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A importância das redes migratórias e sociais de solidariedade na imigração haitiana para São Paulo

La importancia de las redes migratorias y sociales solidarias en la inmigración haitiana a São Paulo

Resumo

Este artigo tem por objetivo analisar a importância das redes migratórias e sociais de solidariedade na imigração haitiana para a metrópole de São Paulo. Serão abordadas as formas de articulação dessas redes, as informações que são disseminadas por elas e quais são as relações de poder que se desenvolvem durante o processo de migração. Além do aporte teórico utilizado, a metodologia aplicada pautou-se em dados quantitativos obtidos da Polícia Federal e do Observatório das Migrações (OBMigra) e, na análise de entrevistas, com roteiro semi-estruturado, realizadas com 35 haitianos entre abril de 2017 e junho de 2018 no bairro do Glicério, em São Paulo. Com base nos dados obtidos e analisados entende-se que, geralmente, as redes são benéficas, mas podem também apresentar aspectos negativos no processo migratório.

Palavras-chave:
Imigração haitiana; Rede migratória; Rede social de solidariedade

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar la importancia de las redes migratorias y sociales solidarias en la inmigración haitiana a la metrópolis de São Paulo. Se abordarán las formas de articulación de estas redes, la información que es difundida por ellas y cuáles son las relaciones de poder que se desarrollan durante el proceso migratorio. Además del referencial teórico utilizado, la metodología aplicada se basó en datos cuantitativos de la Policía Federal y del Observatorio de Migraciones (OBMigra) e, en el análisis de entrevistas, con guión semiestructurado, realizadas con 35 haitianos entre abril de 2017 y junio de 2018 en el barrio Glicério, en São Paulo. De los datos obtenidos y analizados se desprende que las redes suelen ser beneficiosas, pero también pueden tener aspectos negativos en el proceso migratorio.

Palabras clave:
Inmigración haitiana; Red migratoria; Red social solidaria

Abstract

This article aims to analyze the importance of migratory and solidarity social networks in Haitian immigration to the metropolis of São Paulo. How these networks are articulated, what information is disseminated and the relations of power that are developed during the migration process will be adressed. In addition to the theoretical framework used, the applied methodology was based on quantitative data from the Federal Police and the Migration Observatory (OBMigra) and, the analysis of interviews, with a semi-structured script, carried out with 35 Haitians between April 2017 and June 2018 in the Glicério neighborhood, in São Paulo. Based on the data obtained and analyzed, it can be seen that networks are generally beneficial, but they can also have negative aspects in the migration process.

Keywords:
Haitian immigration; Migratory network; Solidarity social networks

Introdução

A década de 2010 foi marcada por mudanças significativas nos fluxos migratórios globais. Desastres ambientais, maiores restrições de entrada impostas pelos países desenvolvidos do hemisfério Norte e os reflexos da crise econômica de 2007/2008 alteraram, em parte, o destino dos migrantes em busca de novas oportunidades de vida. Muitos ainda almejam chegar em países europeus ou nos EUA e Canadá, mas desenham novas rotas no mapa da mobilidade humana e intensificam as migrações no eixo Sul-Sul (Pachi, 2019PACHI, P. A precarização na base da mundialização contemporânea: a imigração haitiana na metrópole de São Paulo. 2019. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.).

Com relação ao aumento do fluxo migratório nesse eixo, os dados do relatório OBMigra de 2021 apontam que as cinco nacionalidades de maior presença em território nacional são de países provenientes do hemisfério Sul, exceto os nacionais dos Estados Unidos, conforme demonstra a Tabela 1 (Cavalcanti; Oliveira; Silva, 2021CAVALCANTI, L.; OLIVEIRA, T.; SILVA, B. G. Relatório anual 2021: 2011-2020: uma década de desafios para a imigração e o refúgio no Brasil. Brasília: Observatório das Migrações Internacionais, Ministério da Justiça e Segurança Pública, Conselho Nacional de Imigração, Coordenação Geral de Imigração Laboral, 2021.).

Tabela 1
– Classificação dos países com maior número de imigrantes no Brasil entre 2011-2020.

Com base nesse cenário de mudanças que o Brasil desponta, a partir de 2010, como um destino promissor que recebe fluxos migratórios diversificados, principalmente do hemisfério Sul, oferecendo oportunidades de trabalho, maior facilidade de entrada no país, acesso à documentação e ao sistema de educação e saúde gratuitos.

No que tange a migração de haitianos, entre 2010 e 2020 a Polícia Federal registrou a entrada de 150.464 imigrantes dessa nacionalidade no Brasil, sendo o estado de São Paulo responsável por receber 42.837 e o município de São Paulo 22.706 (Universidade Estadual de Campinas, 2022UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS – UNICAMP. SISMIGRA: Sistema de Registro Nacional Migratório. Campinas, 2022. Disponível em: https://www.nepo.unicamp.br/observatorio/bancointerativo/numeros-imigracao-internacional/. Acesso em: 22 nov. 2022.
https://www.nepo.unicamp.br/observatorio...
). “Este fluxo é formado a partir de transformações processadas no interior do capitalismo mundial, especialmente relacionados à elevação das seletividades migratórias nos destinos clássicos de migração haitiana como os Estados Unidos e a França” (Magalhães; Baeninger, 2016, pMAGALHÃES, L. F. A.; BAENINGER, R. Imigração haitiana no Brasil e remessas para o Haiti. In: BAENINGER, R. et al. (ed.). Imigração haitiana no Brasil. Jundiaí: Paco Editorial, 2016.. 238).

Sassen (2016)SASSEN, S. Expulsões, brutalidade e complexidade na economia global. São Paulo: Paz e Terra, 2016. considera que o momento atual é de expulsão social e uma maneira de trazer uma perspectiva global a essas condições extremas de expulsão social em países ricos é considerar as principais tendências internacionais dos deslocamentos em países pobres nos últimos anos. Fatores como pobreza e conflitos políticos são capazes de impulsionar sozinhos as dinâmicas globais de expulsão, além disso, os impactos dos desastres ambientais são intensificados sobre as pessoas pobres no mundo o que gera mais deslocamentos, principalmente para regiões vizinhas das áreas afetadas.

Nesse sentido, o aumento dos registros de entrada de haitianos no Brasil é, comumente, associado ao terremoto que destruiu Porto Príncipe, capital do Haiti, em 2010, impondo severas limitações à sobrevivência e subsistência de seus habitantes.

Cotinguiba (2014)COTINGUIBA, G. C. Imigração haitiana para o Brasil: a relação entre trabalho e processos migratórios. 2014. Dissertação (Mestrado em História e Estudos Culturais) – Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho, 2014. destaca que a inserção do Brasil na rota de imigração haitiana não é um fenômeno recente e ocorre de forma constante há pelo menos um século, mas tornou-se uma novidade na última década devido ao crescimento do fluxo migratório de pessoas desta nacionalidade que entraram em território brasileiro nos últimos anos e por ser o primeiro grande fluxo de negros vindos para o país desde o fim da escravidão em 1888.

Para melhor visualização da evolução dos números de registros feitos pela Polícia Federal referente aos haitianos que entraram com pedido de cadastro para emissão de Registro Nacional Migratório (RNM) no Brasil, o Gráfico 1 aponta a curva de crescimento desta imigração a partir de 2010 para o país, o estado de São Paulo e o município de São Paulo.

Gráfico 1
– Evolução dos registros de haitianos feitos pela Polícia Federal de 2010 a 2020 no Brasil, estado de São Paulo e o município de São Paulo. Fonte: Observatório das Migrações de São Paulo (OBMigra), Ministério da Justiça e Segurança Pública, SISMIGRA (Polícia Federal). Dados compilados e tabulados pelo autor (2022).

É possível notar que as três curvas revelam o mesmo comportamento e apontam um movimento crescente a partir de 2011, com destaque para o ano de 2016. Posteriormente, observa-se uma queda e estabilidade nos anos seguintes. Em 2020 há a retomada do crescimento, o que demonstra que esses destinos, apesar de seus altos e baixos, entraram na rota migratória dos haitianos.

Considerando que este fluxo migratório para o Brasil teve grande destaque nos últimos anos e foi um marco para uma série de mudanças significativas no trato da questão migratória nacional (Pachi, 2017PACHI, P. A importância da imigração haitiana na concepção da nova lei municipal (São Paulo) de migração. Travessia Revista do Migrante, São Paulo, n. 80, p. 93-104, 2017. http://doi.org/10.48213/travessia.i80.283.
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), pretende-se analisar com este artigo o papel fundamental exercido pelas redes migratórias e sociais de solidariedade na migração dos haitianos para o Brasil e, mais especificamente, para a metrópole paulistana.

Para enriquecer este estudo, além do aporte teórico, foram utilizados dados quantitativos da Polícia Federal e do Observatório das Migrações (OBMigra) e informações a partir de resultados obtidos da pesquisa de Mestrado defendida pela pesquisadora em 2019 que analisou a imigração de haitianos para a metrópole paulistana de 2014 a 2018. Esta pesquisa contou com a participação de 35 haitianos (30 homens e 5 mulheres) que responderam a uma entrevista semi-estruturada entre abril de 2017 e junho de 2018 no bairro do Glicério, permitindo assim, a realização de uma análise em profundidade sobre essa imigração conforme será apresentado a partir de agora.

Redes migratórias e sociais de solidariedade

Várias são as situações e contextos em que o termo rede é usado, mas é preciso destacar que em todos os casos há dois componentes comuns: uma conectividade ampliada e a circulação de fluxos diversos (informações e pessoas).

Santos (2012)SANTOS, M. A natureza do espaço. 4. ed. São Paulo: Edusp, 2012., com relação ao conceito de rede descreve que, “[...] pode-se admitir que o termo se enquadra em duas grandes matrizes: a que apenas considera o seu aspecto, a sua realidade material, e uma outra, onde também é levado em conta o dado social” (Santos, 2012, pSANTOS, M. A natureza do espaço. 4. ed. São Paulo: Edusp, 2012.. 262).

É com base na realidade material e no dado social que o foco deste artigo é o de analisar as redes sociais1 1 Os termos rede social/redes sociais serão utilizados nesse artigo no sentido das relações sociais estabelecidas pelos indivíduos em sociedade e não no sentido, comumente utilizado nos últimos anos, que se refere à Internet. Optou-se pela análise do termo rede (s) social(ais) de solidariedade, mas o uso, tão somente de rede (s) social (ais) também é usado com o mesmo intuito respeitando as citações de outros autores e obras. de solidariedade e migratórias. Para tanto, faz-se necessário esclarecer a distinção entre esses dois tipos de rede, lembrando que, para Santos (2012)SANTOS, M. A natureza do espaço. 4. ed. São Paulo: Edusp, 2012., essas redes são social, política e econômica, tendo em vista as informações que circulam por elas e que lhes conferem materialidade. Além disso, destaca-se que a rede social de solidariedade surge antes da rede migratória sendo a primeira, responsável por alimentar a segunda e fortalecê-la. Portanto, as redes sociais de solidariedade possuem o papel de fomentarem e estimularem o movimento das redes migratórias, pois é a partir das informações disseminadas por elas que novos fluxos migratórios são gerados, lançando os indivíduos no mapa da mobilidade humana (Pachi, 2019).

Partindo do pressuposto que a migração é um fenômeno histórico e social existente há muito tempo, pode-se dizer que,

Séculos atrás os fluxos internacionais de migração já geravam redes que agiam como pontes entre sociedades de origem, de trânsito e de destino. Apesar de tais redes apresentarem claras diferenças com as atuais, em termos de conteúdo e de modos de comunicação, elas existiam enquanto fato social. […] autores dedicados à imigração têm apontado que atualmente se conservam muitos elementos do passado, como a migração em cadeia e a reunião familiar. (Sassen, 2010, p. 166 apudDutra, 2016DUTRA, D. Migrantes haitianos e mercado de trabalho no Distrito Federal. Uma análise sociológica a partir da perspectiva das relações sociais de gênero. In: CAVALCANTE, L. et al. (ed.). A imigração haitiana no Brasil: características sociodemográficas e laborais na região Sul e no Distrito Federal. Brasília: OBMIGRA, 2016.).

Ademais,

A rede é o conjunto das pessoas em relação às quais a manutenção de relações interpessoais, de amizade ou de camaradagem, permite esperar confiança e fidelidade. Mais do que em relação aos que estão fora da rede, em todo caso […] estabelecendo relações que são determinadas pelas obrigações que contraem ao se aliarem e dando uns aos outros, submetendo-se à lei dos símbolos que criam e fazem circular, os homens produzem simultaneamente sua individualidade, sua comunidade e o conjunto social no seio do qual se desenvolve a sua rivalidade. (Caillé, 1998, p. 18-19 apudDornelas, 2001DORNELAS, S. M. Redes sociais na migração: questionamentos a partir da pastoral. Travessia Revista do Migrante, São Paulo, v. 14, n. 40, p. 5-10, 2001. http://doi.org/10.48213/travessia.i40.814.
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).

No que tange aos processos migratórios é importante destacar que as relações sociais estabelecidas em rede se baseiam, geralmente, nesses laços de camaradagem e confiança entre os indivíduos conforme aponta Dornelas (2001)DORNELAS, S. M. Redes sociais na migração: questionamentos a partir da pastoral. Travessia Revista do Migrante, São Paulo, v. 14, n. 40, p. 5-10, 2001. http://doi.org/10.48213/travessia.i40.814.
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.

Em Truzzi (2008)TRUZZI, O. Redes em processos migratórios. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 199-218, 2008. http://doi.org/10.1590/S0103-20702008000100010.
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encontra-se a definição de redes migratórias como “[…] complexos de laços interpessoais que ligam migrantes, migrantes anteriores e não-migrantes nas áreas de origem e de destino, por meio de vínculos de parentesco, amizade e conterraneidade” (Massey, 1988, p. 396 apudTruzzi, 2008TRUZZI, O. Redes em processos migratórios. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 199-218, 2008. http://doi.org/10.1590/S0103-20702008000100010.
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).

E acrescenta que são:

[…] agrupamentos de indivíduos que mantêm contatos recorrentes entre si, por meio de laços ocupacionais, familiares, culturais ou afetivos. Além disso, são formações complexas que canalizam, filtram e interpretam informações, articulando significados, alocando recursos e controlando comportamentos. (Kelly, 1995, p. 219 apudTruzzi, 2008TRUZZI, O. Redes em processos migratórios. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 199-218, 2008. http://doi.org/10.1590/S0103-20702008000100010.
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).

As redes sociais de solidariedade são imprescindíveis na migração e são formadas para além dos laços familiares, tornam-se referência para os migrantes no local de destino podendo indicar melhores condições de acolhimento seja com relação ao alojamento assim como, nas possibilidades de empregabilidade. Essas redes estimulam a solidariedade e fomentam a própria rede e os fluxos migratórios, sendo responsáveis pela circulação de inúmeras informações (positivas e negativas) que atravessam fronteiras indicando os itinerários a serem percorridos pelos migrantes.

Para Póvoa Neto (1997) as redes sociais são essenciais no processo migratório:

A presença destas redes de contato, cristalizadas ao longo de décadas de migrações, contribui para explicar a intensidade dos deslocamentos populacionais mesmo numa situação social em que os diferenciais de renda e de condição de vida se tornam presas perceptíveis. Tais redes se tornam forças sociais vivas, a estabelecer “pontes” entre lugares e a permitir o fluxo de informações e pessoas que fizeram da mobilidade geográfica a sua principal estratégia de sobrevivência. (Póvoa Neto, 1997PÓVOA NETO, H. Migrações internas e mobilidade do trabalho no Brasil atual: novos desafios para a análise. Experimental, São Paulo, n. 2, p. 11-24, 1997., p. 22).

Desse modo, as redes revelam a organização social envolvida no processo migratório e a articulação das pessoas para que no destino sejam núcleos de apoio para o acesso às oportunidades de trabalho, moradia, à adaptação e superação dos problemas emocionais, financeiros e culturais visando a adaptação na nova sociedade. Com uma rede migratória e de solidariedade já estabelecidas, principalmente, por parentes e amigos no destino, os potenciais migrantes sentem-se mais seguros com as informações que recebem e fazem com que suas empreitadas tenham riscos reduzidos e maior chance de sucesso (Pachi, 2019PACHI, P. A precarização na base da mundialização contemporânea: a imigração haitiana na metrópole de São Paulo. 2019. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.).

Assim sendo, cabe aos primeiros imigrantes desvendarem o destino migratório e abrirem o caminho para os novos migrantes. Aqueles que se lançaram primeiro num destino migratório criam novos laços na localidade e tornam-se referência para os que chegam, facilitando a vinda de novos fluxos (Pachi, 2019PACHI, P. A precarização na base da mundialização contemporânea: a imigração haitiana na metrópole de São Paulo. 2019. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.).

Para além das redes estabelecidas no país de destino, a manutenção do contato com a origem, seja por motivo afetivo ou pela remessa de dinheiro, facilita a atração e cria a possibilidade de novos migrantes, da família ou de seu entorno, se lançarem em projetos migratórios.

As redes migratórias e sociais de solidariedade na imigração de haitianos para São Paulo

Com o intuito de trazer dados concretos para este estudo sobre a importância das redes sociais de solidariedade e migratória para a imigração de haitianos em São Paulo, serão utilizados dados específicos obtidos a partir da pesquisa de Mestrado defendida em 2019 pela pesquisadora e que analisou a imigração de haitianos para a metrópole paulistana de 2014 a 2018.

Conforme já mencionado no início deste artigo, o crescente aumento da imigração haitiana na última década trouxe para o debate dos estudos migratórios uma série de pontos que foram discutidos e apresentados pelos pesquisadores, políticos, imprensa, sociedade civil e pelos próprios imigrantes, sinalizando a necessidade de mudanças urgentes no trato das migrações e nas políticas públicas de acolhimento no Brasil (Pachi, 2017PACHI, P. A importância da imigração haitiana na concepção da nova lei municipal (São Paulo) de migração. Travessia Revista do Migrante, São Paulo, n. 80, p. 93-104, 2017. http://doi.org/10.48213/travessia.i80.283.
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). Tais necessidades de mudança culminaram na promulgação da nova Lei de Migração 13.445/17 que substituiu o Estatuto do Estrangeiro-Lei 6.815/80, resquício da ditadura militar que tratava o estrangeiro como uma ameaça à segurança nacional e não pelo viés dos direitos humanos, como defendido atualmente pela lei em vigor. No que tange à cidade de São Paulo, lócus de realização da pesquisa de Mestrado, e destino histórico de imigrantes desde o final do séc. XIX, Pachi (2017)PACHI, P. A importância da imigração haitiana na concepção da nova lei municipal (São Paulo) de migração. Travessia Revista do Migrante, São Paulo, n. 80, p. 93-104, 2017. http://doi.org/10.48213/travessia.i80.283.
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demonstra que várias foram as necessidades de mudanças também sentidas com a vinda de haitianos, seja no acolhimento, nos serviços prestados pela prefeitura, na defesa dos direitos dos imigrantes, entre outras que resultaram na criação da Lei Municipal nº 16.478, primeira lei municipal de migração do país.

Retornando à análise do Gráfico 1 e para além da observação sobre a evolução das curvas deste fluxo migratório, pode-se dizer que, independentemente das rotas percorridas por esses imigrantes pelo Brasil, a cidade de São Paulo recebeu um número significativo de haitianos que tinham na capital paulista uma melhor estrutura de acolhimento, apesar do despreparo verificado no início da década de 2010, e a possibilidade de iniciarem uma jornada pelo território nacional. Desse modo, pode-se dizer que São Paulo é também considerada uma cidade temporária e de trânsito para muitos haitianos que se dirigiram para outras regiões do país, principalmente, por motivos laborais. Esses itinerários, em sua maioria, foram traçados com base nas informações recebidas por uma rede migratória desenhada a partir de 2010.

Handerson (2015, pHANDERSON, J. Diáspora: sentidos sociais e mobilidades haitianas. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 21, n. 43, p. 51-78, 2015. http://doi.org/10.1590/S0104-71832015000100003.
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. 182) descreve a existência de uma lógica familiar na migração haitiana seja com relação “[...] as articulações da decisão de partir e na organização da viagem no que tange aos recursos mobilizados, os sonhos, sobretudo, as obrigações e os deveres para com aqueles que ficaram, filhos, irmãos, pais, amigos, etc.”.

Destaca-se que os movimentos migratórios de saída do Haiti fazem parte da história deste país localizado na América Central e que possui uma situação política e social crítica desde a sua origem. Devido à sua localização geográfica privilegiada para o comércio e transporte de mercadorias (imbricado no centro das Américas e de fácil acesso para o oceano Atlântico e consequentemente à Europa) o país sofreu várias invasões e tentativas de ocupação o que gerou instabilidade política e econômica que se agravaram com os desastres ambientais motivando a emigração.

Partindo da premissa que os movimentos migratórios acompanham a história do Haiti, pesquisas recentes de Cotinguiba (2014)COTINGUIBA, G. C. Imigração haitiana para o Brasil: a relação entre trabalho e processos migratórios. 2014. Dissertação (Mestrado em História e Estudos Culturais) – Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho, 2014., Magalhães; Baeninger (2016)MAGALHÃES, L. F. A.; BAENINGER, R. Imigração haitiana no Brasil e remessas para o Haiti. In: BAENINGER, R. et al. (ed.). Imigração haitiana no Brasil. Jundiaí: Paco Editorial, 2016. e Joseph (2017)JOSEPH, A. A historicidade da (e)migração internacional haitiana: o Brasil como novo espaço migratório. Périplos: Revista de Estudos sobre Migrações, Brasília, v. 1, n. 1, p. 7-26, 2017. descrevem que, a partir do século XX é possível identificar quatro grandes fluxos migratórios de haitianos para o exterior (República Dominicana, Cuba, Estados Unidos e Brasil), conforme aponta a Tabela 2 abaixo.

Tabela 2
– Movimentos migratórios de haitianos a partir do séc. XX.

Sendo o foco deste artigo o quarto fluxo migratório, isto é, o destino Brasil, é com base nele que se seguem as análises deste estudo.

É importante mencionar que se buscava, durante a pesquisa de Mestrado defendida em 2019, compreender o porquê de o fluxo de imigrantes haitianos continuar constante para o Brasil, mesmo após o início da crise econômica e política de 2014 que culminou no impeachment da Presidenta Dilma Roussef. Para tanto, entrevistas semi-estruturadas foram realizadas entre os meses de fevereiro de 2017 a junho de 2018 com 35 imigrantes haitianos (30 homens e 5 mulheres), na faixa etária entre 21 e 40 anos, na Missão Paz2 2 A Missão Paz é uma obra dos Missionários de São Carlos – Scalabrinianos – que oferece inúmeros serviços de apoio ao imigrante. e no bairro do Glicério, região da cidade onde também se localiza a sede da USIH (União Social dos Imigrantes Haitianos).

O bairro do Glicério é historicamente conhecido, desde o século XIX, por abrigar na cidade de São Paulo grupos de imigrantes de origens diversas, primeiramente europeus e na primeira década do século XX, os japoneses.

Conforme destaca Fernandes (2021)FERNANDES, C. As espacialidades migratórias na “Baixada do Glicério”, centro da cidade de São Paulo. In: ENCONTRO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA, 15., 2021. Anais [...]. São Paulo: ANPEGE, 2021. Evento virtual.,

A característica habitacional voltada para a moradia de aluguel e de baixos valores, onde predominavam e ainda predominam cortiços e apartamentos pequenos, compõe parte da conjunção de elementos atrativos de imigrantes. Um dos elos de ligação que conectam o passado com o presente, e delimitam o Glicério como um dos lugares “reservados” aos imigrantes na cidade.

A partir de 2010, o bairro passou a concentrar em suas ruas e próximo ao espaço da Missão Paz, imigrantes haitianos recém-chegados à capital paulista. Devido à essa concentração de haitianos surgiram nessa mesma região igrejas evangélicas que professam seus cultos em francês, restaurantes e comércio de haitianos e inúmeras moradias compartilhadas por esses imigrantes. No que diz respeito à Missão Paz pode-se dizer que o pátio da igreja Nossa Senhora da Paz se tornou um lugar de encontro dessa comunidade para a troca de informações e, sendo procurada também por imigrantes solitários e por aqueles que possuem uma rede social de solidariedade estabelecida, pois oferece abrigo e serviços diversos para imigrantes de inúmeras nacionalidades. Quanto à existência de uma associação em prol dos haitianos, a USIH, confere a eles uma maior união para o desenvolvimento de estratégias de sobrevivência e permanência em território brasileiro, além de ser um ponto de apoio e de informações na cidade para esta comunidade. Logo, a USIH e a Missão Paz também fazem parte da rede solidária e migratória dos haitianos em São Paulo.

A opção por entrevistas semi-estruturadas se deu por este modelo se apoiar em um roteiro de questões previamente elaborado em conformidade com os objetivos da pesquisa e que permite ao pesquisador no decorrer da conversa introduzir mais questões a fim de apurar com maior precisão as informações que considerar relevantes para os propósitos da investigação.

A escolha dos entrevistados se deu no pátio da igreja e no espaço do bairro do Glicério, não houve nenhuma seleção pré-estabelecida e, com isso, buscou-se obter uma heterogeneidade no perfil do grupo entrevistado em termos de gênero, grau de escolaridade e local de origem no território haitiano.

Pode-se dizer, com base no trabalho de campo e na análise a partir das entrevistas realizadas que, parte do fenômeno3 3 Destaca-se aqui parte do fenômeno migratório haitiano pois, o estudo realizado não permite a generalização dos resultados para a totalidade da imigração haitiana. migratório estudado, tem como característica a imigração laboral com predomínio de homens em idade compatível ao mercado de trabalho, revelando a importância dada à variável trabalho para este fluxo migratório

Como ressalta Sayad (2000, pSAYAD, A. O retorno: elemento constitutivo da condição do imigrante. Travessia Revista do Migrante, São Paulo, v. 13, n. esp., p. 1-36, 2000.. 21):

O trabalho é a razão de ser do imigrante, ele dá conta de sua presença que, na falta deste motivo, estaria confinada ao absurdo aos olhos da razão do Estado Nacional. O trabalho contém em si, a partir de nossa representação atual do mundo, toda inteligência do fenômeno migratório, da emigração e da imigração que, sem ele, seriam incompreensíveis e intoleráveis sob todos os pontos de vista, intelectual, ética, econômica, cultural e, não apenas, politicamente.

Desse modo, uma análise sobre a imigração haitiana para o Brasil precisa ser feita com base nos processos de reprodução capitalista pois, a questão laboral é um fator determinante para a integração desses imigrantes (Pachi, 2019PACHI, P. A precarização na base da mundialização contemporânea: a imigração haitiana na metrópole de São Paulo. 2019. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.).

[…] é também a partir das redes que se pode entender o trabalho como fundamental para a caracterização da condição própria do migrante, não só em relação à sociedade em que se instala, mas também e principalmente em relação ao meio de onde saiu, pois é o rendimento do trabalho, e a consequente remessa de divisas para o local de origem, que vai justificar o seu deslocamento e desligamento temporário ou definitivo desse mesmo grupo de origem. A remessa de divisas e/ou investimento na localidade que se deixou vai servir como justificativa da função exercida pela migração: a manutenção da terra, a melhoria das condições de vida, os bens industrializados e modernos, a compra de terrenos e construção de casas, etc. (Dornelas, 2001, pDORNELAS, S. M. Redes sociais na migração: questionamentos a partir da pastoral. Travessia Revista do Migrante, São Paulo, v. 14, n. 40, p. 5-10, 2001. http://doi.org/10.48213/travessia.i40.814.
http://doi.org/10.48213/travessia.i40.81...
. 8).

Evidencia-se, portanto, que o trabalho é fundamental para a manutenção de vida dos imigrantes, de seus familiares e dependentes na origem e que as redes atuam como importante fonte de circulação de informações referentes às oportunidades de trabalho, mesmo que pontuais, para garantir a sobrevivência desses indivíduos na metrópole.

Para Sayad (1998), aSAYAD, A. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998. falta de trabalho faz o imigrante desaparecer, pois este sujeito só existe enquanto se precisa dele. Logo, se a falta de trabalho faz o imigrante desaparecer, como explicar a continuidade do fluxo migratório de haitianos para o Brasil em um momento de crise econômica e política onde o aumento do desemprego, dos preços, da inflação afetava a vida dos brasileiros e dos imigrantes? Quais seriam as informações que circulavam pelas redes migratórias e sociais de solidariedade que pudessem justificar a continuidade desse fluxo para o Brasil?

As principais causas apontadas pelos 35 haitianos entrevistados para a emigração tiveram relação com a grave situação econômica, social, política e aos altos índices de violência que enfrentava o Haiti. A falta de oportunidades de trabalho para a manutenção da vida familiar no país de origem aliada à possibilidade de virem para o Brasil com a documentação regular devido à concessão pelo Estado brasileiro de visto humanitário a esses nacionais foram fatores decisivos para a migração da maioria. Além disso, com a documentação regular esses imigrantes podiam se manter em movimento tendo maior facilidade de acesso a outros territórios da América do Sul como a Argentina, Uruguai e Chile. Assim sendo, o Brasil também se tornou um corredor de passagem e de trânsito para outros países, incluindo os do hemisfério Norte para aqueles que desejavam seguir seus sonhos rumo aos EUA e Canadá.

Para os haitianos entrevistados que optaram em ficar no Brasil, as expectativas em torno do país giravam em torno, principalmente, da conquista de um trabalho, na esperança do fim da crise que se agravava no país, a possibilidade de retorno aos estudos e a melhora nas condições de vida.

Havia, naquele momento, o interesse em saber qual o real conhecimento dos entrevistados com relação à situação do Brasil para entender o porquê de o fluxo de haitianos ser contínuo num momento de crise que afetava a vida dos brasileiros e aumentava o desemprego. Desse modo, foram questionados se possuíam parentes e amigos no Brasil e quais informações recebiam do país. O objetivo era o de compreender se estavam cientes das dificuldades que iriam enfrentar.

Apesar da importância reconhecida das redes formadas pelos laços familiares e de amizade, a pesquisa demonstrou, conforme aponta o Gráfico 2, que 74% dos 35 entrevistados disseram que contaram com uma rede pré-estabelecida formada de parentes e amigos que se encontrava previamente instalada no território brasileiro e 26% disseram que não conheciam ninguém e que partiram solitários em seus projetos migratórios.

Gráfico 2
– Percentual dos 35 haitianos entrevistados que possuíam parentes ou amigos no Brasil antes de migrarem. Fonte: Elaboração do autor (2019).

É importante destacar que, na migração, a primeira rede e base dos relacionamentos é a família e os elos são criados a partir dela. No destino, novas relações pessoais ganham grande importância e novos arranjos são criados o que não exclui a presença de conflitos e o rompimento de relacionamentos.

Ainda que 26% dos entrevistados não tenham contado com redes de familiares e amigos e, em alguns casos, não possuíam muitas informações do país, todos sabiam do acolhimento da Missão Paz e, a partir do momento que buscavam a instituição, laços de solidariedade e amizade surgiam do contato com outros imigrantes de mesma nacionalidade. Novas redes nasceram e os imigrantes, até então solitários, uniram-se por sobrevivência, trocavam informações, sentiam-se mais fortes e se ajudavam na busca por trabalho. O apoio de pessoas da mesma nacionalidade oferece condições de permanecer no destino e superar as dificuldades do cotidiano.

Partindo da concepção apresentada por Handerson (2015)HANDERSON, J. Diáspora: sentidos sociais e mobilidades haitianas. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 21, n. 43, p. 51-78, 2015. http://doi.org/10.1590/S0104-71832015000100003.
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na qual a emigração haitiana faz parte da história do Haiti, observou-se na pesquisa de campo que, geralmente, os haitianos que migraram para São Paulo possuíam familiares e amigos que viviam em outros países, sendo estes os responsáveis pela divulgação de informações pertinentes à migração como as possibilidades no mercado de trabalho e as dificuldades de vida, desenvolviam assim, o papel de motivar ou de desestimular a vinda de outros nacionais.

Ao disseminarem informações sobre as possibilidades de trabalho tornam-se sujeitos que atuam em favor dos mecanismos de acumulação, pois agem para o capital e para sua reprodução, fomentando a vinda de outros migrantes. Do mesmo modo, como na maioria das vezes, trabalham na informalidade ou possuem empregos precários e mal pagos, esses indivíduos acabam por contribuir para a continuidade da exploração da força de trabalho de seus conterrâneos (Pachi, 2019PACHI, P. A precarização na base da mundialização contemporânea: a imigração haitiana na metrópole de São Paulo. 2019. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.).

Assim sendo, é possível afirmar que a mobilidade haitiana é pensada e praticada de forma coletiva, as redes se formam desde a origem, são dinâmicas e têm um papel fundamental nos processos migratórios.

Para os haitianos que ficaram no Haiti,

[…] ter familiares no exterior é sinônimo de um dia poder-viajar ou poder-partir. Mas, possuir familiares na diáspora não garante a mobilidade dos que ficam. Isso exige disposições internas (capacidade da pessoa mobilizar as redes) e disposições externas (recursos dispostos ao indivíduo). […] Há uma relação estreita entre as pessoas que partem e as que ficam. Isso incide especialmente nas relações diferenciais entre os maridos que viajam e as mulheres que ficam e vice-versa; entre pais e filhos, tios e sobrinhos. A mobilidade molda as relações internas da família num contexto de circulação. Desde cedo as crianças convivem com a mobilidade dos seus colegas da escola ou dos seus bairros, partindo ou viajando. A mobilidade é constitutiva do cotidiano haitiano. (Handerson, 2016, pHANDERSON, J. A historicidade da (e)migração Internacional Haitiana: o Brasil como novo espaço migratório. In: CAVALCANTE, L. et al. (ed.). A imigração haitiana no Brasil: características sociodemográficas e laborais na região Sul e no Distrito Federal. Brasília: OBMIGRA, 2016.. 98).

Sendo a imigração haitiana um projeto coletivo e baseado em redes, o Gráfico 3 aponta que, dos 35 haitianos entrevistados, 73% receberam algum tipo de ajuda da rede de apoio e solidária estabelecida (parentes e amigos). Curiosamente, alguns haitianos que disseram ter parentes e amigos no Brasil, nem todos tiveram o apoio dessas pessoas quando chegaram ao país. Essa informação pode indicar que as redes migratórias nem sempre estão prontas e dispostas a ajudar e serem solidárias com aqueles que dela necessitam.

Gráfico 3
– Percentual dos 35 haitianos entrevistados que receberam ajuda da rede migratória no Brasil. Fonte: Elaboração do autor (2019).

O tipo de ajuda recebida refere-se, basicamente, como é possível verificar no Gráfico 4, à habitação e à comida. Poucos receberam ajuda financeira e na busca por emprego4 4 Alguns entrevistados citaram mais de um tipo de ajuda. .

Gráfico 4
– Formas de ajuda que os 35 entrevistados receberam da rede migratória. Fonte: Elaboração do autor (2019).

Perguntados sobre as informações que recebiam do Brasil enquanto ainda estavam no Haiti, nem todos responderam à pergunta, mas as respostas obtidas sobre o país são mais positivas do que negativas e alguns não receberam informação. No que tange as dificuldades, sejam elas para encontrar emprego ou mesmo com relação à adaptação, acredita-se que, na maioria das vezes, essas informações são omitidas, pois o fato do projeto migratório partir, primordialmente, de uma decisão coletiva e familiar, a ele não se cogita o fracasso, pois isto significaria também um fracasso coletivo.

Constatou-se que as informações recebidas antes de migrarem para o Brasil são poucas e vagas. Com relação às crises econômica e política enfrentadas pelo país naquele momento, não tinham noção da gravidade e acreditavam que o projeto migratório para o Brasil deveria seguir adiante porque encontrariam mais chances de trabalho e sucesso do que no Haiti. Alguns se sentiram enganados porque tinham recebido informações positivas sobre o país e que não condiziam com a realidade vivenciada por eles no ato da entrevista. Poucos foram os entrevistados que relataram saber da situação vivenciada pelo Brasil porque acompanharam os noticiários e comentários feitos nas páginas das redes sociais5 5 Neste caso o Facebook. de alguns haitianos que viviam no Brasil.

Comumente, a maioria dos estudos sobre migração, aborda de forma positiva a atuação das redes sociais e de solidariedade no processo migratório e raramente reconhecem nelas aspectos negativos, conforme estão sendo apontados neste trabalho.

Verificou-se também na observação de campo e em alguns comentários e conversas com imigrantes em São Paulo que, como já mencionado anteriormente, as redes não são necessariamente formadas por familiares e conhecidos, logo, há a formação de redes de indivíduos de mesma nacionalidade que se conhecem na localidade de destino e passam a se articular com o intuito de se ajudarem. Contudo, foi possível constatar que, a partir dessas novas redes, são desenvolvidas relações de sujeição devido às supostas ajudas e favores recebidos.

Haitianos que se encontravam no Brasil há mais tempo e que perderam seus empregos com a crise econômica, retornavam à Missão Paz, em busca de uma nova chance de emprego. Aliavam-se aos recém-chegados e, na promessa de se ajudarem mutuamente, os novatos aceitavam a divisão da moradia contraindo, a partir daí, “dividas”6 6 Optou-se em colocar a palavra dívida entre aspas neste parágrafo, pois não se trata aqui somente de dívida financeira, mas também da dívida moral e da necessidade de retribuição dos favores recebidos que coage, em muitos casos, o imigrante a ficar preso à uma determinada situação. em troca dos favores recebidos ou em troca de alimentação. A resultante dessa situação foi a dependência gerada desses sujeitos com relação aos seus próprios nacionais sendo que qualquer possibilidade de ganho com o trabalho já estaria comprometido para o pagamento dessas “dívidas” contraídas que eram camufladas como solidariedade. Conforme aponta Soederberg (2014)SOEDERBERG, S. Debtfare states and the poverty industry: money, discipline and the surplus population. New York: Routledge Taylor & Francis Group, 2014. http://doi.org/10.4324/9781315761954.
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, atualmente, o salário recebido não defini as relações de produção da sociedade, pois ele se configura como extremamente precário e o trabalhador está constantemente se endividando e pagando dívidas.

Uma das alternativas encontrada pelos haitianos afim de se desvencilharem dessas situações de dependência e “dívida” com seus nacionais foi a busca por empregos que permitisse a moradia no local de trabalho. Desse modo, não contrairiam mais dívidas com seus nacionais o que possibilitaria um novo rumo na vida do migrante na metrópole.

Além disso, foi possível apurar, segundo os relatos e observações da pesquisa de campo que, muitos imigrantes haitianos trabalham para seus conterrâneos e acabam sendo explorados por meio de extensivas horas de trabalho em locais precários e com baixíssima remuneração. Destaca-se que, geralmente, é por meio das informações que são divulgadas pelas redes que os haitianos se inserem no mercado de trabalho, logo, observa-se que, além de intermediarem as relações de trabalho, elas também alimentam um mecanismo de superexploração desses sujeitos que se veem na necessidade de estarem disponíveis e aceitarem “qualquer”7 7 Qualquer está sendo empregado nesse contexto para se referir a trabalhos precários e mal remunerados. tipo de trabalho para poderem se livrar de dívidas contraídas junto aos seus nacionais.

Portanto, considera-se com base nos relatos, entrevistas e observação de campo que, nem toda rede social de solidariedade que se forma no Brasil é realmente solidária, mas ao contrário, é, em alguns casos, exploradora da vulnerabilidade de quem não tem emprego/trabalho e não conta com o apoio da família e de amigos.

Considerações finais

Tentou-se demonstrar neste artigo a importância das redes sociais de solidariedade e migratória no circuito da mobilidade humana, mais precisamente, na imigração de haitianos para a metrópole paulistana na última década.

Por meio do embasamento teórico e de entrevistas realizadas com 35 imigrantes haitianos entre abril de 2017 e junho de 2018 no bairro do Glicério em São Paulo, verificou-se que a família é decisiva para o projeto migratório e a decisão de partida é tomada de forma coletiva, pois trata-se de um projeto familiar. Além disso, as redes sociais de solidariedade entre os imigrantes são extremamente importantes, dinâmicas, complexas, articulam o apoio e ajuda entre pessoas de mesma nacionalidade, porém, também apontam conflitos e rivalidades.

As redes garantem, aos menos favorecidos economicamente, a oportunidade de melhoria de vida e são uma estratégia de sobrevivência onde os laços de solidariedade e de obrigações são criados com o intuito de superarem as dificuldades da vida, sobretudo num país estrangeiro.

Observou-se que nem todos os entrevistados possuíam uma rede pré-estabelecida no Brasil e partiram do Haiti de forma solitária. Ao chegarem em São Paulo, buscavam instituições de cunho religioso que atuam com imigrantes e refugiados, como é o caso da Missão Paz, juntavam-se aos seus nacionais e recebiam o apoio da instituição no tocante ao alojamento, documentação e busca por trabalho.

Por serem dinâmicas, essas redes podem apresentar novos arranjos definidos no decorrer do processo migratório com base em interesses econômicos. Assim sendo, elas carregam consigo o sentido de solidariedade em nível local e mundial, mas dialeticamente podem revelar também relações de poder, exploração e dominação.

Apesar de muitos haitianos possuírem família e amigos já instalados no Brasil, alguns não contaram com nenhum tipo de apoio e, aqueles que chegaram ao país entre 2016 e 2017, não tinham sido informados da crise, das dificuldades tanto de vida quanto para encontrar emprego no país. Logo, conclui-se este artigo destacando que, apesar da importância inegável das redes sociais de solidariedade na imigração haitiana e nos estudos migratórios, constatou-se que essas redes não são tão “solidárias” quanto parecem, pois além de não disseminarem informações verdadeiras, envolvem interesses particulares de diversos sujeitos e permitem a reprodução de condições de precariedade e exploração contínua da força de trabalho migrante dos novos fluxos, motivo este que não foi possível notar a partir do início das crises políticas e econômicas de 2014 alterações significativas no fluxo migratório de haitianos para o Brasil.

Agradecimento

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

  • 1
    Os termos rede social/redes sociais serão utilizados nesse artigo no sentido das relações sociais estabelecidas pelos indivíduos em sociedade e não no sentido, comumente utilizado nos últimos anos, que se refere à Internet. Optou-se pela análise do termo rede (s) social(ais) de solidariedade, mas o uso, tão somente de rede (s) social (ais) também é usado com o mesmo intuito respeitando as citações de outros autores e obras.
  • 2
    A Missão Paz é uma obra dos Missionários de São Carlos – Scalabrinianos – que oferece inúmeros serviços de apoio ao imigrante.
  • 3
    Destaca-se aqui parte do fenômeno migratório haitiano pois, o estudo realizado não permite a generalização dos resultados para a totalidade da imigração haitiana.
  • 4
    Alguns entrevistados citaram mais de um tipo de ajuda.
  • 5
    Neste caso o Facebook.
  • 6
    Optou-se em colocar a palavra dívida entre aspas neste parágrafo, pois não se trata aqui somente de dívida financeira, mas também da dívida moral e da necessidade de retribuição dos favores recebidos que coage, em muitos casos, o imigrante a ficar preso à uma determinada situação.
  • 7
    Qualquer está sendo empregado nesse contexto para se referir a trabalhos precários e mal remunerados.
  • Como citar este artigo:

    PACHI, P. A importância das redes migratórias e sociais de solidariedade na imigração haitiana para São Paulo. Geousp, v. 28, n. 2, e222457. 2024. https://doi.org/10.11606/issn.2179-0892.geousp.2024.222457pt

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Editado por

Editor do artigo

Rodrigo Ramos Hospodar Felippe Valverde

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Fev 2024
  • Aceito
    22 Maio 2024
Creative Common - by 4.0
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/), que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.
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