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Territorialidades e temporalidades abigarradas nas narrativas da memória do Projeto Moradores1 1 O artigo foi originado da tese A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira, defendida na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte, em 2023

Territorialities and temporalities abigarradas in the memory narratives from the Projeto Moradores

Resumo

Partindo do Projeto Moradores, projeto cultural voltado para a coleta de narrativas de moradores de determinados lugares, etapas Belo Horizonte e Lagoinha, este artigo pretende refletir sobre a relação entre territorialidades e temporalidades que se depreendem e colocam-se em fricção em suas narrativas. Propõe, inicialmente, uma reflexão sobre o conceito de espaço e tempo, para então convocar a noção de abigarrado, proposta por Rivera Cusicanqui (2015; 2018), para se pensar a relação entre essas duas instâncias, uma vez que ela nos possibilita tomá-las em sua coexistência não apaziguadora. Tendo isso em vista, busca olhar como o projeto propõe um modo próprio de pensar a cidade, reterritorializada no espaço virtual onde o projeto se encontra.

Palavras-chave
territorialidades; espacialidades; memória; narrativa; cidade

Abstract

Considering the stages Belo Horizonte and Lagoinha of Projeto Moradores, a cultural project focused on collecting oral narratives from citizens, this article intends to reflect on the relationship between territorialities and temporalities that are inferred and put into friction in its narratives. It initially proposes a reflection on the concept of space and time, and then calls on the notion of “abigarrado”, proposed by Rivera Cusicanqui (2015; 2018), to think about the relationship between these two instances, since it allows us to take them in their non-appeasing coexistence. With this in mind, it seeks to look at how the project proposes its own way of thinking about the city, which becomes re-territorialized in the virtual space where the project is located.

Keywords
territorialities; temporalities; memory; narrative; city

Introdução

Com a proposta de se voltar para o patrimônio por trás do patrimônio, o Projeto Moradores, idealizado pela produtora Nitro, trata-se de uma iniciativa que se relaciona de forma particular com a memória de caráter coletivo (Amormino, 2023AMORMINO, Luciana. A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira. 2023. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2023.). Sua atuação parte de uma intervenção em uma localidade pública reconhecida de tais lugares, momento em que registra em fotografia e vídeo os moradores, cujos depoimentos são utilizados para a produção de um documentário2 2 Disponível em: https://projetomoradores.com.br/etapas/ e @projetomoradores, respectivamente. Acesso em: 18 out. 2023. . Posteriormente, os registros de rostos em preto e branco, tal qual fotos para documentos de identidade, vão compor uma galeria de retratos em tamanho expressivo em um espaço público, onde também é exibido o documentário. Por meio do ambiente virtual (site e perfil no Instagram)3 3 Disponível em: https://projetomoradores.com.br/etapas/ e @projetomoradores, respectivamente. Acesso em: 18 out. 2023. , podemos acessar a galeria de retratos de rostos em preto e branco, o documentário com trechos de depoimentos e cenas de making of.

Em seu site institucional4 4 Disponível em: https://nitroimagens.com.br/quem-somos/. Acesso em: 18 out. 2023. , a Nitro, coletivo de contadores de histórias formado por antropólogos visuais, assume como objetivo “[...] contribuir para a construção da identidade e da imagem do Brasil contemporâneo, contando histórias como meio de preservar a memória” (Nitro, 2022NITRO. Quem somos. Disponível em: https://nitroimagens.com.br/quem-somos/. Acesso em: 21 dez. 2022.
https://nitroimagens.com.br/quem-somos/...
). Entre suas ações está o Projeto Moradores, criado em 2012 e realizado em parceria com outras produtoras, que busca mostrar a humanidade do patrimônio. Para tanto, define-se como um “movimento de ocupação urbana pela valorização da identidade cultural e da memória como patrimônio diverso e individual de cada uma das cidades brasileiras” (Projeto Moradores - Belo Horizonte, 2021bPROJETO MORADORES - BELO HORIZONTE. Disponível em: https://projetomoradores.com.br/project/galeria-de-moradores-belo-horizonte/. Acesso em: 15 set. 2021b.
https://projetomoradores.com.br/project/...
). O projeto recebeu, em dezembro de 2022, o 35º Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, do Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan), que reconhece, em nível nacional, ações de excelência para preservação e promoção do patrimônio cultural brasileiro.

Em nossa análise, no intuito de verificar a relação entre territorialidades e temporalidades presentes nas narrativas e na própria iniciativa de memória do projeto, que entendemos como abigarradas, expressão apropriada por Rivera Cusicanqui (2018)RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Un mundo ch’xi es posible: Ensayos desde un presente en crisis. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018., voltaremos nosso olhar para as etapas do projeto intituladas Belo Horizonte e Lagoinha, que partem da cidade como um todo (Belo Horizonte) e de uma região específica da capital mineira (Lagoinha). Nossa proposta é refletir sobre as seguintes questões: como pensar os deslocamentos espaço-temporais efetuados pelo projeto ao se colocar como uma iniciativa de memória? O que o abigarramento entre territorialidades e temporalidades, presentes tanto nos modos como o projeto agencia a memória quanto em suas narrativas, apresenta de deslocamentos sobre o entendimento da própria cidade?

Em 2015, a fase de Belo Horizonte do projeto foi produzida pela Nitro em colaboração com a produtora Alicate, por meio do apoio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura da Prefeitura de Belo Horizonte. Contou com o patrocínio da Casa UNA e a parceria do Governo de Minas Gerais, do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha-MG), do Circuito Liberdade, do Memorial Minas Gerais Vale e do Centro Fotográfico. A campanha de divulgação apresentava o slogan: “Uma cidade só é viva e tem alma quando contamos nossas histórias” (Projeto Moradores - Belo Horizonte, 2021b). Seguindo a abordagem metodológica do projeto, esta etapa envolveu o registro fotográfico e videográfico dos residentes locais, realizados em uma tenda instalada em três praças da capital mineira: Praça Sete, Praça da Savassi e Praça da Liberdade, todas situadas na região Centro-Sul. Após o período de gravação, uma exposição de grandes retratos em preto e branco foi realizada na Praça da Liberdade, composta de 14 painéis de 4 x 2 m. No dia do lançamento, também foi exibido um documentário com trechos de depoimentos dos participantes (BH Eventos, 2022BH EVENTOS. BH recebe o projeto “Moradores - a Humanidade do Patrimônio Histórico”. Disponível em: https://www.bheventos.com.br/noticia/06-25-2015-bh-recebe-o-projeto-moradores-a-humanidade-do-patrimonio-historico. Acesso em: 21 dez. 2022.
https://www.bheventos.com.br/noticia/06-...
).

Na fase Lagoinha, que ocorreu em 2019, o Projeto Moradores estabeleceu uma colaboração entre a Nitro e a Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte. Assim como na etapa anterior em Belo Horizonte, e como fazem em todas as etapas, foi montada uma tenda para os registros audiovisuais em locais movimentados na região. É interessante observar que aqui, menos que um projeto aprovado em lei de incentivo da Fundação Municipal de Cultura, tratou-se de uma parceria, fruto de um projeto alinhado aos interesses da administração pública de Belo Horizonte. Apesar disso, a mesma metodologia foi seguida, e, tal qual na etapa Belo Horizonte, podemos adentrar os dois territórios por meio da memória de seus moradores, a humanidade por trás do patrimônio. Nesse contexto, o Projeto Moradores possibilita a exploração não apenas das localidades onde atua, mas também de novos territórios físicos, simbólicos e afetivos. Essa abordagem nos leva a refletir sobre como a memória, intrinsecamente ligada ao tempo, “[...] conecta-se de modo simbiótico ao espaço, nesses atravessamentos abigarrados (Rivera Cusicanqui, 2018RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Un mundo ch’xi es posible: Ensayos desde un presente en crisis. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018.) que conformam novos sentidos à materialidade do patrimônio, à identidade e à sensação de pertencimento que promovem” (Amormino, 2023AMORMINO, Luciana. A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira. 2023. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2023., p. 129).

Conforme mencionado em Amormino (2020)AMORMINO, Luciana. Metáforas espaciais em reflexões sobre temporalidades a partir de Koselleck e Rivera Cusicanqui. In: AMORMINO, L.; ANDRADE, R. Experiências culturais do tempo: Espaço-tempo, tradições, narrativas. Belo Horizonte: Selo PPGCOM/UFMG, 2020., o termo abigarrado tem suas raízes na concepção de René Zavaleta, que foi resgatada por Rivera Cusicanqui (2015RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Sociología de la imagen: ensayos. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Tinta Limón, 2015.; 2018)RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Un mundo ch’xi es posible: Ensayos desde un presente en crisis. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018.. Eles discutem lo abigarrado como um conceito que aborda tanto o aspecto espacial quanto temporal, referindo-se à coloração cinza jaspeada dos esquistos de mineração, resultante da interação de inúmeras partículas pretas e brancas. Essas partículas, apesar de estarem adjacentes, permanecem distintas e reconhecíveis, oferecendo uma imagem que transcende a noção tradicional de mistura ou hibridização. Em vez disso, sugerem uma coexistência de diferenças, uma convivência e habitação das contradições. Portanto, falar sobre abigarramentos, em termos espaciais e temporais, implica considerar a interação de diferentes espaços e tempos, nem sempre em harmonia, mas frequentemente em atrito constante.

Na abordagem zavaletiana, sua curiosidade pelos esquistos de mineração (fragmentação e mescla de minerais devido a movimentos tectônicos de diversas épocas geológicas) ressoa na imagem das manchas ou jaspes sociais de profundidade histórica diversa intercaladas agonizantemente, que às vezes vê como uma característica constitutiva, mas também como uma disjunção crítica que é necessário superar

(Rivera Cusicanqui, 2018RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Un mundo ch’xi es posible: Ensayos desde un presente en crisis. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018., p. 16. Tradução nossa).

Seguindo a abordagem de Rivera Cusicanqui (2018)RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Un mundo ch’xi es posible: Ensayos desde un presente en crisis. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018., a temporalidade se manifesta e se torna concreta no espaço, tanto por meio da metáfora do abigarrado quanto da noção de ch’ixi, esta última sendo aplicada à primeira. A socióloga boliviana busca destacar a coexistência de diversas realidades, um convívio e habitação das contradições que se reflete na imagem do abigarrado, que abraça a heterogeneidade. Ao mesmo tempo, essa abordagem, vinculada ao território, revela um cotidiano marcado temporalmente. Conforme discutido por Amormino (2020)AMORMINO, Luciana. Metáforas espaciais em reflexões sobre temporalidades a partir de Koselleck e Rivera Cusicanqui. In: AMORMINO, L.; ANDRADE, R. Experiências culturais do tempo: Espaço-tempo, tradições, narrativas. Belo Horizonte: Selo PPGCOM/UFMG, 2020., as diferenças — sejam elas de temporalidades, subjetividades, identidades, entre outras — permanecem visíveis e constituem uma homogeneidade heterogênea. Isso nos permite entender que, na perspectiva de Cusicanqui, o cotidiano é fragmentado e não busca ser reparado, mas sim vivenciado. Dessa forma, as temporalidades se apresentam como sendo abigarradas em relação à sua diversidade, influenciando e participando ativamente na experiência cotidiana (Rivera Cusicanqui, 2018RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Un mundo ch’xi es posible: Ensayos desde un presente en crisis. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018.).

Desse modo, levando em consideração o fato de o Projeto Moradores se constituir de narrativas da memória de moradores de determinadas localidades, como Belo Horizonte e a região da Lagoinha, vemos emergir em seus distintos suportes no ambiente virtual tensionamentos entre territorialidades e temporalidades, o que nos leva a perguntar: como pensar os deslocamentos espaço-temporais efetuados pelo projeto ao se colocar como uma iniciativa de memória? O que o abigarramento entre territorialidades e temporalidades, presentes tanto nos modos como o projeto agencia a memória quanto em suas narrativas, apresenta de deslocamentos sobre o entendimento da própria cidade? Por meio de uma análise hermenêutica (Ricoeur, 2010RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Tomo III. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.), buscamos refletir sobre essas questões, considerando tanto a iniciativa de memória proposta pelo projeto quanto as narrativas que dele emergem.

Dos espaços aos territórios, articulações temporais via memória

Conforme apontamos em Amormino (2023)AMORMINO, Luciana. A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira. 2023. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2023., segundo a análise de David Harvey (2006)HARVEY, David. Space as a keyword. In: CASTREE, N. e GREGORY, D. (org.) David Harvey: a critical reader. Malden e Oxford: Blackwell, 2006., o conceito de espaço é fundamental e atua como uma categoria-chave, servindo como uma metáfora que questiona narrativas dominadas pela dimensão temporal. Essa abordagem provocou debates significativos sobre o papel do espaço nas teorias sociais, literárias e culturais. Harvey argumenta que o termo espaço está intrinsecamente associado a outras palavras e, particularmente, em relação ao seu vínculo com o tempo, tem um potencial significativo. Isso é evidenciado na diversidade de formas como os termos espaço e espaço-tempo são utilizados. Para Harvey, essas palavras-chave não apenas abrem caminhos para uma análise crítica, mas também permitem a identificação de reivindicações distintas e contraditórias. Além disso, elas possibilitam formas de configurar fisicamente nosso ambiente, assim como representá-lo e vivenciá-lo.

Para Harvey (2006)HARVEY, David. Space as a keyword. In: CASTREE, N. e GREGORY, D. (org.) David Harvey: a critical reader. Malden e Oxford: Blackwell, 2006., é crucial adotar o termo espaço de maneira relacional, evitando limitá-lo apenas ao aspecto vivido e sem levar em conta sua dimensão material. Ele argumenta que é essencial manter a conexão entre a experiência vivida e o aspecto físico do espaço. Para Harvey, compreender como diferentes formas de espacialidade e espaço-temporalidade contribuem para a construção de uma imaginação geográfica específica é fundamental. Portanto, segundo o teórico britânico da geografia, pensar no tempo também implica considerar o espaço, numa perspectiva em que ambos se complementam, reconhecendo a tensão dialética entre essas duas esferas.

Esse entendimento se relaciona à perspectiva de Henri Lefebvre (2000)LEFEBVRE, Henri. A produção do espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins. Do original: La production de l’espace. 4. éd. Paris: Éditions Anthropos, 2000., que considera que o espaço, assim como experiência temporal, é um produto social, tomando produto como um conjunto de relações, resultado e pré-condição da vida em sociedade. Conforme apontamos em Amormino (2023)AMORMINO, Luciana. A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira. 2023. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2023.:

Essa visada marxista proposta por Lefebvre, que veio a inspirar o pensamento de Harvey (2006)HARVEY, David. Space as a keyword. In: CASTREE, N. e GREGORY, D. (org.) David Harvey: a critical reader. Malden e Oxford: Blackwell, 2006., Santos (2001)SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. e Haesbaert (2020)HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 12. edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020. permite-nos compreendê-lo não como algo dado, que existe por si mesmo, mas como processo. O espaço seria então constituído na dialética produto-produtor, que se dá de modo desigual e em diferentes níveis, sustentando-se numa prática. Em relação ao espaço social, Lefebvre (2000)LEFEBVRE, Henri. A produção do espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins. Do original: La production de l’espace. 4. éd. Paris: Éditions Anthropos, 2000. argumenta que se trata de um processo de produção em que a sociedade apresenta-se e representa-se continuamente

(Amormino, 2023AMORMINO, Luciana. A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira. 2023. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2023., p. 130).

Segundo o pensamento do filósofo marxista e sociólogo francês, o espaço não é simplesmente um cenário estático, mas sim o resultado de um processo ativo de produção que ocorre ao longo do tempo. Ele propõe uma tríade dialética, composta de três dimensões igualmente importantes: a percebida, a concebida e a vivida. Essa tríade representa um dos conceitos fundamentais de sua obra. Ao explicar essa tríade conforme proposta por Henri Lefebvre, o geógrafo, sociólogo e pesquisador suíço em urbanismo Christian Schmid (2012)SCHMID, Christian. A teoria da produção do espaço de Henri Lefebvre: em direção a uma dialética tridimensional. GEOUSP – espaço e tempo, São Paulo, n. 32, p. 89-109, 2012. enfatiza que essas dimensões são simultaneamente individuais e sociais, desempenhando um papel crucial não apenas na autorreprodução do ser humano, mas também na da sociedade como um todo. Todos os três conceitos, segundo Schmid, envolvem processos ativos tanto em nível individual quanto social (Schmid, 2012SCHMID, Christian. A teoria da produção do espaço de Henri Lefebvre: em direção a uma dialética tridimensional. GEOUSP – espaço e tempo, São Paulo, n. 32, p. 89-109, 2012., p. 14).

A primeira dimensão, o espaço percebido, relaciona-se à materialidade do espaço, que pode ser apreendida numa perspectiva sensualista. A segunda, o espaço concebido, refere-se ao ato de pensamento que é ligado à produção de conhecimento sobre o espaço. Já a terceira, o espaço vivido, diz respeito ao mundo tal como é experimentado pelos seres humanos na prática de sua vida cotidiana. Tais dimensões, conforme Schmid (2012)SCHMID, Christian. A teoria da produção do espaço de Henri Lefebvre: em direção a uma dialética tridimensional. GEOUSP – espaço e tempo, São Paulo, n. 32, p. 89-109, 2012., não podem ser tomadas como origem absoluta do espaço e nenhuma delas seria privilegiada em detrimento das outras. Sendo inacabado e continuamente produzido, o espaço estaria, assim, intrinsecamente ligado ao tempo (Amormino, 2023AMORMINO, Luciana. A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira. 2023. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2023., p. 130).

Dentro do contexto do espaço social, Christian Schmid argumenta que Henri Lefebvre propõe um avanço a partir de uma concepção relacional de tempo e espaço. Nessa abordagem, o tempo é entendido como a dimensão da ordem diacrônica, ou seja, o processo histórico de produção social, enquanto o espaço representa a simultaneidade e a ordem sincrônica da realidade. Essa visão implica mais do que simplesmente uma soma de práticas individuais ou uma totalidade de corpos e matéria. Nas palavras de Schmid (2012, p. 03), “os seres humanos em sua corporeidade e sensualidade, sua sensibilidade e imaginação, seus pensamentos e suas ideologias; seres humanos que entram em relações entre si por meio de suas atividades e práticas”. Desse modo, considerando espaço em sua perspectiva relacional e em sua relação com o tempo, como pensar, por meio do Projeto Moradores, a memória em sua relação com territorialidades e espacialidades tendo em vista a iniciativa de memória que efetua e as narrativas que o compõem e que trazem ao centro os moradores de determinadas localidades?

Especialmente considerando os documentários produzidos pelo Projeto Moradores, etapas Belo Horizonte e Lagoinha, vemos emergir a cidade e a região como uma história única, contada em fragmentos de imagens dos moradores e trechos de suas narrativas de memória. Localidades narrativamente instituídas pelo projeto, pasteurizadas em falas sem grandes contradições, mas que, se observarmos com mais atenção, encarnam-se de modos diversos na memória de seus habitantes. Revela coexistência de diferentes tempos e espaços, modos abigarrados de dar sentido à cidade. Da mesma forma que os retratos que estampam rostos em preto e branco, e que compõem a galeria do site e a exposição in loco, nos mostram um modo peculiar de encarnar seus habitantes nesses lugares, bem como de constituir um novo lugar no ambiente virtual onde estão inseridos, como veremos adiante.

Belo Horizonte e a região da Lagoinha por seus moradores

Ao analisar a intervenção do Projeto Moradores em diversas localidades, conforme evidenciado nos registros do site, observamos uma abordagem semelhante em outras localidades onde interviu. Em espaços públicos significativos para cada localidade, uma tenda é instalada para fotografar e entrevistar moradores indicados ou aqueles que desejam voluntariamente compartilhar seus depoimentos. O resultado final, composto de um documentário e uma exposição fotográfica de retratos em grande escala, é exibido em locais como praças, ruas ou pontos inusitados intimamente relacionados ao lugar, marcando-o com os rostos daqueles que contribuem para sua história. No âmbito virtual, são compartilhadas imagens do processo de produção, da exposição e das intervenções, além do documentário e da galeria de retratos. No documentário específico sobre o Projeto Moradores – Lagoinha, em Belo Horizonte, é perceptível que ele se inicia com um depoimento de um morador do bairro, embora não identificado:

Amar a Lagoinha é você dividir a Lagoinha. Você confluir, compartilhar. Mas tem que vir de dentro, você não pode permitir que a Lagoinha seja mais capturada, arrancada aos pedaços, dilacerada, então amar a Lagoinha é você compartilhar, porque quando você compartilha, você vai saber o que está cedendo e garantindo o protagonismo seu, o protagonismo da Lagoinha

(Projeto Moradores – Lagoinha, 2021a apud Amormino, 2023AMORMINO, Luciana. A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira. 2023. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2023., p. 134).

Essa fala traduz, em certa medida, as transformações pelas quais a região da Lagoinha veio passando ao longo do tempo, mas relembra especialmente as intervenções urbanas viárias realizadas na década de 1980. Essa declaração sugere a existência de uma memória formada com base em narrativas que moldam a identidade da região. Essa identidade parece ser historicamente marcada por mudanças frequentes na paisagem urbana, mas também expressa um desejo de futuro para a Lagoinha, aspirando a compartilhar a localidade sem que ela seja mais “capturada, arrancada aos pedaços, dilacerada” (Projeto Moradores – Lagoinha, 2021PROJETO MORADORES - LAGOINHA. Disponível em: https://projetomoradores.com.br/project/moradores-lagoinha-mg-historias/. Acesso em: 15 set. 2021a.
https://projetomoradores.com.br/project/...
). Como apontamos em Amormino (2023)AMORMINO, Luciana. A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira. 2023. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2023., “trata-se de um dizer sobre o lugar que aciona um passado traumático recorrente em outras narrativas sobre a região, [...], que, embora interfira nos modos de ser do presente, não se quer que repita no futuro” (Amormino, 2023AMORMINO, Luciana. A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira. 2023. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2023., p. 134). Uma condição marcadamente abigarrada, nos termos de Rivera Cusicanqui (2015RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Sociología de la imagen: ensayos. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Tinta Limón, 2015.; 2018)RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Un mundo ch’xi es posible: Ensayos desde un presente en crisis. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018..

Enquanto a voz em off nos narra a perspectiva da Lagoinha, somos imersos em imagens de pessoas caminhando de costas por diferentes pontos da região, destacando o movimento das ruas e as construções ao redor. O documentário então nos apresenta uma série de moradores que compartilham histórias entrelaçadas sobre a localidade e sua conexão com Belo Horizonte. Os depoimentos ressaltam o papel crucial da Lagoinha na história da capital mineira, enfatizando seu histórico de acolhimento a imigrantes de diversas nacionalidades, incluindo italianos, sírios e árabes, que se estabeleceram ali e contribuíram para a formação de diferentes estilos de vida, influenciando significativamente o comércio local. Além disso, ressaltam que a Pedreira Prado Lopes foi fundamental na construção da cidade na época de sua fundação, conectando-se ao fato de que uma das principais ruas da área, a Itapecerica, termo tupi, significa “pedras que rolam”, em referência às pedras extraídas para a construção da cidade. Posteriormente, os relatos de alguns moradores sobre o início da Lagoinha são intercalados, proporcionando uma visão plural e diversificada das origens de suas famílias. Essa abordagem destaca a multiplicidade de vozes na região, evidenciando a riqueza da comunidade local.

Em seguida, o documentário apresenta trechos de depoimentos intercalados com sambas entoados por moradores de diferentes idades, formando um percurso narrativo no qual as músicas atuam como catalisadoras de temporalidades diversas.

Estas acrescentam diferentes olhares sobre os lugares que ultrapassaram gerações e conformam novos testemunhos e outras camadas de memória, especialmente daqueles que vivenciaram a época áurea da boemia ou dela ouviram falar, revividas em suas composições. Tais canções, não necessariamente conhecidas por todos os que assistem ao documentário, resistem ao tempo ao serem mobilizadas por ele. Tornam-se mais um registro das memórias da Lagoinha, sendo atualizadas a cada vez que são acionadas. Além disso, configuram-se como referência para se pensar o lugar, mesmo por aqueles que não viveram os episódios que elas abordam, mas que acabam incorporando-os às suas experiências, tornando-as “memórias por tabela” (Pollak, 1992POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992.), que conectam distintas gerações.

(Amormino, 2023AMORMINO, Luciana. A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira. 2023. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2023., p. 135).

Essas conexões estabelecem vínculos entre diferentes gerações, períodos e espaços. Um sentimento de nostalgia permeia essas interações, enquanto o tom predominante é de celebração do glorioso passado da Lagoinha como epicentro da boemia em Belo Horizonte, um lugar onde viveram figuras que alcançaram status de personalidades reconhecidas para além dos limites da cidade. Entre essas figuras está a lendária travesti Cintura Fina, eternizada no romance “Hilda Furacão”, de Roberto Drummond. As músicas dessa época se entrelaçam e se somam aos olhares, expressões e vozes do presente, que as entoam com um sentimento de orgulho:

Pedreira querida
Querida Pedreira
Terra de gente boa
Rainha que já não tem coroa
Esta saudosa Pedreira
já foi a nossa querida Mangueira.
Rola minha lágrima sentida
a falta que ela me faz na avenida.
(Projeto Moradores – Lagoinha, 2021a apud Amormino, 2023AMORMINO, Luciana. A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira. 2023. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2023., p. 135).

Nessa passagem, a execução dos sambas pelos depoentes se conjuga a closes de rostos de outros moradores, que nem sempre têm seu depoimento inserido no documentário, mas que marcam com seu olhar o pertencimento à Lagoinha. Na sequência de canções sobre a Pedreira Prado Lopes, são inseridas falas que dizem respeito àquela localidade, evidenciando a simplicidade dos hábitos daquele lugar.

Entre as referências da localidade, destaca-se o conjunto habitacional do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI), que atua como um mobilizador de memórias sobre a região, em especial relacionadas ao futebol e aos jogos de várzea que nele foram realizados. Muitos abordam esse tema frequentemente ancorando-se em elementos tangíveis, como fotografias, que são exibidas diante da câmera e servem como um meio para preservar, ilustrar ou comprovar suas memórias. Em seguida, é explorada a atmosfera boêmia da região, especialmente associada à icônica Praça Vaz de Melo, que foi demolida em uma das diversas intervenções viárias que a região enfrentou ao longo do tempo e que é tema de vários sambas sobre a Lagoinha. Além disso, são mencionados os famosos bares Copo Lagoinha e Lagoinha Sambista, que se destacam como símbolos dessa cultura local.

Nesta seção específica do documentário, dois moradores alternam seus depoimentos, discutindo diferentes interpretações do nome Lagoinha. Embora não sejam identificados nominalmente como os outros entrevistados, é possível inferir, pelo conteúdo de suas falas, que se trata do filho do promotor do Copo Lagoinha — apelido dado ao copo americano, amplamente utilizado nos bares da capital mineira — e do Lagoinha Sambista, que é mostrado no vídeo usando uma faixa de uma escola de samba. Ambos desempenham papéis significativos como referências que reforçam a identidade boêmia da região, sendo sintetizados nas figuras do sambista e do vendedor do copo, amplamente utilizado em botecos e bares na capital mineira.

Continuando a narrativa, o documentário também focaliza a Pedreira Prado Lopes, ressaltando a profunda influência do samba e dos carnavais na região. Essas duas atividades se tornaram emblemáticas não apenas pela presença marcante do renomado sambista Mestre Conga, mas também pelo estabelecimento de uma das primeiras escolas de samba de Belo Horizonte no local, uma iniciativa liderada por Popó e Chuchu, figuras que foram imortalizadas em canções que celebram a Lagoinha. O documentário chega ao seu desfecho com um hino que se transforma em um lamento pela destruição da Praça Vaz de Melo:

Adeus, Lagoinha, adeus
Estão levando o que resta de mim
Dizem que é força do progresso
Um minuto eu peço
Para ver seu fim.
(Projeto Moradores - Lagoinha, 2021a apud Amormino, 2023AMORMINO, Luciana. A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira. 2023. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2023., p. 140).

Como apontamos em Amormino (2023)AMORMINO, Luciana. A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira. 2023. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2023.,

No período em que o samba foi escrito, nos idos dos anos 1980, a região passava por novas intervenções do poder público, que culminaram na destruição da Praça Vaz de Melo, uma das referências da vida noturna pujante do bairro. Daí o lamento que a canção traz em relação ao progresso, contra o qual quase nada se pode fazer a não ser pedir um minuto para uma despedida, como propõe o samba

(Amormino, 2023AMORMINO, Luciana. A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira. 2023. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2023., p. 140).

Embora se encerre com esse lamento pela perda de um ícone da boemia da Lagoinha em razão de desastrosas intervenções, uma sina que se repete há anos, essa identidade sobrevive nas memórias de seus moradores, o que parece ser o traço que se deseja ressaltar para a região, quer pelo poder público, que tem buscado fomentar projetos como o Moradores e outras iniciativas culturais e gastronômicas na região, quer por aqueles que fazem parte de seu dia a dia. Apesar de ter sido questionada em alguns momentos como uma referência de baixa boemia, a região agora resgata essa identidade como um elemento de valor, um patrimônio a ser não apenas preservado, mas mantido no cotidiano vibrante da comunidade. Além disso, o documentário destaca, em certa medida, os próprios moradores como parte desse patrimônio, representando aquilo que permanece ao longo do tempo. A Lagoinha, portanto, continua viva em suas memórias. Embora já não seja mais a Lagoinha boêmia personificada pela Praça Vaz de Melo, também não se busca transformá-la na Lagoinha das demolições, nem tampouco na Lagoinha associada à violência e à criminalidade.

Portanto, permeado por diversas temporalidades, o documentário da etapa Lagoinha do Projeto Moradores revela não apenas o que a região já não é mais — algo que persiste como memória nas músicas, depoimentos e fotografias antigas — mas também o que ela aspira ser na perspectiva de seus moradores e das autoridades públicas. Essa visão é endossada pelas escolhas feitas ao longo do processo de realização do projeto, destacando a narrativa que busca moldar a identidade futura da Lagoinha.

No documentário do Projeto Moradores, etapa Belo Horizonte, um aspecto distintivo em relação ao da Lagoinha é a presença de depoimentos que exploram o significado da cidade, buscando uma compreensão mais abrangente. Os testemunhos enfatizam a ideia de que a cidade é moldada por seus habitantes e pelos vínculos entre eles, como podemos observar nos trechos seguintes do documentário, nos quais as falas são intercaladas:

Cada coisa da cidade que vai destruindo só ficam na memória das pessoas ./ [...] Os moradores é que são as cidades. Os prédios que existem são resultado do trabalho dos moradores. As ruas, a atmosfera da cidade. As paixões de cada um, a interação da gente com tudo, as nossas raivas em relação à política, a tudo, é diretamente a ver com eu morador e eu com os moradores, é o sentimento, os objetivos, os anseios, tudo isso é que forma a cidade. / Eu costumo falar que as pessoas nascem nas cidades e as cidades nascem nas pessoas.

(Projeto Moradores – Belo Horizonte, 2021bPROJETO MORADORES - BELO HORIZONTE. Disponível em: https://projetomoradores.com.br/project/galeria-de-moradores-belo-horizonte/. Acesso em: 15 set. 2021b.
https://projetomoradores.com.br/project/...
apud Amormino, 2023AMORMINO, Luciana. A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira. 2023. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2023., p. 141).

Esse entrelaçamento de vozes reforça a própria concepção do Projeto Moradores em relação ao patrimônio de Belo Horizonte: seus habitantes. Por meio desse projeto, esses indivíduos contribuem para uma experiência que é simultaneamente singular e coletiva, integrando-se a um bem comum que o próprio projeto ajuda a emergir. Em última análise, na diversidade de discursos sobre a cidade, são destacados diferentes tempos e espaços, territórios simbólicos e afetivos que não se alinham necessariamente, mas coexistem de maneira complexa e abigarrada, representando modos distintos de ser e viver na cidade.

Sempre registrados em preto em branco, quer na galeria de retratos, quer no documentário, os moradores que, assim como na etapa Lagoinha, não são identificados nominalmente, são por vezes reconhecíveis por serem pessoas públicas. Cada indivíduo apresenta suas próprias faces e narrativas, frequentemente relacionando-as a objetos como uma fotografia, uma mala, uma faixa, uma peça de roupa — elementos que servem como prova da autenticidade de suas histórias. Esses itens se assemelham a vestígios de diferentes épocas (Ricoeur, 2010RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Tomo III. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.), que persistem ao longo do tempo e desempenham o papel de desencadeadores de memórias, da mesma forma que ocorre na etapa anterior do documentário, focada na Lagoinha.

O documentário começa explorando as histórias de vida dos moradores, destacando informações como o local de nascimento ou a chegada à cidade, evidenciando a diversidade de suas origens. Essa abordagem reforça a realidade de Belo Horizonte como uma cidade formada pela migração de pessoas do interior de Minas Gerais, bem como de outros estados e países. Esse aspecto, que é uma parte fundamental da identidade da cidade, também se manifesta na etapa Lagoinha do Projeto Moradores.

Um depoimento significativo destaca o senso de pertencimento à cidade, relacionado a uma lembrança da infância do entrevistado. Nesse período, ele morava em uma casa de pau-a-pique na Favela do Barroca, localizada onde hoje está situada a Assembleia Legislativa de Minas Gerais (Alemg), no bairro Santo Agostinho, uma área nobre da zona Centro-Sul de Belo Horizonte. Durante a infância do depoente, aquela localidade não contava com água encanada ou energia elétrica. Apesar disso, a Favela do Barroca é lembrada com saudade e certa nostalgia, como memória de um tempo melhor. Era, ainda, o local onde membros do Exército faziam seus treinamentos, sobre o que o depoente comenta: “E eu perguntei a ele [Tenente Marceles] o seguinte: ‘o que é patriota?’ Ele falou: ‘A pátria é o lugar onde você vive, sua mãe vive, seu amigo vive’. E eu falei: ‘Então a Barroca é a minha pátria’. (Projeto Moradores – Belo Horizonte, 2021PROJETO MORADORES - LAGOINHA. Disponível em: https://projetomoradores.com.br/project/moradores-lagoinha-mg-historias/. Acesso em: 15 set. 2021a.
https://projetomoradores.com.br/project/...
apud Amormino, 2023AMORMINO, Luciana. A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira. 2023. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2023., p. 145).

Aqui, como apontamos em Amormino (2023)AMORMINO, Luciana. A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira. 2023. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2023., o entendimento de patriotismo vincula-se a determinado território que não é a pátria, mas a Favela do Barroca, lugar onde ele cresceu. “Sua pátria é o território que sustenta suas relações cotidianas e seus afetos, ou seja, remete à comunidade onde criou seus vínculos. Trata-se de um território que alcança o micro, a concretude das experiências cotidianas” (Amormino, 2023AMORMINO, Luciana. A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira. 2023. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2023., p. 145).

O cotidiano e as relações do dia a dia permeiam o documentário, trazendo memórias dos lugares frequentados pelos moradores. Entre eles, destaca-se a Feira Hippie, que costumava ocorrer na Alameda Liberdade, na Praça da Liberdade (curiosamente, onde parte dos depoimentos foi gravada), e o Parque Municipal Américo Renné Giannetti. Além disso, as lembranças incluem as bicas utilizadas para lavar roupas, a participação na manifestação pelas Diretas Já, e os cinemas de rua, muitos dos quais já extintos, sendo também abordados nos depoimentos sobre a Lagoinha, entre outros aspectos do cotidiano. Essas narrativas de memória evocam uma Belo Horizonte de épocas passadas, uma cidade que existe apenas na lembrança de cada indivíduo, carregando consigo um tom nostálgico de um passado idealizado, ao qual muitos desejariam retornar ou do qual sentem saudade. Essa atmosfera também é refletida na trilha sonora do documentário, especialmente nos momentos em que os moradores tocam instrumentos e entoam canções que abordam a cidade. Esses testemunhos resistem ao tempo, mantendo viva a memória coletiva da comunidade sobre a Belo Horizonte de outrora.

É interessante observar que, no documentário da etapa de Belo Horizonte, há um maior tempo de fala dos moradores, uma abordagem menos frenética que na etapa Lagoinha, que permite adentrar nas histórias de cada morador com um pouco mais de tempo. Além disso, diferencia-se também em relação à etapa Lagoinha na ênfase às expressões dos depoentes que, no caso da Lagoinha, vêm intercaladas por imagens de ruas, fachadas e lugares emblemáticos da região, diferentemente da etapa Belo Horizonte, que só traz as faces, um recurso expressivo característico do projeto. No encerramento, o documentário destaca depoimentos que revelam uma relação peculiar com a capital mineira e o desejo de contribuir para a construção de sua história. O desfecho apresenta uma história contada por um renomado contador de histórias da cidade. Nessa narrativa, ele reproduz um diálogo imaginário com uma audiência do futuro, projetando uma cidade que, daqui a 50 anos, já não é mais considerada habitável.

Analisando os dois documentários, podemos observar que, enquanto na etapa Lagoinha o objetivo parece ser reforçar a história específica daquela região, destacando sua continuidade e resistência, apesar das constantes transformações, na etapa dedicada a Belo Horizonte, busca-se alcançar uma compreensão mais ampla sobre a cidade, explorando o que ela representa e o que significa ser um cidadão belo-horizontino. Isso é feito por meio da busca pelas narrativas de memória dos moradores, pessoas comuns que surgem em rápidos vislumbres de rostos e vozes intercaladas por músicas, com Belo Horizonte e a Lagoinha desempenhando papéis de personagens principais desse relato.

Para além dos documentários, a exposição de seus retratos em grande escala num local público de grande circulação evidencia seu vínculo àqueles territórios, sendo, posteriormente, reterritorializada no ambiente virtual por meio da galeria de retratos presente no site do projeto e em seu perfil no Instagram, como detalharemos a seguir.

A emergência de territórios afetivos e simbólicos

Ao examinar o Projeto Moradores, tanto em relação ao documentário quanto à galeria de retratos, surge uma oportunidade de refletir sobre a interação entre memória e espaço, ou mais especificamente, entre memória e território. Essa noção transcende a dimensão material do espaço, estendendo-se ao terreno afetivo e simbólico. Essa abordagem revela-se poderosa ao considerar os deslocamentos efetuados pelo projeto nos lugares por onde passa, bem como em relação à própria memória de Belo Horizonte e da Lagoinha.

O geógrafo humano brasileiro Haesbaert (2020)HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 12. edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020. critica o uso excessivo e indiscriminado do termo território, argumentando que muitas vezes é empregado como sinônimo de espaço e espacialidade, ou como uma simples dimensão material da realidade. Em sua visão, o território incorpora uma dimensão simbólica que não pode ser negligenciada. Essa perspectiva está alinhada com o entendimento de Santos (2001)SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001., que também atribui ao território uma dimensão cultural. Santos corrobora a ideia de que o território não é algo neutro nem uma entidade passiva, mas sim o resultado de um contínuo processo de produção e disputa. Portanto, o território é entendido como um instrumento no exercício das diferenças de poder, refletindo e moldando as relações de poder na sociedade. Na análise proposta por Santos (2001)SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001., duas forças principais moldam o espaço: as verticalidades e as horizontalidades. As verticalidades referem-se a um conjunto de pontos que formam um espaço de fluxos, caracterizado pela fluidez e velocidade em um plano vertical. Esse espaço é resultado de forças dominantes e hegemônicas que atuam de maneira predominante nesse sentido. Por outro lado, as horizontalidades operam como um espaço mais comum, englobando todos os agentes envolvidos e abarcando tempos tanto rápidos quanto lentos. Nesse contexto, observa-se a existência de uma solidariedade orgânica, formada por agentes que atuam sobre um território compartilhado.

Segundo Santos (2001)SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001., nas verticalidades existe um relógio único, implicando uma temporalidade uniforme, ao passo que as horizontalidades possibilitam a coexistência de diversas temporalidades. De acordo com essa perspectiva, o espaço é caracterizado pela interação entre horizontalidades e verticalidades, não de maneira dicotômica, mas sim complementar.

Nesse sentido, o geógrafo brasileiro apresenta uma abordagem humanista do espaço, reafirmando a presença da heterogeneidade criativa em sua constituição. Entendemos, portanto, a partir de Santos (2001)SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001., que os territórios, especialmente os que constituem o espaço urbano, são marcados pela constante tensão entre estas duas forças — verticalidades e horizontalidades — de modo que elas coexistem em uma fricção permanente, num movimento concomitante. Tal tensão reflete-se também nas iniciativas de memória com as quais nos deparamos, a partir das quais, como temos visto, podemos observar um constante movimento de constituição do tempo e do espaço via narrativa. Um movimento no qual atuam diferentes forças por vezes contraditórias e conflitivas, mas constituintes e constituidoras das memórias de determinado lugar

(Amormino, 2023AMORMINO, Luciana. A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira. 2023. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2023., p. 149).

Segundo Santos (2001)SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001., considerando-o mais como um abrigo do que como um recurso, e, seguindo o pensamento de Jean Gottman, o território está constantemente em busca de significado e, de maneira similar à sociedade, desempenha uma função reflexiva. Nesse contexto, o território não se limita apenas a ser o local de ações pragmáticas, mas também incorpora uma dimensão de vida, uma carga emocional que permite que os valores desempenhem um papel significativo (Santos, 2001SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001., p. 111).

Para Santos (2001)SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001., o território é uma âncora, um ponto de referência fundamental para compreender o mundo, pois incorpora um conjunto de possibilidades e temporalidades diversas. Ele argumenta que a cidade, ao se preparar para enfrentar seu próprio tempo a partir de seu espaço, gera e renova uma cultura que reflete as características tanto temporais quanto espaciais. Essa cultura urbana pode estar em conformidade ou em oposição aos interesses dos donos do tempo, que simultaneamente exercem controle sobre o espaço. Mais do que um local delimitado, o território, segundo Santos, incorpora uma dimensão de movimento, heterogeneidade e disputa entre verticalidades e horizontalidades. Em outras palavras, refere-se a um lugar de articulação de modos de existência, onde fluxos tanto verticais quanto horizontais se materializam. Nessa perspectiva, a concepção de território o caracteriza como um abrigo de vivências não homogêneas, uma heterogeneidade criativa que inclui as diferenças sem apaziguá-las. Portanto, é uma esfera de convivência cotidiana do heterogêneo que se estabelece em um comum. Essa condição também incorpora uma dimensão de abigarramento, nos termos de Rivera Cusicanqui (2015RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Sociología de la imagen: ensayos. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Tinta Limón, 2015.; 2018)RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Un mundo ch’xi es posible: Ensayos desde un presente en crisis. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018.. Conforme Amormino (2023)AMORMINO, Luciana. A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira. 2023. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2023.,

Levando em conta o agenciamento institucional do Projeto Moradores, uma vez que este é realizado com fomento ou parceria do poder público e atua conforme uma metodologia pré-definida, podemos considerá-lo uma verticalidade. Por outro lado, ao registrar os depoimentos e divulgá-los em um documentário que é alinhavado em função da instituição de um sentido de lugar pré-determinado, notamos que há algo que escapa a essa força: podemos considerar os depoimentos como horizontalidades, a partir dos quais emergem diferentes e, por vezes, contraditórios territórios, calcados no vínculo à experiência de cada morador. O que vemos, portanto, no Projeto Moradores, é tanto a dinâmica de constituição social do espaço quanto a emergência de territórios diversos a partir da relação com seus moradores. Uma relação imbricada entre verticalidades e horizontalidades que se diferenciam, mas constituem-se mutuamente

(Amormino, 2023AMORMINO, Luciana. A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira. 2023. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2023., p. 149-150).

Dessa forma, ao atualizar as memórias dos moradores, percebe-se a instituição de territórios que, embora compartilhados, se manifestam de maneira singular no vínculo à experiência de cada depoente, sendo moldados no tensionamento de diferentes temporalidades evocadas em seus relatos. No presente, é possível encontrar tanto lamentos pelo que a Lagoinha perdeu quanto a latência do que ela ainda pode se tornar. Na etapa dedicada a Belo Horizonte, observamos narrativas nostálgicas que destacam não apenas o período de sua construção e os primeiros anos, mas também suas transformações ao longo do tempo e a vitalidade de uma cidade que, nos dias atuais, parece ter ultrapassado as barreiras de suas montanhas por meio de seus personagens ilustres. Nesse contexto, considerando que o território é o palco onde se desenrolam e se entrelaçam essas dinâmicas temporais, e que é moldado pelas interações entre horizontalidades e verticalidades, incorporando uma dimensão cultural e simbólica que vai além do aspecto político ou material, podemos argumentar que ele está intrinsecamente ligado à identidade e ao sentimento de pertencimento, conforme discutem Jöel Bonnemaison e Luc Cambrèzy (1996)BONNEMAISON, Joël; CAMBRÈZY, Luc. Le Lien territorial: entre frontières et identités. Géographie et Cultures. n. 20. Paris: L´Harmattan, 1996..

No entanto, Haesbaert (2020)HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 12. edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020. salienta que o termo territorialidade tem sido mais frequentemente associado à dimensão simbólica do que ao próprio conceito de território. Apesar dessa distinção, compreendemos que a noção de território abarca não apenas sua esfera material, política e econômica, mas também a cultural, como enfatizado por Santos (2001)SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.. Isso nos permite conceber o território como algo heterogêneo e em constante processo de formação, um espaço que abriga significados compartilhados e um senso de pertencimento. Portanto, ele é um espaço comum onde emerge uma criativa heterogeneidade (Santos, 2001SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.), incorporando também uma dimensão de movimento, atravessado por diversas temporalidades coexistentes. A noção de abigarrado, proposta por Rivera Cusicanqui (2015RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Sociología de la imagen: ensayos. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Tinta Limón, 2015.; 2018)RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Un mundo ch’xi es posible: Ensayos desde un presente en crisis. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018., nos permite vislumbrar essa complexidade ao refletir sobre a relação da cidade com suas memórias, reconhecendo a diversidade e as camadas históricas que a constituem.

Considerações finais

No Projeto Moradores, podemos observar a emergência de diferentes territórios simbólicos e afetivos, cada um expressando modos distintos de atribuir significado ao vínculo com esses territórios, fundamentados nas experiências individuais de cada morador, mesmo que o ponto de partida para os relatos seja o mesmo lugar. Além disso, ao considerar a metodologia do projeto, podemos ampliar nossa compreensão do território. Sujeito à efemeridade da intervenção, que se manifesta tanto na gravação dos depoimentos quanto na exposição temporária em locais públicos, o território onde o projeto é realizado acaba por ser reterritorializado em um espaço diferente, que é o próprio documentário. Este, junto com os retratos expostos em galerias, passa a compor uma nova representação da cidade, região ou bairro, agora no ambiente virtual, expandindo assim a noção de território para além de sua dimensão física e incorporando também sua dimensão digital e simbólica.

O território afetivo se entrelaça com o território físico, mas o transcende, pois, ao estar enraizado no morador, visto como seu maior patrimônio, ele se estende para além de seus limites físicos. Nas narrativas de memória, as fronteiras territoriais são facilmente transpostas pela experiência e pelos afetos. Quando transferidas para o espaço virtual, seja em um site ou no perfil do Instagram, as faces dos moradores — poderoso recurso expressivo tanto no documentário quanto na galeria de retratos — são desterritorializadas e reterritorializadas, temporariamente dissociadas de seu território de origem. Juntas, elas compõem um novo território que se estabelece como memória no efêmero espaço virtual. Essas localidades, captadas pelos semblantes e pelas narrativas de seus moradores, também se tornam uma memória nesse território configurado pelo espaço virtual, em um processo de reterritorialização que narra a própria essência de Belo Horizonte.

A relação entre desterritorialização e reterritorialização é concebida aqui como duas instâncias que se influenciam mutuamente, conforme a abordagem de Haesbaert (2020)HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 12. edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.. Segundo ele, a virtualização é uma dinâmica presente na reterritorialização, especialmente em espaços virtuais, contribuindo para a construção de novos territórios. Nesse contexto, o território está associado ao movimento, uma concepção que Haesbaert (2020)HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 12. edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020. retoma de Gottman, agregando à ideia de território como um compartimento geográfico uma dimensão mais idealista. Essa perspectiva busca compreender os territórios formados pela interação entre sistemas de movimento e sistemas de resistência. Assim, a proposta de Haesbaert (2020)HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 12. edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020. é pensar o território como um híbrido,

[...] entre a sociedade e a natureza, entre política, economia e cultura e entre materialidade e ‘idealidade’, numa complexa interação tempo-espaço, como nos induzem a pensar geógrafos como Jean Gottman e Milton Santos, na indissociação entre movimento e (relativa) estabilidade — recebam estes os nomes de fixos e fluxos, circulação e ‘iconografias’, ou o que melhor nos aprouver. Tendo como pano de fundo esta noção ‘híbrida’ (e, portanto, múltipla, nunca indiferenciada) de espaço geográfico, o território pode ser concebido a partir da imbricação de múltiplas relações de poder, do poder mais material das relações econômico-políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais estritamente cultural

(Haesbaert, 2020HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 12. edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020., p. 79).

Essa compreensão do território pode ser relacionada à perspectiva relacional do espaço proposta por Lefebvre (2000)LEFEBVRE, Henri. A produção do espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins. Do original: La production de l’espace. 4. éd. Paris: Éditions Anthropos, 2000. e aos pensamentos de Santos (2001)SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. e Rivera Cusicanqui (2015RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Sociología de la imagen: ensayos. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Tinta Limón, 2015.; 2018)RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Un mundo ch’xi es posible: Ensayos desde un presente en crisis. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018., conforme discutido anteriormente. Dessa forma, podemos enxergar o território como parte de relações sociais e históricas, uma esfera permeada por conflitos. Ele se configura como um espaço comum que não busca apaziguar diferenças, mas, ao contrário, incorpora a dinâmica de diversas e plurais interações. “Justamente por ser relacional, o território é também movimento, fluidez, interconexão — em síntese e num sentido mais amplo, temporalidade” (Haesbaert, 2020HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 12. edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020., p. 82).

Diante disso, a proposta aqui é considerar a memória como um movimento que emerge entre fissuras e brechas, permanecendo em constante reconstrução e afetação, conforme argumentado por Amormino (2023)AMORMINO, Luciana. A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira. 2023. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2023.. Nesse contexto, a narrativa pode ser vista como uma forma de estabilizar ou desacelerar esse movimento, revelando reiterações, conflitos com outras narrativas, assim como esquecimentos e invisibilidades, quando se trata de narrativas da memória. Portanto, conceber a memória como movimento implica compreender a nós mesmos como parte dos fluxos que contribuem para a contínua formação tanto de nossa identidade quanto das coisas do mundo: nossas memórias, nosso espaço e nosso tempo. Esse entendimento destaca a ligação da memória com a identidade, mas também ressalta sua plasticidade, que envolve escolhas conscientes ou não relacionadas aos diversos modos de atribuir sentido aos territórios (Amormino, 2023AMORMINO, Luciana. A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira. 2023. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2023.).

Em relação ao Projeto Moradores, observamos a reiteração de relatos sobre as obras viárias que modificaram a Lagoinha, gerando uma descaracterização que, paradoxalmente, foi incorporada à identidade local. A boemia surge nas narrativas com nuances ambíguas, sendo ora criticada como um aspecto negativo da região, ora enaltecida como um diferencial e patrimônio a ser valorizado, revelando uma relação peculiar com a identidade proposta pelo projeto. A presença da Pedreira Prado Lopes, embora considerada o berço de Belo Horizonte, sempre foi mal vista. A dinâmica da vida cotidiana, com seus personagens, lideranças, desafios e peculiaridades, também é destacada. Na etapa Belo Horizonte, mesmo ao abordar um passado nostálgico, a cidade atual e futura se faz presente. Dessa forma, compreendemos que o projeto busca enfatizar uma identidade narrativa para a localidade, porém, outras identidades emergem nas falas dos moradores. Entre mudanças e permanências, são construídos territórios simbólicos e afetivos, instituídos pelo projeto por meio das histórias narradas pelos moradores.

Assim, ao estabelecer um novo território no espaço virtual, o Projeto Moradores contribui para fortalecer sua perspectiva relacional, composta por indivíduos que se consideram parte de um grupo comum vinculado a um território simbólico e afetivo. Esse território se fundamenta nos retratos expostos na galeria e nas intermitências de memórias expressas pelos moradores no documentário. Ao se reterritorializar no ambiente virtual, surge uma Lagoinha e uma Belo Horizonte imaginadas, em que se torna forte o sentimento de pertencimento.

Nos dois documentários, as experiências e histórias compartilhadas não são detalhadas, mas apresentadas em pequenos trechos conectados, contribuindo para formar a narrativa delineada pelo projeto. Elas compõem um todo de narrativas fragmentadas, experiências selecionadas que se entrelaçam principalmente por meio dos rostos dos moradores e dos territórios que compartilham. Entre flashes de lembranças e relatos nostálgicos sobre o passado, o presente se manifesta nas expressões sorridentes ou apreensivas, nas imagens das ruas em movimento, nas fachadas marcadas pelo tempo, e nas fotos desbotadas que alguns seguram nas mãos. Partindo de experiências individuais ou corporificadas, essas histórias colidem com uma coletividade, em uma proposta também política, que é alcançada por meio de variações imaginativas (Ricoeur, 2010RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Tomo III. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.) sobre o que foi, o que é, e o que cada lugar pode ser. Narrar a si mesmo e aos outros, reconhecer-se como parte permanente diante das mudanças no bairro ou na cidade, pressupõe um exercício de imaginação entendido como gesto político, por meio do qual o passado se encontra com o presente e antecipa o futuro. Mais do que revisitado, o passado parece ser reafirmado no presente (Amormino, 2023AMORMINO, Luciana. A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira. 2023. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2023.). Assim, as diversas temporalidades coexistem em constante fricção com as espacialidades, formando um mosaico heterogêneo: a cidade, a região, o bairro, a rua, o documentário, o ambiente virtual. Esses lugares ressoam com memórias do que foram no passado, ao mesmo tempo que registram a dinâmica atual do bairro e as aspirações para um futuro desejado. As faces dos moradores também refletem essas múltiplas temporalidades, cada uma incorporando uma narrativa única e singular sobre suas experiências de vida e as condições específicas de existência nesses espaços construídos narrativamente com base em suas memórias individuais. São narrativas que oscilam entre a lembrança e o esquecimento, entre o passado, o presente e o futuro.

Referências

  • AMORMINO, Luciana. A memória como gesto: artesanias temporais em uma cidade-trapeira. 2023. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2023.
  • AMORMINO, Luciana. Metáforas espaciais em reflexões sobre temporalidades a partir de Koselleck e Rivera Cusicanqui. In: AMORMINO, L.; ANDRADE, R. Experiências culturais do tempo: Espaço-tempo, tradições, narrativas. Belo Horizonte: Selo PPGCOM/UFMG, 2020.
  • BH EVENTOS. BH recebe o projeto “Moradores - a Humanidade do Patrimônio Histórico”. Disponível em: https://www.bheventos.com.br/noticia/06-25-2015-bh-recebe-o-projeto-moradores-a-humanidade-do-patrimonio-historico Acesso em: 21 dez. 2022.
    » https://www.bheventos.com.br/noticia/06-25-2015-bh-recebe-o-projeto-moradores-a-humanidade-do-patrimonio-historico
  • BONNEMAISON, Joël; CAMBRÈZY, Luc. Le Lien territorial: entre frontières et identités. Géographie et Cultures n. 20. Paris: L´Harmattan, 1996.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Nov 2023
  • Aceito
    01 Mar 2024
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