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O cérebro no cinema contemporâneo

The brain in contemporary cinema

Resumo

Na cultura ocidental, o cérebro aparece como figura fundamental, referido muitas vezes como lugar exclusivo de origem da mente. Tal cenário configura um regime de visibilidade que tem sido classificado de virada neural. Posto isso, o texto investiga como as imagens midiáticas — em especial a cinematográfica — têm incorporado essa perspectiva neurocêntrica. A partir do conceito de imagem-neuro de Patricia Pisters (2012a) e à luz da filosofia deleuziana, tomamos como exemplo o filme eXistenZ (1999), de David Cronenberg, no intuito de evidenciar que o cinema recente encarna de forma paradoxal essa ideologia do “sujeito cerebral” (VIDAL; ORTEGA, 2019).

Palavras-chave
imagem-neuro; sujeito cerebral; cinema; eXistenZ ; Cronenberg

Abstract

In western culture, the brain appears as a fundamental figure, often referred to as the exclusive place of origin of the mind. Such scenario shapes a visibility regime that has been classified as a neural turn. With that said, this text aims to analyze how media images - especially cinematographic ones - have incorporated this neurocentric perspective. Based on Patricia Pisters’ (2012a) concept of neuro-image and in the light of Deleuzian philosophy, we take as an example the film eXistenZ (1999), by David Cronenberg, in order to show that cinema paradoxically embodies this ideology of the “cerebral subject” (VIDAL; ORTEGA, 2019).

Keywords
neuro-image; cerebral subject; cinema; eXistenZ ; Cronenberg

O cérebro tem se destacado como figura privilegiada no imaginário ocidental, referenciado frequentemente como órgão definidor da pessoalidade e como lugar exclusivo de origem da mente. Essa ascensão do que os filósofos Fernando Vidal e Francisco Ortega (2019)VIDAL, F.; ORTEGA, F. Somos nosso cérebro? Neurociências, subjetividade e cultura. São Paulo: N-1, 2019. chamam de sujeito cerebral — a redução da pessoa humana à materialidade do cérebro — se faz evidente não só pelo aumento do financiamento de pesquisas neurocientíficas, mas também pelo seu desdobramento nas ciências humanas, no mercado e na vida cotidiana. O surgimento de disciplinas como a neuroética e a neuroestética; a adesão de milhões de usuários a aplicativos de ginástica neural; a proliferação de best-sellers de autoajuda cerebral; e a popularização de um vocabulário neurologizante para se referir a transtornos psicológicos e a desordens de desenvolvimento, como a depressão e autismo, são só alguns exemplos que atestam essa centralidade. Tal cenário configura um regime de visibilidade que tem sido classificado por pesquisadores de diversas áreas do conhecimento como virada neural ou neurocentrismo.

A genealogia que tornou possível essa onda neurológica, como explicam Vidal e Ortega (2019)VIDAL, F.; ORTEGA, F. Somos nosso cérebro? Neurociências, subjetividade e cultura. São Paulo: N-1, 2019., remonta ao século XVII e aos debates sobre a identidade pessoal e a localização da alma. Desde então, em meio à crescente somatização da subjetividade, o sujeito cerebral foi lentamente se consolidando como uma das principais figuras antropológicas da modernidade por descontinuidades próprias de um objeto fugidio e multidisciplinar, fomentado por crenças que nem sempre dependeram da investigação empírica do cérebro.

Embora a perspectiva exclusivamente materialista da mente seja questionada por correntes filosóficas desde o final do século XIX e por algumas abordagens da própria neurociência, o fisicalismo neurorreducionista ganhou novo fôlego nas últimas três décadas. Dentre vários motivos para isso, podemos destacar a popularização de técnicas de imageamento cerebral nos anos de 1990, a chamada “década do cérebro”, momento que marca a substituição do genoma pelo sistema nervoso como “fonte das explicações fundamentais para as características e os comportamentos humanos, bem como fonte do entusiasmo científico” (VIDAL; ORTEGA, 2019VIDAL, F.; ORTEGA, F. Somos nosso cérebro? Neurociências, subjetividade e cultura. São Paulo: N-1, 2019., p.30).

Por mais que a mídia desempenhe um papel central nesse cenário, a promoção da visão de equivalência entre cérebro, indivíduo/cérebro e mente não resulta somente da vulgarização da literatura científica. Segundo o antropólogo Antonio Lopes Azize (2010, p.20)AZIZE, R.L. A nova ordem cerebral: a concepção de ‘pessoa’ na difusão neurocientífica. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Museu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro, 2010., essa ideia “é repetida em formatos variados em livros de divulgação de importantes neurocientistas”. Seja visando os seus pares especialistas ou o público leigo, esses discursos deram margem para a construção do que Azize chama de “dualismo fisicalista” no formato corpo/cérebro. Em Homo Deletabilis (2010), Maria Cristina Franco Ferraz demonstra que uma das formas de aparição desse reducionismo nos estudos sobre memória, por exemplo, é o uso que neurocientistas fazem de termos filosoficamente polêmicos, como tradução, sem maiores explanações conceituais, adotando “um tratamento da correlação que tende a deslizar para vínculos de equivalência e casualidade” (FERRAZ, 2010FERRAZ, M. C. F. Homo deletabilis: corpo, percepção, esquecimento do século XIX ao XXI. Rio de Janeiro: Garamond/FAPERJ, 2010., p.68). Por isso, subscrevemos a posição de Vidal e Ortega (2019, p.17)VIDAL, F.; ORTEGA, F. Somos nosso cérebro? Neurociências, subjetividade e cultura. São Paulo: N-1, 2019., que consideram que o sujeito cerebral não se constitui como uma via de mão única, mas estrutura “uma fita interminável na qual formas de conhecimento e prática circulam em todas as direções, algumas vezes colidindo, mas em geral conduzindo uma à outra e alimentando-se mutuamente”.

Um dos elementos que integram essa fita é a arte contemporânea1 1 O termo contemporâneo é usado aqui como categoria cronológica e não como categoria estética. , que tem fomentado essa crescente valorização social do cérebro ao incorporar imagens médicas do sistema nervoso em suas práticas criativas. De todas as formas de expressão artística, é o cinema, principalmente o hollywoodiano, que tem adotado essa abordagem neurobiológica da vida com mais intensidade. Para Patrícia Pisters (2012aPISTERS, P. The Neuro-Image: a deleuzian film-philosophy of digital screen culture. California: Stanford University Press, 2012a. e 2012b)______. Flashforward: o futuro é agora. Leitura: Teoria & Prática. Campinas, v. 1, n. 59, p.62-75, nov. 2012b., professora de Estudos de Mídia da Universidade de Amsterdã, a especificidade do cinema contemporâneo está no que ela chama de imagem-neuro (neuro-image). Baseando-se nos estudos deleuzianos, Pisters defende que ao longo da história do cinema “deixamos de seguir as ações de personagens (imagem-movimento), para ver o mundo filtrado por seus olhos (imagem-tempo), até experimentar diretamente suas paisagens mentais (imagem-neuro)”(PISTERS, 2012aPISTERS, P. The Neuro-Image: a deleuzian film-philosophy of digital screen culture. California: Stanford University Press, 2012a., p.72).

Nesse novo tipo de imagem, os filmes parecem rodados dentro da mente dos personagens, pois vemos recorrentemente pessoas conectadas a algum dispositivo de leitura cerebral. É o caso da maioria dos longas-metragens de ficção científica produzidos nos últimos anos, como Matrix (1999), Minorty Report (2002), Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (2004), Avatar (2009) e A Origem (2011), para citar apenas alguns. Em muitos outros, quando essa conexão não é enfatizada, a abordagem assume a metáfora do cérebro como um computador, como no caso de Pi (1998), Divertida Mente (2015), entre outros. Há ainda os filmes em que o mundo espaço-temporal da ficção, cedo ou tarde, se revela fruto do fluxo de consciência do protagonista. Essa consciência é sempre ancorada biologicamente, de forma direta ou indireta, no cérebro. É o que acontece em filmes de jogos psicológicos, como Clube da Luta (1999) e Amnésia (2000).

Entendendo que essas obras se relacionam de forma diversa com a perspectiva neurocultural, o artigo pretende investigar as formas de articulação do sujeito cerebral nesse cinema da imagem-neuro. Na análise, buscaremos evidenciar que a imagem-neuro tem como um de seus motes centrais a questão filosófica da relação entre real e virtual, tendo duas formas principais de articular esse problema. A primeira parte do princípio de que real e virtual não fazem parte de uma mesma ordem ontológica, sendo o cérebro o lugar que opera essa distinção. Nesse modelo dominante, o corpo extracerebral é descartado em sua materialidade. A outra forma propõe um curto-circuito indiscernível entre as duas instâncias, pois o cérebro já não é o órgão que engendra a representação, mas é ele também uma imagem estendida no espaço.

Para concretizar o nosso intento, tomaremos como exemplo eXistenZ (1999), do cineasta canadense David Cronenberg, por esse ser um filme que articula esses dois polos da imagem-neuro. Na obra, os personagens estão conectados a dispositivos que permitem a manipulação dos seus cérebros, fazendo com que os limites entre realidade e virtualidade sejam constantemente questionados. O cérebro aí ocupa uma posição paradoxal: pode ser um objeto de controle, mas também oferece a possibilidade de resistência ao sistema de vigilância e submissão que marca a cultura de mídia globalizada.

Antes de explorarmos eXistenZ, é importante assinalar que, por mais que a neurociência moderna tenha aguçado a recorrência do sujeito cerebral no cinema recente, o interesse do audiovisual em construir imagens perceptivas que compartilham a perspectiva dos nossos estados mentais data ainda das primeiras décadas do século XX. O que acontece é que a mente deixou de ser um elemento metafórico nos filmes para aos poucos ser reduzida ao cérebro médico literal. Os motivos desse interesse têm suas raízes nas transformações da percepção do homem moderno que serão discutidas a seguir.

Do rosto ao cérebro: as raízes do sujeito cerebral no cinema

Em 1895, ano em que os irmãos Lumière fizeram a primeira exibição pública de filmes em Paris, uma nova concepção sobre o problema mente-corpo estava sendo consolidada por discursos filosóficos, científicos e estéticos. Esses discursos colocaram o corpo novamente no centro das experiências que reconhecemos como subjetivas e ajudaram a enfraquecer o dualismo das substâncias de Descartes, paradigma que estabelece um conceito de mente qualitativamente distinta da matéria. No decorrer do século XIX, esse modelo foi superado por uma visão que iria reduzir cada vez mais a mente a uma base biológica, fomentando uma cultura somática que teria o seu pleno desenvolvimento no século XX.

Esse desmoronamento da visão cartesiana integra uma experiência de virada epistemológica mais ampla da modernidade: a reconfiguração no status do observador entre os anos de 1810 e 1840 descrita por Jonathan Crary______. Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2013. em Suspenções da Percepção (2013). Segundo o historiador da arte norte-americano, o modelo de visão subjetiva engendrado nesse período é caracterizado pela desconfiança fisiológica do corpo, principalmente da visão, que passa a ser vista como não confiável e arbitrária.

Em Técnicas do Observador (2012), CraryCRARY, J. Técnicas do Observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. argumenta que esse novo regime de visualidade se deve não só ao avanço significativo da ótica fisiológica e da psicometria, mas também ao surgimento de dispositivos ópticos que ajudaram a destruir o paradigma da câmara escura, predominante como metáfora filosófica na época em que vigorava o modelo cartesiano de mente. Esse aparelho de produção de imagens estabelece uma relação incorpórea entre sujeito e o seu exterior, colocando o observador como um ser isolado e distanciado do mundo, que produz, justamente por isso, um conhecimento objetivo sobre ele. No caminho oposto, os aparelhos desenvolvidos no século XIX, como o estereoscópio e o zootrópio, trabalham com a noção de que a percepção é condicionada pelo funcionamento anatômico do corpo.

Toda essa discussão em torno da condição ontológica da percepção tornou possível, segundo David Lapoujade (2017, p.12)LAPOUJADE, D. William James, a construção da experiência. São Paulo: N-1, 2017., perceber a mente não mais em termos absolutos, como uma realidade substancial, mas “como o movimento daquilo que se torna consciente”. Não por acaso, é nesse período, mais precisamente em 1890, que William James desenvolve o seu famoso conceito de fluxo de consciência. Nem materialista, nem internalista, James considera a consciência uma atividade típica de um corpo ativo no mundo, em que “não há nada que seja puramente mental ou puramente material, tudo é composto de matéria físico-mental” (LAPOUJADE, 2017LAPOUJADE, D. William James, a construção da experiência. São Paulo: N-1, 2017., p.27). Ao descartar a mente como uma qualidade primordial e imaterial do ser, o empirismo radical de James considera que “as distinções sujeito/objeto, pensamento/matéria, mundo psíquico/mundo físico são apenas interpretações — nada mais do que séries de signos” (LAPOUJADE, 2017LAPOUJADE, D. William James, a construção da experiência. São Paulo: N-1, 2017., p.38).

Por mais que essas questões estivessem na ordem do dia e integrassem epistemologicamente o próprio aparelho cinematográfico desde o seu surgimento, o sistema de representação dos primeiros filmes não assumiu a vida mental, e muito menos o cérebro, como uma questão central em suas narrativas. No chamado “cinema de atrações” (GUNNING, 1990GUNNING, T. The cinema of attractions: early film, its spectator and the avant-garde. In: ELSAESSER, T. (Org.). Early cinema: space frame narrative. Londres: British Film Institute, 1990, p. 56-62.), período que vai de 1895 a 1906, os personagens são em sua maioria homens que transitam pelos espaços públicos da metrópole e o que vemos em cena são as suas ações cotidianas e exóticas. Nesses curtas-metragens, a vida privada raramente é abordada e o ponto de vista é de uma câmera objetiva afastada do indivíduo e de sua subjetividade. Dessa forma, podemos considerar que nesse período a pessoalidade não está vinculada à vida mental ou ao funcionamento cerebral, mas sim ao agir do homem na caótica metrópole moderna.

A conquista do homem interior no cinema só começa a se delinear no período de transição para o regime clássico (1906-1915), que estimulou a organização de uma gramática que favoreceu a visualização do que se entende no senso comum como a mente do homem, tornando-a figurável por meio do primeiríssimo plano, da montagem, da câmera subjetiva e do uso da música como significante das emoções. Dentre as técnicas que ajudaram a produzir esse regime, o close-up foi o mais utilizado para se referir à vida mental. Além de aparecer com frequência nas obras fílmicas independentes, foi manipulado à exaustão pelo cinema hollywoodiano, tornando-se um dos fatores principais para a consolidação do star system da era de ouro da indústria norte-americana. É também o close-up um dos recursos mais comentados nos primeiros textos teóricos sobre cinema. Nessas primeiras discussões essencialistas, o vocabulário para se referir aos fenômenos mentais é variado, pois são utilizados como sinônimos termos como espírito, alma, consciência e vida interior. A ideia comum, contudo, é que as atividades mentais que determinam a pessoa humana estão encarnadas na face.

Hugo Münsterberg, por exemplo, já em 1916 defendia o cinematógrafo como um modelo para o funcionamento da mente. Em seus textos, o psicólogo concede ao close-up a função de desvelar as experiências emocionais dos sujeitos em cena devido à capacidade do rosto de destacar “o detalhe privilegiado pela mente no instante” (MÜNSTERBERG, 2018MÜNSTERBERG, H. A atenção. In: XAVIER, I. (Org.). A experiência do cinema. São Paulo: Paz e Terra, 2018, pp. 25-49., p.32). É também o rosto que está no centro das reflexões de Béla Balázs, que, na década de 1920, argumentava que a essência do cinema seria tornar o interior visível por meio da revelação da face, a “manifestação mais subjetiva do indivíduo” (BALÁZS, 2018BALÁZS, B. O homem visível. In: XAVIER, I. (Org.). A experiência do cinema. São Paulo: Paz e Terra, 2018, p. 67- 85., p.79). A vantagem do close-up, que ele chama de solilóquio silencioso, seria permitir “uma experiência espiritual de visualização imediata do homem, sem a mediação de palavras” (BALÁZS, 2018BALÁZS, B. O homem visível. In: XAVIER, I. (Org.). A experiência do cinema. São Paulo: Paz e Terra, 2018, p. 67- 85., p.70). As discussões travadas por Jean Epstein na mesma época, por sua vez, destacam o rosto como o lugar privilegiado para a experiência da fotogenia, a qualidade intrínseca que a imagem em movimento tem de desnudar a essência dos seres e das coisas. No cinema, arte psíquica e espírita segundo Epstein (2018)EPSTEIN, J. Bonjour Cinéma – excertos. In: XAVIER, I. (Org.). A experiência do cinema. São Paulo: Paz e Terra, 2018, p. 223-236., o rosto é oferecido como alimento ao espectador por meio de uma estética da proximidade que expressa a condição psicológica do personagem.

Essa fixação do cinema do começo do século XX pelo close-up do rosto como signo de uma interioridade psicológica é típica da cultura científica de meados do século XIX, quando o registro da face por meio da fotografia passou a ser fundamental para traçar a identidade de um sujeito. Em A história do rosto, Courtine e Haroche (2016)COURTINE, J. J.; HAROCHE, C. História do rosto: exprimir e calar emoções. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2016. explicam que a redescoberta da fisiognomia nesse período estimulou o estudo de traços da face como forma de diagnosticar patologias, classificar tipos de caráter e identificar características comuns a criminosos. É desse período, por exemplo, o famoso catálogo de expressões de Guillaume Duchenne, publicado em 1862; as pranchas de morfologia facial de Cesare Lombroso, que inauguram a antropologia criminal; e o estudo de Darwin sobre a expressão das emoções, lançado em 1872.

Resquícios dessas práticas científicas popularizadas décadas antes sobreviveram no cinema, por exemplo, por meio da cristalização da inocência nos close-ups do rosto de Lilian Gish, da encarnação do sofrimento nas expressões faciais ampliadas da atriz Maria Falconetti e nos perfis catalogados por Serguei Eisenstein nos seus filmes que aplicaram a sua teoria da tipagem2 2 Como explica Aumont (1992), a teoria da tipagem do cineasta soviético consistia na ideia de que o rosto do ator deveria ser singular e ao mesmo tempo remeter a um estrato sócio-político, sendo representativo de uma classe: o burguês, o camponês etc. . Cinema e ciência, em tempos distintos, acreditaram que era possível reconhecer os atributos abstratos e psicológicos do indivíduo por meio do registro imagético de um elemento externo e visível do ser, o rosto. Ressaltamos que, em ambas as abordagens, podemos perceber o domínio de uma perspectiva racista e eurocêntrica na definição das qualidades do rosto universal.

Com o advento do cinema moderno, como explica Jacques Aumont (1992)AUMONT, J. Du visage au cinéma. Paris: Cahiers du Cinéma, 1992., a supremacia do rosto como significante psicológico foi sendo progressivamente abalada. O que temos a partir de então, segundo Deleuze (2018, p. 280)DELEUZE, G. Cinema 2: a imagem-tempo. São Paulo: Editora 34, 2018b., é o cinema da física dos corpos, em que os personagens “são reduzidos às suas próprias atitudes corporais”. Como argumentou o filósofo francês, esse modelo conviveu lado a lado com “o cinema intelectual do cérebro” (DELEUZE, 2018DELEUZE, G. Cinema 2: a imagem-tempo. São Paulo: Editora 34, 2018b., p. 296), em que a montagem era articulada para restituir as leis do pensamento, as paisagens funcionavam como estados mentais e a construção de histórias em mise en abyme arquitetava uma economia narrativa que eliminava o tempo linear e reforçava o efeito de descontinuidade próprio da vida cerebral. Contudo, o cérebro aí não é, com raras exceções, a aparição literal do órgão do sistema nervoso. Na imagem-tempo do cinema moderno, portanto, as faculdades mentais ainda não eram visualmente reduzidas ao que está dentro do nosso crânio.

É importante pontuar que podemos encontrar experiências de aparição do cérebro no cinema ao longo de todo o século XX, fortalecendo o argumento de Vidal e Ortega (2019)VIDAL, F.; ORTEGA, F. Somos nosso cérebro? Neurociências, subjetividade e cultura. São Paulo: N-1, 2019. de que a ideologia da cerebralidade vem sendo culturalmente construída muito antes do boom da neurociência. É o caso de Frankenstein (1931), O Homem que mudou de alma (1936), O horror vem do espaço (1958), The brain that wouldn’t die (1962), entre outros. Ressaltamos, contudo, que essas aparições configuravam exceções quase sempre restritas ao gênero da ficção cientifica e não interferem diretamente na constituição estética dos filmes como acontece no cinema contemporâneo.

No cinema biologizado da imagem-neuro, argumenta Pisters (2012a, p.25)PISTERS, P. The Neuro-Image: a deleuzian film-philosophy of digital screen culture. California: Stanford University Press, 2012a., os personagens são em sua maioria esquizofrênicos, falsificadores, cientistas loucos, operadores de vigilância, entre outros “que demonstram comportamento considerado ‘anormal’”. Os espaços pelos quais eles transitam são as enfermarias psiquiátricas, laboratórios, o espaço cósmico e cidades cheias de telas. Dentre as suas principais propriedades formais, a pesquisadora destaca uma relação alterada com o tempo, que adota a perspectiva multidirecional das redes neurais; uma estruturação narrativa que segue a lógica do banco de dados; uma cultura participativa que envolve o espectador em um ambiente audiovisual que o convida a ser coautor da história; e uma estética neobarroca do excesso que adere à superposição, à colagem e à geometria fractal. Muitas dessas características não são inéditas e já aparecem no cinema da imagem-tempo, mas, como explica Pisters, a imagem- neuro acrescenta a todos esses elementos os valores da comunicação digital.

Consideramos que a principal diferença entre a imagem-tempo e a imagem-neuro, contudo, não é enfatizada pela pesquisa de Pisters. Essa diferença está no modelo cerebral que inspira a forma hegemônica de cada um desses tipos de imagem. Na imagem-tempo, o cérebro é bergsoniano, pois “já não passa de uma brecha, de uma vazio, nada além de um vazio, entre uma excitação e uma reposta” (DELEUZE, 2018DELEUZE, G. Cinema 2: a imagem-tempo. São Paulo: Editora 34, 2018b., p. 305). Nessa visão, o cérebro não é o substrato de representação da matéria, mas o veículo de uma ação, um centro de comunicação e escolha. Dessa forma, a imagem-tempo não repercute uma visão neurorreducionista como faz a forma hegemônica da imagem-neuro, a que resume o real ao mundo concreto que independe dos processos perceptivos e o virtual à realidade ilusória concebida pelas ficções afetivas do cérebro.

O exemplo máximo desse modelo materialista pode ser encontrado no filme Divertida Mente (2015), em que somos apresentados às atividades mentais de Riley, uma garotinha de 11 anos. Toda a noção de pessoalidade de Riley se resume aos registros do seu cérebro. No filme, vemos esferas que representam as suas memórias sendo estocadas em prateleiras como se fossem arquivos fixos passíveis de serem recuperados (FIG. 1). Substancialmente diferente da imagem-tempo, que trabalha a memória como uma atualização, uma reconstrução imaginativa, um porvir.

Figura 1
Esferas representativas da memória, estocada como arquivo no cérebro de Riley. Fonte: Fotograma do filme Divertida Mente (2015, Pete Docter).

Tanto em Divertida Mente como em muitos outros filmes recentes, é adotado o modelo do cérebro como um computador e é justamente pelo fato de a imagem-neuro estar profundamente conectada à onipresença da tecnologia digital que suas narrativas evocam certa tradição filosófica que discute o problema da relação do real com o virtual. No próximo tópico, aprofundaremos essa discussão a partir da análise de elementos formais e narrativos do filme eXistenZ (1999).

eXistenZ: o cérebro é a tela

Lançado em plena ascensão do neurocentrismo, as primeiras imagens de eXistenZ (1999), de David Cronenberg, já apontam para a relação dúbia que o filme irá estabelecer com sujeito cerebral. Em meio aos créditos iniciais, surgem sobre uma tela preta imagens de coloração amarronzada difíceis de serem definidas. Algumas delas lembram uma poeira cósmica, outras se assemelham a redes neurais biológicas que estabelecem conexões difusas entre si, se aproximando também do desenvolvimento polimorfo e probabilístico de um rizoma (FIG.2). Essa sequência parece anunciar que o que veremos a seguir será uma experiência audiovisual cerebral, cheia de dobras que interrompem o fluxo contínuo da história e abrem novas formas de articulações dos seus elementos narrativos. A ambiguidade aparece quando, já quase no fim da apresentação dos créditos, vislumbramos o desenho de um corpo humano (FIG.3), marcando que a existência não será reduzida às redes neurais.

Figuras 2 e 3
As redes neurais biológicas e o corpo humano são referidos na sequência de abertura. Fonte: Fotograma do filme eXistenZ (1999, David Cronenberg).

Embora conotado nesse início do filme, o cérebro se manterá imaterial no decorrer da história. Ele irá funcionar como a interface invisível que permite o ingresso sensorial dos personagens na realidade virtual. No filme, Allegra Geller (Jennifer Jason Leigh), uma desenvolvedora de games, testa a sua mais nova criação com um grupo de fãs escolhidos, o jogo interativo eXistenZ. A experiência é possibilitada por um cordão umbilical (umbycord) que liga o console — feito da mistura de material orgânico e inorgânico — a um orifício chamado de bioporto (bioport), localizado na base da coluna vertebral do jogador. Como se sabe, a espinha dorsal tem como uma de suas funções levar informações ao encéfalo por meio de impulsos nervosos. Como explica Allegra antes de começar o teste, um download do jogo é feito “para dentro” dos participantes, que se mantêm de olhos fechados durante toda a jornada. O filme sugere, assim, que as imagens que o espectador passa a acompanhar quando o jogo se inicia funcionam como realidade ilusória e afetiva. A tela já não é, como no cinema clássico, uma janela para o mundo, mas uma superfície onde se inscrevem os dados neurais dos jogadores. Parafraseando uma expressão famosa de Deleuze (2000, p.366)DELEUZE, G. The Brain Is the Screen. In: The Brain Is the Screen: Deleuze and the Philosophy of Cinema. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2000, p. 365-376., “o cérebro é a tela” em eXistenZ.

O filme também dá substância à ideologia do sujeito cerebral devido ao amplo vocabulário neurocientífico utilizado pelos personagens. A operação para abrir o bioporto no corpo do jogador, por exemplo, é chamada de cirurgia neural; a empresa concorrente da fabricante do jogo eXistenZ se chama Cortical Systematics; Allegra alerta a todo momento que o console pode ser infectado ao ser inserido em pessoas que têm distúrbios neurológicos; Pikul, um dos personagens, teme que um bioporto infectado possa destruir o seu cérebro; e o console, por sua vez, possui um sistema nervoso.

Logo, em um primeiro momento, o filme parece não só adotar o cérebro como epicentro da existência, como seguir uma perspectiva dualista comum a boa parte de seus contemporâneos. Ao abordarem a dicotomia real-virtual e, por consequência, o problema mente-matéria, obras como Johnny Mnemonic (1995, Robert Longo), Matrix (1999, irmãs Wachowski) e O 13º andar (1999, Josef Rusnak), para citar apenas alguns, constroem o entendimento do real como o espaço perceptivo material e exterior à mente, reduzida nesses casos ao cérebro, e o virtual como uma aparência do real projetada pela capacidade de representação do maior órgão do sistema nervoso. Por mais que as duas instâncias possam interagir em algum momento nessas obras, elas ainda são apresentadas como ontologicamente distintas. Temos aí a impressão de que o real deve ser considerado bom, aberto à diferença e à liberdade, e o virtual deve ser encarado como representativo do mal, um universo fechado e determinista.

Se essa parece ser também a abordagem de Cronenberg no começo de eXistenZ, a sua estrutura em mise en abyme vai aos poucos promovendo um apagamento das fronteiras entre real e virtual. Isso porque, durante o teste do jogo, Allegra sofre uma tentativa de assassinato, passando a ser perseguida pela Cortical Systematics e por um grupo denominado Realist Underground, formado por pessoas que lutam contra a existência de implantes tecnológicos. Ela consegue escapar com a ajuda de Ted Pikul (Jude Law), um estagiário de marketing que acaba se tornando seu guarda-costas. Na fuga, Allegra percebe que o seu console pode ter sido infectado e ela e Pikul passam a fazer constantes imersões no jogo para verificar se tudo está funcionando normalmente. A partir daí, passa a ser impossível para o espectador controlar qual é o ambiente ontologicamente real e qual é o virtual.

À medida que a narrativa avança, não só o espectador se dá conta desse movimento coalescente, mas os próprios jogadores passam a ter dúvidas sobre o estatuto ontológico do espaço-tempo que estão inseridos. Allegra, por exemplo, está constantemente analisando a fisicalidade dos ambientes por onde transita com Pikul, acariciando as paredes dos lugares, forçando as narinas para captar a qualidade dos cheiros e observando o modo de falar das pessoas em cena. Ela age como se estivesse conferindo o grau de realidade do cenário projetado em seu jogo, fazendo isso mesmo quando eles suspostamente ainda estão no mundo concreto.

Deleuze (2018) chamou de estrutura especular esse movimento de reflexividade típico da imagem-tempo do cinema moderno, em que narrativas espelhadas se multiplicam por meio de um jogo de repetições em que temos acesso a diversas camadas de uma mesma realidade. Essa forma é constituída pela aglutinação entre real e virtual, o que permite que existam temporalidades e espaços diegéticos diferentes em cena: estamos simultaneamente no passado e no futuro, no interior e no exterior. Quando eXistenZ trabalha com esse movimento de reversibilidade contínua, portanto, ele se aproxima da visão apresentada por Deleuze, que considera que “o objeto real reflete-se em uma imagem especular tal como no objeto virtual que, por seu lado e ao mesmo tempo, envolve e reflete o real: há coalescência entre os dois. Há formação de uma imagem bifacial, atual e virtual” (DELEUZE, 2018DELEUZE, G. Cinema 2: a imagem-tempo. São Paulo: Editora 34, 2018b., p.105-106). Não se trata mais de discutir a realidade virtual como simulação e representação artificial, mas de entender a realidade do virtual, o real expandido, a sua existência em potência como a origem latina da palavra virtual sugere.

Esse vínculo circular entre as duas instâncias se torna ainda mais evidente no filme de Cronenberg pelo fato de os personagens estarem sempre visceralmente conectados aos seus corpos. Essa prevalência do corpo extracerebral aparece principalmente nos momentos em que se deve operar a passagem do mundo concreto para a realidade do jogo, pois o bioporto é constantemente penetrado por línguas, dedos e pomadas lubrificantes. Dessa forma, o transe cerebral ao qual os jogadores se submetem é também uma experiencia erótica, reforçando o argumento de Pisters (2012a, p.199)PISTERS, P. The Neuro-Image: a deleuzian film-philosophy of digital screen culture. California: Stanford University Press, 2012a. de que no cinema contemporâneo da imagem-neuro as paisagens mentais são muito mais físicas e sensuais do que as reveladas no cinema moderno da imagem-tempo, “onde a paisagem mental é mais frequentemente expressa de um modo conceitual”.

Esse protagonismo do corpo, como já apontado por inúmeros estudos, é característico de toda a obra de Cronenberg, que combina os pares homem-animal, masculino-feminino e orgânico-inorgânico para fazer deles não uma dicotomia, mas um sistema de ligações que opera em curto-circuito. Steven Shaviro (2015)SHAVIRO, S. O corpo cinemático. São Paulo: Paulus, 2015. assinala que um dos principais binarismos desconstruídos por esses “novos arranjos da carne” é justamente a oposição cartesiana entre mente e matéria, substituída nos filmes do cineasta por um “paralelismo espinozista” em que “os processos psicológicos e fisiológicos acontecem simultaneamente, e nenhum deles pode ser considerado causa ou base do outro” (SHAVIRO, 2015SHAVIRO, S. O corpo cinemático. São Paulo: Paulus, 2015., p.153). Isso não pode ser confundido, enfatizamos, com um monismo cerebral. Como demonstra Erick Felinto (2011)FELINTO, E. O olho e o cérebro: o cinema psíquico de David Cronenberg. In: CAPISTRANO, T. (Org.). Cinema em carne viva: David Cronenberg – corpo, imagem e tecnologia. Rio de Janeiro: Caixa Cultural, 2011, p.70-76., em filmes como A hora da zona morta (1983) e Scanners (1981), outros sentidos, como a visão e a audição, são convocados de forma central na fabricação desse “cinema psíquico”. É também o que acontece em eXistenZ, que se associa à virada neural sem chegar a destacar hierarquicamente o cérebro do restante do corpo.

Na última sequência de eXistenZ, contudo, o filme recua e as fronteiras voltam a ser delimitadas de uma forma tradicional. Encurralados em um quarto de hotel, Allegra e Pikul são atacados mais uma vez pelos fanáticos do movimento realista. Na fuga, ela descobre que Pikul é um infiltrado do grupo e acaba o matando. Quando ele morre, somos levados imediatamente para um novo espaço. Dentro de uma igreja, pessoas participam do teste de um game chamado transCendenZ. Entre elas estão Allegra, Pikul e outros personagens que vimos ao longo do filme participando do jogo eXistenZ. Todos eles aparecem agora conectados ao console pela cabeça, por meio de um dispositivo eletrônico típico de uma cultura neurocentrada (Fig. 4).

Figuras 4 e 5
Os participantes são conectados ao jogo transCendenZ por um dispositivo eletrônico. Fonte: Fotograma do filme eXistenZ (1999, David Cronenberg).

Ao mesmo tempo, toda a iconografia dessa sequência remonta à tradição judaico-cristã que prega o entendimento da mente como uma transcendência às limitações do corpo, daí o nome do jogo nesse nível narrativo. Além de se passar numa igreja, são doze o número de participantes. Como os doze apóstolos do cristianismo, eles são guiados por um líder do sexo masculino, o criador do jogo Yevgeny Nourish (Don McKellar). Não à toa, a empresa que produz o transCendenZ se chama Pilgrimage, peregrinação em português, uma jornada religiosa que nos leva a lugares sagrados.

O filme conclui nos mostrando que Allegra e Pikul são, na verdade, apologistas do realismo e lutam contra a invasão tecnológica da vida. Os dois escolheram participar da sessão-teste com o objetivo de matar o verdadeiro criador do jogo transCendenZ, em um movimento circular e espelhado que repete o jogo eXistenZ. Essa repetição, contudo, não funciona como analogia ou cópia, mas como um retorno dessemelhante que atualiza os significados. Isso por conta do plano final do filme, que lança a ambiguidade de novo em cena ao introduzir um jogador inesperado: o espectador, assinalando outra característica da imagem-neuro descrita por Pisters (2012a)PISTERS, P. The Neuro-Image: a deleuzian film-philosophy of digital screen culture. California: Stanford University Press, 2012a. que é a participação.

Após matarem o criador de transCendenZ, Allegra e Pikul se encaminham para a saída da igreja e são barrados por um segurança, que bastante nervoso os questiona: “Me diga a verdade, ainda estamos no jogo?”. O filme termina com um plano fechado que mostra Allegra e Pikul, sem responderem à pergunta, encarando o espectador e apontando uma arma na direção da câmera, nos levando novamente à estrutura em abismo que define que não há propriamente um fora do jogo. Diante disso, defendemos que, em eXistenZ, a tela funciona não só como um análogo das redes neurais dos personagens, mas também do cérebro do espectador. A autorreferencialidade aparece em cena quando o ato de jogar se assemelha ao ato de criar um filme. Essa criação coparticipativa deixa tudo à deriva, aberto e incerto.

A partir desse entendimento da diegese, voltamos mais uma vez a Deleuze para refletir sobre o título do filme. A palavra existência é originalmente escrita com c no inglês (existence). No filme, o c é substituído pelo Z e a letra X aparece também destacada em maiúsculo. Como diz Deleuze em seu abecedário (1995), “X é Desconhecido”. É a incógnita matemática elucidada por meio de uma equação, que é também uma forma de jogo. Já o Z, uma outra variável matemática, é a letra da bifurcação.

O Z é o ziguezague. É a última palavra. Não há palavras depois de ziguezague. [...] Talvez seja o movimento elementar, o movimento que presidiu a criação do mundo. [...] A base de tudo não é o Big-Bang, mas o Z

(DELEUZE, 1995______.; PARNET, C. Abecedário de Gilles Deleuze. Éditions Montparnasse, Paris. Filmado em 1988-1989. Publicado em 1995.).

Nessa nova eXistênZia proposta pelo cinema de Cronenberg, o jogo da repetição nos movimenta em caminho do desconhecido, um lugar onde a origem é um turbilhão e onde o tempo, múltiplo e heterogêneo, se abre à diferença, se desdobrando a cada momento em passado e futuro, em real e virtual.

Considerações Finais

Entendendo que é da natureza dos produtos culturais apresentar premissas muitas vezes incompatíveis em uma mesma obra, buscamos demonstrar nesse artigo que o filme de Cronenberg trata o sujeito cerebral de forma ambígua. Ao mesmo tempo em que o vocabulário dos personagens adota a perspectiva neurocultural e o filme apresenta elementos figurativos que reforçam a redução cerebralista do self, o jogo interativo eXistenZ trabalha com a indiscernibilidade entre real e virtual e torna o corpo extracerebral em contato com o mundo um elemento central na estruturação da narrativa. Essa ambivalência não é a exceção de um gênio, aparecendo nas filmografias de muitos outros cineastas contemporâneos, como David Lynch, Gaspar Noé, Michel Gondry, entre outros. Por isso, defendemos que o cinema da imagem-neuro não se limita a filmes que repetem o discurso neurocêntrico, mas apresenta também narrativas que fomentam valores alternativos para se pensar a subjetividade.

Concluímos defendendo que investigar como a figura antropológica do sujeito cerebral tem sido articulada nos produtos midiáticos se mostra um problema fundamental para o campo da comunicação. Se no século XX o cinema e outros dispositivos de produção de imagens reforçaram e subverteram crenças que criminalizavam os seres humanos por meio da catalogação da face — processo que ganha nuances na contemporaneidade devido à proliferação das câmeras de reconhecimento facial —, hoje já estão disponíveis softwares de impressão digital cerebral, o chamado brain fingerprinting. Fruto de tecnologia desenvolvida ainda nos anos de 1960, somente nos anos de 1990 o brain fingerprinting passou a ser adaptado para uso em processos penais. Embora a sua aplicação ainda seja controversa, como mostra Silva (2019)SILVA, S. O. IT’S ALL IN YOUR HEAD?: a utilização probatória de métodos neurocientíficos no processo penal. Revista Eletrônica de Direito Processual, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 477-512, 25 abr. 2019. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/view/42215. Acesso em: 01 jul. 2020.
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, já tem sido utilizado como prova criminal em alguns países. Tendo em vista que as definições de pessoalidade engendradas por discursos científicos supostamente neutros sempre estiveram diretamente ligadas à construção de práticas e políticas públicas de controle da vida e dos corpos, consideramos fundamental entender como a arte é responsável não só por respaldar esses discursos, mas também por desequilibrar as certezas, sinalizando que algumas questões aparentemente objetivas envolvem um imaginário cultural complexo.

  • 1
    O termo contemporâneo é usado aqui como categoria cronológica e não como categoria estética.
  • 2
    Como explica Aumont (1992)AUMONT, J. Du visage au cinéma. Paris: Cahiers du Cinéma, 1992., a teoria da tipagem do cineasta soviético consistia na ideia de que o rosto do ator deveria ser singular e ao mesmo tempo remeter a um estrato sócio-político, sendo representativo de uma classe: o burguês, o camponês etc.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    02 Jul 2020
  • Aceito
    14 Ago 2020
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