figura 1 apresenta um comentário realizado em um post6 6 O post que originou o comentário está disponível em: https://www.facebook.com/TSGAlliance/photos/a.795707687132149/1379942815375297/. Acesso em: 12 jul. 2022. no qual a ONG aborda a baixa taxa de natalidade de bebês com ST. A seguidora Sabrina, em sua manifestação na página, ultrapassa o objetivo almejado pela TSGA, que era destacar que as meninas e mulheres com a síndrome são milagres. Sabrina realiza uma apropriação do sentido que foi posto em circulação não pela organização, mas sim pelas próprias pessoas que enfrentam os desafios da ST, dando-lhe uma aplicação social — que está presente no nome da filha. Isso faz emergir um novo circuito, que é colocado em circulação novamente. Portanto, o comentário em questão serve como exemplo “de uma dinâmica fundamental na midiatização: as transformações mútuas que ocorrem na comunicação e nos processos midiáticos e sua consequente inter-relação” (Falchi, 2023FALCHI, Maria do Carmo Experiências comunicacionais em efeito borboleta: elaborações da doença e de si na ambiência da midiatização. 2023. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2023., p. 173). Todavia, é possível identificar um novo processo, uma vez que, além de abordar um sentido já existente e conhecido sobre a síndrome, Sabrina o redimensiona, já que a palavra milagre, para ela e seus familiares, se transforma de adjetivo em substantivo próprio. Assim, o milagre tem dois sentidos na vida da bebê, o primeiro é pela menina ter uma síndrome rara, e o segundo é por seu nome ser a forma como ela se identifica e se apresenta socialmente.

Outro ponto é a alteração feita por Sabrina na escrita do nome: na língua inglesa, a grafia correta é miracle, mas, para torná-lo um substantivo próprio único, a mãe da bebê escolheu Myracle. É preciso destacar que, no inglês, é normal pais colocarem nos filhos nomes com palavras que são adjetivos. Porém, a palavra adquire um significado especial, pois a troca do i pelo y, transforma o nome em algo singular, pois, além de a bebê ser um milagre e ter uma doença rara, ela é única, diferente, especial. Isso pode ser percebido de diversas formas, como pela menina fazer parte dos 2% das que nascem com ST, e pela monossomia ser rara. Assim, da mesma forma que a criança tem características diferentes dos padrões estabelecidos pela sociedade, a grafia do seu nome não segue os padrões normativos da língua inglesa.

Essas questões são corroboradas pelo comentário, uma vez que Sabrina faz questão de dizer que a escolha do nome se deu pelo fato de que a menina ter nascido com a síndrome, ou seja, é anterior ao nome. Dessa forma, o adjetivo milagre tem uma carga semântica que pode definir a identidade de uma pessoa, o próprio ser e a maneira como este se apresenta perante a sociedade. Mais que uma decisão dos pais, a opção pelo nome tem uma origem comunicacional, pois várias instituições e pacientes veem a ST como um milagre, e consideram meninas e mulheres que nascem com a monossomia a verdadeira corporificação de um milagre. Além disso, a palavra Myracle inicia com o pronome inglês my, que indica posse, e que pode ser traduzido para o português como meu. À vista disso, a forma como o nome é escrito demonstra que a nenê não é um milagre qualquer, ela é especificamente o milagre da Sabrina, o que indica não apenas o que a filha representa, mas também o seu sentimento como mãe.

Logo, o que se percebe é que os diferentes aspectos da ST não apenas perpassam o dia a dia (tratamentos, consultas médicas, exames), mas são partes da constituição social do ser, da forma como esse se apresenta e se relaciona com o mundo. Portanto, são questões que se processam na vida íntima dos sujeitos e aqui não estamos generalizando ou falando somente de aspectos que antes ficavam na esfera do privado e que, por meio das plataformas digitais, se tornaram públicos. O que queremos dizer aqui com vida íntima é que existem dimensões que dizem respeito apenas às pessoas, e que, devido aos estigmas existentes, não são externalizadas. Esse é o caso da ST, pois como é uma condição não evidente fisicamente, muitas meninas e mulheres comentavam o diagnóstico apenas com familiares. Dessa forma, as experiências e vivências em relação à síndrome tinham caráter privado, uma vez que eram histórias e enfrentamentos que as pacientes evitavam contar para um grande número de pessoas, como averiguado em diversos comentários e entrevistas realizadas com pacientes com ST7 7 Entrevistas que podem ser acessadas na página do Laboratório de Circulação, Imagem e Midiatização (Lacim): Disponível em: https://sites.google.com/view/lacimlab/conte%C3%BAdo/entrevistas/os-diversos-processos-presentes-na-midiatiza%C3%A7%C3%A3o-da-sa%C3%BAde-i?authuser=0. Acesso em: 6 jan. 2024. . Contudo, atualmente, o que está em jogo é a (re)elaboração de si por parte dessas pacientes, em que, além de falarem sobre a monossomia, elas compreendem que esta faz parte de quem elas são.

Ou seja, a ideia não é classificar o que seria público ou privado nas experiências comunicacionais relacionadas à ST, mas sim mostrar como cada vez mais questões que antigamente ficavam apenas no âmbito familiar ganham o espaço público e são compartilhadas com pessoas de diferentes partes do mundo. Ademais:

[...] percebe-se um fenômeno mais profundo que apenas se manifesta no compartilhamento da privacidade, pois é não é apenas uma intimidade relacionada ao espaço de casa ou externalizar uma característica que normalmente não é compartilhada com pessoas com quem não se convive diariamente, é uma questão que transpassa isso, envolvendo dores, sentimentos, reflexões e percepções que só surgem por meio do diálogo com o outro

(Falchi, 2023FALCHI, Maria do Carmo Experiências comunicacionais em efeito borboleta: elaborações da doença e de si na ambiência da midiatização. 2023. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2023., p. 106).

Diante disso, é possível identificar nos comentários um processo ao qual atribuiu-se o nome de Circulação Exacerbada. Nas dinâmicas, identificou-se que estas ultrapassam o contato entre as esferas de produção e reconhecimento, pois ampliam a concepção de ser “lugar de produção e de trânsito de discursos, onde sentidos são ao mesmo tempo engendrados e disputados, ele é fonte de complexidade ao explicitar atravessamentos de lógicas diversas” (Fausto Neto, 2018FAUSTO NETO, Antonio. Circulação: trajeto conceituais. Rizoma, v. 6, n. 2, p. 8-40, 2018. Disponível em: https://online.unisc.br/seer/index.php/rizoma/article/view/13004. Acesso em: 20 jan. 2022.
https://online.unisc.br/seer/index.php/r...
, p. 30). Sendo assim, a Circulação Exacerbada tem como ponto inicial uma noção que está enraizada nos circuitos midiáticos elaborados sobre um assunto, e, dessa forma, os sentidos atribuídos nesses circuitos e nos posteriores são postos em circulação e impactam e alteram aspectos da vida social por meio de processos culturais que despontam midiaticamente de maneira criativa. Isto é, a Circulação Exacerbada transpassa a produção de sentido, uma vez que nela os sentidos são amplificados e potencializados por meio de questões da vida íntima dos indivíduos. Portanto, a Circulação Exacerbada deve ser vista como um incremento à circulação abordada por Fausto Neto (2018)FAUSTO NETO, Antonio. Circulação: trajeto conceituais. Rizoma, v. 6, n. 2, p. 8-40, 2018. Disponível em: https://online.unisc.br/seer/index.php/rizoma/article/view/13004. Acesso em: 20 jan. 2022.
https://online.unisc.br/seer/index.php/r...
, pois esta somente se exacerba em um momento posterior, sendo originada em um circuito anterior, que subsequentemente se intensifica.

Figura 2
Comentário da página TSGA 28 8 Essa é Quinnlee. Ela é um milagre. Ela tem Síndrome de Turner. Uma em cada 2.500 meninas nascem com ST. Somente 1% das concepções com ST sobrevivem ao primeiro trimestre [da gestação]. Muitas vezes os bebês têm fluidos excessos no corpo. Isso é chamado Higroma Cístico e Hidropsia. Quinnlee teve os dois. O surgimento desse fluído é a maior causa de morte de meninas com ST: isso essencialmente causa a falência cardíaca. A mãe de Quinnlee foi encorajada a abortar devido a isso. No seu exame anatômico, o médico falou, de maneira fria, que Quinnlee CERTAMENTE iria morrer no útero, e seria mais seguro, para ela, terminar a gravidez o mais rápido possível. A mãe escolheu a VIDA. Ela optou por seguir a gravidez até onde Deus quisesse. Muitas meninas com ST têm problemas de saúde, incluindo problemas de coração e rins, perda auditiva, hipotireoidismo, problemas ósseos e de crescimento, e INFERTILIDADE. [A ST] afeta cada menina de forma diferente. Algumas têm quase nenhum problema! Quinnlee passou por uma cirurgia cardíaca com duas semanas de vida. Ela tinha somente 2 kg e meio e mal gesticulava naquele momento. O cirurgião corrigiu a coarctação da aorta, permitindo que o coração dela funcionasse normalmente. Durante essa cirurgia, a sua corda vocal esquerda foi paralisada, significando que ela tem um grande risco de aspirar o que ela come. Depois, ela fez uma cirurgia para colocar um Tubo G com aproximadamente um mês de idade. Ela também passou por um procedimento para ajudar a aliviar os efeitos do refluxo. Ela passou os dois primeiros meses de vida no hospital. Mesmo sendo difícil para a mãe vê-la dessa maneira, ela sabia que era o melhor para ela! Meninas com ST são FORTES!! Elas superam os obstáculos e provam como são poderosas (Tradução nossa).

Entre os diferentes comentários postados, especialmente por parte de pais de pacientes com ST, está a publicação de fotos das filhas, na figura 2, que demonstra a interação em um post com a seguinte a frase motivacional9 9 O post que precede o comentário está disponível em: https://www.facebook.com/TSGAlliance/photos/a.795707687132149/965551943481055. Acesso em: 15 dez. 2022 Rock it princess”, que, traduzindo para o português seria “Arrase Princesa”. A figura acima não é simplesmente uma foto, mas um card produzido pela mãe da bebê, que por meio de processos inventivos e imaginativos torna a história de Quinnlee concreta e palpável. A criatividade utilizada pela mãe ultrapassa os protocolos elaborados pelo próprio Facebook. A plataforma permite que os usuários compartilhem fotos no espaço dos comentários, contudo jamais imaginariam um card contendo experiências da vida privada no formato de texto.

Nesse contexto, a monossomia passa a ter uma conotação relacionada à vida. Em vez de destacar as estatísticas, que mostram a parte negativa da baixa taxa de nascimentos, o texto do card traz esperança, falando ao mesmo tempo das angústias e de problemas médicos, mas apresentando sentimentos de felicidade, de confiança ao ter se negado a abortar e tomado a decisão certa. Ainda se faz necessário ressaltar que, de uma maneira lúdica — por meio da narrativa da história —, o tema do aborto é debatido, o que é essencial, pois é uma sugestão popular entre os médicos, contudo o assunto não é discutido pela comunidade.

Ademais, a palavra infertilidade foi redigida em letras maiúsculas, o que enfatiza o dilaceramento sentimental da mãe de Quinnlee por esta não poder ter filhos. Isso expressa um consenso de que essa é a pior afetação da ST. Isso é uma opinião pessoal, da mãe, de que todo mundo que nasce com a desordem cromossômica tem vontade de se tornar mãe, e que o tema da infertilidade impacta todas da mesma maneira. Essa é uma visão enraizada na sociedade, e que muitas vezes gera um desconforto emocional nas mulheres com ST muito mais pelo que os outros pensam do que pelo sentimento próprio de cada uma. Assim, no futuro, quando Quinnlee ler o card, ela pode vir a elaborar em sua mente a concepção de que não poder engravidar é algo negativo, a pior afetação da desordem cromossômica.

Os diversos elementos sentimentais que constituem a história demonstram que o card foi uma espécie de desabafo para a mãe, pois foi a maneira que ela encontrou para externalizar o sofrimento e a dor enfrentados. Outrossim, também foi uma maneira de apoiar os pais e destacar que é possível enfrentar os momentos dolorosos. Ademais, o uso do termo mighty ― que significa poderosa ― é redimensionado por meio da Circulação Exacerbada. Isso acontece porque, mesmo sendo uma expressão utilizada pela TSGA, a seguidora ― de forma inventiva ― ressignifica, reforça, por meio do relato, a magnitude do poder dessas pacientes. Devemos destacar o rompimento das barreiras entre o público e o privado, uma vez que, mais do que pequenos fragmentos, os sentimentos, as angústias e a opinião da seguidora foram compartilhadas aberta e livremente. Outro ponto a ressaltar na narrativa é a alternância entre os desafios e dilemas vivenciados tanto pela menina quanto pelos pais. Mesmo a narrativa tendo sido elaborada pelos familiares, a luta da menina pela vida está presente no texto.

Diante do exposto, observa-se a Circulação Exacerbada, uma vez que o card não somente dá concretude ao arrase princesa como o faz por meio de uma história íntima. A ideia, já mostrado na mídia, é ressignificada e potencializada por meio dos processos culturais presentes na sociedade. Para a mãe da menina, arrasar significa mais do que ter sucesso, impressionar os outros ou se destacar10 10 De acordo com a definição do termo arrasar, disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/arrasar/. Acesso em: 6 jan. 2024. , mas vencer as adversidades, dar valor à vida e desafiar as estatísticas. Todos os sentidos aqui relatados são elaborados e colocados em circulação pela da narrativa de uma história pessoal, reforçada por meio desse processo.

Figura 3
Comentário no canal Butterfly TV 111 11 Olá Brooke, sou Marie, atualmente tenho 25 [anos], da Alemanha, e também nasci com ST. Eu descobri seu canal hoje, e queria ter a oportunidade de responder a essa tag. 1. Fui diagnosticada no nascimento graças a uma parteira muito observadora, que viu que o topo dos meus pés e mãos estavam bem inchados. Infelizmente, meu pé continua assim ainda hoje. 2. Eu tenho 153 cm ou 5,01” polegadas por pé[sic] ... espero que esteja certo... sistemas métricos estúpidos. 3. Eu não fiz cirurgia no pescoço, principalmente porque, como você, tenho muitos problemas com cicatrizes na pele e não queria acabar com cicatrizes feias, sinto muito por você. Mas consulte um dermatologista, foi a única coisa que me ajudou com minhas cicatrizes, se elas forem severas como a suas, eu tenho certeza que há um tratamento a laser disponível. 4. Sim, sim, sim. Eu tive um par de tubos nos meus ouvidos, vocês sabem, com todas as infecções de ouvido, que duram até hoje. Muitos sinais tiveram que ser removidos da minha pele, foi assim que consegui cicatrizes ruins. 5. Eu sou clássica. 6. Avaliação cardíaca, endocrinológica, de ouvido, nariz e pele. Nós não queremos câncer, queremos? 7. Como eu mencionei, o edema nos meus pés, significando drenagem linfática toda semana desde que eu tinha 8 anos e usar meias de compressão para o sistema linfático super incríveis... grr. Meus ouvidos, não muito ruins, mas às vezes enfrento momentos ruins com eles. Como você disse, ser pequena pode limitar você, mas só se você deixar. Meu peso às vezes me preocupa e é um problema. Também infertilidade, já que doação de óvulos é ilegal na Alemanha, mas a gente dá um jeito, de alguma forma. 8. Não, hormônio do crescimento humano é proibido na Alemanha desde 1980, eu usei sintéticos dos 8 aos 15/16 anos... engraçado o quão rápido nos esquecemos dessas coisas quando já não temos mais que fazê-las. 9. Endocrinologista, otorrinolaringologista, dermatologista... 10. Realmente conheci 2, que são minhas grandes amigas até os dias de hoje. Eu também queria mencionar que tenho um blog... eu não atualizo com a frequência que gostaria, mas o tempo sempre tira o melhor de mim, e como vou me formar em agosto, eu espero ter mais tempo para fazer isso posteriormente. Sinta-se livre para dar uma olhada se você gostar, e isso vale para todas as mulheres com ST desse espaço de comentários. Também ficaria feliz de conhecer algumas de vocês pela internet. Vocês podem me achar no Facebook e no Instagram como Marie. Muito amor e saudações da Alemanha, Marie (Tradução nossa). .

Diversos circuitos são movimentados no espaço de comentários do primeiro vídeo12 12 Vídeo está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EcljkUDNbo0&t=524s. Acesso em: 6 jan. 2024. , em que Brooke traz a temática da ST no seu canal, como mostrado na figura 3. A youtuber apresenta, no vídeo, dez perguntas e respostas sobre a desordem cromossômica, e o que se percebe é que grande parte dos seguidores faz elogios ou expressa gratidão por ela trazer um assunto privado para o espaço público. Contudo, Marie, uma seguidora da Alemanha, realiza um outro movimento: por meio de um comentário, ela dá resposta às dez questões propostas por Brooke. Dessa forma, Marie não apenas visa dar um feedback ou promover uma interação, ela reivindica aquele espaço como seu, e, assim, narra sua história. Ou seja, a seguidora encara as perguntas como um questionário para si, e se torna protagonista, não apenas uma usuária da plataforma digital. Mais do que reproduzir o que a youtuber faz, ela assume sua própria voz enquanto paciente com Síndrome de Turner. Isto posto, o vídeo de Brooke vai muito além de dar uma maior visibilidade à desordem cromossômica, ele empodera e dá coragem a essas pacientes, permitindo que elas iniciem um processo de extimidade, reflitam sobre a monossomia e deem os primeiros passos para terem uma relação menos negativa com a ST.

O comentário de Marie levanta inúmeras questões importantes que tensionam diversos aspectos da própria monossomia e a maneira como ela se identifica enquanto mulher com ST. Isso é demonstrado pela objetividade das respostas, com exceção da pergunta: “Qual problema de saúde mais afeta você?”, que é respondida no item 7 do comentário. A seguidora não elege um único ponto sobre sua saúde para falar, pois se sente totalmente afetada pela desordem cromossômica, seja com infecções de ouvido, infertilidade, sobrepeso, problemas no sistema linfático e baixa estatura. Ou seja, Marie vê a ST como um conjunto de fatores — um pacote — e não consegue dimensionar ou separar as múltiplas afetações da síndrome. Portanto, para ela, a ST não é limitadora, mas algo determinante para a sua existência, uma vez que no comentário ela deixa claro que não se sente limitada pela monossomia, porém, é possível observar que Maria a vê como algo que a define enquanto sujeito.

Outro ponto importante da narrativa de Marie é a vulnerabilidade trazida pela ST, já que no item 3 ela fala do risco aumentado para o desenvolvimento de queloides durante cirurgias, e no tópico 6 ela diz acreditar que a monossomia pode aumentar a chance de ter câncer. Contudo, é preciso salientar que, ao mesmo tempo que a primeira informação é validada cientificamente (Lowenstein, 2004LOWENSTEIN, Eve; et al. Turner’s Syndrome in dermatology. Journal of the American Academy of dermatology, v. 5, n. 50, p. 767-776, 2004. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0190962203043652. Acesso em: 24 ago. 2022.
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), a segunda não tem comprovação, já que há estudos como os de Viuff (2021)VIUFF, Mette.; et al. Cancer occurrence in Turner Syndrome and the effect of sec hormone substitution therapy. European Journal of Endocrinology, v. 184, n. 1, p. 79-88, 2021. Disponível em: https://eje.bioscientifica.com/view/journals/eje/184/1/EJE-20-0702.xml. Acesso em: 24 ago. 2022.
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que dizem que o risco de desenvolver câncer não é maior em pacientes com a desordem cromossômica, se comparado com o restante da população. Aqui é importante trazer um alerta, pois qualquer pessoa que está começando a acompanhar o canal e lê essas informações pode desenvolver sentimentos como pânico, insegurança ou angústia, aumentando o pessimismo em relação à ST. O que ainda é reforçado pela interjeição “grr”, que podem expressar frustração e até mesmo raiva.

Diante do exposto, percebe-se que os sentimentos da seguidora em relação à desordem cromossômica são conflitantes, pois, ao mesmo tempo que ela descreve não sentir que a ST a impede de algo, ela traz problemas de saúde que a deixam com medo. Isso vem a ser uma forma de extimidade e faz parte do processo de desvelamento e autopercepção de Marie. Ela descreve vivências pessoais, conta sobre cicatrizes na pele em decorrência da remoção de um sinal, além de falar sobre questões práticas, por exemplo, como a síndrome impacta o seu dia a dia (como o uso de meias de compressão devido aos inchaços nos membros inferiores e as drenagens semanais).

Ademais, a seguidora também faz uma contextualização trazendo questões culturais ligadas à ST, como a ilegalidade da doação de óvulos na Alemanha e o fato de que o hormônio do crescimento humano (GH) também era ilegal na sua infância, então ela usou uma versão sintética. Além disso, ela reflete sobre como esses fatores foram parte de sua vida: sem a possibilidade de doação de óvulos há uma limitação nas escolhas para ela se tornar mãe; e em relação ao GH, ela enfatiza que anos atrás era algo importante, mas agora, que ela não precisa mais do hormônio, consegue esquecer facilmente como era a aplicação.

Dessa forma, a Circulação Exacerbada ocorre por meio da interconexão entre questões técnicas e culturais, pois sentidos que já circulam sobre ST — como os desafios do uso do GH e a infertilidade ― são enfatizados e ganham uma nova dimensão à medida que Marie adiciona os aspectos culturais de seu país e sua experiência pessoal. Neste contexto, há uma reconfiguração e potencialização dos sentidos já existentes por meio do acréscimo do cenário sociocultural e das vivências íntimas. Destarte, a Circulação Exacerbada engloba a vida privada de meninas e mulheres com a síndrome para além dos sentidos já existentes, pois as pacientes, ao experienciarem corporalmente as afetações da ST, transformam os discursos em circulação. Ou seja, não são apenas os sentidos sobre a monossomia em si, ou sobre o compor com ST, mas a experimentação dos sentidos desta no próprio corpo. Assim, se percebe que a extimidade ocorre nas pacientes, uma vez que os discursos são percebidos corporalmente por meio dos processos midiáticos (Falchi, 2023FALCHI, Maria do Carmo Experiências comunicacionais em efeito borboleta: elaborações da doença e de si na ambiência da midiatização. 2023. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2023.).

Além dos pontos já destacados, Marie escreve o comentário de maneira não linear, e o faz em formato de carta: há um destinatário — Brooke —, uma apresentação enxuta, o motivo da interação, um convite para que os outros acessem seu blog e um encerramento típico de carta — com saudações, desejando amor e finalizando com o nome. Ou seja, Marie tem um cuidado ao se dirigir à Brooke, que utiliza uma linguagem mais formal e respeita as normas gramaticais, em vez de optar por gírias ou abreviações que são características do espaço de comentários. A seguidora não teve receios de entrar em contato com a youtuber, mas, por não ter intimidade com ela, preferiu ser menos coloquial, demonstrando hesitação ou ansiedade ao interagir com a administradora do canal.

Portanto, a Circulação Exacerbada é um processo posterior à circulação descrita por Fausto Neto (2018)FAUSTO NETO, Antonio. Circulação: trajeto conceituais. Rizoma, v. 6, n. 2, p. 8-40, 2018. Disponível em: https://online.unisc.br/seer/index.php/rizoma/article/view/13004. Acesso em: 20 jan. 2022.
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e que ocorre por meio de operações existentes nas gramáticas de produção e de reconhecimento, que demonstram os movimentos comunicacionais de circuitos anteriores e que se expandem e se acentuam por meio das dinâmicas já apresentadas. Dessa forma:

[...] a Circulação exacerbada pode ser compreendida como uma processualidade na qual há a exaltação, o redimensionamento, a reconfiguração e o reforço dos sentidos através dos aspectos da vida íntima dos sujeitos que estão em interação, isso permite que se vá além dos sentidos já existentes, pois os discursos postos em circulação são experienciados corporalmente por meio dos dispositivos midiáticos

(Falchi, 2023FALCHI, Maria do Carmo Experiências comunicacionais em efeito borboleta: elaborações da doença e de si na ambiência da midiatização. 2023. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2023., p. 320).

Sendo assim, a Circulação Exacerbada depende da circulação nos moldes de Carlón (2020)CARLÓN, Mario. Circulación del sentido y construcción de colectivos en una sociedad hipermediatizada. San Luis: Nueva Editora Universitaria, 2020., Rosa (2017)ROSA, Ana Paula da. Imagens que pairam: a fantasmagoria das imagens em circulação. In: XXVI Encontro Anual da Compós, 2017, São Paulo. Anais... Disponível em: http://www.compos.org.br/data/arquivos_2017/trabalhos_arquivo_C1YVJC1FFEN4O5ZID70Z_26_5247_12_02_2017_11_51_34.pdf. Acesso em: 17 jul. 2019.
http://www.compos.org.br/data/arquivos_2...
e Fausto Neto (2010FAUSTO NETO, Antonio. A circulação além das bordas. Mediatización, sociedad y sentido: Diálogos Brasil y Argentina. Rosário: UNR, 2010. p. 2-17.; 2018)FAUSTO NETO, Antonio. Circulação: trajeto conceituais. Rizoma, v. 6, n. 2, p. 8-40, 2018. Disponível em: https://online.unisc.br/seer/index.php/rizoma/article/view/13004. Acesso em: 20 jan. 2022.
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, uma vez que se caracteriza como um desenvolvimento que acontece por causa das transformações na sociedade e da complexificação crescente dos processos midiáticos, como demonstrado a seguir:

Fluxograma 1
Circulação Exacerbada.

A Circulação Exacerbada vem a ser uma extensão do conceito de circulação elaborado por Fausto Neto (2018)FAUSTO NETO, Antonio. Circulação: trajeto conceituais. Rizoma, v. 6, n. 2, p. 8-40, 2018. Disponível em: https://online.unisc.br/seer/index.php/rizoma/article/view/13004. Acesso em: 20 jan. 2022.
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, pois circuitos inéditos e complexos surgem na/por meio da sociedade, e isso faz com que a circulação se acentue e seja reforçada por meio de aspectos da vida íntima dos indivíduos. Essa dinâmica tem como um dos pontos principais as experiências comunicacionais, quando os sujeitos compartilham questões particulares de sua vida nas plataformas digitais e, assim, produzem novos sentidos, que vão além do sentido discursivo, uma vez que são experienciados corporalmente.

Considerações finais

Frente ao exposto, consideramos que as experiências comunicacionais, a partir de um movimento sócio-colaborativo, são imprescindíveis na construção dos saberes sobre a desordem cromossômica. É por meio delas, e das operações discursivas/comunicacionais subsequentes, que ocorre a circulação dos conhecimentos, e por meio de processos experimentais e inventivos que há a reconfiguração das vivências de meninas e mulheres com ST e seus familiares. Assim, a partir desses movimentos, os saberes sobre a síndrome passam a ser sociais e sociáveis, sem diferenciação entre dados médicos ou conhecimentos tácitos. Por conseguinte, sem a dinâmica dos circuitos na circulação, as experiências comunicacionais e as elaborações da doença e de si — decorrentes da midiatização — não poderiam existir.

As experiências comunicacionais acerca da Síndrome de Turner não são produções coletivas, mas uma construção coletiva (Falchi, 2023FALCHI, Maria do Carmo Experiências comunicacionais em efeito borboleta: elaborações da doença e de si na ambiência da midiatização. 2023. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2023.), já que emergem, se modificam e se fortalecem no meio social em um processo de fluxo contínuo, ou seja, elas não são um produto social finalizado. Assim, a comunicação deve ser vista como um espaço de reordenamento e transformação social, por meio do qual indivíduos com doenças raras e suas famílias sejam incluídos e tenham visibilidade. Dessa forma, os comentários postos em circulação surgem das necessidades das próprias meninas e mulheres com ST, em um processo experimental, pois a midiatização da saúde está acontecendo neste momento, se desenvolvendo sem especificações precisas ou normas corretas.

Assim, é possível compreender que as experiências comunicacionais das meninas e mulheres com a monossomia e de suas famílias se configuram por meio de operações discursivas (textuais ou não) que compreendem questões que envolvem o narrar a si mesmo, o acionamento da alteridade, a desmistificação da síndrome e a externalização da dor/angústia. As operações, se isoladas, não vêm a desempenhar sua força máxima, pois somente em conjunto elas dão potência ao fenômeno observado.

Ademais, essa potencialização acontece por meio da Circulação Exacerbada, uma vez que é por meio desta que sentidos são modificados e criados sobre o viver com a desordem cromossômica. Ou seja, a Circulação Exacerbada permite que essas pacientes elaborem a si mesmas e deem novas configurações ao que é ter ST, ela é um movimento ulterior que resulta da experiência, do testemunho e da narração de si. Isso transforma a maneira como os poderes existentes se relacionam entre si, pois põe as meninas e mulheres como protagonistas e em posição de destaque na compreensão da doença rara.

O que se percebe é que uma das características da Circulação Exacerbada é que esta é atravessada e dependente da produção de sentidos, pois eles são reconfigurados e redimensionados. Dessa forma, é um movimento que não tem começo nem fim, uma vez que, a cada instante, novas interações e elementos são adicionados, criando novos circuitos e novos sentidos. Ou seja, o conceito de circulação não é banalizado pelo processo de Circulação Exacerbada, já que esta é um desdobramento, é um momento adiante. Neste cenário, é fundamental ressaltar que a Circulação Exacerbada não está presente em todas as problemáticas que discutem circulação, mas sim em processos comunicacionais que englobem questões de saúde (independentemente de serem doenças raras ou não) e também em situações nas quais a experiência ultrapassa a dimensão midiática, fazendo com que a circulação seja experienciada corporalmente, como o compartilhamento de vivências relacionadas à prática esportiva, ou questões que envolvem beleza e autoestima. Ela está presente em situações as quais as vivências são físicas e pessoais, não sendo aplicadas ao se falar de terceiros ou de acontecimentos e fatos que não afetem os sujeitos diretamente.

  • 1
    Neste artigo, os termos monossomia, síndrome e desordem cromossômica serão utilizados como sinônimos de Síndrome de Turner.
  • 2
    Este artigo traz resultados de uma pesquisa de doutorado desenvolvida na área de ciências da comunicação.
  • 3
  • 4
  • 5
    “Essa é uma razão pela qual eu dei a minha filha o nome de Myracle” (Tradução nossa).
  • 6
    O post que originou o comentário está disponível em: https://www.facebook.com/TSGAlliance/photos/a.795707687132149/1379942815375297/. Acesso em: 12 jul. 2022.
  • 7
    Entrevistas que podem ser acessadas na página do Laboratório de Circulação, Imagem e Midiatização (Lacim): Disponível em: https://sites.google.com/view/lacimlab/conte%C3%BAdo/entrevistas/os-diversos-processos-presentes-na-midiatiza%C3%A7%C3%A3o-da-sa%C3%BAde-i?authuser=0. Acesso em: 6 jan. 2024.
  • 8
    Essa é Quinnlee. Ela é um milagre. Ela tem Síndrome de Turner. Uma em cada 2.500 meninas nascem com ST. Somente 1% das concepções com ST sobrevivem ao primeiro trimestre [da gestação]. Muitas vezes os bebês têm fluidos excessos no corpo. Isso é chamado Higroma Cístico e Hidropsia. Quinnlee teve os dois. O surgimento desse fluído é a maior causa de morte de meninas com ST: isso essencialmente causa a falência cardíaca. A mãe de Quinnlee foi encorajada a abortar devido a isso. No seu exame anatômico, o médico falou, de maneira fria, que Quinnlee CERTAMENTE iria morrer no útero, e seria mais seguro, para ela, terminar a gravidez o mais rápido possível. A mãe escolheu a VIDA. Ela optou por seguir a gravidez até onde Deus quisesse. Muitas meninas com ST têm problemas de saúde, incluindo problemas de coração e rins, perda auditiva, hipotireoidismo, problemas ósseos e de crescimento, e INFERTILIDADE. [A ST] afeta cada menina de forma diferente. Algumas têm quase nenhum problema! Quinnlee passou por uma cirurgia cardíaca com duas semanas de vida. Ela tinha somente 2 kg e meio e mal gesticulava naquele momento. O cirurgião corrigiu a coarctação da aorta, permitindo que o coração dela funcionasse normalmente. Durante essa cirurgia, a sua corda vocal esquerda foi paralisada, significando que ela tem um grande risco de aspirar o que ela come. Depois, ela fez uma cirurgia para colocar um Tubo G com aproximadamente um mês de idade. Ela também passou por um procedimento para ajudar a aliviar os efeitos do refluxo. Ela passou os dois primeiros meses de vida no hospital. Mesmo sendo difícil para a mãe vê-la dessa maneira, ela sabia que era o melhor para ela! Meninas com ST são FORTES!! Elas superam os obstáculos e provam como são poderosas (Tradução nossa).
  • 9
    O post que precede o comentário está disponível em: https://www.facebook.com/TSGAlliance/photos/a.795707687132149/965551943481055. Acesso em: 15 dez. 2022
  • 10
    De acordo com a definição do termo arrasar, disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/arrasar/. Acesso em: 6 jan. 2024.
  • 11
    Olá Brooke, sou Marie, atualmente tenho 25 [anos], da Alemanha, e também nasci com ST. Eu descobri seu canal hoje, e queria ter a oportunidade de responder a essa tag. 1. Fui diagnosticada no nascimento graças a uma parteira muito observadora, que viu que o topo dos meus pés e mãos estavam bem inchados. Infelizmente, meu pé continua assim ainda hoje. 2. Eu tenho 153 cm ou 5,01” polegadas por pé[sic] ... espero que esteja certo... sistemas métricos estúpidos. 3. Eu não fiz cirurgia no pescoço, principalmente porque, como você, tenho muitos problemas com cicatrizes na pele e não queria acabar com cicatrizes feias, sinto muito por você. Mas consulte um dermatologista, foi a única coisa que me ajudou com minhas cicatrizes, se elas forem severas como a suas, eu tenho certeza que há um tratamento a laser disponível. 4. Sim, sim, sim. Eu tive um par de tubos nos meus ouvidos, vocês sabem, com todas as infecções de ouvido, que duram até hoje. Muitos sinais tiveram que ser removidos da minha pele, foi assim que consegui cicatrizes ruins. 5. Eu sou clássica. 6. Avaliação cardíaca, endocrinológica, de ouvido, nariz e pele. Nós não queremos câncer, queremos? 7. Como eu mencionei, o edema nos meus pés, significando drenagem linfática toda semana desde que eu tinha 8 anos e usar meias de compressão para o sistema linfático super incríveis... grr. Meus ouvidos, não muito ruins, mas às vezes enfrento momentos ruins com eles. Como você disse, ser pequena pode limitar você, mas só se você deixar. Meu peso às vezes me preocupa e é um problema. Também infertilidade, já que doação de óvulos é ilegal na Alemanha, mas a gente dá um jeito, de alguma forma. 8. Não, hormônio do crescimento humano é proibido na Alemanha desde 1980, eu usei sintéticos dos 8 aos 15/16 anos... engraçado o quão rápido nos esquecemos dessas coisas quando já não temos mais que fazê-las. 9. Endocrinologista, otorrinolaringologista, dermatologista... 10. Realmente conheci 2, que são minhas grandes amigas até os dias de hoje. Eu também queria mencionar que tenho um blog... eu não atualizo com a frequência que gostaria, mas o tempo sempre tira o melhor de mim, e como vou me formar em agosto, eu espero ter mais tempo para fazer isso posteriormente. Sinta-se livre para dar uma olhada se você gostar, e isso vale para todas as mulheres com ST desse espaço de comentários. Também ficaria feliz de conhecer algumas de vocês pela internet. Vocês podem me achar no Facebook e no Instagram como Marie. Muito amor e saudações da Alemanha, Marie (Tradução nossa).
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    Vídeo está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EcljkUDNbo0&t=524s. Acesso em: 6 jan. 2024.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Set 2023
  • Aceito
    21 Nov 2023
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