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Ruth Wilson Gilmore - Freedom is a place. Ruth Wilson Gilmore e a Geografia Abolicionista

Ruth Wilson Gilmore, geógrafa estadunidense, é diretora do Center for Place, Culture and Politics (CPCP), e professora nos departamentos “Earth and Environmental Sciences”, “Africana Studies” and “American Studies” da City University of New York (CUNY - Graduate Center).

Reconhecida como uma das intelectuais mais proeminentes da atualidade, dedica seu pensamento e militância ao entendimento e recusa do capitalismo racial, propondo caminhos cotidianos rumo a futuros libertários. Por meio de um rigoroso trabalho comprometido com a Tradição Radical Negra ela estrutura sua pesquisa-militante, e ampara-se em leituras de mundo que possibilitam a formação e transformação da consciência.

Essa entrevista1 1 Realizada em dezembro de 2023. A entrevista ocorreu integralmente em inglês e contou com a transcrição e tradução de Milena Durante, com financiamento do Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGEO) da Universidade Estadual do Maranhão. é fruto de um trabalho longo e coletivo e concentra as energias para trazer às leitoras e aos leitores o movimento de seu pensamento radical. Resulta do encontro entre Gilmore e os entrevistadores, entre 2022e 2023, ocasião em que eles foram Visiting Scholars do Graduate Center (CUNY). Enquanto Livia Cangiano Antipon2 2 Doutoranda em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas, sob orientação do Prof. Dr. Márcio Cataia. Projeto de pesquisa no exterior: Socio-spatial formation in the contemporary metropolis: the popular food sales circuit in São Luís and New York. Financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Processo: 2021/08011-8. e Cristiano Nunes Alves3 3 Doutor em Geografia. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em geografia da Universidade Estadual do Maranhão e coordenador do Núcleo de Estudos em Território, Cultura e Planejamento-MARIELLE-UEMA. Projeto de pós-doutoramento: Território usado, circuitos culturais negros e planejamento urbano: o movimento hip hop em Nova Iorque e em São Luís. Financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Estado do Maranhão (FAPEMA) (Edital 19/2020) Processo: BPD-00181/21. foram supervisionados pela professora no CPCP, em suas pesquisas de doutorado e pós-doutorado, respectivamente, Maria Fernanda Novo4 4 Pós-doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Bolsista Fapesp. Doutora em Filosofia pela UNICAMP. Desenvolve pesquisa nas áreas de filosofia e raça, epistemologia contemporânea, epistemologia social, tecnologia, estudos de gênero e pensamento negro brasileiro. Financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Processo: 2022/04958-3. , em seu pós-doutoramento, integrou o Departamento de Filosofia.

Temas como Geografia Abolicionista, Geografia Política da Raça, capitalismo carcerário, unificação das lutas antirracistas e o papel das universidades enquanto importantes lugares para a organização política, são profundamente articulados em suas obras e seminários - portanto justificam o caminho analítico de nossa conversa.

Considerando o escopo e alcance da Revista Geousp, buscamos apresentar um panorama da geografia realizada por Ruth Wilson Gilmore, sem dúvida, um caminho (ou caminhos) rumo à liberdade como um lugar.

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Entrevistadores: Você contribui para estabelecer um tipo de perspectiva crítica e teórica na geografia baseada em ferramentas, conceitos e categorias que nos ajudam a pensar o abolicionismo como um horizonte que orienta a teoria. Golden Gulag (Gilmore, 2007GILMORE, Ruth Wilson. Golden Gulag: prisons, surplus, crises, and opposition in Globalizing California. Berkeley: University California Press, 2007.), agora traduzido em português (Gilmore, 2024GILMORE, Ruth Wilson. Califórnia Gulag: prisões, crise do capitalismo e abolicionismo penal. Tradução de Bruno Xavier. São Paulo: Editora Igrá Kniga, 2024. ), e mais recentemente, Abolition Geography (Gilmore, 2022GILMORE, Ruth Wilson. Abolition Geography. Essays towards liberation. London; New York: Verso, 2022), operacionalizam esses conceitos e categorias para produzir uma geografia radical e abolicionista. Tanto o espaço quanto sua teorização podem ser chaves interpretativas e condições materiais para a organização abolicionista. Você poderia falar um pouco sobre a Geografia Abolicionista e seu método?

Ruth Gilmore: Fico muito feliz de falar sobre isso, é uma pergunta excelente. Uma das coisas que o estudo da economia política na interdisciplinaridade da geografia me permitiu foi ver muito claramente como tudo está conectado. Não quero dizer que é algo místico, mas de uma forma ativa: tudo está dinamicamente conectado através de contradições. A organização da vida social e as relações socioambientais estão todas organizadas através de contradições e isso significa que, primeiramente, se estudarmos qualquer coisa de perto o suficiente, vamos entender não apenas aquela coisa, mas também como ela se conecta às outras. Se, por extensão, pensarmos sobre os tipos de lutas que se apresentam ao mundo como lutas contra a polícia, as prisões e o militarismo, somos então capazes de pensá-las não apenas como lutas contra as forças de violência organizada, mas também contra os processos de abandono organizado que fizeram com que as pessoas ficassem vulneráveis à violência, em primeiro lugar, ou em segundo, em terceiro. Nem sempre é o abandono imediato da política, da prisão ou do militarismo, mas todos eles juntos. Ao estudar as origens do crescimento do encarceramento em massa na Califórnia no contexto da crise capitalista, pude entendê-lo como crise do capitalismo racial, que é o capitalismo como um todo, pois todo o capitalismo é racial. Tive a oportunidade de refletir profundamente sobre todos esses aspectos da realidade social em que as pessoas sofrem, seja pelo abandono ao perderem o emprego, por não terem casas, por perderem a guarda de seus filhos, ou por não serem capazes de manter uma economia funcional numa área rural no interior. Isso, junto a todas as outras coisas que estudei no meu primeiro livro, revelaram os elementos que compõem o modo como as pessoas vão se organizar para remediar esses problemas. No livro, falo das mães que se organizaram para recuperar seus filhos e, embora algumas delas acordassem todos os dias pensando 'Quero fazer do mundo um lugar melhor!', a maioria não se organizou politicamente até que algo atacasse sua existência e já não pudessem aguentar. Aí, toda sua energia foi direcionada para fazer algo a respeito. Nem mesmo essa organização começou com um pensamento totalmente planejado por meio de um programa de ativismo político. Começou com mães ajudando mães a tomar conta de seus filhos. Mães ajudando mães a entender porque seus filhos foram presos. Mães ajudando mães a entender o que elas poderiam fazer em seguida. Tornou-se, então, abertamente político. Mas eu e outras pessoas percebemos que obviamente já era político desde o início. As pessoas estavam fazendo algo para melhorar seu modo de vida, o que é sempre um ato político. Então, isso se estende de modo mais geral até a abolição. Ultimamente, venho pensando sobre a forma de emancipação como ensaio [rehearsal]. As pessoas agem para sua emancipação repetidamente e em algum momento, fazem algo um pouco diferente. Depois se unem com outras pessoas, e outras pessoas ainda podem observar, ver e perceber o que está sendo feito e se unirem a elas. Há uma emancipação constante, contínua, em ensaio [rehearsal] que não sempre, mas frequentemente, se torna uma mudança enorme na consciência e no modo de vida das pessoas. Construindo a partir daí e entendendo que para atingir a abolição - para muitas outras pessoas, não só para mim - nós só temos que mudar uma coisa, que é tudo. Mudar uma única coisa: tudo. Mas isso não quer dizer apagar tudo, não quer dizer por fogo em tudo. Quer dizer que, onde quer que você esteja, o que quer que esteja fazendo, o que quer que seja que ataca sua existência, trabalhar a energia que você, eu, nós e outros reunimos para remediar aquele problema faz parte de mudar tudo. Todos os aspectos da realidade social fazem parte do que precisa mudar. Podemos dizer isso em termos concretos. Moradia, por exemplo. Precisa haver moradia adequada para todos, com todas as utilidades e benefícios da moradia, que seja adequada, que seja segura, que tenha água. Esse é um exemplo. Outro é assistência médica. Todos precisam de assistência médica, e então as pessoas que lutam nessa frente para organizar, para transformar isso, estão fazendo um trabalho abolicionista. O que também significa entender como, no contexto das comunidades e lares onde pessoas, por diversos motivos e situações diferentes, acostumaram-se a usar a violência como discurso. A violência doméstica é um exemplo do uso da violência como discurso. Se estou brava com você, falo de uma certa forma, eu te machuco. Esse também é um tema em que aqueles que estão se organizando - vale para todos os lugares do planeta - para intervir em situações onde a violência doméstica acontece sem alimentar o complexo industrial prisional chamando a polícia, também estão fazendo um trabalho abolicionista. Podemos usar esses exemplos e analisar todos os diferentes tipos de exemplos incluindo quaisquer pessoas. Mas frequentemente penso sobre quem trabalha com atendimento médico, especialmente enfermeiros. Em algumas dessas instâncias, enfermeiros são extremamente radicais no modo como passaram a entender seu esforço para se organizar em sindicatos e lutar por salários justos, contra seus patrões. Essa luta também está conectada à demanda de seus pacientes por atendimento médico gratuito e de boa qualidade. Esses são apenas alguns dos exemplos possíveis. Há possibilidades [de trabalho abolicionista] até no que pode parecer apenas uma área reformista comum, como o fortalecimento de sindicatos, onde podemos ver a abolição como algo possível e frequente.

Entrevistadores: Em Abolition Geography entendemos que abolição é uma prática diária e essencialmente espacial. Um produto da história de resistência coletiva e atributo do presente em face à violência racial persistente. Na primeira parte do livro você reflete sobre o que são, e o que deveriam ser, a universidade e a educação pública, e também sobre o papel dos professores como atores para mudar o mundo. Quando lemos a frase 'Podemos nos organizar através do ensino e do currículo', interpretamos que você também é uma defensora radical do trabalho intelectual. O que seria o trabalho intelectual radical para você?

Ruth Gilmore: Trabalho intelectual, o que universidades são e deveriam ser: ensino e currículo. Primeiramente, já disse muitas vezes, para muitas pessoas, e acabei de dizer no meu seminário hoje também: 'Universidades são encruzilhadas'. Nas universidades se encontram pessoas que talvez nunca fossem se encontrar em qualquer outro lugar. Não só na universidade, mas ela certamente é um lugar onde certos tipos de encontros são possíveis e as pessoas se reúnem com muita energia intelectual. Nossa obrigação e responsabilidade, como professores, é liberar essa energia para refletir profundamente sobre o mundo, como funciona, como deveria funcionar. Para mim, o currículo deveria ser uma oportunidade para as pessoas refletirem profundamente com escritores e outras pessoas que fizeram seu trabalho de diferentes formas, podem ser filmes, pode ser qualquer outra coisa. Refletir profundamente com eles sobre como fazem o que fazem, de modo que nós, que os estamos estudando, possamos pensar a dinâmica de seu trabalho, e como usar algum aspecto dessa dinâmica para fazer algo diferente. Esse é um jeito longo de dizer que não tenho paciência para pessoas que pensam que ser intelectual é encontrar o que está errado nas coisas. Acreditem em mim, porque já fui esse tipo de pessoa. Eu dizia coisas como 'Ah, isso não presta.' Eu era tão infeliz. Eu saía dos seminários deprimida porque tudo que fazíamos era reclamar. E, ainda por cima, juntando-se às reclamações, muitas das coisas que lemos, por sermos pesquisadores militantes, é justamente sobre as lutas do mundo. Lemos reclamações e reclamamos sobre elas. Onde está a vida nisso? Esse é um modo muito negativo de abordagem do que poderia ser extremamente empolgante, uma atividade produtora de energia. Para mim, o currículo deveria dar às pessoas que estão estudando juntas a oportunidade, como diz Paulo Freire, de pensar junto, pensar com o escritor. Quando digo com o escritor, não quero dizer se tornar aquele escritor, mas, em vez disso, pensar a dinâmica analítica de um trabalho e considerar como aquela energia poderia ser colocada junto as nossas preocupações de pesquisa ou projetos de escrita para fazer algo, para atingir algo, para notar algo que de outra maneira não notaríamos. Para mim, basicamente, é isso que constitui o trabalho intelectual, que não acontece só nas universidades, acontece em todos os lugares. Se nos afastarmos um pouco da escrita e pensarmos sobre como as pessoas fazem todos os tipos de coisas, frequentemente há um reconhecimento, da parte de alguém que faz algo, de que outras pessoas estavam fazendo algo parecido, mas de forma diferente. Então, surge uma curiosidade em relação a isso, e essa feitura se torna uma outra coisa ainda; se estão criando uma organização, construindo um cômodo da casa, fazendo música, arte ou qualquer outro tipo de coisa que exista, perceber as coisas de modo diferente pode levar a combinações muito empolgantes e vitalizantes. Não é uma competição. Mas podem ser combinações de energia, insights, entusiasmo ou técnica, seja como for que decidirmos chamá-las.

Entrevistadores: Você critica intelectuais que abandonam a tarefa de acompanhar, assim como colaborar com e intervir em movimentos para a transformação, porque eles pensam por meio de uma gramática econômica e com o individualismo como princípio, resultando em um conservadorismo que é visível na rejeição de mudanças curriculares. Ao mesmo tempo você defende a universidade como lugar onde a ecologia política acontece, permitindo novos modos de questionar a realidade e entender como conectar diferentes lutas para ser criativo. Então, esse tipo de função positiva da instituição se conecta com o que você defende quando diz que política [politics] é a nova teoria?

Ruth Gilmore: E a política [policy5 5 No sentido de “política pública”. ] é o novo espírito. Eu não tinha pensado sobre isso dessa maneira. É muito interessante. O que quero dizer? Algumas coisas. A primeira é que contrariamente ao meu entusiasmo sobre o que é possível no ambiente da universidade, comprometo muito pouco da minha energia tentando persuadir meus colegas mais conservadores a fazerem as coisas de outro modo. Ajudo meus alunos que encontram esses colegas a ter uma atitude diferente sobre o trabalho desses professores. A maior parte da minha energia, entretanto, vai para os meus alunos. Vai para o CPCP também, mas a maior parte vai para os alunos. O que descobri é a possibilidade de mostrar a eles, através de exemplos, e não dando palestras ou sermões, mas mostrando, pelo exemplo, um modo diferente de ser intelectual no mundo que os permite tanto fazer o tipo de coisas que descrevi na resposta anterior, perceber coisas para usar a dinâmica de modo diferente e assim por diante. Também os ajudo a fortalecer seu sentido de identidade [sense of self] em relação a esses outros professores, de modo que não sejam destruídos por eles. E digo a vocês que um dos conceitos que mais uso para refletir sobre isso é o de consciência dupla de Du Bois. É maravilhoso. Du Bois pensou isso quando escreveu mais de cento e vinte anos atrás, acho que ele não sabia que a consciência dupla é algo maravilhoso. Adoro a ideia de ter a capacidade de ser consciente de sua própria alienação ao mesmo tempo em que não se é alienado. É a dupla consciência. Você poder ser consciente de sua alienação e não ser alienado. Ao mesmo tempo. É um tipo de dom, eu acho, e não a maldição que tantas pessoas pensavam ser. Não tenho toda a certeza do que Du Bois achava disso durante sua vida e carreira. Posso dar um exemplo muito específico sobre o trabalho de minha amiga Sónia Vaz Borges no PAIGC e seu programa de educação6 6 Ruth Gilmore se refere à professora de estudos africanos do Departamento de História da Drexel University (Filadélfia, Estados Unidos) que, entre outros, estudou as ações pedagógicas do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), atuante como movimento de resistência anticolonial entre os anos 1950 e 1970, até se tornar um partido político na Guiné-Bissau. . Uma das coisas que ela me ensinou, que ensinou a todos nós através de seu trabalho, foi que o partido (PAIGC) não só desenvolveu seu próprio currículo para ensinar adultos e crianças nas zonas de libertação de Guiné-Bissau durante a revolução - e eles fizeram tudo isso - mas eles também desenvolveram seu próprio currículo. Escreveram seus próprios livros e apostilas. Treinaram seus professores. Todos os professores tinham duas funções: professor e soldado, professor e médico, professor e mais alguma coisa. Fazia parte da revolução, e também da preparação para a revolução. Também é verdade que nos primeiros anos da revolução, à medida que as zonas eram libertadas, os livros que o partido tinha escrito ainda não estavam disponíveis, ainda não tinham sido impressos. Foram impressos por camaradas na Suécia e levou muito tempo. Imagine o quanto leva de tempo para algo da Suécia chegar a Guiné Bissau. Foi difícil. O que Sónia nos ensina é que os professores usavam o que estivesse disponível. Nesse caso, eram os livros escolares coloniais, mas criando um entendimento do que o livro dizia de um jeito diferente. Esses livros eram utilizados como forma de abrir a consciência permitindo que pessoas encontrassem todos esses textos coloniais e entendessem o porquê de livros desse tipo terem sido escritos. Não apenas reclamar, mas chegar a uma análise estrutural de sua própria falta de letramento e do próprio processo de letramento. Acho que essa história, com os ajustes necessários, é o tipo de história que tantas pessoas hoje, que são, como vocês estavam me contando agora há pouco, a primeira geração a frequentar a universidade. A primeira geração que fez X ou Y. De certo modo, foi isso o que fez a ação afirmativa, oficialmente. O que ela fez, de um modo Liberal com L maiúsculo, foi expandir a realidade apenas o suficiente para incluir algumas pessoas que eram excluídas. Isso é objetivamente verdadeiro, mas não conta a história inteira, como também o livro escolar colonial não conta toda a história. O que acontece, ou o que temos a oportunidade de fazer é, através de nossos cursos, não importa quais sejam eles, ajudar pessoas a entender a natureza da totalidade social, que parece ter sido um pouco alargada, de modo que as pessoas possam se tornar conscientes de sua forma e de como podemos mudá-la de maneira mais radical.

Entrevistadores: Temos duas perguntas em uma. Sabemos que o mundo é organizado em diferentes formações socioespaciais e que, ambos, raça e racismo, são também categorias socioespaciais e, portanto, variam conforme o lugar e as diferentes escalas geográficas. Primeira: Você poderia falar sobre o que define como Geografia Política da Raça? Segunda: Como podemos unificar lutas antirracistas entre diferentes lugares hoje?

Ruth Gilmore: A Geografia Política da Raça, conforme entendo e tento explicar, tem a ver com o modo como acoplamentos [couplings] fatais de poder e diferença poderiam se desdobrar em um território ao longo do tempo, e como esse desdobramento reforça certos tipos de exclusão, vulnerabilidades etc. Essa geografia política indica que há diferenciais de poder ligados a grupos que se importam com ou são expressos através deles. Vou usar nações e Estados porque é mais fácil, não por serem unidades naturais de análise, mas por ser unidades recorrentes e fáceis de análise. O Brasil é o maior país negro nesse hemisfério. Se eu dissesse a vocês quantas pessoas nos Estados Unidos da América não fazem a menor ideia disso vocês ficariam impressionados. Estou falando de pessoas negras, não de outras. Se você for a um lugar como a Jamaica, que não é um país totalmente negro, mas um país onde muitas das pessoas em todos os níveis da hierarquia social e econômica são o que a gente, nos Estados Unidos, poderia chamar de negras. Você vai de um país a outro e se pergunta 'O que está acontecendo aqui?' A geografia política da raça é um modo analítico de pensar sobre que tipos de processos e forças demandaram certa ordem social e também como isso muda com o passar do tempo, seja uma inclusão liberal ou outra coisa. Apenas para lembrar mais uma vez que raça não é sinônimo de negro, podemos pensar em um lugar como Peru, por exemplo, onde tantas lutas são sobre pessoas indígenas, maiores em número, e geralmente sem capacidade de determinar seu próprio futuro em termos de poder. Podemos pensar sobre qual combinação de forças como a dos colonos [settler colonial], e outras forças com o passar do tempo se somaram a ela, produzem aquela hierarquia específica no Peru, mesmo que a pessoa no comando seja ou possa ter sido de origem indígena. A geografia política nos dá um guia para pensar sobre um objeto socioespacial, entender como ele opera e fazer com que nos perguntemos: 'Se algo funciona desse modo naquele contexto, também funciona desse mesmo modo uniformemente em todos os outros lugares? Ou há muita diferenciação e diferença entre e dentre as regiões?' Podemos falar um pouco sobre essa questão, mas a segunda pergunta é a que realmente me empolga, sobre a unificação entre espaços. Estou usando Estados-nação, mas o exemplo não precisaria ser necessariamente esse. Poderiam tanto ser regiões maiores quanto menores que Estados-nação. Poderiam ser combinações de pessoas espalhadas como membros da diáspora, lutando de um jeito ou de outro. Uma das formas e práticas aspiracionais mais fortes sobre solidariedade negra no século XX e no XXI é o conceito de Pan-Africanismo em sua forma revolucionária de estar no mundo. O Pan-Africanismo não disse apenas 'Todas as pessoas negras estão relacionadas a todas as pessoas negras que lutam' mas sim o que isso significa em termos de unir lutas. Há vários desses exemplos e são todos internacionalistas. Todas elas são lutas que partem do princípio que o único modo de emancipação é não nos entregarmos para o que Fanon chama de armadilhas do nacionalismo [pitfalls of nationalism]. Podemos pensar em exemplos mais recentes de como as pessoas se organizaram para criar possibilidades para sua própria emancipação e, ao fazer isso, juntaram forças a partir de distâncias espaciais e sociais muito vastas. Um exemplo que usei muitas vezes nos últimos anos foi a conexão, que não é simples, entre o que o MST vem fazendo no Brasil agora há quarenta anos, creio, e sua relação com o movimento de moradores de barracos [shack dwellers], especialmente no aspecto do movimento chamado Abahlali vem fazendo na África do Sul7 7 Trata-se do movimento Abahlali BaseMjondolo (AbM), surgido na cidade sul-africana de Durban, em 2005, e que na língua zulu significa “moradores de barracos”. A despeito de um histórico de violenta repressão contra as suas ações, o AbM é hoje uma das maiores referências na luta por moradia na África do Sul, congregando cerca de 115 mil membros. Para mais informações, consultar https://abahlali.org. nos últimos dezoito anos. São lutas completamente diferentes, mas o que as une é que são as lutas pela terra, esse é o denominador comum: lutas sobre a terra e o uso da terra. Vocês já sabem, mas vou falar para a entrevista: uma boa parte das atividades do MST vem sendo trabalhar em grupos para fazer ocupações de terra e transformá-las em comunidades agrícolas produtivas e tudo que isso envolve. Também o MST porque é um movimento bem grande formado por comunidades agrícolas menores que vêm fazendo coisas como produzir arroz orgânico que alimenta não só as pessoas que o plantam, mas também beneficia pessoas como as que estão atrás das barricadas na Venezuela, onde há muita fome. Isso se espalhou para todo o hemisfério. Somado a tudo que estão fazendo, também estão todos estudando, lutando e descobrindo como fazer as coisas de uma maneira cada vez melhor. Também são solidários com pessoas na África do Sul que fazem parte do movimento Abahlali, que faz ocupações de terra e constrói as próprias casas, ou faz ocupações e transforma lugares como hospitais em espaços de moradia em muitos de seus acampamentos ou vilas, fazendo trabalho agrícola para alimentar pessoas que vivem lá e trabalham na terra, mas também para disponibilizar comida para as comunidades do entorno. O MST e o Abahlali têm trabalhado juntos, um ensinando ao outro, não é uma via de mão única. O Abahlali se torna uma espécie de movimento central para a África do Sul e as pessoas vêm de todo o continente e há uma conexão, nesse momento, em torno do continente africano. Essas lutas pela terra não se referem só a moradia e agricultura, mas também ao controle dos recursos minerais abaixo da terra. Essa é uma área de extrema contenção no momento em que o neo-imperalismo está fazendo o que faz lá em relação à experiência das pessoas comuns, que é indistinguível do que o neo-imperialismo e a financeirização fazem em relação à terra agrícola no Brasil. Há outras maneiras que essas lutas foram unidas através dos campesinos e outras iniciativas. Esses são apenas alguns exemplos de unificação entre diferentes espaços. A última coisa que gostaria de dizer que esses movimentos estão fazendo é: combinando todas as armas possíveis para serem capazes de atingir a abundância para eles mesmos no futuro. Em alguns casos, vão usar o governo federal, estadual ou municipal. Produzem coisas que são vendidas, mas não são capitalistas. Confundir mercado e capitalismo é uma coisa terrível. Então, entender essa diferença é algo essencial para pensar sobre como unificar diferentes espaços. Essa é uma longa resposta para uma grande pergunta.

Entrevistadores: Gostaríamos que você comentasse o encontro que teve com Milton Santos.

Ruth Gilmore: Acho que foi trinta anos atrás. Milton Santos veio através da Rutgers [University] onde eu estava matriculada no programa de pós-graduação. Tive a grande sorte de meu orientador, Neil Smith, ter sido extremamente generoso e convidado eu e meu parceiro, ainda que eu fosse apenas uma aluna. Nós éramos convidados para a casa dele sempre que ele recebia visitas e nós tínhamos a chance de conviver com essas pessoas. Milton Santos veio e fez uma fala no Departamento de Geografia. Foi tão incrível para mim porque eu não sabia nada sobre ele. Eu era uma pessoa muito nova na geografia, que tinha acabado de começar. E aí chega esse irmão do Brasil que apresentou todas essas coisas de uma maneira incrivelmente lírica. O trabalho teórico dele era muito lírico. Você podia mergulhar na beleza das palavras antes de entender o significado delas. Era assim. Nós ouvimos a fala e então fomos para a casa de Neil jantar. Era um grupo pequeno. E Milton Santos era tão gentil, tão cuidadoso. Ele estava muito curioso sobre nós, sobre eu e meu parceiro. 'Quem são vocês? Acabaram de chegar na geografia?' Uma das coisas que ele falou e de que eu gostei muito foi como os hábitos acadêmicos são muito diferentes em cada lugar do mundo. Ele teve a feliz experiência de vir a New Brunswick e fazer essa fala na Rutgers, no Departamento de Geografia, onde as pessoas estavam animadas com a presença dele lá e curiosas sobre o que ele tinha a dizer. Não estavam prestes a começar a brigar com ele pelo que ele não disse. A gente nem sabia o suficiente para brigar. Estávamos preocupados em saber quem ele era. Mas ele me contou uma história sobre a primeira vez que fez uma fala em Paris. Não tenho certeza se foi em Paris, mas sei que foi na França. Ele tinha escrito sua fala, em inglês ou francês, provavelmente em francês, e o anfitrião dele, o indivíduo que o havia convidado, pediu para ver o que ele havia escrito. Milton Santos pensou que o anfitrião talvez fosse corrigir seu francês ou algo assim. Ele entregou o papel ao anfitrião, que leu, e disse 'Você não pode fazer isso'. Se você falar desse assunto, precisa citar essas cinco pessoas aqui. Se você falar desse outro assunto, precisa referenciar essas quatro outras pessoas aqui. Eram as pessoas do panteão da geografia francesa que precisavam ser mencionadas ou então ninguém ia levar a fala dele a sério. O anfitrião corrigiu a fala, e eu perguntei o que Milton tinha feito em seguida. Ele respondeu: 'Fiz a fala que ele queria que eu fizesse, mas não me preocupei muito com isso.' O que nos leva de volta à discussão sobre os livros escolares coloniais. 'Era curioso para mim que eu tivesse viajado milhares de quilômetros para Paris para dar uma fala que só importaria se coubesse no que eles já sabiam, o que era uma curiosidade para mim porque eu não fazia isso, não reproduzia pensamentos no meu trabalho nem exigia isso dos meus alunos. Nosso propósito não é fazer nosso conhecimento caber ou se adaptar.', ele disse. Umas das coisas que é bonita de verdade nessa história é que a experiência dele deve ter acontecido trinta anos antes de eu tê-lo conhecido, quando ele foi a Paris, e agora estou contando essa história para vocês, trinta anos depois. Ele é nosso ancestral, obviamente. É muito bonito e encorajador saber que Milton Santos, e todos nós usamos o que podemos usar. Minha visão é a seguinte: não rejeito coisas por terem vindo do colonial. Uso o que puder usar e jogo fora o resto.

Entrevistadores: Assim como você, Milton Santos nos ensina a pensar o futuro o tempo todo. A conversa, a pesquisa, é sobre o futuro. Temos uma última pergunta, e talvez esteja relacionada ao futuro. Como e onde achamos o lugar de liberdade?

Ruth Gilmore: Nós fazemos o lugar da liberdade. Essa é a pergunta mais fácil que vocês poderiam ter feito para mim. Nós o fazemos e refazemos, fazemos e refazemos. Usei essa palavra, ensaio [rehearsal], no sentido de preparar, fazer uma apresentação, musical, teatral ou algo assim. Esse é o sentido de ensaio. Não de repetição, mas de ensaio. Fazer liberdade, liberdade é um lugar que significa fazer e fazer de novo. Fazermos em todas as configurações diferentes. Às vezes elas se juntam. Amo o fato de estarmos fazendo essa conversa. Estamos falando desse jeito, entre onde vocês estão e onde eu estou, e vocês veem essa lousa na parede, e nós criamos esse lugar provisório. Ele não será permanente, mas vocês três vão fazer algo a partir do nosso encontro que, por sua vez, irá permitir que outras pessoas façam algo elas mesmas. É uma coisa bonita. Eu gostaria de dizer algo sobre lugares não permanentes. Muito tempo atrás, antes que eu realmente percebesse que iria estudar geografia, embora já estivesse pensando nisso, eu tinha muita clareza de que iria voltar a estudar. Fui para essa grande conferência internacional sobre Estudos Culturais e a pessoa mais importante, conhecida, que eu realmente queria ouvir era Stuart Hall. Eu tinha acabado de conhecê-lo no ano anterior. Ele disse 'Precisamos nos encontrar nessa conferência.' Então, lá estava eu, com todas aquelas pessoas fantásticas fazendo falas maravilhosas. Também havia pessoas fazendo falas não tão maravilhosas, mas uma conferência é isso: boas falas e falas não tão boas. Uma das pessoas que fez uma a fala, e eu não entendi nada sobre o que ela estava falando, não porque o vocabulário dela era especializado ou abstrato demais, mas porque, eu percebi depois, ela estudou geografia e desconsiderou que seus objetos de análise poderiam não ressoar com todas as pessoas naquele grande auditório. Não entendi, mas ouvi mesmo assim, pois nunca se sabe. Ela falou sobre lugares temporários que se tornam muito significativos para as pessoas. Estava falando sobre festivais, feiras, eventos musicais e esses tipos de lugares que acontecem porque as pessoas se reúnem por um tempo limitado, mas fazem as coisas de modo tão concentrado que não apenas usam, mas produzem energia. Uma energia que vai com elas para outros lugares. Penso que fizemos isso aqui, nosso pequeno festival para as pessoas. Eu finalmente consegui entender sobre o que ela estava falando esse tempo todo.

References

  • GILMORE, Ruth Wilson. Golden Gulag: prisons, surplus, crises, and opposition in Globalizing California. Berkeley: University California Press, 2007.
  • GILMORE, Ruth Wilson. Califórnia Gulag: prisões, crise do capitalismo e abolicionismo penal. Tradução de Bruno Xavier. São Paulo: Editora Igrá Kniga, 2024.
  • GILMORE, Ruth Wilson. Abolition Geography. Essays towards liberation. London; New York: Verso, 2022
  • 1
    Realizada em dezembro de 2023. A entrevista ocorreu integralmente em inglês e contou com a transcrição e tradução de Milena Durante, com financiamento do Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGEO) da Universidade Estadual do Maranhão.
  • 2
    Doutoranda em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas, sob orientação do Prof. Dr. Márcio Cataia. Projeto de pesquisa no exterior: Socio-spatial formation in the contemporary metropolis: the popular food sales circuit in São Luís and New York. Financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Processo: 2021/08011-8.
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    Doutor em Geografia. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em geografia da Universidade Estadual do Maranhão e coordenador do Núcleo de Estudos em Território, Cultura e Planejamento-MARIELLE-UEMA. Projeto de pós-doutoramento: Território usado, circuitos culturais negros e planejamento urbano: o movimento hip hop em Nova Iorque e em São Luís. Financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Estado do Maranhão (FAPEMA) (Edital 19/2020) Processo: BPD-00181/21.
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    Pós-doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Bolsista Fapesp. Doutora em Filosofia pela UNICAMP. Desenvolve pesquisa nas áreas de filosofia e raça, epistemologia contemporânea, epistemologia social, tecnologia, estudos de gênero e pensamento negro brasileiro. Financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Processo: 2022/04958-3.
  • 5
    No sentido de “política pública”.
  • 6
    Ruth Gilmore se refere à professora de estudos africanos do Departamento de História da Drexel University (Filadélfia, Estados Unidos) que, entre outros, estudou as ações pedagógicas do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), atuante como movimento de resistência anticolonial entre os anos 1950 e 1970, até se tornar um partido político na Guiné-Bissau.
  • 7
    Trata-se do movimento Abahlali BaseMjondolo (AbM), surgido na cidade sul-africana de Durban, em 2005, e que na língua zulu significa “moradores de barracos”. A despeito de um histórico de violenta repressão contra as suas ações, o AbM é hoje uma das maiores referências na luta por moradia na África do Sul, congregando cerca de 115 mil membros. Para mais informações, consultar https://abahlali.org.

Editado por

Editor do artigo:

Paula C. Strina Juliasz

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    07 Jan 2024
  • Aceito
    13 Mar 2024
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