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O Poder aeroespacial como meio de atuação geopolítica: o espaço mundial, o Brasil e a América do Sul

El poder aeroespacial como medio de acción geopolítica: el espacio mundial, Brasil y América del Sur

Resumo

A tecitura internacional atual aponta as aeronaves militares como meio tecnológico em centralidade dos assuntos geopolíticos. O artigo tem como objetivo principal perceber o papel, movimentações e uso de aeronaves militares modernas nas dinâmicas geopolíticas e geoestratégicas no espaço global. O uso do avião militar é tido como meio de execução de geoestratégia por meio de presença militar intensiva enquanto exercícios ou incursões territoriais definem eventos ocorrentes após a segunda guerra mundial. Nota-se ainda, a possibilidade do Estado brasileiro como meio indutor de investimentos para a ampliação do poder de força de seus meios aéreos sobre seu exterior próximo. A reafirmação da defesa, do poder do Estado e de sua transformação econômica perpassa pela geoestratégia do Poder Aeroespacial.

Palavras-chave:
Geopolítica Aeroespacial; Poder Aeroespacial e Geoestratégia

Resumen

El tejido internacional actual señala a las aeronaves militares como el medio tecnológico en el centro de los asuntos geopolíticos. El principal objetivo del artículo es comprender el papel, los movimientos y el uso de las aeronaves militares modernas en la dinámica geopolítica y geoestratégica del espacio global. El uso de aeronaves militares es visto como un medio de ejecución de la geoestrategia a través de la presencia militar intensiva, mientras que los ejercicios o incursiones territoriales definen los acontecimientos ocurridos después de la Segunda Guerra Mundial. También existe la posibilidad de que el Estado brasileño, como medio de inducir inversiones, expanda el poder de sus medios aéreos sobre su vecindad inmediata. La reafirmación de la defensa, del poder del Estado y de su transformación económica pasa por la geoestrategia del Poder Aeroespacial.

Palabras clave:
Geopolítica aeroespacial; poder aeroespacial y geoestrategia

Abstract

The current international fabric points to military aircraft as the technological means at the center of geopolitical affairs. The article's main objective is to understand the role, movements, and use of modern military aircraft in geopolitical and geostrategic dynamics in global space. The use of military aircraft is seen as a means of executing geostrategy through intensive military presence while exercises or territorial incursions define events that occurred after the Second World War. There is also the possibility of the Brazilian state as a means of inducing investments to increase the power of its air assets over its immediate surroundings. The reaffirmation of defense, the power of the state and its economic transformation all involve the geostrategy of Aerospace Power.

Keywords:
Aerospace Geopolitics; Aerospace Power and Geostrategy

Introdução

A alocação do elemento aeronáutico nas espacialidades geopolíticas alterou as interações extranacionais por completo. O avião foi introduzido na arquitetura da criação de estratégias e decisões nacionais em diferentes períodos. A aeronave enquanto instrumento bélico demonstra a fundamentalidade desses aparelhos na execução de geoestratégia. Durante a primeira guerra mundial nota-se o uso prático das aeronaves em conflito bélico, e são demonstradas como possibilidade futura que transformaria exércitos singularmente terrestres como categoria ultrapassada de combate. A primeira Guerra Mundial funciona como campo de experimentação e ampliação da tecnologia aeronáutica. Para o teórico Giulio Douhet, o uso militarizado dos aviões seria condicionante à guerra total, Douhet consuma que a potencialidade aeronáutica eleva a guerra para além do teatro de operações (DOUHET, 1927DOUHET, G. The Command of the Air by Giulio Douhet. Translated by. Dino Ferrari. 1927.). O avanço da tecnologia do meio aéreo seria fundamental então para ganhos práticos ofensivos eficientes. Deste modo, ocorre mudança de estratégia clássica de guerra bidimensional e de batalhas estáticas para a guerra dinâmica tridimensional envolvendo terra, mar e o ar. Na segunda metade do século XX, mediante as mudanças em diversas áreas de campos militares a doutrina aérea dominante nas forças aéreas passa a se basear na introdução de munições de precisão guiadas, táticas avançadas de combates aéreos, aviões com reduzida ou imperceptíveis assinatura radar (Stealth), sistema de controle em bases, comando de missões interligados, comunicações avançadas, computadores, e sistemas de reconhecimento remoto (WALLER, 2020WALLER, J. Airpower Theory and Hybrid Warfare: Warden's Five Rings. Dissertação de Mestrado. Universidade de John Hopkins, 2020.).

A denominada Revolution in Military Affairs (RMA), possibilitou doutrinas estratégicas dos EUA principalmente para intervenções diretas e indiretas em países do então classificado Terceiro Mundo. O balanço de poder entre EUA e URSS estava diretamente ligado a conflitos indiretos em territórios estrangeiros, colocando conceitos da guerra aérea, convencional ou nuclear, em evidência. Os conflitos de baixa intensidade ou Low-Intensity Conflicts (LIC) dotados de aeronaves com tecnologia de ponta orientaram as intervenções do eixo capitalista e socialista durante o período da Guerra Fria (1947 – 1991), como a guerra de intervenção aérea convencional contra as forças de guerrilha ou semelhantes ocorridas na Guerra da Coreia (1950 – 1953), Guerra do Vietnã (1955 – 1972), Guerra do Afeganistão (1979 – 1989), Guerra Civil Angolana (1975-2002) e Guerra Irã- Iraque (1980 – 1988) (ARON, 2002). Ainda, a doutrina de Air Land Battle, interna ao LIC, consistiu na construção e adição de programas de integração de forças militares aprofundada para missões táticas de comando e intervenção mais eficiente, como as ações de Close Air Support (CAS), Aerial Interdiction (AI) e Tactical Air Command (TAC) tidas respectivamente como suporte aéreo geral às foças militares em operação, intervenção aérea nas linhas de combate terrestre ou marítimas e comando centralizado e organizado de operações apresentar o conceito do Poder Aeroespacial de maneira geral.

No ano de 1998, o estadunidense John Warden descreve a natureza de um conflito como a soma de objetivos políticos nacionais e objetivos militares que se traduzem na campanha aérea. Para Warden, o uso do Poder Aéreo advém da cooperação de comandantes no espaço de guerra junto a deliberações políticas centrais. Os planos para ganho de conflito de fato é a destruição ou neutralização das forças armadas do inimigo, destruição e incapacitação da estrutura econômica, e a destruição da vontade de resistência de governo e população oponente (WARDEN, 1998WARDEN III, J. A. The Air Campaign. Ed: iUniverse, 1998.). Ao longo da segunda metade do século XX as práticas de estratégia apontam a liderança como alvo de maior relevância. Os círculos de importância de Warden estruturam pontos nodais das táticas da guerra aérea para conquistar os objetivos almejados tratando sobre ataque de coação em Estados em áreas militares, econômicas, políticas e psicológicas. A urgência de alternativa ao desgaste de campanhas militares terrestres orientou o desenvolvimento de uma teoria base satisfatória sobre a conquista de objetivos através do uso do Poder Aéreo. A formatação dos ambientes aéreos consolidados permite a execução completa de autonomia e controle territorial dos Estados. Desta forma a Flight Information Region (FIR), ou Regiões de Informação de Voo, são protocoladas, por meio de convenções internacionais o uso e responsabilidade exclusiva dos Estados sobre uma região, prestando serviços de controle de tráfego, alerta, socorro e segurança de operações civis e militares. Ademais as Regiões de Defesa Aérea (RDA) estendem estas noções à espacialidade de defesa por identificação de ameaças externas. Através dos limites aéreos horizontais delimitados, as FIR são palco de movimentações aéreas de diferentes tipos incluindo o uso intencional estratégico. Exclusivamente de uso militar as delimitações da Região de Defesa Aérea (RDA) presumem controle e asseguramento do de soberania que, no caso brasileiro, são efetivados pelo Sistema de Defesa Aeroespacial Brasileiro (SISDABRA) (PLANALTO, 1980PLANALTO. Decreto-Lei nº 1.778, 18 de março de 1980. Sistema de Defesa Aeroespacial Brasileiro - SISDABRA e outras providências, 1980. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/del1778.htm#:~:text=Art.,soberania%20no%20espa%C3%A7o%20a%C3%A9reo%20brasileiro.>. Acesso em fevereiro de 2023.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/de...
).

O Poder Aereo é identificado como eixo militar essencial da aviação somado a instrumentalidade do alcance de objetivos por meios táticos armados; e o Poder Aeroespacial é tido como a conjunção de estrutura completa de um Estado relacionado ao espaço do ar como indústria, tecnologia e controle (ROSA & JASPER, 2018ROSA & JASPER, Aeronáutica in: PIERRE, H. L. S. & VITELLI, M. G (orgs.) Dicionário de Segurança e Defesa, Unesp. São Paulo. 2018.). Por este meio, as principais características de frotas aéreas militares internacionais ajudam avaliar e entender os devidos papéis de veículos específicos e suas objetividades no conjunto estratégico aéreo. A partir da Guerra Fria denotam-se diferentes eventos com o uso de aeronaves para funcionalidades de demonstração de força e capacidade de ataque, interceptação e defesa, e espionagem territorial. O uso do avião como meio geopolítico e geoestratégico transcorre sobre o entendimento de sistemas de interação aeroespacial de um Estado como identificação de indústria especializada, ambiente acadêmico de organismos inovadores, transferência de tecnologia e acordos internacionais, práticas de controle do espaço aéreo e mapeamento (ROSA, 2021ROSA, C. E. V. Geopolítica Aeroespacial. Revista Brasileira de Aviação Civil e Ciências Aeronáuticas, v.1, n.3. 2021. Disponível em: <https://rbac.cia.emnuvens.com.br/revista/article/view/40>. Acesso em: agosto de 2023
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).

O uso de aeronaves no espaço mundial

Os exercícios de guerra resultante de alianças ou coalizões e a capacidade de atuação de aeronaves anteriores ou após dissensões geopolíticas gerais ou específicas denotam caráter inusual de poderio aéreo nacionais à configuração geoestratégica total. A utilidade do voo nas movimentações geoestratégicas mundiais é exemplo de meio de execução nacional com intencionalidade e finalidade de objetivo. O estudo geopolítico age como meio analítico de ambientes geográficos e suas interações sobre a conjuntura política do mundo contemporâneo multifacetado.

A soma de novos atores no tabuleiro geopolítico mundial propicia constantes modificações nas leituras para projeção de poder das clássicas potências aéreas militares. Os condicionantes internacionais modernos possibilitam o aparecimento de focos de tensões e desestabilizações em pequenas ou médias centralidades hegemônicas. No contexto global nota-se a prevalência de velocidade de atuação presencial frente eventos diplomáticos decorridos de situações políticas internas ou externas no qual a aviação se faz presente para transporte, simulações, exercícios e manutenção de poder sobre determinada área. Por meio das diferentes atuações do modal aéreo e de suas operações firma-se influências regionais concisas. A complexidade do ambiente aéreo exige percepção intrínseca das espacialidades consonantes sobre o mesmo.

Ressalta-se que o poder é categoria que se apoia no espaço e no tempo. O território não é apenas uma porção de terra delimitada por fronteiras políticas, mas sim espaço geográfico que envolve a interação de diferentes fatores, como cultura, história, economia, meio ambiente e poder político (GOTTMANN, 2012GOTTMANN, J. A evolução do conceito de território. Boletim Campineiro de Geografia, [S. 1.], v. 2, n. 3, p. 523–545, 2012. Disponível em: <https://publicacoes.agb.org.br/boletimcampineiro/article/view/2458>. Acesso em: fevereiro de 2023.
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). Ainda segundo Gottmann o território é um elemento fundamental para a compreensão das relações internacionais e para a organização política dos Estados, pois é a partir dele que se estabelecem as relações de poder e de dominação entre as nações, estando o território diretamente ligado ou relacionado à sua capacidade de influenciar e ser influenciado pelas diversas dimensões sociais, econômicas e políticas (GOTTMANN, 2012GOTTMANN, J. A evolução do conceito de território. Boletim Campineiro de Geografia, [S. 1.], v. 2, n. 3, p. 523–545, 2012. Disponível em: <https://publicacoes.agb.org.br/boletimcampineiro/article/view/2458>. Acesso em: fevereiro de 2023.
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). Essas percepções se estendem de maneira contínua ao ambiente atmosférico.

Em Strategy for the Aligment of Singapore Flight Information Region Over Indonesian Airspace, Supriyadi et. al. demonstram a importância de autonomia de zonas aéreas condizentes a proporção territorial da Indonésia. As violações por parte de Singapura sobre o FIR da indonésia fazem parte de geoestratégia geral singapurense para maior controle de tráfego civil e zona militar disponível. Os autores elencam tópicos para a requisição em organismos internacionais de controle ICAO – ONU para alteração de tal realidade e ampliação de FIR (SUPRIYADI, et. al. 2020SUPRIYADI, A. A. GULTOM, R. A. G. MANESSA, M. D. M. SETYANTO, A. Strategy for the Alignment of Singapore Flight Information Region Over Indonesian Airspace. The Open Transportation Journal, v. 14. Disponível em: <https://opentransportationjournal.com/contents/volumes/V14/TOTJ-14-204/TOTJ-14-204.pdf>. Acesso em: Agosto de 2023.
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). Torna-se evidente a importância de área de circulação aérea e comando nacional para além de desenvolvimento, obtenção ou uso de aeronaves militares. Assim as noções de territorialidade são também transmutadas e estendidas aos limites invisíveis da atmosfera, impactando relações entre Estado.

A concepção de Fixos e Fluxos, elaborada por Milton Santos, proporciona valiosas contribuições para a geografia, permitindo uma compreensão mais profunda de como o sistema territorial engendra espaços e padrões heterogêneos, delineando intricadas redes de comunicação e estruturação do território social e político (SANTOS, 2007SANTOS, M. O espaço do cidadão. São Paulo: Edusp, 2007.). Os fixos, neste contexto, são representados pelas próprias aeronaves, bases aéreas, aeroportos e complexos industriais e de pesquisa vinculados ao Poder Aeroespacial. Tais componentes assumem formas que exercem influência direta sobre a malha geoestratégica nacional. As dinâmicas de fluxo inerentes ao Poder Aeroespacial emergem como produtos da interação complexa entre esses fixos, os quais conferem valor político e de poder, reconfigurando-os e dando origem a interseções informacionais geopolíticas e geoestratégicas dentro de um país. As aeronaves são concebidas como instrumentos móveis para a execução da geopolítica. O Poder Aeroespacial permite a viabilização da defesa e do estabelecimento de esferas de influência territoriais, uma vez que a estrutura desse poder e o voo se entrelaçam e exploram o território através da cartografia aérea e da contextualização regional. Esse cenário situa diversas realidades em um plano geopolítico informacional diversificado, dotado de elementos transformadores que moldam as dimensões da política de defesa e das relações exteriores do Estado.

O papel, as manobras e a utilização das atuais aeronaves militares desempenham um papel crucial nas dinâmicas geopolíticas e geoestratégicas tanto em âmbito regional como global, influenciando as relações entre diferentes nações. Essas aeronaves, representando a vanguarda da tecnologia aeroespacial, operam como elementos centrais na determinação da capacidade de projeção de poder e na garantia da segurança nacional. A sua presença e capacidade de movimentação não apenas impactam as estratégias de defesa de um país, mas também moldam as interações políticas e econômicas em níveis internacionais. Ao sobrevoarem fronteiras e participarem de exercícios conjuntos, as aeronaves militares modernas não apenas demonstram força e presença, mas também estabelecem canais de comunicação silenciosa entre governos, influenciando a tomada de decisões e o equilíbrio de poder. Nesse cenário, a utilização dessas aeronaves transcende o mero emprego bélico, desempenhando um papel multifacetado na construção e manutenção das relações internacionais e na moldagem das estratégias geopolíticas e geoestratégicas em todo o globo.

O uso de elementos aeroespaciais pode ser resultante de ação política quando utilizados após temeridades diplomáticas e das relações internacionais. Ao mesmo tempo, elementos aeroespaciais são agentes transformadores do espaço da política internacional quando usados em exercícios de coalizão, incursões aéreas e de maneira evidente em operações de combate declarado. Os elementos de utilização e transformação de espaços pelo meio aéreo podem ser notados em casos ocorrentes durante a Guerra Fria promulgados pelas então potências militares União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e Estados Unidos da América (EUA). Tais polaridades, assim como outros países, tem sua arquitetura estatal determinada pelo arranjo social, econômico e político somados aos princípios de violência e defesa (JUNIOR, 1998JUNIOR, G. F. A Legitimidade e Outras Questões Internacionais. 2ª Ed. Paz e Terra, São Paulo. 1998.). Esses ideais engendram nações pela perspectiva de polaridade mundial ou de polo regional para integração global.

I. Os bombardeiros

Como uma influência geoestratégica remanescente do século XX, os bombardeiros se destacam como aeronaves projetadas para transportar e lançar bombas em alvos terrestres. Além disso, encontram aplicação em operações de busca e salvamento, bem como no lançamento de sondas científicas para a coleta e visualização de informações. Um exemplo notável é o Boeing B-52 Stratofortress (EUA), em operação desde a década de 1950, concebido como resposta aos bombardeiros pesados soviéticos Tupolev TU-95. Durante a Guerra Fria, os TU-95 foram amplamente empregados pela União Soviética para executar patrulhas aéreas de longo alcance. Estas missões tinham duplo propósito: demonstrar a capacidade da URSS de atingir alvos estratégicos nos EUA e Europa, ao mesmo tempo que obtinham informações de inteligência. Entre 1961 e 1991, diversos interceptadores estadunidenses, como os F-102, F-106, F-4 e F-15, registraram inúmeras abordagens no Atlântico Norte e no Canadá (COREL, 2018COREL, J. T. Intercepting the Bear – Air Spaces Forces Magazine, 2018. Disponível em: <https://www.airandspaceforces.com/article/intercepting-the-bear/>. Acesso em janeiro de 2023.
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). De 1960 a 1968, os EUA lançaram a Operação Chrome Dome, mantendo voos ininterruptos de bombardeiros B-52, equipados com armas nucleares, sobre a América do Norte e áreas fronteiriças com a União Soviética. Esse cenário de tensão da Guerra Fria também se desenrolava nos céus e em suas fronteiras (SURHONE et al., 2011SURHONE, L. M. TENNOE, M. T. HANSSONOW, S. F. Operation Chrome Dome. Ed. Betascript Publishing, 2011.). O conflito em potencial encontrava-se nos ares. As patrulhas aéreas desse período eram conhecidas como o "jogo do gato e do rato", com cada lado buscando superar o outro em inteligência e defesa aérea. Assim, a rivalidade entre as potências militares se desdobrava em operações carregadas de simbolismo, realizadas no espaço aéreo.

Os modelos Rockwell B-1 Lancer, introduzido em 1986, e o Northrop Grumman B-2 Spirit, de 1997, compõem uma outra categoria de bombardeiros. O primeiro substituiu taticamente as aeronaves B-58 e B-52 para permitir ataques rápidos e retornos velozes, enquanto o segundo visa penetrar densas defesas antiaéreas sem ser detectado. Os investimentos na indústria aeroespacial norte-americana ocorrem em prol da manutenção da hegemonia e de intervenções extraterritoriais. O uso do B-1 é documentado na Operação Desert Fox, em 1998, envolvendo bombardeios no Kosovo, bem como em operações da OTAN no Afeganistão e Iraque, sendo caracterizado como um bombardeiro multimissão (LOSEY, 2021LOSEY, S. Last of 17 Retired B-1s Sent to Boneyard as Air Force Preps for B-21s – Military.com. 2021 Disponível em: <https://www.military.com/dailynews/2021/09/24/last-of-17-retired-b-1s-sent-boneyard-air-force-preps-b-21s.html>. Acesso em Janeiro de 2023.
https://www.military.com/dailynews/2021/...
). O B-2 Spirit também atuou na guerra do Kosovo, em 1999, assim como no Iraque, Líbia e Afeganistão (AF, 2015). Por sua vez, as contrapartes russas-soviéticas do B-1 Lancer, os TU-22, em operação desde 1959, e os TU-160, em operação desde 1987, também realizaram operações globais. Os TU-22 foram empregados em testes de lançamento de mísseis e participaram em conflitos, como nas forças nacionais da Líbia e Iraque (GORDON et al., 1999GORDON, Y. RIGMANT, V. KOMISSAROV, D. Tupelov Tu-22 Blinder Tu-22m Backfire: Russia's Long Range Supersonic Bombers. Midland Publishing Limited, 1999.). Os TU-160 exerceram poder de bombardeio em áreas ocupadas da Síria, frequentemente aparecendo em patrulhas de fronteira no Ártico, Atlântico e Pacífico Norte (CENCIOTTI, 2015CENCIOTTI, D. This Infographic details the Russian Strategic Bomber Fleet operations over Syria. Business Insider.2015 Disponível em: <https://www.businessinsider.com/thisinfographic-details-the-russian-strategic-bomber-fleet-operations-over-syria-2015-11>. Acesso em janeiro de 2023.
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). Próximo ao colapso da URSS, a OTAN buscava substituir os meios nucleares soviéticos, aproveitando a superioridade qualitativa com manobras eficazes, sensores e munições guiadas por microeletrônica, prenunciando transformações nos meios de combate que seriam implementadas.

II. Os caças de 4ª geração

Os caças de quarta geração são classificados como aeronaves de combate de média a alta tecnologia, que foram desenvolvidas durante as décadas de 1970 e 1980. Essas máquinas possuem recursos avançados, como radares de busca de longo alcance, capacidade de combate aéreo e defesa, além de serem equipadas com armamento sofisticado. Exemplos notáveis incluem o McDonnell Douglas F-15 Eagle, o General Dynamics F-16 Fighting Falcon, o Dassault Mirage 2000, o Mikoyan-Gurevich MiG-29, o Sukhoi Su-34 e o Eurofighter Typhoon (UBIRATAN, 2022UBIRATAN, E. As diferentes gerações de caças. Aero Magazine. Disponível em: <https://aeromagazine.uol.com.br/artigo/as-diferentes-geracoes-de-cacas.html>. Acesso em janeiro de 2023.
https://aeromagazine.uol.com.br/artigo/a...
). Esses caças de quarta geração foram amplamente empregados em conflitos diversos, incluindo aqueles que ocorreram no Oriente Médio e na Europa. Durante a Guerra do Iraque em 1991, a coalizão liderada pelos Estados Unidos empregou os F-15 Eagles e os F-16 Fighting Falcons. Durante a intervenção soviética no Afeganistão entre 1979 e 1989, os MiG-29s foram utilizados pelas forças soviéticas. Durante o conflito na Chechênia de 1994 a 1996, as forças russas operaram os SU-27s e SU-30s. Já durante a Guerra na Líbia em 2011, a coalizão militar da OTAN também utilizou os Mirage 2000. Mais recentemente, em 2015, a Rússia empregou o SU-34 sobre o território sírio.

III. A classe Stealth

A categoria Stealth abrange aeronaves furtivas projetadas para minimizar sua detecção pelo radar. Esses aviões são construídos utilizando materiais e geometrias que diminuem a reflexão das ondas de rádio, tornando sua detecção mais complexa. A concepção subjacente aos aviões furtivos é permitir que se aproximem de alvos sem serem prontamente identificados, aumentando assim sua eficácia em operações de ataque aéreo e reconhecimento. Entre os exemplos notáveis de aeronaves furtivas encontram-se o Lockheed F-117 Nighthawk, o bombardeiro B-2 Spirit, os caças Lockheed Martin F-35 e F-22 Raptor. Além da sua reduzida detecção, esses aviões furtivos também incorporam características avançadas, como sistemas de armamento de ponta, navegação e comunicação avançadas, bem como capacidades de inteligência artificial e de combate aéreo, no caso dos caças.

IV. As aeronaves de transporte tático

As aeronaves representativas de transporte tático são aeronaves específicas criadas para movimentar tropas, cargas e equipamentos até áreas de combate. Possuem um papel estratégico significativo, pois são projetadas para operar em condições de combate em locais remotos, servindo também para complementar as operações militares, evacuar civis e fornecer suprimentos médicos em regiões instáveis. Em 1961, a Força Aérea dos Estados Unidos (USAF) substituiu o Douglas C-133 Cargomaster e o Lockheed C-141 Starlifter pela ainda operacional aeronave Lockheed C-5 Galaxy (AF, 2018AF. Air Force. C-5M Super Galaxy, 2018. Disponível em: < https://www.af.mil/AboutUs/Fact-Sheets/Display/Article/104492/c-5m supergalaxy/#:~:text=The%20C%2D5M%20Super%20Galaxy,and%20manufactured%20by%20Lockheed%20Martin.>. Acesso em janeiro de 2023.
https://www.af.mil/AboutUs/Fact-Sheets/D...
). A logística aérea assume um papel crucial na projeção da capacidade de força militar conjunta, especialmente por meio do transporte de equipamentos pesados, tropas, veículos blindados, Humvees e cargas diversas. Exemplos notáveis de aeronaves que destacam capacidade, velocidade e versatilidade incluem o KC-390, o Airbus A400M Atlas, o Lockheed Martin C-130 Hercules, o Alenia Aermacchi C-27J Spartan, o Ilyushin Il-76, o Antonov An-12 Cub e o Aircraft Industrial Corporation Y-8.

V. A 5ª geração de aeronaves caça

Os aviões militares da quinta geração representam o ápice em termos de avanço e sofisticação até o presente momento. Essas aeronaves possuem características distintas que as diferenciam significativamente das gerações anteriores de aviões militares. Uma característica proeminente é a tecnologia Stealth, que lhes permite operar em ambientes altamente hostis com grande discrição. Além disso, elas incorporam sensores de última geração, sistemas integrados de armas e a capacidade de realizar operações de inteligência, vigilância e reconhecimento de maneira simultânea. Os aviões de quinta geração foram projetados para operar em cenários desafiadores e possuem características que tornam difícil sua detecção, interceptação e abate. Isso é possível através da utilização de materiais e tecnologias de baixa assinatura, como revestimentos especiais e configurações aerodinâmicas que minimizam a reflexão de radar. Adicionalmente, essas aeronaves são equipadas com sistemas avançados de sensores, como radares de matriz ativa (AESA) e câmeras infravermelhas, que possibilitam a detecção e rastreamento precisa de alvos. Sistemas integrados de armas permitem que carreguem e lancem múltiplos tipos de armamento sem a necessidade de trocar de plataforma.

A interconexão veloz com veículos terrestres é outra característica marcante dessa geração. Os caças são projetados para colaborar com veículos aéreos não tripulados (UAVs) e sistemas de defesa aérea aliados, permitindo o compartilhamento de informações em tempo real para uma resposta rápida e precisa às ameaças aéreas (NISAR, 2018NISAR, M. 5 GW and Hybrid Warfare Its Implications And Response Options. Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Escola Marechal Castelo Branco, 2018. Disponível em: <https://bdex.eb.mil.br/jspui/bitstream/123456789/2827/1/MO%200023%20-%20MAAZ.pdf>. Acesso em janeiro de 2023.
https://bdex.eb.mil.br/jspui/bitstream/1...
). Os exemplos notáveis de aeronaves de quinta geração conhecidos atualmente incluem o Lockheed Martin F-22 Raptor e o F-35 Lightning II dos Estados Unidos, o Sukhoi Su-57 da Rússia e o Chengdu J-20 da China. É importante ressaltar que a exclusividade tecnológica dessas inovações por parte de certos países evidencia a concentração espacial das indústrias líderes, tema que será explorado em “Possibilidades Brasileiras na América do Sul” deste artigo.

VI. As aeronaves de espionagem e da guerra eletrônica

Aviões de espionagem têm a função de coletar informações e realizar vigilância, podendo ser equipados com diversos tipos de sensores, como câmeras, radares e detectores de calor. Essas aeronaves desempenham um papel crucial na vigilância de fronteiras, atividades militares estrangeiras, monitoramento de atividades criminosas e pesquisas científicas (ASHLEY, 1998ASHLEY, S. “Palm-Size Spy Planes.” ASME. Mechanical Engineering V.120 (02). Pg 74–78. 1998. Disponível em: <https://asmedigitalcollection.asme.org/memagazineselect/articleabstract/120/02/74/369079/Palm-Size-Spy-PlanesUp-To-Date-Intelligence-is-a>. Acesso em janeiro de 2023.
https://asmedigitalcollection.asme.org/m...
). Um evento notório ocorreu em 1962 quando, durante a Guerra Fria e suspeitas de instalação de mísseis balísticos em Cuba, a aeronave Lockheed U-2 foi empregada para fotografar a área suspeita. Esse trabalho de sensoriamento remoto entregue à liderança dos Estados Unidos teve implicações políticas significativas, desencadeando a Crise dos Mísseis naquele mesmo ano. Esse episódio ilustra como a aviação se tornou uma ferramenta inegável para identificar mudanças territoriais com repercussões políticas.

Dentro do espectro da guerra eletrônica aeroespacial, uma subcategoria da guerra eletrônica, são empregadas táticas e tecnologias para perturbar, desviar ou destruir as comunicações eletrônicas de aeronaves inimigas. Isso envolve interferência eletromagnética, jamming (interrupção ativa) e guerra cibernética. A guerra cibernética engloba invasão de sistemas e desativação de redes de comunicação de aeronaves inimigas (CALDAS, 1992CALDAS, J. C. Guerra Eletrônica. A Defesa Nacional, n. 755, 1992. Disponível em: <http://www.ebrevistas.eb.mil.br/ADN/article/download/5668/4904>. Acesso em dezembro de 2023.
http://www.ebrevistas.eb.mil.br/ADN/arti...
). Em consonância com a expansão da guerra eletrônica, os Estados Unidos converteram caças F-16 em drones como parte do aumento do uso de veículos não tripulados em enxames (MALONEE, 2019MALONEE, L. What It Takes to Turn a Vintage F-16 Into a Drone. Wired, 2019. Disponível em: <https://www.wired.com/story/what-it-takes-vintage-f-16-drone/>. Acesso em janeiro de 2023.
https://www.wired.com/story/what-it-take...
). A eficácia do uso de drones, como o TB2 Bayraktar turco no conflito iniciado na Ucrânia em 2022, é evidente. No entanto, a introdução em massa de ataques ao sistema antiaéreo ucraniano pela Rússia resultou na redução do uso de drones em campo de batalha, indicando o desafio de enfrentar sistemas de defesa mais integrados (DANGWAL, 2022DANGWALL, A. Bayraktar TB2 Drones ‘Out Of Action’ From Ukraine War; Russia’s Air Defense Or Diplomacy Behind Their Disappearance? Eurasia Times, 2022. Disponível em: <https://eurasiantimes.com/bayraktar-tb2-drones-out-of-action-fromukraine-war-russias/>. Acesso em janeiro de 2023.
https://eurasiantimes.com/bayraktar-tb2-...
). O Northrop Grumman RQ-4 Global Hawk da OTAN também se destaca como uma aeronave não tripulada eficiente em diversas operações documentadas (AF, 2014AF. Air Force. RQ-4 Global Hawk, 2014. Disponível em: <https://www.af.mil/AboutUs/FactSheets/Display/Article/104516/rq-4-global-hawk/>. Acesso em janeiro de 2023.
https://www.af.mil/AboutUs/FactSheets/Di...
).

Aeronaves como o Boeing RC-135W foram utilizadas pelos Estados Unidos para auxiliar na defesa e retomada de territórios na Rússia e Ucrânia, juntamente com os RQ-4, para adquirir informações precisas sobre a localização das tropas no campo de batalha (WARZONE, 2022WARZONE. The Warzone Magazine. This Is The Armada Of Spy Planes Tracking Russia’s Forces Surrounding Ukraine. Disponível em: <https://www.thedrive.com/the-war-zone/44337/these-are-the-planes-keeping-watch-on-russian-forces-around-ukraine>. Acesso em janeiro de 2023.
https://www.thedrive.com/the-war-zone/44...
). Essas aeronaves combinam mobilidade, ocultabilidade e eficácia na coleta de informações em tempo real. Os russos Beriev A-50 também possuem um papel semelhante. O uso de aeronaves desse tipo confere capacidade de combate e organização para conduzir operações de guerra psicológica, simbólica e total, com base em configurações políticas específicas. A guerra é então estendida e transformada tecnologicamente ao longo do tempo e em diferentes espaços naturais e diplomáticos, moldando doutrinas (JUNIOR, 1998JUNIOR, G. F. A Legitimidade e Outras Questões Internacionais. 2ª Ed. Paz e Terra, São Paulo. 1998.). Durante a Guerra Fria, o uso estratégico do poder aéreo foi evidente, com a destruição mútua assegurada (MAD) moldando eventos estratégicos. Pape destaca o poder aéreo como uma ferramenta de coerção, obtida de forma estratégica sistêmica e de pressão contra forças inimigas (PAPE, 1996PAPE, R. A. Bombing to Win. Air Power and Coercion in War, Ithaca. Cornel University press, 1996.). O poder aéreo e o poder aeroespacial foram utilizados para estabelecer vantagens nos espaços físicos de poder.

Após a Guerra Fria, o cenário global tornou-se mais complexo, com a ascensão da China e a reativação da Rússia. Os Estados Unidos buscam conter potências emergentes e expandir sua influência por meio de investimentos em recursos, modernização de equipamentos e presença militar em áreas sensíveis (STRATEGY, 2022STRATEGY, National Security in White House, 2022. Disponível em: <https://www.whitehouse.gov/wp-content/uploads/2022/11/8-November-CombinedPDF-for-Upload.pdf>. Acesso em janeiro de 2023.
https://www.whitehouse.gov/wp-content/up...
). Para os Estados Unidos, as aeronaves desempenham um papel essencial para influenciar Estados, controlando o ar, o espaço e o ciberespaço para obter ganhos estratégicos, operacionais e táticos (ROSA & JASPER, 2018ROSA & JASPER, Aeronáutica in: PIERRE, H. L. S. & VITELLI, M. G (orgs.) Dicionário de Segurança e Defesa, Unesp. São Paulo. 2018.).

Logo, as aeronaves militares e o Poder Aeroespacial de um país representam instrumentos tecnológicos de ação que resultam de uma conjuntura geopolítica ampla, expressando intenções de operação para atingir objetivos geoestratégicos. Conclui-se neste capítulo que o uso de aeronaves como ferramentas de ação, seja através do emprego efetivo de armas ou pela abstenção do combate bélico direto, como ocorre em manobras próximas a fronteiras ou em regiões de tensão diplomática, é um meio pelo qual os Estados exercem seu poder de força geopolítica. O não emprego de armamento direto resulta em redução de constrangimentos e desvio das restrições de legitimidade no sistema internacional para esses Estados. Isso coloca em xeque soberanias, mas desde que não se violem direitos humanos, sociais ou normas do direito internacional. O sobrevoo de territórios atua como uma pressão diplomática, demonstrando capacidade real de ataque. Esses meios técnicos também transformaram as relações espaciais, acelerando processos sociais, econômicos e políticos (SANTOS, 1994SANTOS, M. Técnica, Espaço, Tempo: Globalização e Meio técnico-científico informacional. São Paulo: Editora Hucitec, 1994.).

As várias formas de conhecimento e tecnologia aérea podem pressionar governos a tomar decisões específicas ao demonstrar capacidades de respostas custosas ao inimigo. Exercícios aéreos próximos às fronteiras desempenham um papel na produção de diplomacia, assim como em decisões geoestratégicas. De maneira geral, a aeronave unifica estratégias terrestres e navais no domínio espacial do ar. Quando integrada em uma estratégia global e unificada, ela se torna uma parte central do Poder Aeroespacial. A dimensão aérea possibilita o emprego estratégico no ar, buscando a paralisia operacional e analítica do adversário. O bombardeio estratégico, em casos de superioridade aérea, ainda mantém relevância e ataques pontuais são possíveis, especialmente com a reserva de bombardeiros por potências militares. Países como Estados Unidos e Rússia mantêm aeronaves bombardeiras como os B-52 e TU-95 em constante prontidão para enfrentar ameaças emergentes, conduzir exercícios militares e demonstrar capacidades a outras nações. Esses bombardeiros são componentes essenciais da capacidade de ataque estratégico das forças armadas, podendo ser utilizados para missões de reconhecimento e ataques contra alvos terrestres ou marítimos. Além disso, a presença de bombardeiros em reserva também pode servir como elemento dissuasório contra países adversários, demonstrando capacidade militar avançada e prontidão operacional para enfrentar ameaças.

A natureza da guerra atual está profundamente entrelaçada com círculos de informação complexos e altamente tecnológicos. Isso envolve a paralisia por meio de guerra política, destruição de lideranças e elementos de comando e controle, como estudado por teóricos de guerras não convencionais. Essas guerras buscam coagir, desestabilizar ou derrubar governos e poderes sem o uso direto de armas. Além disso, a guerra em rede, baseada na teoria do caos, envolve o controle sobre pensamentos coletivos e é uma forma de conflito que vai além das táticas militares convencionais. Ela incorpora métodos como propaganda, subversão, sabotagem, terrorismo, guerra psicológica, guerra econômica, táticas irregulares e outras formas não tradicionais de conflito (KORYBKO, 2018KORYBKO, A. Guerras Híbridas: das Revoluções Coloridas aos Golpes. 1ª Ed. Expressão Popular, São Paulo, 2018).

Possibilidades brasileiras na América do Sul

No cenário contemporâneo, os elementos e padrões distintivos das antigas potências dominantes do século XX estão ressurgindo, direcionados por seus valores e interesses consolidados em áreas de domínio, controle ou influência (COSTA, 2014COSTA, W. M. Geopolítica in: Dicionário de Segurança e Defesa. Org. Saint-Pierre & Vitelli. Ed. Unesp, Sao Paulo, 2014.). Paralelamente, os temas da ordem internacional tendem a se fragmentar, resultando em padrões variados de coalizões, motivados por circunstâncias específicas e tangíveis (CORREIA, 2018CORREIA, P. P. Manual de Geopolítica e Geoestratégia. Ed. Edições 70, 2018.). Dentro desse contexto, é necessário identificar a estrutura do Poder Aeroespacial brasileiro, visando ao aprimoramento, desenvolvimento e reafirmação do poder nacional na América do Sul.

Torna-se importante salientar que o emprego da força não é um dos principais meios de projeção internacional do Brasil. O histórico de articulação internacional do Estado brasileiro revela o uso de sensibilidade, argumentação convincente e habilidade para demonstrar esses atributos (JUNIOR, 1998JUNIOR, G. F. A Legitimidade e Outras Questões Internacionais. 2ª Ed. Paz e Terra, São Paulo. 1998.). Contudo, essa abordagem não subestima a necessidade de uma Força Aérea preparada para defesa, bem equipada para a ação prática quando necessário, capaz de salvaguardar os interesses nacionais primários e habilitada para agir como uma força dissuasória e cooperativa em missões de paz internacional. A base da Força Aérea repousa na construção e manutenção de plena soberania, sendo uma via para alcançar posições de influência e poder previamente concebidas pela diplomacia. A expansão da presença internacional da Força Aérea pode contribuir, mesmo em nações pacíficas e estáveis, para uma combinação de participação, atividade diplomática e prestígio nacional. A projeção de poder por meio das forças de defesa tem objetivos definidos e deve estar alinhada com a política externa independente. No âmbito diplomático, a política externa brasileira deve manter um compromisso inabalável com a inserção contínua na Organização das Nações Unidas. A utilização dos recursos de missões militares de paz, compromissos e agendas multilaterais de integração, em conjunto com uma abordagem pragmática e um crescente engajamento em discussões internacionais de defesa, reflete um interesse coletivo na segurança nacional.

O Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA), o Instituto Tecnológico de Aeronáutica, e partir do ano de 1960, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e o Instituto de Fomento e Coordenação Industrial (IFI) imprime capacidade de certificação de aparelhos aeronáuticos em território nacional (BOTELHO, 1999BOTELHO, A. J. J. Da utopia tecnológica aos desafios da política cientifica e tecnológica. O intuito tecnológico da aeronáutica (1947-1967) Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, vol. 14 n 39. P 139-154. 1999.). A estrutura governamental estabeleceu as condições para a produção de aeronaves no Brasil, promovendo aprendizado e pesquisa com foco em operações, desenvolvimento de projetos de engenharia, produção por empresas industriais, logística de equipamentos e produtos para a estrutura do Poder Aeroespacial e de Defesa. A adaptação da estrutura organizacional é necessária diante das mudanças tecnológicas atuais. O apoio de políticas públicas é essencial para nichos de tecnologia, como exemplificado pelo polo aeronáutico de São José dos Campos, que demonstra uma significativa capilaridade estrutural (BOTELHO, 1999BOTELHO, A. J. J. Da utopia tecnológica aos desafios da política cientifica e tecnológica. O intuito tecnológico da aeronáutica (1947-1967) Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, vol. 14 n 39. P 139-154. 1999.).

A Força Aérea Brasileira contribui para a construção da soberania plena, bem como para o estabelecimento de posições de diálogo em organizações internacionais, graças às suas capacidades de defesa nas Regiões de Defesa Aérea. O meio diplomático desempenha um papel crucial na capacidade de projeção do poder brasileiro na América do Sul. Isso é evidenciado pelo envolvimento do Brasil em conferências de ministros da defesa das Américas, que tratam de temas regionais e auxiliam em diálogos de alto nível para soluções na região (DEFESA, 2022DEFESA, Ministério da. Brasil Encerra Mais Uma Conferência de Ministros de Defesa das Américas. 2022. Disponível em: <https://www.gov.br/defesa/pt-br/centrais-deconteudo/noticias/brasil-encerra-mais-uma-conferencia-de-ministros-de-defesa-dasamericas#:~:text=Brasil%20encerra%20mais%20uma%20Confer%C3%AAncia%20de%20Ministros%20de%20Defesa%20das%20Am%C3%A9ricas,Compartilhe%3A&text=Bras%C3%ADlia%20(DF)%2C%2029%2F,XV%20CMDA)%2C%20em%20Bras%C3%ADlia.>. Acesso em janeiro de 2023.
https://www.gov.br/defesa/pt-br/centrais...
). Além disso, o uso de contatos de alto nível é um método diplomático eficaz para construir relações sólidas e simbólicas. Para maior aprimoramento, é fundamental enfocar o aprimoramento do Sistema de Defesa Aeroespacial Brasileiro (SISDABRA), buscando a defesa passiva por meio de ocultação, camuflagem e instalações subterrâneas para abrigar equipamentos terrestres sensíveis ligados ao Poder Aeroespacial, inclusive aeronaves. Essa medida aprimoraria o treinamento contínuo em defesa aérea para situações sensíveis e críticas, e fortaleceria a força de dissuasão ao demonstrar uma preparação abrangente de linhas de defesa, resultando em maior prontidão para desafios futuros. O foco nos princípios da Defesa Antiaérea (ROSA & JASPER, 2018ROSA & JASPER, Aeronáutica in: PIERRE, H. L. S. & VITELLI, M. G (orgs.) Dicionário de Segurança e Defesa, Unesp. São Paulo. 2018.) também deve ser aprimorado com a disposição e treinamento constante de armas de cano, como armas portáteis, metralhadoras e canhões, além de armas de tubo, como mísseis superfície-terra. A aquisição e o desenvolvimento de equipamentos antiaéreos também poderiam estimular cadeias industriais completas, assim como o aumento do efetivo de aeronaves de asa fixa em alerta para missões imediatas. Investimentos diretos no parque industrial aeroespacial concentrado no Vale do Paraíba Paulista poderiam ser uma abordagem para alcançar esse objetivo. A expansão dos equipamentos militares ligados ao poder aeroespacial e o apoio e desenvolvimento das indústrias de defesa nacionais poderiam ser elementos fundamentais para posicionar o Poder Aeroespacial brasileiro como um motor para o desenvolvimento tecnológico do país.

Em linha disso, a FAB define o Poder Aeroespacial como: “Projeção do Poder Nacional resultante da integração dos recursos de que a Nação dispõe para a utilização do espaço aéreo e do espaço exterior, quer como instrumento de ação política e militar quer como fator de desenvolvimento econômico e social, visando conquistar e manter os objetivos nacionais.” (BRASIL, 2020. Pág 11). Essa definição implica o compromisso e o papel do uso do Poder Aeroespacial no Brasil como um meio de transformação industrial. À medida que se reconhece que a internacionalização dos capitais e a globalização capitalista são resultados dos Estados e economias nacionais impondo poderes soberanos, moedas e dívidas públicas transformando o espaço em um privilégio, surge a necessidade de revisões e adaptações dos Estados nacionais periféricos (MAZZUCATO, 2014MAZZUCATO, M. O Estado Empreendedor: Desmascarando o Mito do Setor Público x Setor Privado. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2014.). Dentro desse contexto, as relações de transferência de tecnologia e concretização de tecnologias de ponta ocorrem de maneira desigual. Para superar essa disparidade, políticas internas estendidas a acordos Sul-Sul podem estimular e formar cadeias industriais de maior complexidade, concentradas na conversão da base industrial, na qualificação da mão de obra, no bem-estar social e nos direitos sociais na América Latina. A superação de lógicas preestabelecidas pode ser alcançada por meio de estratégias de aquisição de aeronaves e equipamentos com transferência de tecnologia (offset) para fortalecimento econômico interno. A indústria aeroespacial tem o potencial de ser um agente transformador, visto que investimentos públicos na aquisição de projetos de desenvolvimento de aeronaves por parte de países com forças militares significativas estão em curso (PETRESCU, et al. 2017PETRESCU, R. V. AVERSA, R. AKASH, B. BUCINELL, R. CORCHADO, J. APICELLA, A. & PETRESCU, F. I. Lockheed martin-a short review. Journal of Aircraft and Spacecraft Technology, 1(1). 2017. Disponível em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3073975>. Acesso em agosto de 2023.
https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?...
). O uso de bancos de desenvolvimento nacional, focados no potencial da indústria aeroespacial, poderia transformar a realidade do poder internacional do Brasil. O papel ativo de políticas públicas para estimular setores-chave poderia servir como um meio de alavancagem econômica abrangente. Visando à readequação do Poder Aeroespacial brasileiro, esses investimentos resultariam em um protagonismo internacional estabelecido e na formulação de uma potência regional, em conjunto com a Força Aérea e o caráter diplomático subjacente.

O Estado é capaz de investir, possui um caráter empreendedor e é responsável pelo retorno social e criação de mercados, conduzindo bases de inovação (MAZZUCATO, 2014MAZZUCATO, M. O Estado Empreendedor: Desmascarando o Mito do Setor Público x Setor Privado. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2014.). Portanto, o desenvolvimento de uma base industrial de defesa, com sua cadeia produtiva altamente sofisticada e de mecânica pesada, é um resultado de uma política industrial com metas e investimentos definidos. O papel dos países industrializados centrais é uma constante disputa pela fronteira do conhecimento, visando ao desenvolvimento e ganhos geopolíticos que afetam diversas áreas. Por fim, é importante ressaltar o mapeamento de empresas no setor Aeroespacial e a contínua criação de ecossistemas integrados de indústrias de ponta, que têm demonstrado sucesso, como no caso da parceria entre Embraer, AEB, Mac Jee e INPE. O Brasil exerce uma função nodal territorial na América do Sul, implicando um papel ativo nos assuntos regionais. A reafirmação da defesa, do poder do Estado e da transformação econômica perpassa pela geoestratégia e geopolítica do Poder Aeroespacial.

Considerações finais

O Poder Aéreo e o Poder Aeroespacial são conceitos relativamente recentes no contexto mundial e, especialmente, no Brasil. As ramificações e funcionalidades desses poderes nas dinâmicas da guerra contemporânea refletem sua importância no âmbito do poder, simbolismo e mudanças na conjuntura industrial que envolve as aeronaves aéreas. Essas aeronaves, por si só, representam instrumentos executoras de estratégias geopolíticas tanto no espaço aéreo quanto nas estruturas estatais. O enfoque racionalista do espaço moderno, moldado por instituições mais justas decorrentes de eventos históricos, juntamente com o republicanismo e o comércio, incita os Estados a agirem de maneira a evitar o uso real da força.

Durante a Guerra Fria, foram observadas ações e estratégias estratégicas que culminaram na militarização total do poder aéreo e aeroespacial por parte das principais potências militares. As manobras militares foram usadas como meio de demonstrar força e exercer influência. Durante a segunda metade do século passado, houve um fortalecimento do simbolismo e do poder de dissuasão, levando ao desenvolvimento de estratégias de guerra aprimoradas e à expansão da força aérea em seu atual papel. A atenção geoestratégica em relação ao Poder Aeroespacial e aos limites do espaço aéreo ressalta a necessidade de políticas de desenvolvimento estadual. No caso específico do Brasil e de sua posição na América Latina, são evidenciadas as transformações industriais para alcançar um eficaz Poder Aeroespacial. A aquisição, fabricação e utilização de aeronaves militares têm implicações diplomáticas, geoestratégicas e geopolíticas, sendo essenciais para a consolidação e manutenção da segurança e defesa nacional. Os investimentos estatais em complexos aeroespaciais foram cruciais para estabelecer as bases existentes no Brasil, que desempenham um papel geoestratégico vital para o país. Embora a situação atual seja relativamente desenvolvida e competitiva em certos setores do Poder Aeroespacial internacional, ainda há necessidade de um avanço tecnológico abrangente e uma exploração mais ampla e expansiva desse setor no Brasil. Diante dos avanços tecnológicos e do surgimento ou ressurgimento de novos atores no cenário global, cabe ao Brasil consolidar seu Poder Aeroespacial para cooperação, dissuasão e influência na América do Sul. O país desempenha um papel central na conjuntura Aeroespacial da região, tendo os meios para expandir e afirmar seu poder por meio de desenvolvimento interno e acesso a tecnologias através de parcerias regionais e internacionais. Investir em pesquisa para aumentar a competitividade das empresas do setor é uma base fundamental para impulsionar a transformação não apenas no campo do Poder Aeroespacial, mas também em outras áreas.

Finalmente, a partir de uma perspectiva geopolítica aeroespacial, são criadas infraestruturas na terra e no espaço aéreo e exterior que geram inovação, evolução, comércio, receitas e uma análise estatal proficiente da conjuntura internacional. A formulação de estratégias por meio da introdução de indústria aeronáutica no planejamento nacional é fundamental para o desenvolvimento eficaz do país. O Poder Aeroespacial brasileiro mostra progressos, destacados pelos projetos F-39 Gripen e KC-390. No entanto, ainda existem lacunas consideráveis, tanto industriais quanto diplomáticas, que precisam ser preenchidas com maior envolvimento do Brasil, seja por meio da indústria interna, externa ou em exercícios e cooperações internacionais conjuntas, especialmente na América do Sul. Para a dimensão espacial brasileira, são necessárias abordagens específicas e a construção de parcerias nas proximidades internacionais, utilizando as aeronaves como um meio para induzir parcerias geopolíticas e geoestratégicas que realinham o Brasil como protagonista nas políticas da América do Sul. Nesse contexto, também é fundamental revisar e ajustar o poder aéreo brasileiro em conformidade com as diretrizes principais delineadas no Livro Branco da Defesa Nacional, que são mantidas pelas mais altas esferas políticas civis do governo. Os meios mais eficazes para atingir esses objetivos, considerando as capacidades aéreas atuais, envolvem estudos multidisciplinares que avaliem a geografia de forma abrangente, juntamente com a submatriz geopolítica, buscando uma combinação eficaz de recursos para garantir a posição brasileira no cenário do Sul.

A evolução da guerra nos tempos atuais abrange uma série de fatores que vão além do campo de batalha convencional, incorporando a compreensão geográfica, cultural e física de cada nação como parte do estudo do adversário. O conceito de guerra ampliada proposto por figuras como Douhet, Warden, Mitchel, Trenchard e Smuts, hoje em dia, enfrenta ajustes tecnológicos e um aumento na complexidade das relações entre Estados que possuem essas capacidades de remodelagem do espaço.

Referências Bibliográficas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Dez 2023
  • Aceito
    30 Abr 2024
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