Acessibilidade / Reportar erro

Do big data ao enunciado em This Person Does Not Exist: a questão da colocação em discurso

From big data to enunciation in This Person Does Not Exist: the issue of discourse placement

Resumo

O artigo aborda a enunciação em textos imagéticos produzidos com a incorporação total ou parcial de algoritmos de inteligência artificial (IA), concentrando-se na maneira como o sentido é produzido a partir dos contratos enunciativos estabelecidos na relação de comunicação. A base teórico-metodológica da semiótica discursiva de linha francesa possibilita a análise dos efeitos de sentido gerados no site This Person Does Not Exist, que manifesta uma textualização imagética na qual rostos humanos são incessantemente inventados por meio da utilização de algoritmos de IA e apresentados ao usuário que navega na internet. O estudo examina a articulação entre os atores da enunciação humano e maquínico na colocação em discurso. Observou-se que o ator humano cumpre papéis incoativos nos procedimentos de discursivização, uma vez que é fonte primária da organização do big data e da programação do algoritmo matriz que desencadeia a automação realizada a posteriori pelo ator maquínico que produz as imagens sintéticas, representado pelo algoritmo GAN, e articula diferentes linguagens para o estabelecimento do contrato enunciativo.

Palavras-chave
inteligência artificial; This Person Does Not Exist ; enunciação; semiótica

Abstract

The article addresses the enunciation in the imagery of imagetic texts produced with the total or partial incorporation of artificial intelligence (AI) algorithms, focusing on how meaning is produced from the enunciative contracts established in the communication relationship. The theoretical-methodological basis of French discursive semiotics enables the analysis of the effects of meaning generated on the website This Person Does Not Exist, which manifests an imagery turning into text in which human faces are incessantly invented and presented to the user who browses the Internet through the use of AI algorithms. The study examines the articulation between human and machine enunciation actors in the placement in discourse. It was observed that the human actor plays inchoative roles in the procedures of making discourse, since it is the primary source of the organization of the big data and the programming of the matrix algorithm that triggers the automation carried out a posteriori by the machine actor that produces the synthetic images, represented by the GAN algorithm, and articulates different languages for the establishment of the enunciative contract.

Keywords
artificial intelligence; This Person Does Not Exist ; enunciation; semiotics

Introdução

O conhecimento informático destinado a simular um fazer humano por meio de algoritmos programados para realizar uma determinada sequência de ações é a base da denominada inteligência artificial e objetiva automatizar procedimentos e processos possíveis de serem realizados anteriormente apenas por humanos. A apropriação dessas tecnologias pode ser observada em diferentes setores produtivos, de modo que a adoção da inteligência artificial está cada vez mais presente em cadeias de produção, distribuição e consumo de bens e serviços, promovendo impactos socioculturais e econômicos.

Propomos investigar neste trabalho como as tecnologias de inteligência artificial (IA) estão sendo incorporadas no campo da comunicação midiática, buscando compreender especificamente questões relacionadas ao modo como se dá a produção de sentido nos textos enunciados, total ou parcialmente, por algoritmos em lógicas de inteligência artificial. A base teórico-metodológica da semiótica discursiva de linha francesa possibilitará analisar como são engendrados os efeitos de sentido e os contratos enunciativos estabelecidos em imagens resultantes da incorporação de tecnologias autônomas. A textualização realizada por máquinas apresenta desafios de ordem epistemológica na área de comunicação, bem como da semiótica, notadamente sobre as implicações e os impactos da IA nas relações de comunicação e práticas do consumo midiático em enunciados construídos com a adoção de algoritmos de inteligência artificial. A questão relativa ao papel da inteligência artificial no processo enunciativo nos parece a mais evidente e está inserida, tanto na área da semiótica quanto da comunicação.

O objeto de interesse do presente trabalho é o site This Person Does Not Exist, que manifesta uma textualização imagética na qual faces humanas são inventadas de modo incessante e renovadas para o usuário que navega na internet. Essas faces criadas artificialmente são disponibilizadas no site com acesso público, com mesmo nome, em tradução literal, “esta pessoa não existe”. A cada novo acesso, uma nova face é construída e apresentada para o navegador. Veremos que a autoria da imagem não é atribuída a um ser humano, já que a legenda “Imagined by a GAN”, em tradução livre “imaginado por uma GAN” indica ser uma imagem sintética produzida por uma Generative Adversarial Network, um algoritmo de machine learning.

Nesse sentido, a enunciação dos retratos gerados pelo site This Person Does Not Exist configura um objeto de interesse à medida que o processo de geração das imagens implica a constituição e análise de um big data, isto é, um banco de dados numeroso de faces humanas e, simultaneamente, um processo digital de sintetização de decomposição e composição — gerando uma nova figura. Nessa esteira, para compreender esses mecanismos e os sentidos que se estabelecem e circulam nos discursos criados, retomamos os conceitos de enunciação — como termo complexo —, com base nas proposições de Benveniste (1989)BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes Editores, 1989., Greimas (1974)GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. Vários tradutores. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2016., Greimas e Courtés (2016)GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. Vários tradutores. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2016. e Fiorin (2016FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 2016. e 2020)FIORIN, José Luiz. Duas concepções de enunciação. Estudos Semióticos [on-line]. Dossiê temático “Semiótica e Psicanálise”. São Paulo, , v. 16, n. 1, p. 122-137, julho de 2020..

A colocação em discurso

No aporte teórico-metodológico da semiótica discursiva Greimas e Courtés aferem que os desenvolvimentos de Émile Benveniste sobre a enunciação foram basilares para o projeto semiótico (2016, p. 166). Benveniste recupera as dicotomias “paradigma e sintagma” da tradição da linguística moderna saussuriana e propõe que o ato enunciativo se respalda em um movimento de seleção do enunciador, encarregado de acessar o paradigma, que comporta toda a virtualidade de determinada linguagem, e transpor determinados elementos para um nível sintagmático, marcado pela copresença combinatória. Partindo dessa premissa Greimas compreende a enunciação como uma instância de colocação em discurso em relação ao percurso gerativo de sentido, ou seja, instância que media duas macroestruturas: o nível semionarrativo, contendor mais abstrato que engloba os níveis fundamental e narrativo, e o nível discursivo, já enunciado e concreto, o que mais se aproxima da manifestação textual (Floch, 2001FLOCH, Jean-Marie. Alguns conceitos de semiótica geral. In: Documentos de estudo do Centro de Pesquisas Sociossemióticas 1. Tradução de Analice Dutra Pilar. São Paulo: CPS, 2001. p. 15.). A enunciação não se comporta como um nível, mas como uma instância que media as abstrações e o nível do discurso (Fiorin, 2016FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 2016.), podendo ser representada de forma visual conforme figura abaixo:

Figura 1
Representação do Percurso Gerativo de Sentido e Instância Enunciativa.

A teoria pressupõe que as estruturas textuais são concebidas e materializadas por um sujeito, o enunciador, responsável pela produção do discurso. É este sujeito, projetado no nível discursivo, jamais ontológico (Greimas, 1974GREIMAS, Algirdas Julien (1974). L’énonciation (une posture épistémologique). Significação: Revista de Cultura Audiovisual, (1), 9-25. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2316-7114.sig.1974.90115 Acesso em: 31 de mar., 2024.
https://doi.org/10.11606/issn.2316-7114....
, p. 2), que é responsável por reunir as estruturas abstratas de significação e em um movimento de atualização, combiná-las em escolhas sintáticas e semânticas no enunciado. Em outras palavras, por existir um enunciado, manifestado no nível do discurso no percurso gerativo do sentido, pressupõe-se como condição lógica um processo de enunciação realizado por um enunciador. É este sujeito — pressuposto a todo texto — que realizará o movimento de assegurar a colocação em discurso das virtualidades da linguagem (Greimas e Courtés, 2016GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. Vários tradutores. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2016., p. 166). A existência de enunciador instaura no ato enunciativo o sujeito a quem o discurso enunciado se destina: o enunciatário. É por esse motivo que a teoria entende que a enunciação é um termo complexo, já que implica a existência (e os fazeres e as competências) de dois actantes: o enunciador e o enunciatário. Benveniste, considerando as línguas naturais, determina que “toda enunciação é, explicita ou implicitamente, uma alocução, ela postula um alocutário” (1989, p. 84). Sendo assim, observa-se que o enunciado se comporta como uma interface entre os dois sujeitos da enunciação, um que atualiza a linguagem a partir de escolhas e combinações, e aquele que é discursivizado pela enunciação, como pressuposição no ato de enunciar. Vale ressaltar que tanto o enunciador como o enunciatário são actantes da enunciação. O enunciador para fazer-ser um discurso projeta no enunciado uma imagem de si e de um enunciatário, ambos pressupostos, isto é, produto da enunciação.

No contexto da discursivização decorrente da incorporação dos algoritmos, podemos pensar a enunciação em duas dimensões: a incoatividade da enunciação do algoritmo e a posterior enunciação que o algoritmo produz, ou seja, uma linguagem de programação sobredeterminando outra linguagem (Médola, 2019MÉDOLA, Ana Silvia Lopes Davi. Televisão: linguagem e significação. Curitiba: Editora Appris. 2019.): a primeira diz respeito ao procedimento de enunciar o código matemático-informático como texto autônomo, como um enunciado preditivo, utilizando-se da linguagem de programação, como fórmula-enunciado, isto é, escrever o código, conforme os programadores. O próprio algoritmo (receita-preditiva) é um enunciado que foi enunciado por um ator humano no processo enunciativo. Já a segunda dimensão refere-se ao texto enunciado pela ação dos algoritmos, ou seja, o texto como produto resultante do fazer matemático e de procedimento informático. A imagem produzida pelo This Person Does Not Exist, por exemplo, ou uma determinada matéria jornalística realizada por um algoritmo de um portal de notícias.

Assim, a enunciação da primeira dimensão precede a enunciação da segunda. Neste trabalho, analisamos a segunda dimensão, pois interessa-nos compreender as lógicas dos procedimentos de enunciação manifestadas a partir dos algoritmos. Consideramos pertinente refletir sobre o processo de seleção paradigmática nas produções em que os algoritmos atuam e os critérios que determinam a escolha de características em detrimento de outras na textualização. São questões que vêm à superfície ao buscarmos compreender como o algoritmo atua enquanto ator da enunciação.

Considerando que o ato de enunciação é um fazer-ser do enunciado realizado pelo enunciador, é apenas pelo enunciado que o semioticista consegue perceber as marcas deixadas no texto e que remetem à instância da enunciação (Greimas e Courtés, 2016GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. Vários tradutores. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2016., p. 168-169). LandowskiLANDOWSKI, Eric. La société réfléchie. Essais de socio-sémiotique. Paris: Seuil, 1989. afirma que a enunciação é o “ato pelo qual o sujeito faz ser o sentido” (1989, p. 222), de modo que pode ser interpretada como uma performance, já que age na transformação, na produção de um novo “estado de coisas”. Assim, quando nos questionamos acerca das características do ato de fazer-ser do texto, ou até mesmo do sujeito que performa essa ação, o objeto de análise é o texto em si. Por meio do olhar imanente, especificamente do nível discursivo, pode-se observar as marcas explícitas, implícitas ou elípticas presentes nos níveis de articulação do discurso, isto é, “as marcas da enunciação presentes no enunciado permitem reconstruir o ato enunciativo” (Fiorin, 2016FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 2016., p. 27). O enunciador precisa performar as competências que dialogam, tanto com o campo intratextual como também com os demais textos, intertextos, e contextos que incidem sob o momento da enunciação. O enunciar não ocorre de forma automática e despretensiosa, mas é carregado de intencionalidades e estratégias para fomentar a inteligibilidade e a sensibilidade daquilo que se comunica. Nesse sentido, a enunciação equilibra duas grandezas: uma determinada pelo sistema com suas coerções linguísticas e de estrutura e outra convencionada de forma socioletal pelo uso social.

Nessa perspectiva, podemos considerar que a ação dos algoritmos está calcada em movimento semelhante. As produções textuais enunciadas por meio da inteligência artificial convocam, atualizam, repetem e reiteram modos de textualização preexistentes. Em seu estudo acerca da propagação dos memes nas redes sociais, Fechine (2018)FECHINE, Yvana Pour une sémiotique de la propagation: invention et imitation sur les réseaux sociaux. Actes sémiotiques, n. 121, 31 jan. 2018. Disponível em: https://www.unilim.fr/actes-semiotiques/5953. Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.unilim.fr/actes-semiotiques/...
demonstra a lógica da variação e repetição em diferentes âmbitos da internet. Com base no trabalho de G. Tarde (1890)TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. [S.l.]: BoD - Books on Demand, 1890., a autora destaca o componente da imperfeição ao tratar da repetição e variação, similitude e diferença, dicotomias que regem as lógicas numéricas da produção imagética da inteligência artificial generativa. Assim, ao discursivizar, o algoritmo também seleciona determinadas estruturas seguindo uma recursividade de acordo com os propósitos da programação. Para Fechine:

Toda repetição é imperfeita no sentido de que sempre envolve e inclui variações. Embora seja entendida como um esforço em direção à semelhança ou similaridade, uma repetição sempre, inevitavelmente, consiste em uma repetição com alguma variação, em uma reprodução imperfeita do que é repetido ou em uma repetição que é apenas parcial. E a imperfeição inerente a cada repetição sucessiva, ao ser reproduzida em graus variados e de forma cumulativa, gera progressivamente uma variação tão significativa que pode, por fim, levar à diferenciação completa. É nesse exato momento que ocorre a invenção. Em outras palavras, a invenção corresponde ao estágio em que a variação está completa

(Fechine, 2018FECHINE, Yvana Pour une sémiotique de la propagation: invention et imitation sur les réseaux sociaux. Actes sémiotiques, n. 121, 31 jan. 2018. Disponível em: https://www.unilim.fr/actes-semiotiques/5953. Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.unilim.fr/actes-semiotiques/...
, p. 6.) (tradução nossa)1 1 Texto no idioma original: “[…] toute répétition est imparfaite en ce sens qu’elle implique et comporte toujours des variations. Bien qu’entendue comme un effort tendant vers la ressemblance, ou la similitude, une répétition consiste en effet toujours, inévitablement, en une répétition avec quelque variation, en une reproduction imparfaite de ce qu’elle répète, ou encore, en une répétition seulement partielle. Et l’imperfection inhérente à chaque répétition successive, en se reproduisant à divers degrés et cumulativement, engendre progressivement une variation si importante qu’elle peut finir par aboutir à une complète différenciation. C’est à cet instant précis que survient l’invention. Autrement dit, l’invention correspond au stade où la variation est complète” (Fechine, 2018, p. 6). .

Na esteira dessa argumentação, podemos considerar que o conteúdo gerado por uma IA generativa pode produzir, por meio da variação, um efeito de sentido de invenção, mas apenas um efeito de sentido como veremos no contrato enunciativo proposto pelo objeto a ser aqui analisado.

Interface visual de This Person Does Not Exist

Ao observarmos no objeto a ser analisado neste artigo, a interface do site This Person Does Not Exist, que, ao ser acessado apresenta uma face humana recém-inventada, podemos pensar em duas lógicas de competências enunciativas diferentes em sua interface, que, como um todo de sentido, abriga de modo englobante as estratégias enunciativas: a de projeção de uma estética de um site desenvolvida por humanos e a da imagem, estrutura textual do retrato sintético gerada pelo algoritmo GAN. Portanto, procederemos a segmentações do texto para fins de análise do enunciado, conforme ilustrado no esquema a seguir (Figura 2):

Figura 2
Esquema da relação entre as segmentações para fins de análise do site This Person Does Not Exist.

A interface do website, inserido em um software navegador2 2 Utilizou-se nesta pesquisa o navegador Safari versão 16.1, instalado no sistema operacional MacOS Ventura 13.0. , é dotada de uma arquitetura computacional específica que permite seu acesso público e navegação. Interessa-nos pontuar que, nesse nível de segmentação, o site constitui uma materialidade, já que o usuário pode utilizar-se dos recursos de interface do dispositivo para acessar e manipular sua fruição. Mesmo que essa materialidade exista apenas no nível informático-virtual (servidores, linguagens de programação e interface gráfica) o seu uso, inserido em um contexto de prática de fruição, é da ordem da manipulabilidade. O dispositivo-suporte em que a interface de navegação está inscrita, computador ou smartphone, por exemplo, permite o acesso mediado àquilo que se frui. É nessa estrutura que podemos vislumbrar a seguinte segmentação visual, formada por diferentes figuras, na fruição da navegabilidade, conforme descrito abaixo (Figura 3):

Figura 3
Esquema de elementos estáticos e dinâmico em This Person Does Not Exist.
  • Duas faixas pretas, em formato retangular, dispostas no sentido vertical, ocupando as duas lateralidades — podendo ser interpretadas como molduras.

  • Uma figura de formato quadrado, englobando figuras humanas compostas de diferentes cores e formas em arranjos complexos de degradês e nuances, dispostas no espaço central da navegação — sendo interpretada como a fotografia sintética.

  • Uma figura retangular horizontal, dotada de cor cinza com efeito de transparência posicionada no canto inferior direito da imagem — interpretada como a legenda.

  • Uma figura retangular horizontal, dotada de cor cinza, sem efeito de transparência, disposta na parte superior da página em que outras figuras (círculos coloridos, quadrados e ícones) estão englobados — interpretada, dentro da lógica de usabilidade do sistema operacional, como o controle da navegação da interface do site.

Nesse recorte, podemos observar uma hierarquia de disposição das figuras, sendo que a figura 4, a faixa horizontal superior, está disposta em um primeiro plano em relação ao conjunto das demais figuras (1 a 3), uma vez que se verifica uma pequena faixa em degradê, do preto ao cinza, criando um efeito de distanciamento entre a barra de navegação e o conteúdo do site. Isso determina o caráter do acesso e da interface entre o computador, o site e o sujeito que acessa.

Considerando o website em uso contínuo por um usuário, podemos perceber algumas reiterações na página:

  • A figura 1, faixas pretas laterais, e a figura 3, figura cinza transparente, sempre estão presentes e dispostas da mesma forma e ocupando os mesmos espaços, isto é, não há alteração de seu conteúdo ou forma expressiva.

  • A lógica da figura 2, que apresenta o retrato humano em uma imagem de aspecto de proporção quadrada, também se mantém a cada novo acesso à página, porém, a cada nova atualização, a imagem é alterada por outro retrato humano sintético. O conteúdo retrato sintético permanece a cada acesso, porém como uma nova configuração visual — determinando, assim, uma nova figura humana, ou seja, uma nova pessoa inventada.

Nessa esteira, as figuras 1 e 3 são constantes, enquanto a figura 2 não é. Vê-se uma lógica enunciativa demarcada pela oposição dinamicidade x estaticidade que se relaciona à outra oposição, continuidade x descontinuidade. Apenas na contínua atualização do site podemos perceber a dinamicidade da figura 2, ao mesmo tempo que as figuras 1 e 3 permanecem estáticas. Há uma recorrência, uma isotopia figurativa, na forma como o site se presentifica a cada novo acesso. Essa recorrência é caracterizada pela alteração da figura dinâmica e a permanência das figuras estáticas. Portanto, o enunciador do website programou, ou melhor, enunciou, a página considerando determinada estrutura fixa (figuras estáticas) e um elemento dinâmico, ilustrado a seguir (Figura 3):

Independentemente da face humana apresentada, as faixas laterais (interpretadas como uma moldura da imagem sintética) e a legenda são constantes. A legenda sempre apresentará o mesmo texto e as faixas serão sempre pretas. Cabe ressaltar que, neste nível de análise, observando a arquitetura do site e sua navegabilidade, não se apresenta nenhuma tecnologia de inteligência artificial participante da enunciação: ele foi programado justamente para não alterar a legenda e as faixas pretas; já a imagem que aparece a cada novo acesso é randomicamente selecionada de um banco de dados de imagens. Essa textualização, de ordem programática, está no contexto do desenvolvimento de sites. A pertinência de análise da estrutura de navegabilidade e fruição do site está em sua interface de usabilidade, isto é, em sua capacidade de comunicação. É apenas pelo site que o enunciatário acessa as imagens das faces das pessoas que não existem. É apenas pela manipulação do site que o enunciatário consegue, ao atualizar seguidamente a página, espantar-se, surpreender-se pelo que foi produzido pelo algoritmo, conforme a legenda demarca. Do ponto de vista semiótico, essa atualização constante da página modaliza o enunciatário à paixão da espera, pois tal mecanismo reforça um contrato enunciativo de que, a cada alteração da imagem, a relação entre identidade (ser humano) x alteridade (um determinado ser humano) cria um fazer interpretativo de que tais figuras manifestadas não existem. Somente considerando a manipulação e fruição do site é possível relacionar o nome do endereço “esta pessoa não existe” à imagem da face humana e à legenda, dando sentido à navegação. Se recortarmos as imagens do site e apresentarmos a enunciatários que não conhecem a natureza sintética das imagens, esses não perceberiam o sentido do espanto e da surpresa que o enunciado vetoriza. Na enunciação do site, o actante enunciador prevê, isto é, projeta, um actante enunciatário que se espantará com a imagem apresentada em tela. Examinemos o conteúdo da legenda do site:

Figura 4
Legenda apresentada no site This Person Does Not Exist3 3 Tradução nossa: “Imaginado por uma GAN (rede geradora de adversidades). / Sty- leGAN2 (dezembro de 2019) — Karras et al. e Nvidia / Não entre em pânico. Aprenda como funciona. Código para treinar a sua própria [rede geradora de adversidade] [...]”. .

O enunciador aponta na legenda “Imaginado por uma GAN” e indica o nome do algoritmo utilizado, StyleGAN2. Essa textualização gera um sentido proposital equivocado sobre a natureza da produção de retratos sintéticos. O enunciador demarca que existem dois enunciadores que atuam na produção da imagem: o enunciador (chamaremos de Edor 1) do site em si, supostamente humano, e o enunciador da imagem da face inventada (Edor 2), a rede Geradora de Adversidades (StyleGAN2), ilustrado no esquema abaixo (Figura 5), conforme disposto na legenda.

Figura 5
Estratégias enunciativas no site This Person Does Not Exist3 3 Tradução nossa: “Imaginado por uma GAN (rede geradora de adversidades). / Sty- leGAN2 (dezembro de 2019) — Karras et al. e Nvidia / Não entre em pânico. Aprenda como funciona. Código para treinar a sua própria [rede geradora de adversidade] [...]”. .

Entretanto, como explicaremos na seção a seguir, essa atribuição da existência pressuposta de dois enunciadores é uma estratégia enunciativa. De um ponto de vista teórico-metodológico da análise da produção de sentido, reafirma-se que a enunciação promove um todo de sentido em que o sujeito complexo da enunciação, uno, projeta no enunciado as marcas discursivas para fomentar sentidos a partir de uma intencionalidade. Já na dimensão da programação informática, sabe-se que a inteligência artificial não é completamente autônoma a ponto de produzir enunciados sem a participação prévia de um sujeito humano. Dessa forma, veremos agora como a lógica do desenvolvimento desses retratos pode ser interpretada.

Desdobramento do actante enunciador nos atores humano e maquínico na enunciação de This Person Does Not Exist

Enquanto efeito de sentido, o Edor 1-humano atribui a enunciação da imagem exclusivamente a Edor 2-máquina, demarcado em “imaginado por uma GAN”. Podemos, dessa forma, entender que o algoritmo de inteligência artificial é o ator da enunciação que age de forma autônoma e sem ação humana. Não há, nessa legenda, indicação de atribuição de enunciação conjunta com outro ator. Entretanto, é importante ressaltar que a projeção do enunciador no enunciado se desdobra em atores que desempenham diferentes papéis na enunciação: um ator humano e um ator maquínico por meio do funcionamento da GAN.

Para melhor compreender, as Generative Adversarial Networks (Redes Geradoras de Adversidades) funcionam de forma competitiva. Dois algoritmos, conectados em rede, são programados com funções específicas. O primeiro algoritmo é responsável por gerar novos dados (algoritmo gerador); já o segundo é responsável por avaliar a qualidade dos dados (algoritmo discriminador). Esses dois competem entre si: o gerador busca produzir dados que o discriminador considere bons; e o discriminador busca encontrar as falhas dos dados produzidos pelo gerador. Para isso, faz-se necessário — previamente à geração e à avaliação — um processo de aprendizagem maquínica. Por serem algoritmos de inteligência artificial, são munidos de capacidades de apreender com a análise de dados. O sujeito humano é o ator que disponibiliza e cria o banco de dados. Sem a ação de geração do big data, o algoritmo não consegue aprender e gerar padronagens de criação.

No contexto do This Person Does Not Exist, os dados utilizados para análise e geração de um modelo canônico de faces humanas que parecem reais são faces humanas reais, pois são representações de rostos que estão registrados nos bancos de dados. Tanto o algoritmo gerador quanto o avaliador utilizam-se desse big data composto de milhares de fotografias de humanos. Ao gerar uma nova imagem (humano inventado), o algoritmo gerador o fez com base na análise das fotografias dispostas no banco de dados; já o algoritmo discriminador, para avaliar a qualidade do que foi produzido, comparará a imagem gerada com as fotografias de pessoas reais. Nesse processo, a rede discriminadora gera um feedback para treinamento do algoritmo gerador, construindo novos conteúdos com base nessa resposta. Isso ocorre de forma cíclica: uma retroalimentação entre uma rede que enuncia e outra que classifica a semelhança de um enunciado sintético com o enunciado produzido por um humano, objetivando se assemelhar o máximo possível com retratos de pessoas que existem. Desenvolvemos a Figura 6 (abaixo) para ilustrar o processo de competição e utilização do big data.

Figura 6
Modelo simplificado de Rede Geradora de Adversidades em This Person Does Not Exist adaptado de Horev (2018).

Reitera-se o entendimento de que enunciador é uno, um enunciado não tem dois enunciadores mesmo que em nível ontológico este tenha sido realizado por mais de um sujeito. Observa-se, portanto, uma diferenciação importante: a realização material do texto e a sua realização linguística. A primeira é feita, ordinariamente, por pessoas providas de vontades e propósitos. Já a semiótica, como princípio teórico e conforme visto anteriormente, afasta de seus estudos a análise de propósitos e vontades de determinado autor. Pelo princípio da imanência, a semiótica estuda o sentido estabelecido no texto, uma economia geral de todos os vetores significantes do discurso (Fiorin, 2016FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 2016.). Assim, ao assumir na enunciação que um sujeito, pressuposto a todo texto, realiza o discurso, determinamos o interesse do enfoque teórico em uma cena de enunciação específica, em que um sujeito enunciador assume-se como actante (aquele que age) para fazer-ser o sentido a partir da combinação sintagmática de um paradigma linguístico, conforme demonstra a tradição teórica.

No caso dos nossos objetos de estudo, atuam no processo de combinação sintagmática o algoritmo e sujeitos humanos que manipulam o banco de dados de faces humanas reais. Indicamos, assim, que o actante da enunciação pode se desdobrar em diferentes atores. Para melhor compreender, podemos afirmar que a enunciação com a utilização de algoritmos se desenvolve similarmente a outros textos elaborados de forma conjunta, como em um filme, por exemplo. Atuam na produção audiovisual diversos atores da enunciação: um diretor, um diretor de fotografia, um diretor de arte etc, entretanto, apesar da especialização de cada função, o produto final dessa produção é um filme, isto é, um enunciado único que combina os fazeres específicos de cada um dos sujeitos realizadores. A fruição dessa produção, por parte do espectador, se dá de forma global, integrada, homogênea, uma vez que o enunciado produz um todo de sentido. Não nos referimos a uma enunciação da direção de arte e outra enunciação da direção de fotografia, referimo-nos ao único fazer-ser possível: aquele desempenhado pelo enunciador, sempre pressuposto, existente apenas no domínio do texto.

Em um contexto mais geral, pensando na enunciação com a participação de algoritmos, o ator humano pode interagir, manipular, transformar, fazer uso e ser coagido pelo algoritmo, que, por sua vez, também é ator da enunciação. Existe uma interação do tipo humano-máquina que produz um enunciado que será fruído pelo enunciatário de forma homogênea. Esses dois atores, humano e maquínico (H-M), interagem entre si e determinam limites de ações. Podemos considerar que a interação H-M pode ocorrer tanto na geração como na fruição do enunciado. Ao pensarmos, por exemplo, nos videoclipes interativos (Caldas, 2018CALDAS, Carlos Henrique Sabino. Videoclipe interativo: novas formas expressivas no audiovisual. 2018. 347 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, , [S.l.], 2018. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/157378. Acesso em: 21 fev. 2020.) ou nos videogames (Oliveira, 2020OLIVEIRA, Bruno Jareta de. Comunicação e sentido no audiovisual interativo para os meios digitais: estratégias enunciativas na construção de espaços, tempos e atores do discurso. 2020. 239 f. Tese (Doutorado) – Curso de Doutorado em Comunicação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Universidade Estadual Paulista, Bauru, 2020.), podemos verificar uma interação entre o enunciatário e a máquina no momento de fruição do enunciado, determinando ações discursivas.

No caso do objeto This Person Does Not Exist, observamos que a interação entre os atores algoritmo e humano não acontece no polo do enunciatário. Ao acessar o site, o enunciatário não tem controle sobre nenhum parâmetro da enunciação. Todo o fazer-ser se desenvolve de forma opaca — quase que instantaneamente — produzindo um efeito de sentido de autonomia, como se o site por si só desenvolvesse a face humana. A opacidade se constitui pelo fato de que a presença do ator humano é indireta no processo de criação das imagens sintéticas, uma vez que a geração dessas imagens recorre a milhares de dados produzidos e coletados por humanos. Este banco de informações possibilita o que acreditamos ser a constituição paradigmática da enunciação pela GAN, conforme veremos no próximo item. Apresentamos abaixo um esquema (Figura 7) que ilustra o desdobramento do actante enunciador em seus atores da enunciação.

Figura 7
Esquema do desdobramento do actante enunciador em seus atores da enunciação do site This Person Does Not Exist.

Nesse sentido, colocamos luz, em seguida, à construção paradigmática no processo de enunciação de This Person Does Not Exist, em que o ator humano age e, conforme discutiremos à frente, determina a imaginação da GAN.

A combinação sintagmática operacionalizada por algoritmos de inteligência artificial

Considera-se que, conforme apresentado anteriormente, a colocação em discurso se dá em um movimento por parte do sujeito enunciador de selecionar elementos paradigmáticos em uma sintagmática. Ao pensarmos nessa relação dicotômica, hjelmsleviana, entendemos que os elementos que compõem o eixo paradigma estão correlacionados em uma lógica de seleção, uma vez que as disjunções lógicas que estruturam esse eixo (do tipo ou... ou) permitem ao sujeito enunciador perceber os traços distintivos de cada elemento. No interior do paradigma, portanto, organizam-se classes e subclasses que serão colocadas em disjunção no processo de atualização discursiva (Greimas e Courtés, 2016GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. Vários tradutores. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2016., p. 358).

É importante ressaltar que a composição do big data é realizada pelo sujeito programador. Ele é quem escolherá os exemplares que serão utilizados pela GAN para aprender o modelo canônico, isto é, apesar do algoritmo analisar dados e aprender de forma autônoma, o sujeito programador é aquele que determinará o que o algoritmo aprenderá. A composição do banco de dados de análise é basilar no processo de geração de novos dados por meio de inteligências artificiais. Os algoritmos reagem àquilo que têm acesso, sua visada de criação é limitada apenas ao banco de dados. Da mesma forma que humanos criam a partir de um repertório que articula referências, memórias, saberes, vivências, sentimentos etc., os algoritmos reproduzem com base na limitação de seus dados. Dessa forma, um pequeno banco de dados, com pouca variedade de classes e subclasses, gerará novos dados que dizem respeito apenas àquele universo.

Imaginemos que queiramos produzir um algoritmo que invente imagens de animais silvestres de forma randômica. Para tanto, devemos constituir um banco de dados com uma larga variedade desse tipo de animais: várias fotos de onças-pintadas, capivaras, araras-azuis, e assim por diante. O algoritmo analisará o corpus desse banco de dados (composto de milhares de fotografias) e produzirá imagens dessa categoria de animais. Em nenhum momento, entretanto, esse algoritmo gerará a imagem de animais de estimação, pois ele não inventa de forma criativa, com propósito de subverter o corpus, ele é limitado a reproduzir aquilo que lhe foi atribuído. Em This Person Does Not Exist, o corpus composto de retratos de humanos que existem subsidia a criação e discriminação dos dados. Ao pensarmos na segmentação de análise apontada anteriormente, podemos entender como o enunciador se articula na produção do enunciado:

Figura 8
Atores da enunciação em This Person Does Not Exist.

Podemos entender que o big data é um dos constituintes do eixo paradigmático, o eixo que apresenta as grandezas em sua virtualidade, aquele que subsidiará a colocação do discurso, a criação de um enunciado. Além dos dados, compõem esse eixo as análises que a rede geradora de adversidade produziu, isto é, os novos dados gerados pela análise do algoritmo. Na língua natural, o sujeito falante, para enunciar, precisa dominar (está modalizado em um saber-fazer) as estruturas sintáticas, as relações combinatórias e seus usos, de acordo com a norma, e a semântica, os significados dispostos nos signos. No caso do ator-algoritmo de This Person Does Not Exist, não há domínio semântico. O algoritmo não compreende o que está produzindo, afinal, ele não tem consciência — ele apenas executa determinado processamento de decomposição e composição. Entretanto, essas análises, apesar de se desenvolverem às cegas, ou melhor, sem domínio dos vetores significantes da semântica, são direcionadas por uma busca das estruturas visuais que regem a figuração dos retratos dispostos no banco de dados.

Desse modo, entendemos que o paradigma pode ser ilustrado da seguinte forma (Figura 9):

Figura 9
Ilustração do paradigma em This Person Does Not Exist.

Evidencia-se o big data entre colchetes e negrito, já que a análise de decodificação dos padrões estabelecidos nos dados é secundária à criação e à disponibilização deles. A seta dupla remete à constante análise que ocorre por parte do algoritmo em uma rede GAN, uma vez que o algoritmo discriminador constantemente envia feedbacks que se somam às análises precedentes, atualizando-as continuamente. Assim, observa-se que, de toda a composição paradigmática, o ator humano da enunciação é responsabilizado por apenas uma parte: a disponibilização do big data, parte substancial, uma vez que determinará todo o resultado da análise resultante. Entretanto, conforme o algoritmo for gerando novos enunciados, os feedbacks do algoritmo discriminador começam a embrenhar-se com os da análise resultante original. Não há, entretanto, uma disparidade entre os feedbacks e a análise original, uma vez que o feedback é baseado em uma ação de comparação com o big data produzido por humanos. Nessa lógica, o domínio da avaliação positiva e da criação que se assemelha ao corpus é resultante da ação primeira humana.

Ao considerar os movimentos de seleção e combinação empreendidos na enunciação dos retratos de pessoas que não existem, observamos que a sintagmática é resultante da iconografia plástica da representação da face humana em um suporte biplanar. Isto é, o sentido proposto é referente a uma visualidade específica da forma da face humana — com todas as limitações e coerções da visualidade planar. Essas imagens, quando fruídas sequencialmente, permitem-nos verificar que a enunciação do algoritmo de This Person Does Not Exist opera na organização isotópica do rosto humano, implicando em um efeito de sentido de reiteração na construção dessas figuras. Assim, o processo de construção, ou seja, de enunciação da figura do rosto humano, faz parecer uma projeção representada e não simulada sinteticamente na tela (Couchot, 2011COUCHOT, Edmond. Da representação à simulação: evolução das técnicas e das artes da figuração. In: Imagem máquina: a era das tecnologias do virtual. Org. André Parente. Rio de Janeiro: Editora 34, 2011. p. 37-48.). Essas imagens são produtos de um fazer baseado na simulação de uma morfogênese por projeção característica da representação imagética analógica. A relação paradigmática e sintagmática na construção de uma imagem digital é referente a uma organização de seleção e combinação em que o pixel é a unidade mínima da qual derivam as formas da expressão, das quais emergem as figuras que levam a um fazer interpretativo de um parecer-verdadeiro, implicando em uma enunciação que simula o mundo natural.

Esta noção vai ao encontro do que Manovich (2001)MANOVICH, L. The language of new media. Massachussets: The MIT Press, 2001. apresentou em The Language of the New Media, caracterizando o meio digital enquanto uma representação numérica e modular que se organiza por meio da transcodificação, em que os elementos digitais se combinam de forma variável e, por vezes, automática. A enunciação das imagens produzidas pelo algoritmo GAN é, portanto, resultado de um fazer seletivo e combinatório que busca produzir um discurso homogêneo a partir da variabilidade das unidades mínimas do digital.

Entende-se que a análise de dados é uma ação de exploração, isto é, coloca-se no sentido de uma busca. Procura-se em um corpus finito reiterações e padrões que se estabelecem por meio das relações entre seus integrantes. Portanto, depreende-se que a análise se faz necessária a partir do momento em que existam relações entre os dados quantificados e que elas ocorram de forma abstrata, ou seja, quando o conteúdo a ser explorado é numeroso e as relações não se mostram de forma evidente. Este é o caso da análise de dados de imagens, por exemplo, em que o significante plástico é articulado por categorias formadas por unidades mínimas, os formantes expressivos, conforme postulado por Floch (1985)FLOCH, Jean-Marie. Petites mythol7ue. Paris; Amsterdam: Hadès-Benjamins, 1985..

A análise de dados busca especificar essas unidades mínimas para compreender as relações formadas por elas para constituição de seu enunciado. A potencialidade de um algoritmo analítico é relativa, tanto à programação prévia desenvolvida por um desenvolvedor (isto é, alguém que desenvolve uma metodologia que atua na abstração) quanto pela capacidade de hardware em que este software atuará. A lógica de articulação dos algoritmos de análise de dados pode ter finalidades diversas, como a exploração de padrões frequentes entre os dados, a classificação de grandezas ou o agrupamento de unidades, selecionando padrões similares em um universo finito. É perceptível constatar, portanto, que o algoritmo em si não carrega informações inéditas: os descobrimentos ocorrem a partir do corpus. Exploram-se os dados a fim de compreender melhor um universo. Nesse sentido, ressalta-se uma constatação que diz respeito à natureza dos dados. Para que seja possível aplicar uma lógica de inteligência analítica sob os dados, faz-se necessário que o computador — que é regido por uma lógica puramente matemática — compreenda os dados de forma numérica. Um computador não tem capacidade de entender um signo. Ele entende números e calcula operações com base nesses dados. Portanto, todos os dados, textos enunciados, devem ser traduzidos numericamente para que assim sejam analisados e permitam a extração de padrões de forma automática.

A partir de um paradigma organizado e disponível, formado por um número finito de elementos, o enunciador, em um movimento de combinação, produzirá a sintagmática. Hjelmslev, em Prolegômenos a uma teoria da linguagem, propôs estudar as línguas naturais com base em uma distinção entre sistema e processo. O primeiro diz respeito à formação paradigmática, o segundo à sua realização em um sintagma. Se o primeiro é caracterizado por um movimento de seleção dentro de um corpus finito, o segundo trata da combinação em uma cadeia de possibilidades. Assim, o sistema é articulado pelo processo em seu movimento de combinação em que os elementos dispostos são recombinados a cada realização. O linguista dinamarquês aponta:

Uma língua pode ser definida como uma paradigmática cujos paradigmas se manifestam por todos os sentidos, e um texto pode ser definido, de modo semelhante, como uma sintagmática cujas cadeias são manifestadas por todos os sentidos

(Hjelmslev, 1975HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo, Perspectiva, 1975., p. 115).

Em outras palavras, o autor afirma que a sintagmática é o processamento da combinação de categorias paradigmáticas materializadas textualmente. Greimas e Courtés esclarecem que a sintagmática deve ser interpretada como “a copresença de grandezas no interior de um enunciado (...)” (2016, p. 470). Assim, cabe ao enunciador no processo de enunciar, manipular as grandezas e combiná-las para a realização do discurso. Ao tratarmos aqui das imagens de This Person Does Not Exist, as grandezas provenientes do eixo paradigmático são de naturezas diferentes: há uma confluência de diferentes linguagens que compõem as imagens disponibilizadas. Observemos a imagem abaixo (Figura 10):

Figura 10
Retrato de uma humana que não existe.

Percebemos neste exemplar a incidência da linguagem fotográfica (o enquadramento quadrado; a iluminação com efeito natural; o foco e o desfoque da imagem criando um primeiro e segundo planos). A imagem também produz um efeito de sentido de linguagem gestual, pois a menina fitando uma objetiva que não existe implica um olhar para o observador, o sorriso que permite depreender uma ação de posar para um suposto fotógrafo.

Tratando da linguagem verbal escrita tem-se, em seu plano expressivo, a fluência de apenas uma linguagem manifestada; em compensação, textos de diferentes naturezas podem ser considerados sincréticos, portanto, “acionam várias linguagens de manifestação” (Greimas e Courtés, 2016GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. Vários tradutores. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2016., p. 467). Assim, textos como os objetos aqui analisados são manifestados a partir de uma confluência de diferentes sistemas linguísticos nas interfaces da internet, em uma lógica de articulação, em que atuam na escritura de diferentes linguagens como a verbal oral, verbal escrita, musical, gestual. É da articulação entre as diferentes linguagens que se produz um todo de significação.

Considerações finais

Ao priorizar a análise a partir do plano do conteúdo, propomo-nos a entender a produção de sentido presente nas imagens disponibilizadas pelo site This Person Does Not Exist. Para isso, dois movimentos foram realizados: compreender os efeitos de sentido das imagens ali presentes e também seus vetores de significação contínuos, isto é, analisar as reiterações percebidas e sentidas no contínuo do enunciar desse enunciador desdobrado em atores humano e maquínico. Para situar, ilustramos na figura anteriormente disponibilizada (Figura 8) que estamos analisando o enunciado proveniente da enunciação das imagens realizadas pelo algoritmo, uma vez que é nele que a inteligência artificial atua, para posterior sincretização com as demais linguagens da interface.

Assim, os efeitos de sentido produzidos pelo simulacro de uma linguagem fotográfica em This Person Does Not Exist só estabelecem uma ancoragem que, embora pareça um dizer verdadeiro, é interpretada como uma falsidade na articulação com a linguagem verbal da legenda do site. É na relação das diferentes linguagens que se estabelece o contrário entre o ser e o parecer. Cabe ressaltar que as linguagens mantêm suas identidades no processo de sincretização. Tal fundamento contribui para pensar a enunciação em textos midiáticos, uma vez que ao fazer-ser o sentido do texto sincrético, o enunciador age por meio de competências que buscam selecionar e combinar elementos de diferentes linguagens no interior do discurso.

O sincretismo de linguagens observado implica a participação de um sujeito enunciador que se desdobra em dois atores distintos, o humano e o maquínico. A participação de cada um desses atores na colocação em discurso pode ser assim compreendida: o humano é responsável, considerando a produção dos retratos sintéticos, pela constituição de um big data que será utilizado pelo algoritmo GAN como base para criação das imagens. Além disso, o ator humano, pensando na elaboração do website, é responsável por desenvolver o enunciado que articula os retratos sintéticos, a legenda e a moldura e sua disponibilização online, permitindo, assim, ao enunciatário depreender o sentido proposto. Já o algoritmo, desenvolvido pelo ator-humano, decodifica e analisa as imagens disponibilizadas no big data e, posteriormente, codifica novos textos imagéticos e os coloca sob avaliação do algoritmo discriminador, permitindo assim a geração de feedbacks para o algoritmo gerador. A disponibilização pública dessas imagens em um site articula linguagens relacionadas ao verbal, à interface digital e à fotografia. Essas, por sua vez, estão fomentando um todo de sentido, articulado e homogêneo, uma vez que o enunciado, assim como o enunciador, é uno. Nesse sentido, a reflexão sobre os papéis enunciativos na produção de conteúdos a partir da apropriação da inteligência artificial aponta para contextos desafiadores na compreensão do ecossistema comunicacional.

  • 1
    Texto no idioma original: “[…] toute répétition est imparfaite en ce sens qu’elle implique et comporte toujours des variations. Bien qu’entendue comme un effort tendant vers la ressemblance, ou la similitude, une répétition consiste en effet toujours, inévitablement, en une répétition avec quelque variation, en une reproduction imparfaite de ce qu’elle répète, ou encore, en une répétition seulement partielle. Et l’imperfection inhérente à chaque répétition successive, en se reproduisant à divers degrés et cumulativement, engendre progressivement une variation si importante qu’elle peut finir par aboutir à une complète différenciation. C’est à cet instant précis que survient l’invention. Autrement dit, l’invention correspond au stade où la variation est complète” (Fechine, 2018FECHINE, Yvana Pour une sémiotique de la propagation: invention et imitation sur les réseaux sociaux. Actes sémiotiques, n. 121, 31 jan. 2018. Disponível em: https://www.unilim.fr/actes-semiotiques/5953. Acesso em: 18 dez. 2023.
    https://www.unilim.fr/actes-semiotiques/...
    , p. 6).
  • 2
    Utilizou-se nesta pesquisa o navegador Safari versão 16.1, instalado no sistema operacional MacOS Ventura 13.0.
  • 3
    Tradução nossa: “Imaginado por uma GAN (rede geradora de adversidades). / Sty- leGAN2 (dezembro de 2019) — Karras et al. e Nvidia / Não entre em pânico. Aprenda como funciona. Código para treinar a sua própria [rede geradora de adversidade] [...]”.

Referências

  • BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2011.
  • BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II Campinas: Pontes Editores, 1989.
  • CALDAS, Carlos Henrique Sabino. Videoclipe interativo: novas formas expressivas no audiovisual. 2018. 347 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, , [S.l.], 2018. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/157378. Acesso em: 21 fev. 2020.
  • COUCHOT, Edmond. Da representação à simulação: evolução das técnicas e das artes da figuração. In: Imagem máquina: a era das tecnologias do virtual. Org. André Parente. Rio de Janeiro: Editora 34, 2011. p. 37-48.
  • FECHINE, Yvana Pour une sémiotique de la propagation: invention et imitation sur les réseaux sociaux. Actes sémiotiques, n. 121, 31 jan. 2018. Disponível em: https://www.unilim.fr/actes-semiotiques/5953 Acesso em: 18 dez. 2023.
    » https://www.unilim.fr/actes-semiotiques/5953
  • FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 2016.
  • FIORIN, José Luiz. Duas concepções de enunciação. Estudos Semióticos [on-line]. Dossiê temático “Semiótica e Psicanálise”. São Paulo, , v. 16, n. 1, p. 122-137, julho de 2020.
  • FLOCH, Jean-Marie. Alguns conceitos de semiótica geral. In: Documentos de estudo do Centro de Pesquisas Sociossemióticas 1 Tradução de Analice Dutra Pilar. São Paulo: CPS, 2001. p. 15.
  • FLOCH, Jean-Marie. Petites mythol7ue. Paris; Amsterdam: Hadès-Benjamins, 1985.
  • GREIMAS, Algirdas Julien (1974). L’énonciation (une posture épistémologique). Significação: Revista de Cultura Audiovisual, (1), 9-25. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2316-7114.sig.1974.90115 Acesso em: 31 de mar., 2024.
    » https://doi.org/10.11606/issn.2316-7114.sig.1974.90115
  • GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica Vários tradutores. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2016.
  • HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo, Perspectiva, 1975.
  • LANDOWSKI, Eric. La société réfléchie Essais de socio-sémiotique. Paris: Seuil, 1989.
  • MANOVICH, L. The language of new media. Massachussets: The MIT Press, 2001.
  • MÉDOLA, Ana Silvia Lopes Davi. Televisão: linguagem e significação. Curitiba: Editora Appris. 2019.
  • MÉDOLA, Ana Silvia Lopes Davi. Lógicas de articulação de linguagens no audiovisual. In: OLIVEIRA, Ana Claudia; TEIXEIRA, Lucia. (Orgs.). Linguagens na comunicação: desenvolvimentos de semióticas sincréticas. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2009.
  • OLIVEIRA, Bruno Jareta de. Comunicação e sentido no audiovisual interativo para os meios digitais: estratégias enunciativas na construção de espaços, tempos e atores do discurso. 2020. 239 f. Tese (Doutorado) – Curso de Doutorado em Comunicação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Universidade Estadual Paulista, Bauru, 2020.
  • TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation [S.l.]: BoD - Books on Demand, 1890.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    07 Ago 2023
  • Aceito
    21 Dez 2023
Programa de Estudos Pós-graduados em Comunicação e Semiótica - PUC-SP Rua Ministro Godoi, 969, 4º andar, sala 4A8, 05015-000 São Paulo/SP Brasil, Tel.: (55 11) 3670 8146 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: aidarprado@gmail.com