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Circuito superior e circuito inferior na publicação de periódicos científicos

Circuito superior e circuito inferior na publicação de periódicos científicos

Recentemente li num blog uma comparação entre a publicação numa revista editada pela Springer e aquela em periódicos de acesso aberto (Polese, 2021POLESE, A. Open access at no cost? Just ditch academic journals. The Research Whisperer. 22 June 2021. Available at: Available at: https://researchwhisperer.org/2021/06/22/open-access-at-no-cost/ . Access: 02 mar. 2022.
https://researchwhisperer.org/2021/06/22...
). Bem-humorado, o autor afirmava que as revistas ditas de primeira linha, geralmente em inglês, são desejadas e caras como um Iphone último tipo; as outras seriam como um smartphone velho, com a tela quebradinha, que funciona, mas não impressiona. Era uma metáfora para a postura dos pesquisadores diante das revistas e dos índices e avaliações que as classificam, regendo bolsas, prêmios, promoções etc.

Polese comentava o Plano S, lançado em 2018 por doze países reunidos no Conselho Europeu de Pesquisa, partindo do seguinte princípio: a ciência deve ser pública. Isso se traduz em financiamento público, dados e publicação em acesso aberto. O cronograma do Plano S previa 2021 como sua data de implementação, com ritmo e condição pactuados por cada comunidade científica nacional (Schlitz, 2018SCHLITZ, M. Plan S: making full and immediate open access a reality. Science Connect. 2018. Available at: Available at: https://www.coalition-s.org/ . Access: 02 mar. 2022
https://www.coalition-s.org/...
).

Ainda que busque a ciência pública, o Plano S prevê o pagamento de taxas. Que taxas? Taxas pagas pelos autores para publicar e pelos leitores para acessar os artigos, remunerando os serviços editoriais. E quanto custa publicar? Um exemplo extremo é o da prestigiosa revista Nature, que avaliou o acesso aberto a um artigo em € 9.500, mais de R$ 50.000 (Else, 2020ELSE, H. Nature journals reveal terms of open-access option. Nature, v. 588, p. 19-20, 2020. Available at: Available at: https://www.nature.com/articles/d41586-020-03324-y . Access: 02 mar. 2022.
https://www.nature.com/articles/d41586-0...
). Mais próxima de nós é a experiência de tentar acessar um artigo e esbarrar na paywall (exigência de pagamento) de uma editora ou ainda de receber um e-mail que apela à nossa vaidade, afirmando que nosso trabalho chamou atenção e que a editora de nome vistoso está interessada em publicá-lo mediante módica quantia. Esta última forma de publicação é frequentemente adjetivada como predatória, ainda que as quantias solicitadas para o processamento sejam bem menores, da ordem de U$ 100,00 a U$ 300,00 (menos de R$ 1.600,00, na data em que escrevo).

O que separa a Nature e sua taxa de processamento desses e-mails que quase sempre apagamos como se fossem de golpistas é óbvio: o valor está na qualidade do trabalho editorial, que garante impacto ao artigo e respeito a seus autores. Sendo trabalho, pode ser traduzido em cifras a pagar.

Na América Latina, a publicação científica se faz, majoritariamente, em periódicos editados em universidades e associações científicas. Já temos financiamento público e acesso aberto, não precisaríamos de Plano S. Da mesma forma que no ambiente das revistas de primeira linha, nossa publicação envolve especialistas em diferentes posições: editores e assistentes, comitê editorial, diagramadores e programadores, autores, pareceristas e bibliotecários e tradutores, quase todos empregados por universidades públicas.

Mas temos um problema que ameaça um sistema bem-sucedido. Trata-se, em grande parte, de trabalho voluntário: editores são professores que se desviam de suas funções para tratar da revista; se sobrecarregam. Seu trabalho não é considerado na carga horária nem aparece nas progressões ou nos relatórios de produtividade. Diagramadores e programadores são, frequentemente, estudantes com bolsas de curto prazo e valor baixo, comprometendo a continuidade dos projetos editoriais. O financiamento de nossas revistas, em geral, se limita ao pagamento de bolsas de iniciação científica e do serviço de editoras que se encarregam de formatar os artigos seguindo as minúcias da publicação científica (em que cada sinal gráfico tem que ser escolhido com atenção, em que os parâmetros de formatação se tornaram linguagem computacional).

Como dito acima, o valor de uma revista está na qualidade do trabalho editorial. A Geousp é reconhecida pelo Qualis A1 e pela inclusão no Scielo. Mas é difícil manter esse trabalho não remunerado diante de demandas técnicas crescentes, traduções mandatórias, ritmos de publicação acelerados etc. Isso significa que a profissionalização da publicação científica é uma necessidade e é também de interesse das universidades e de toda a comunidade científica. Nossas instituições são avaliadas a partir de nossa produtividade, e publicar é condição para obter títulos de pós-graduação. Além das quantificações, nossas pesquisas merecem bons espaços para divulgação e preservação.

***

Nós, geógrafos, somos familiarizados com as ideias de circuito superior e circuito inferior da economia urbana, propostas por Milton Santos há meio século. Basta lembrar aqui que as atividades econômicas podem ser analisadas a partir de sua diferenciação e complementaridade em termos de circulação, capital, volume e tecnologia, maiores no circuito superior e menores no circuito inferior. Além disso, é a modernização tecnológica que rege ambos os circuitos, bem resolvida no circuito superior e sinalizando ao circuito inferior (Santos, 1979). Cabe lembrar que pertencer a um ou outro circuito é trabalhar com práticas e lógicas mais ou menos modernas - não se trata de ser melhor ou pior.

A publicação científica em moldes comerciais, dita de primeira linha, pode ser enquadrada no circuito superior. E a Geousp, em que circuito se insere? Parece que nossa revista se encontra na fronteira entre os circuitos. Por um lado, um orçamento quase simbólico e trabalho voluntário; por outro, a especialização do corpo editorial e a atenção às sofisticadas normas da edição de qualidade.

As fronteiras entre os circuitos já foram tematizadas pelo próprio Milton Santos (1979SANTOS, M. O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979., p. 289):

O problema é encontrar as formas de relações entre os dois circuitos capazes de abrir uma comunicação entre ambos e, ao mesmo tempo, melhorar a situação dos indivíduos atualmente envolvidos no circuito inferior, transformando este último para melhorar sua produtividade. Essa solução deverá provocar uma organização do espaço mais capaz de favorecer a redistribuição dos recursos nacionais, e ao mesmo tempo, uma organização da produção que autorize uma distribuição mais equitativa dos recursos e dos homens no espaço

O reconhecimento do trabalho editorial como parte das atividades desenvolvidas nas universidades permitiria mantê-lo aprimorar as revistas, reduzindo o improviso. Como extensão, como divulgação científica, temos meios para essa valorização, permitindo a consideração do trabalho editorial desenvolvido na academia brasileira e latino-americana. Ciência pública já temos, cabe construir sua continuidade

References

  • ELSE, H. Nature journals reveal terms of open-access option. Nature, v. 588, p. 19-20, 2020. Available at: Available at: https://www.nature.com/articles/d41586-020-03324-y Access: 02 mar. 2022.
    » https://www.nature.com/articles/d41586-020-03324-y
  • POLESE, A. Open access at no cost? Just ditch academic journals. The Research Whisperer. 22 June 2021. Available at: Available at: https://researchwhisperer.org/2021/06/22/open-access-at-no-cost/ Access: 02 mar. 2022.
    » https://researchwhisperer.org/2021/06/22/open-access-at-no-cost/
  • SANTOS, M. O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.
  • SCHLITZ, M. Plan S: making full and immediate open access a reality. Science Connect. 2018. Available at: Available at: https://www.coalition-s.org/ Access: 02 mar. 2022
    » https://www.coalition-s.org/

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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