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Literatura e desenvolvimento, por ocasião do Antropoceno

RESUMO:

O artigo busca analisar “Literatura e subdesenvolvimento” (1970), de Antonio Candido, a partir da leitura de The Climate of History in a Planetary Age (2021), de Dipesh Chakrabarty. Nesse livro, Chakrabarty procura averiguar as motivações dos líderes anticoloniais de meados do século XX em suas buscas pelo desenvolvimento de seus países. Esse gesto analítico, segundo nossa leitura, consiste em um modo de aproximar o conhecimento sobre o Antropoceno do pensamento pós-colonial e de indicar os limites dos desejos de modernização terceiro-mundistas em tempos de crise climática. “Literatura e subdesenvolvimento”, nesse sentido, se torna um texto revelador das ambições de um dos mais importantes críticos de cultura do Brasil. Ao reivindicar a dependência nos planos literário, político e econômico, Antonio Candido expõe os anseios modernizantes de toda uma geração. Nosso intuito é fazer emergir, por meio da teoria pós-colonial, o projeto modernizador que o texto insinua, problematizando seus métodos diante do Antropoceno.

Palavras-chave:
Pós-colonial; Antropoceno; Antonio Candido; Dipesh Chakrabarty

ABSTRACT:

The article aims to analyze Antonio Candido’s Literatura e subdesenvolvimento (1970) out of the reading of Dipesh Chakrabarty’s The Climate of History in a Planetary Age (2021). In his book, Chakrabarty seeks to understand the motivations of mid-20th century anticolonial leaders in their fight for local development. His analysis, according to our reading, consists of a way of bringing the Anthropocene and its problematics close to postcolonial criticism and indicating the limits of Third World desires for modernization in times of climate change. Literatura e subdesenvolvimento, in this sense, reveals the ambitions of one of the most important Brazilian cultural critics. By claiming literary, political, and economic dependence, Antonio Candido expresses the modernizing aspirations of an entire generation. Our aim is to bring out the modernizing project that the text insinuates with the aid of postcolonial theory and to question its methods in the face of the Anthropocene.

Keywords:
Postcolonial; Anthropocene; Antonio Candido; Dipesh Chakrabarty

Brasília

As estórias são conhecidas. Na verdade, elas se espelham, como é constantemente notado. Na primeira, um menino parte contente para a viagem de avião com os tios em direção à cidade em construção. Na segunda, ele parte só com o tio, afastado da mãe doente.

“As margens da alegria”, a primeira das “primeiras estórias” de João Guimarães Rosa, é a narrativa de “uma viagem inventada no feliz” (ROSA, 1985ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 160 p., p. 7). Empolgado com as novidades, tudo o que acontecia ao menino tomava feição de carinho, em harmonia com sua curiosidade. Entretanto, a cidade sendo construída em “As margens da alegria”, a despeito da mata, da floresta, dos animais, de tudo o que circundava e de tudo o que era esvaziado - “índios, a onça, leões, lobos, caçadores?” (ROSA, 1985ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 160 p., p. 8) - não gerava muito interesse no menino, mais feliz em relacionar-se com as plantas, os animais, a poeira levantada pelo jipe.

Aprende repetindo baixinho os nomes dos seres novos com os quais encontra. Nada que lhe atrai é da cidade que constrói, tudo de que gosta é, de fato, as coisas que a construção não consegue destruir. Entre a cidade nova, no coração do continente ao sul do Equador, construída com o intuito de colonizar o interno do país, entre esta e o que já tinha, entre a cidade e a natureza, o menino prefere a última. Entre a civilização e a barbárie, é a última que lhe arrebata o coração. De fato, a cidade é um parco consolo para a morte da ave que lhe havia conquistado os sentidos.

Mal podia com o que agora lhe mostravam, na circuntristeza: o um horizonte, homens no trabalho de terraplenagem, os caminhões de cascalho, as vagas árvores, um ribeirão de águas cinzentas, o velame-do-campo apenas uma planta desbotada, o encantamento morto e sem pássaros, o ar cheio de poeira. Sua fadiga, de impedida emoção, formava um medo secreto: descobria o possível de outras adversidades, no mundo maquinal, no hostil espaço; e que entre o contentamento e a ilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia. (ROSA, 1985ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 160 p., p. 10).

“As margens da alegria” é, claro, a história de um menino que, crescendo, vai aprendendo a viver desilusões. Coisas que pouco afetam os adultos, já de certa forma anestesiados pelas dificuldades do viver, causam uma terrível melancolia ao menino: a morte do peru (para ser cozido), a queda de uma árvore, a terrível visão de uma cidade que devasta. A ideia de uma história sobre o crescimento intelectual de um garoto, sobre a perda da inocência infantil, não é equivocada. Ainda mais porque poderíamos dizer que o conto se fecha com a descoberta da “crueldade” (visão antropocêntrica) também entre os animais - no final, o peru que aparece no lugar do outro começa a bicar a cabeça daquele primeiro, deixada para trás, perto da mata, quando havia sido morto. Mas, por outro lado, atribuir à estória esse sentido, tão verdadeiro quanto banal, deixa escapar a sensibilidade extraordinária com a “paisagem natural” que o menino reiteradamente demonstra. É essa empatia, afinal, que lhe amarga a visão daquilo que poderia, em outro contexto, fascinar um garoto: o maquinário e o equipamento utilizado para a construção da cidade.

Ali fabricava-se o grande chão do aeroporto - transitavam no extenso as compressoras, caçambas, cilindros, o carneiro socando com seus dentes de pilões, betumadoras. [...]

Mostraram-lhe a derrubadora, que havia também: com à frente uma lâmina espessa, limpa-trilhos, à espécie de machado. [...]

A coisa pôs-se em movimento.

Reta, até que devagar. A árvore, de poucos galhos no alto, fresca, de casca clara..., e foi só o chofre: uh... sobre o instante ela para lá se caiu, toda, toda.

Trapeara tão bela. Sem nem se poder apanhar com os olhos o acertamento - o inaudito choque - o pulso da pancada. O menino fez ascas.

Olhou o céu - atônito de azul. Ele tremia. A árvore, que morrera tanto. (ROSA, 1985ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 160 p., p. 10-11).

O que gostaria de argumentar, então, é que a estória de Rosa não é (somente) sobre o amadurecimento do garoto, mas, sobretudo, uma narrativa da paisagem perdida. É como se pudéssemos acessar a experiência hipotética de um garoto que viveu a construção de Brasília nos seus primórdios. E é como se este garoto nos revelasse o quão terrível foi o nascimento desta que é possivelmente o maior exemplar de cidade moderna do mundo ocidental. Ao narrar o que veio a ser um capítulo tão significativo da modernização brasileira - ou, o maior sintoma do desejo brasileiro de modernização - Rosa cria, afinal, uma narrativa como ecologia. E se quisermos continuar com a versão da edificação do futuro adulto, teremos que considerar que a memória (da sua infância em Brasília) se torna ecologia.

O menino que o narrador de “As margens” acompanha é e não é o menino entristecido pela doença da mãe de “Os cimos”. O primeiro menino, altivo e curioso, contrasta com o segundo, apreensivo e deprimido. Se em “As margens”, a paisagem corrobora o estado de espírito aprazível, na segunda estória, personagem e narrador seguem mais ensimesmados, quase sempre a pensar e a narrar a frustração da criança diante da grave doença da mãe. O que a primeira e a última estórias de Primeiras estórias têm em comum não é, como se pode afirmar à primeira vista, o menino, a viagem, Brasília. Tudo isso realmente pertence às duas estórias e garantem o efeito especular. Mas o que realmente acontece nas duas estórias, e é o que ambas mostram, é aquilo que captura o menino e o leva a transcender sua condição, isto é, o encontro com uma ave. Em “As margens da alegria”, ele encontra o peru por quem se encanta e cuja morte o faz sofrer. Em “Os cimos”, o pássaro que lhe aparece é um tucano. É ele que o faz esperar, em meio ao abatimento pela doença da mãe, “pelo belo”; “o tucano, gentil, rumoroso” (ROSA, 1985ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 160 p., p. 157).

A tornada do pássaro era emoção enviada, impressão sensível, um transbordamento do coração. O menino o guardava, no fugidir, de memória, em feliz voo, no ar sonoro, até a tarde. O de que podia se servir para consolar-se com, e desdolorir-se, por escapar do aperto de rigor - daqueles dias quadriculados. (ROSA, 1985ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 160 p., p. 158).

As relações que o menino estabelece com os pássaros nas duas histórias, o peso e o possível significado que essas relações adquirem nos remetem à ideia de companhia, ou de espécies que se fazem companhia. Se o menino está crescendo e aprendendo a viver, podemos dizer, com segurança, que ele está fazendo isso na companhia de um peru e de um tucano. Donna Haraway, a pensadora que melhor escreve sobre “espécies de companhia”, faz uma afirmação cheia de humor que, penso, serve bem para ilustrar as estórias de Rosa. Comentando o fato de que genomas humanos podem ser encontrados em apenas 10 por cento das células do seu corpo, enquanto os outros 90 por cento são preenchidos com bactérias, fungos, protozoários, etc., ela afirma, “Sou admiravelmente superada [outnumbered] por minhas minúsculas companhias; ou melhor, eu me torno um ser humano adulto na companhia dessas pequenas companhias de caos [messmates]” (HARAWAY, 2008HARAWAY, Donna J. When Species Meet. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008. 440 p., p. 4, tradução nossa)1 1 I am vastly outnumbered by my tiny companions; better put, I become an adult human being in company with these tiny messmates (HARAWAY, 2008, p. 4). Todas as traduções para o português foram feitas por mim, salvo quando indicada outra autoria. . As companhias do menino não são minúsculos animais, mas também os pássaros o ajudam a tornar-se adulto.

A relação com os pássaros, ainda, nos devolve à paisagem perdida para Brasília. Não porque o peru e o tucano tenham deixado de existir por conta da construção da cidade, mas porque adentrar o mundo da relação, do humano em relação (com outra espécie) e do tornar-se humano (adulto) em relação (com outra espécie) é um tema próprio do contexto da ecologia contemporânea e da sua insinuação sobre todas as áreas do conhecimento. É por isso que afirmei, acima, que estávamos lidando com uma paisagem perdida em uma narrativa que se tornava ecológica. A paisagem perdida se referia à devastação natural necessariamente levada a cabo em uma ampla área do Cerrado brasileiro para o estabelecimento de Brasília. Neste sentido, as estórias mostravam a escolha afetiva pelo que havia antes, ou “às margens”, em detrimento da destruição/construção que ocorria. Se aquele era um episódio de modernização e um passo em direção à civilização, as alegrias se encontram nas margens, o belo, nos cimos das árvores. Entre civilização e barbárie, eu dizia, nossas estórias preferem a última.

Navios

Faço uso dessa velha dicotomia, antiga conhecida daqueles que se formaram nas humanidades, especialmente em uma universidade brasileira e latino-americana. Ela é uma das marcas do discurso intelectual que se forma por aqui ainda durante a colonização e permanece nos períodos que a sucedem. A superação da condição de colônia, e, mais tarde, de dependência política, econômica e cultural, devia passar necessariamente pela resolução do antagonismo, em favor da civilização.

Também uso esse habitual modo de conhecer(-nos) porque as oposições me permitem introduzir, aqui, o mais recente livro de Dipesh Chakrabarty, The Climate of History in a Planetary Age. Veremos que é a partir da publicação de 2021 que tentarei elaborar um tipo de diagnóstico - imaginativo e não necessariamente conclusivo - da relação que certa teoria literária brasileira estabelece com as ideias de desenvolvimento e modernização, fincadas nos tradicionais binarismos os quais organizaram o pensamento ocidental. Problematizadas, como são atualmente a partir da crise climática, essas ideias não devem ser simplesmente descartadas, sob o risco do desconhecimento das motivações que mobilizam e mobilizaram boa parte da nossa mais importante intelectualidade. The Climate of History in a Planetary Age, afinal, não abandona tranquilamente as dicotomias que marcaram tanto as lutas anticoloniais quanto o pensamento pós-colonial que buscava desconstruí-las.

Cara aos pensadores pós-coloniais, a oposição entre civilização e barbárie obrigou-os, entre eles o próprio Chakrabarty, a compreender como a superação poderia acontecer, mas, sobretudo, como estava alegadamente acontecendo, ou como havia supostamente sido pretendida. Ou seja, quais atores históricos levavam a cabo um projeto de emancipação política, econômica e cultural nos diversos contextos pós-coloniais depois da independência formal e, uma vez que as ex-colônias vieram a constituir o posteriormente chamado terceiro-mundo subdesenvolvido, a partir da segunda metade do século XX? Quais eram esses projetos? Que ideais, quais ideologias os guiavam? Quem era e quem não era contemplado nos projetos de formação nacional e política de antigas colônias?

Todas essas questões trazem ao primeiro plano uma outra dicotomia (vizinha à barbárie/civilização) que se dava por meio do encontro entre o que veio a ser chamado colônia e a Europa. Ou seja, entre aquilo que existia previamente no território “conquistado”, o arcaico, e aquilo que chegou, o moderno. Chakrabarty (2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 111) lembra que Bruno Latour defende “provincializar a modernidade” como uma tarefa europeia, isto é, a tarefa do intelectual europeu de colocar a modernidade de volta ao seu lugar de origem, uma que vez foi a Europa que a levou ao resto do mundo. Mas o próprio Chakrabarty, que cunhou a expressão “provincializar a Europa”, admite que a modernidade se torna, efetivamente, um projeto das elites políticas e culturais nas antigas colônias.

O engodo se mostra em sua plenitude pela “adoção” do nacionalismo enquanto ideologia para organização do povo e das estruturas políticas, como argumenta Partha Chatterjee em Nationalist Thought and the Colonial World: a Derivative Discourse (1993CHATTERJEE, Partha. Nationalist Thought and the Colonial World: A Derivative Discourse. London: Zed Books, 1993. 192 p.). Ao longo do período de descolonização, a nacionalidade, consequência do nacionalismo, adquire o caráter de “inerente”. Ela passa a determinar a principal forma de identificação daquele que deveria se tornar “cidadão” em um mundo que queria modernizar-se. E isso reforça uma profunda ambiguidade como condição da existência da relação do mundo pós-colonial com o nacionalismo.

Até mesmo antes da independência das antigas colônias ou territórios do império, durante as lutas anticoloniais, o nacionalismo, produto europeu do acesso aos bens culturais, converte-se em estratégia de união do povo subjugado. Tudo se complica ainda mais quando, levado ao limite, o nacionalismo evocado pelos países recém liberados do jugo colonial impele à recusa de um outro (imigrantes e minorias étnicas, além do colonizador) e quando assume seu caráter essencialmente progressista e moderno, forçando à marginalidade grupos considerados retrógrados dentro do mesmo conjunto chamado povo. De fato, sobre esta última característica, Chatterjee explica que o nacionalismo do mundo pós-colonial rechaçava o intruso enquanto dominador ao mesmo tempo em que rejeitava o ancestral na(s) cultura(s) local (locais), entendido como obstáculo ao progresso.

Minha leitura de Chatterjee (1993CHATTERJEE, Partha. Nationalist Thought and the Colonial World: A Derivative Discourse. London: Zed Books, 1993. 192 p.), em um outro texto, continuava assim:

Exatamente porque a concepção de nacionalismo exige que as nações estejam “em dia” com o progresso, com a disseminação da ciência e a racionalidade, com a modernização e a industrialização e com a democracia e a igualdade, ela coíbe, afirma Chatterjee, a autonomia da autoconsciência nacional, que teria que ver com conhecimentos e epistemologias locais, com uma história, por assim dizer, prévia e “paralela” à colonização. Os nacionalismos pós-coloniais viveriam, assim, a situação paradoxal de almejar sua liberdade da dominação europeia ao mesmo tempo em que seus projetos, ao optar pelo nacionalismo, reforçariam as doutrinas intelectuais ocidentais. Além disso, nações pós-coloniais tenderiam a fazer do passado pré-colonial tábula rasa na busca pela emancipação ditada por dogmas modernos. (SANTOS, 2021SANTOS, Carolina Correia dos. Pós-colonial. In: JOBIM, José Luís; ARAÚJO, Nabil; SASSE, Pedro Puro. (Novas) Palavras da crítica. Rio de Janeiro: Edições Makunaima, 2021. p. 617-648., p. 624).

Contudo, existe um outro plano, o Antropoceno, ao qual todas essas oposições - civilização/barbárie que derivei de cidade/natureza com base nas estórias de Rosa e que se relaciona com moderno/arcaico, cujo imbróglio Chatterjee nos ajuda a ver por meio do nacionalismo - devem submeter-se, sofrendo o inevitável risco de esvanecerem. Isso porque as dicotomias são severamente contestadas no mundo em que a “oposição matriz” cultura e natureza deixa de fazer sentido. O homem enquanto força geológica nos lança irremediavelmente no que Chakrabarty (2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p.) chama de deep time, em detrimento de um tempo determinado pela escala humana. No deep time, o homem, antes agente cultural, torna-se agente natural. Também é nesse tempo que a história cultural é somente parte de uma história maior, natural e planetária; história com um tempo profundo, inapreensível para nós. O advento do Antropoceno acelerou e desviou a atenção dos estudiosos das humanidades para um processo que Chakrabarty (2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p.) identificou em pensadores como Bruno Latour. Eles já problematizavam as dicotomias e já deslocavam noções modernas de ser humano. Em consonância com a afirmação de Haraway que mencionei antes, Latour afirmava em The Pasteurization of France, de 1993, como lembra Chakrabarty, que não podemos formar a sociedade somente com o social, mas que a ação dos micróbios tinha que ser contada. Ao reivindicar a presença dos micróbios nas narrativas humanas, Latour questionava os modos humanos de ser e conhecer (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 150).

Não se trata, claro, de simplesmente nos desvencilhar de um dos polos das dicotomias. A própria tese de Chakrabarty de que a modernidade tomava um novo fôlego nos contextos pós-coloniais (em Provincializing Europe e em The Climate of History in a PlanetaryCHAKRABARTY, Dipesh. Provincializing Europe: postcolonial thought and historical difference. Princeton: Princeton University Press, 2008.Age) que visavam, justamente, suas autonomias diante das ex-metrópoles não nos permitiria tentar. As vontades de emancipação enredavam desejos contraditórios e problemáticos, cujas superações, hoje, se mostram impossíveis. Mas, se, por um lado, é difícil, senão banal, descartar o ideal civilizacional, por outro lado, temos que admitir que a sedução que “civilização” exerceu vem sofrendo graves reveses com as constatações sobre o clima e sobre a permanência de estruturas que sustentam desigualdades derivadas, justamente, da civilização ou da modernização. É nesse ponto que preocupações tradicionalmente identificadas com o pensamento pós-colonial encontram o Antropoceno.

Escavadeiras

Chakrabarty é, entre destacados pensadores pós-coloniais, aquele que possivelmente mais se dedicou a pensar o Antropoceno. É dele, afinal, o alerta “The Climate of History: Four Theses” (2009), ou “O clima da história: quatro tesesCHAKRABARTY, Dipesh. O clima da história: quatro teses. Sopro, n. 91, p. 2-22, 2013.”, traduzido e publicado no Brasil em 2013. O ensaio, fundamental como se tornou, vem sendo reeditado e é considerado pelo próprio Chakrabarty (2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 18) o ponto onde tudo começou. O texto de 2009 trazia considerações importantes para as humanidades. Chakrabarty descrevia, pela primeira vez, a disjunção que sofria a categoria “humano” e questionava a dificuldade de ver-se, e ver todos nós, humanos, mergulhados na história profunda do planeta, uma história que não conseguíamos experimentar na qualidade de indivíduos cuja experiência de vida não pode durar muito. Como humanos, ele afirma, mais tarde, em The Climate of History,

não sabemos como experimentar sem nenhuma mediação esses outros modos de ser humano que nós cognitivamente conhecemos em um grau abstrato. Humanos em sua pluralidade interna diferenciada, humanos como uma espécie e humanos como fazedores do Antropoceno constituem três categorias conectadas mas analiticamente distintas. (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 15, tradução nossa)2 2 We have no way of experiencing in unmediated forms these other modes of being human that we know cognitively at an abstract level. Humans in their internally differentiated plurality, humans as a species, and humans as the makers of the Anthropocene constitute three connected but analytically distinct categories (CHAKRABARTY, 2021, p. 15). .

Embora o nome desta nova era ainda seja objeto de discussão, a compreensão das mudanças geológicas causadas por humanos no planeta não é contestada. É evidente que o nome escolhido não é uma coisa desimportante: a escolha alude, de fato, a uma vontade de justiça. Se não são todos os humanos aqueles que se beneficiam do colonialismo, da industrialização e do consumo de energia fóssil, não seria melhor nominar esta era “Capitaloceno” (MOORE, 2016MOORE, James W. (ed.). Anthropocene or Capitalocene? Nature, History, and the Crisis of Capitalism. Michigan: Kairos PMPress , 2016. 240 p.), referindo-se, assim, à possivelmente real causa? Ou, ainda, não é esta uma escolha mais politicamente comprometida com a justiça entre os humanos?

Com efeito, Jason W. Moore (2016MOORE, James W. (ed.). Anthropocene or Capitalocene? Nature, History, and the Crisis of Capitalism. Michigan: Kairos PMPress , 2016. 240 p., p. 14) nos convida a considerar que “Antropoceno” “não é nem uma manobra conceitual útil nem um facilitador empírico, mas um reflexo e um reforço da discutível visão de mundo antropocêntrica que gerou, precisamente, ‘o Antropoceno’ - com todas as suas emergências iminentes”. Segundo Moore (2016MOORE, James W. (ed.). Anthropocene or Capitalocene? Nature, History, and the Crisis of Capitalism. Michigan: Kairos PMPress , 2016. 240 p., p. 6), “Capitaloceno” é o único nome a capturar “o padrão histórico básico contemporâneo da história mundial enquanto ‘Era do Capital’ - e era do capitalismo como uma ecologia mundial de poder, capital e natureza”. Donna Haraway (2016HARAWAY, Donna J. Staying with the Trouble: Anthropocene, Capitalocene, Chthulucene. In: MOORE, James W. (ed.). Anthropocene or Capitalocene? Nature, History, and the Crisis of Capitalism. Michigan: Kairos PMPress, 2016. p. 34-76.), por sua vez, gostaria de enfatizar a compreensão de que estes são tempos em que: 1) não podemos mais conhecer algo por meio de qualquer tipo de individualismo metodológico e 2) não é mais cientificamente possível nos considerar humanos simplesmente, mas uma espécie de “combinado” cujo resultado é causado por inúmeros seres vivendo em simbiose. Para ela, nomear esta era “Antropoceno” reforça uma velha centralidade em um tempo de franca transformação. Para Haraway, nas palavras de Moore (2016MOORE, James W. (ed.). Anthropocene or Capitalocene? Nature, History, and the Crisis of Capitalism. Michigan: Kairos PMPress , 2016. 240 p., p. 6), “o problema do Antropoceno é fundamentalmente o problema de pensar o lugar da humanidade na rede da vida”.3 3 Neste sentido, Haraway está mais próxima de uma postura que Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro compreendem como impossibilidade em Chakrabarty e Latour. Em Há mundo por vir? (2014), Danowski e Viveiros de Castro ressaltam a dificuldade dos autores de imaginar o conceito ameríndio de humanidade, “uma apreensão fenomenológica, tão intensa quanto se queira, de sua própria e precária especificidade enquanto bloco de afetos, corporalidade vivida, subjetividade perspectiva em tensão cosmopolítica perpétua com as outras humanidades ocultas sob as corporalidades das outras espécies” (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 111; grifos dos autores).

Chakrabarty argumenta que o debate sobre o nome e, por consequência, sobre quando a nova era teria emergido - se com o início da colonização das Américas, com a Revolução Industrial ou a partir da segunda metade do século XX - reflete a preocupação com a narrativa que prevalecerá sobre as instituições e a moral humanas (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 169). Mas sendo inquestionável a ação humana predatória sobre o planeta, é o descompasso dos tempos que o Antropoceno trouxe, o mergulho do humano na “história profunda”, o que perturba de modo incontornável a ordem sobre a qual todo o pensamento moderno se fundou.4 4 A história humana no planeta e a história planetária geram, assim, respectivamente, o tempo centrado no humano, isto é, a escala da história mundial, e o tempo do planeta, operando em escalas de tempo geológicas. Esses diferentes tempos obedecem a interesses e estão inseridos em discursividades muito diferentes, com as quais, o pensador das humanidades, agora, deve obrigatoriamente lidar. Para os estratígrafos, por exemplo, importa mostrar que o sistema planetário está reconhecidamente mudando, sem que eles necessariamente se preocupem com quem é o autor da mudança (CHAKRABARTY, 2021, p. 170). Já para os pensadores treinados nas disciplinas modernas das ciências humanas, a questão é central. Se o planeta se modifica por conta das ações dos humanos, que dependem dele, isso deverá querer dizer algo sobre nossa humanidade. Ou, ainda, qual é nosso compromisso ético com a vida do e no planeta - nossa e de outras espécies? Assim, deve-se começar por assimilar o choque causado pelo reconhecimento da alteridade do planeta e de seus processos de longuíssimas escalas espaciais e temporais, dos quais humanos agora fazem parte. É neste cenário profundamente alterado que Chakrabarty parece tentar responder a uma necessidade de conciliar o pensamento pós-colonial - habituado a se dedicar à luta por justiça entre humanos, mas costumeiramente cego à questão ambiental e alheio à ideia de uma política que compreenda não humanos - com os desafios em relação ao tempo, à agência e à própria categoria de humano que a nova era questiona por meio da noção de força transformadora do planeta que teríamos nos tornado.

O humano dividido entre ser agente da história (humana) mundial e agente geológico do planeta convoca o historiador a pensar sobre as consequências epistêmicas do Antropoceno. Chakrabarty observa que o tipo de agência implícita na expressão “agente geológico” é diametralmente oposto ao conceito de agência de acordo com E.P. Thompson ou Ranajit Guha, seu professor e líder do Subaltern Studies. Para eles, sabemos, tratava-se de uma agência autônoma e consciente e não de uma “impessoal e inconsciente força geofísica, consequência da atividade humana coletiva” (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 3). Essa diferença é essencial para localizar o pensamento pós-colonial diante do Antropoceno e intuir as perspectivas que podem decorrer do encontro.

O debate em torno da agência histórica é, de fato, uma importante chave de leitura para o pensamento pós-colonial de que Chakrabarty faz parte. Isso porque sua inserção aos estudos pós-coloniais acontece por via do encontro deste com o movimento ao qual pertencia, o Subaltern Studies. Em “Postcolonial Studies and the Challenge of Climate Change”, de 2018, Chakrabarty explica que, tendo nascido do ímpeto anticolonial, o movimento reivindicava para a figura do camponês o status de sujeito moderno revolucionário. O encontro com o pensamento pós-colonial (com Gayatri Spivak em um primeiro momento, mas depois também com Homi Bhabha) pôs em xeque o que Chakrabarty (2018CHAKRABARTY, Dipesh. The Crises of Civilization: exploring global and planetary histories. New Delhi: Oxford University Press, 2018. 321 p., n. p.) vê, hoje, como uma prática inocente do grupo: buscar fazer do subalterno o “agente” da sua própria história.

O humano no nosso modo de pensar anticolonial era uma figura soberana. Queríamos fazer do camponês e do subalterno sujeitos das suas próprias histórias, ponto. E pensávamos neste sujeito como a imagem da pessoa autônoma, detentora de direitos, com o mesmo acesso à representação na história nacional que outros com origens mais privilegiadas [...] tornar-se humano para nós era tornar-se sujeito. (CHAKRABARTY, 2018CHAKRABARTY, Dipesh. The Crises of Civilization: exploring global and planetary histories. New Delhi: Oxford University Press, 2018. 321 p., n. p.).5 5 The human in our anticolonial mode of thinking was a figure of sovereignty. We wanted to make the peasant and the subaltern the subject of his or her history, period. And we thought of this subject in the image of the autonomous rights-bearing person with the same access to representation in national and other histories as others from more privileged backgrounds enjoyed. [...] Becoming human was for us a matter of becoming subject (CHAKRABARTY, 2018, n. p.).

Como lemos, não somente a agência passa a ser pensada como possibilidade de uma impossibilidade, quanto a própria categoria de humano era descontruída. “Humano” deixava de aludir a qualquer tipo de essencialidade, não sendo mais pensável nos termos da política identitária, e era imbricado em uma filosofia da diferença. Se isso não invalidava a luta por direitos, como ressalta Chakrabarty, com certeza complicava as determinações e alusões fáceis a um estatuto normativo vazio de validade política.

Se a agência e a humanidade, no encontro do movimento anticolonial com a crítica pós-colonial, tinham sido, ao menos, duplicadas nas suas acepções, parece que com o advento do Antropoceno, o humano vinculado à agência tem que ser repensado em termos de um radicalismo ainda mais profundo: o humano enquanto agente geológico leva a ideia de agência aos limites da (in)consciência. Como vínhamos dizendo com Chakrabarty, a categoria de humano deve ser encarada em múltiplas camadas, das quais “agente geológico” é aquela menos ontológica, menos consciente, indiferente, diz Charkrabarty (2018CHAKRABARTY, Dipesh. The Crises of Civilization: exploring global and planetary histories. New Delhi: Oxford University Press, 2018. 321 p., n. p.) às questões de justiça entre os humanos. É esta categoria que não conseguimos experimentar, afirma, deslocando, portanto, certezas e estabilizações com as quais operávamos. Ela pertence ao planeta, ao sistema Terra, e, diferente do “globo”, não é uma construção antropocêntrica.

Entre as convicções deslocadas, existe uma que é, na verdade, uma desconfiança, mas que o hábito da prática intelectual tornou uma constante legítima. O pensamento pós-colonial, como sabemos, pertence, de certa forma, a um fluxo intelectual maior, já que profundamente arraigado nas questões que o pós-estruturalismo colocou à episteme ocidental. A desconfiança de grandes categorias de análises social, política e histórica é uma das premissas do pensamento pós-colonial, além de, possivelmente, uma das suas melhores contribuições. Conceitos universais e universalistas de agência e humanidade, como vimos, mas também um conceito de mundo que clamasse por unicidade, eram submetidos à

realidade que dividia humanos e formava as bases para diferentes regimes de opressão: colônia, raça, classe, gênero, sexualidade, ideologias, interesses e etc. [...] Esta tendência unificadora sempre pareceu ideologicamente suspeita e sustentada pelos interesses do poder (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 17).6 6 The reality of all that actually divided humans and formed the basis of different regimes of oppression: colony, race, class, gender, sexuality, ideologies, interest, and so on. [...] This unifying move seemed ideologically suspect and always appeared to have been made in the interests of power (CHAKRABARTY, 2021, p. 17).

O problema conceitual, portanto, para o qual nos lança o Antropoceno é aquele de conciliar esta perspectiva - indubitavelmente válida, inclusive para pensar os termos da justiça climática - com a incontestável realidade de que os recursos do planeta são os mesmos para todos, independentemente do quanto um ou outro país tenha se beneficiado com a exploração de fontes de energia fóssil ou com a sua movimentação predatória pelo planeta. A questão, em poucas palavras, é que o mundo, no Antropoceno, é efetivamente um planeta.

Como responder, então, hoje, aos desafios colocados pelo pensamento pós-colonial ao longo das últimas décadas do século XX? Ou, ainda, no plano da busca pela justiça, como compreender o desejo ou o direito ao desenvolvimento de nações terceiro-mundistas e de passado colonial? Onde enfiar e como interpretar “o desejo de crescimento, modernização, desenvolvimento - não importa como chamamos - disseminado pelas nações menos desenvolvidas do mundo”7 7 The widespread desire for growth, modernization, development, whatever one calls it, in the less developed nations of the world (CHAKRABARTY, 2021, p. 96). (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 96)?

A essas questões, somam-se ainda:

Como alinhar a realidade dessas aspirações populares que reemergem nos ciclos eleitorais e nas políticas institucionais àquilo que pesquisadores da Ciência do Sistema Terra (Earth System Science) e outros identificados sob rubrica ‘pós-humanismo’ nos dizem a respeito de um mundo emaranhado, agências compartilhadas, o papel dos processos planetários, o não humano e etc.? (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 99-100).8 8 How do we square the reality of these popular aspirations that play out over electoral cycles and institutional politics with what scholarly voices from Earth System Science and from what we gather under the rubric ‘posthumanism’ tell us about an entangled world, distributed agencies, the role of planetary processes, the nonhuman, and so on? (CHAKRABARTY, 2021, p. 99-100).

E qual é a relação, hoje, entre os projetos que marcaram a segunda metade do século XX de modernização de nações recentemente libertas e a crise climática? (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 101)9 9 Para Chakrabarty (2021, p. 101), ainda, o problema ultrapassa o que ele chama de “desejos do terceiro-mundo”, uma vez que a dominação da natureza pela tecnologia era/é experimentada como masculinidade em diversos lugares do globo. Ao analisar como e por que visões de futuros modernizados estruturaram as imaginações das classes médias e de outras classes das nações que haviam sido colônias dos poderes europeus, não parece possível ignorar que esta imaginação é devedora do patriarcado, sendo, portanto, moldada por ele. O patriarcado, por sua vez, constituía/constitui um ideal de modernização. O tema ocupa muito do pensamento feminista. Para uma compreensão da relação entre o feminismo e a teoria da Formação da literatura brasileira, ver, por exemplo, “Fora do eixo: notas feministas sobre a teoria da Formação da literatura brasileira” (SANTOS, 2020).

Himalaias

O que eu gostaria de pensar, neste ponto, o passo que segue as perguntas, é a associação entre um projeto literário-cultural que parece ter dominado as letras brasileiras a partir da década de 1950, sobretudo, e o desejo anticolonial e terceiro-mundista pelo desenvolvimento, e pensar essa vizinhança por meio da arrebatadora consciência sobre o humano e o planeta que o Antropoceno institui. Ou seja, gostaria de ler de perto “Literatura e subdesenvolvimento” (2017aCANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul , 2017a. p. 169-196.), de Antonio Candido, considerando as questões acima e buscando respostas àquelas que Chakrabarty coloca diretamente sobre os/aos líderes políticos e culturais do mundo pós-colonial. Devemos assumir que os líderes anticoloniais desejosos de alcançar o passo do Ocidente estavam simplesmente defendendo pálidas cópias dos seus precursores europeus - mímica, desejos de segunda-mão condenados pela história a repetir a insensatez ocidental - e que, assim, a crítica aos modernizadores europeus daria conta deles também? (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 105). E, por que a divisão natureza/cultura encontrou uma articulação nova e original na imaginação do colonizado? (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 105-106. Na obra teórico-crítica de Antonio Candido, possivelmente melhor do que nas de outros críticos literários brasileiros, conseguimos enxergar o ímpeto modernizante por conta da sua reiterada defesa de uma literatura nacional (ou latino-americana) bem-sucedida articulada ao redor da dialética entre a particular matéria local e as formas universais (europeias) com vistas à sua inserção no “Ocidente”. A obra do crítico, de fato, parece vincular-se, toda ela, à expectativa da formação nacional do estado brasileiro, inserido em um quadro maior de estados-nação ocidentais. A literatura (não necessariamente independente, como veremos) é medida de desenvolvimento cultural, além de se tornar instrumento de uma (necessária) emancipação econômica e política.

Em “Literatura e subdesenvolvimento”, o vínculo entre literatura e avanço civilizacional é tão forte que Candido chega a afirmar que a compreensão da dependência cultural de nações como o Brasil - encarada como inevitável - se liga automaticamente à ação política. “O reconhecimento,” afirma, “da vinculação se associa ao começo da capacidade de inovar no plano da expressão e ao desígnio de lutar no plano do desenvolvimento econômico e político” (CANDIDO, 2017aCANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul , 2017a. p. 169-196., p. 186). Ambos os processos, maturidade cultural e maturidade política, caminham juntos e são, nos seus termos, indissociáveis. A diferença se dá, precisamente, no que se segue à compreensão da dependência: enquanto no primeiro caso ela deve ser acolhida, no segundo, deve ser combatida. O ensaio, afinal, dá as boas-vindas à consciência do subdesenvolvimento no plano econômico e político por meio do reconhecimento da dependência no plano cultural. O objetivo para Candido, assim, não é uma simples (nem complexa) superação da condição periférica no plano cultural, mas bem-sucedidas intervenções no palco central das culturas metropolitanas. Como observou Alberto Moreiras (2001MOREIRAS, Alberto. A exaustão da diferença: a política dos estudos culturais latino-americanos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. 405 p., p. 203), em “Literatura e subdesenvolvimento”,

um certo paradoxo inquietador tem que ser absorvido: o imperialismo da ordem política e econômica deve ser rejeitado, enquanto o imperialismo de ordem cultural deve ser, ao contrário, completamente aceito, para que, através de uma total apropriação de formas culturais eurocêntricas, a dependência possa evoluir para algo diferente de si. (MOREIRAS, 2001MOREIRAS, Alberto. A exaustão da diferença: a política dos estudos culturais latino-americanos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. 405 p., p. 203)

O paradoxo, que Candido desdramatiza afrouxando as expectativas em relação à sua teleologia no plano da cultura, enfatiza, contudo, uma vontade de intervenção econômico-política do crítico literário.

Com efeito, quanto mais o homem livre que pensa se imbui da realidade trágica do subdesenvolvimento, mais ele se imbui da aspiração revolucionária - isto é, do desejo de rejeitar o jugo econômico e político do imperialismo e de promover em cada país a modificação das estruturas internas, que alimentam a situação do subdesenvolvimento. (CANDIDO, 2017aCANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul , 2017a. p. 169-196., p. 186).

Para nós, é interessante imaginar que uma afirmação do tipo possa remeter, de fato, ao sonho da modernização que em última instância desagua no Antropoceno; posto que seria muito improvável que Candido estive clamando por algo diferente daquilo que era oferecido pela CEPAL (Comissão Econômica para América Latina e Caribe) como solução para o subdesenvolvimento do continente latino-americano. E a recomendação cepalina era precisa: industrializemo-nos, criemos e fortaleçamos nossos mercados internos, desenvolvamos o capitalismo. Publicado em 1970, “Literatura e desenvolvimento” ecoava o entusiasmo desenvolvimentista das décadas anteriores, cravado na consciência do subdesenvolvimento, ou a descoberta do subdesenvolvimento como singularidade histórica.10 10 Sobre a consciência do subdesenvolvimento a partir da leitura da teoria produzida pela CEPAL, Francisco de Oliveira afirma: “Como singularidade e não elo na cadeia do desenvolvimento, e pela ‘consciência’, o subdesenvolvimento não era, exatamente, uma evolução truncada, mas uma produção da dependência pela conjunção de lugar na divisão internacional do trabalho capitalista e articulação dos interesses internos” (OLIVEIRA, 2003, p. 127). De acordo com Oliveira, ainda, o termo subdesenvolvimento denotaria o lugar na divisão internacional do trabalho capitalista, portanto, hierarquizada. Não se tratava, segundo ele, de uma etapa, mas, precisamente, de um conhecimento do todo - periferia e centro - capitalista e da consequente localização da América Latina nele. Chamo a atenção a esse ponto porque não queremos, como alerta Chakrabarty, entender que os defensores das teses desenvolvimentistas acreditavam, ou necessariamente acreditam, em um etapismo simplório. A questão, assim, é compreender a complexidade do desejo pela industrialização aliado à urbanização que Candido também parece defender. “Daí a disposição de combate que se alastra pelo continente, tornando a ideia de subdesenvolvimento uma força propulsora, que dá novo cunho ao tradicional empenho político dos nossos intelectuais”, afirma Candido (2017aCANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul , 2017a. p. 169-196., p. 171), reforçando sua tradicional ideia de intelectual engajado, ou de “literatura empenhada”, como em Formação da literatura brasileira.

Em um movimento decorrente dessa ideia, a literatura não surge como mero recurso do processo de tomada de consciência, mas como a própria precursora da compreensão da realidade, que só acontecerá muito depois nos planos político e econômico.

A consciência do subdesenvolvimento é posterior à Segunda Guerra Mundial e se manifestou claramente a partir dos anos de 1950. Mas desde o decênio de 1930 tinha havido mudança de orientação, sobretudo na ficção regionalista, que pode ser tomada como termômetro, dadas a sua generalidade e persistência [...] o romance adquiriu uma força desmistificadora que precede a tomada de consciência dos economistas e políticos. (CANDIDO, 2017aCANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul , 2017a. p. 169-196., p. 171-172).

Em “The Difficulty of Being Modern”, de The Climate of History, Chakrabarty aprofunda as questões a respeito do desejo dos líderes anticoloniais. Segundo ele, líderes como Nehru, Leopold Senghor, Nasser e Césaire não podem simplesmente receber as críticas à modernização que pensadores como Bruno Latour colocam à Europa e seus líderes. Trata-se, justamente, como ele diz, de compreender e mensurar a imaginação e o sonho do colonizado de ser moderno. Assim, quando se volta para Nehru, entendemos que esse não é um sonho esquálido, desprovido de aspirações e princípios. O que surge, de fato, é um desejo, espiritual e idealista, fascinado pela “modernização principalmente à base de combustíveis fósseis” (mostly fossil-fuel-driven modernization) (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 106).

A ambivalência entrevista na totalidade dos escritos de Nehru e que reforça o caráter anímico da sua perspectiva política deriva da visão romântica da natureza, em especial das montanhas do Himalaia, e da vocação utilitária que ele evoca, posteriormente, para a água, os minérios e outros recursos que as montanhas provêm.

Em seus próprios relatos, as primeiras imagens que lhe vinham à cabeça não eram de progresso industrial mas um quadro muito mais delicado ‘do longo passado da nossa história, [...] dos primeiros dias quando, talvez, os primeiros canais e trabalhos de irrigação foram construídos e tudo fluía através deles’. (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 107-108).11 11 By his own recounting, the first images that came to his mind were not that of industrial progress but of a much gentler picture ‘of the long past of our history, [...] of the early days when perhaps the first canals and irrigation works were constructed and all that flows from them’ (CHAKRABARTY, 2021, p. 107-108).

A visão desse passado arcaico e primordial é interrompida pelo pensamento sobre o futuro. Seu ímpeto modernizante converte as montanhas em uma fonte inesgotável - e exclusivamente indiana - de energia (a água, os minérios). Ainda aí, afirma Chakrabarty, não se trata de uma postura simplesmente utilitarista.

Nós compreenderíamos mal tipos como Nehru ou Mao ou Nasser ou Nyerere se os considerássemos pessoas pragmáticas expressando uma fé simplória e ingênua nas soluções tecnocratas para o problema do fornecimento de energia e água. Nehru enxergava a tarefa de fazer a nação “avançar” como nada menos que uma missão espiritual, que necessitava idealismo e fé da parte do tecnocrata - mas uma fé que ia muito além da fé na efetividade tecnológica. A visão de Nehru clamava pela fé tanto no povo do país quanto no projeto de modernização para que, assim, as energias populares confluíssem para a criação da nação. (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 109).12 12 We would get the likes of Nehru or Mao or Nasser or Nyerere wrong if we thought of them as pragmatic people expressing a simple and naive faith in technocratic solutions to the problem of energy or water supply. Nehru saw the task of making the nation “advance” as nothing short of a spiritual mission, one that required both idealism and faith on the part of the technocrat - but a faith that went far beyond questions of technological effectiveness. What Nehru’s vision called for was faith in both people of the country and in the project of modernization in the interest of unleashing popular energies in creating a nation (CHAKRABARTY, 2021, p. 109).

A longa citação vale seu espaço porque penso que ela traga à tona a perspectiva similar à de Nehru que, guardadas as diferenças que os postos de primeiro-ministro indiano e de crítico e professor de literatura brasileira sugerem, Antonio Candido assume. Se levarmos, ainda, em consideração que muitas das suas intervenções de fato não se restringem à literatura ou à cultura, mas se destinam à política, à história econômica e à formação da nação, como o próprio “Literatura e subdesenvolvimento” demonstra, a afinidade dos dois discursos se intensifica. O que gostaria de ressaltar aqui é a permeabilidade de um discurso cultural com intuito político (o discurso de Candido) por meio de um discurso político com índole cultural-literária (aquele de Nehru). Em outras palavras, invoco a literatura política para pensar a política da literatura, ao menos como Candido parece compreendê-la.

Como se sabe, Candido, habitualmente, se refere à vocação política e ativista dos intelectuais latino-americanos, especialmente dos escritores. Basta lembrar sua afirmação de que “quem escreve, contribui e se inscreve num processo histórico de elaboração nacional” (CANDIDO, 2007CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos 1750-1880. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2007 [1957]. , p. 20), também presente em Formação de literatura brasileira. Além dela, recordemos ainda seu apelo ao espírito que se materializaria no Brasil: “Lidas com discernimento, revivem [as obras] na nossa experiência, dando em compensação a inteligência e o sentimento das aventuras do espírito. Neste caso, o espírito do Ocidente, procurando uma nova morada nesta parte do mundo” (CANDIDO, 2007CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos 1750-1880. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2007 [1957]. , p. 12). Na menção ao espírito do Ocidente e à sua possível manifestação nesses lados, avizinhamo-nos ainda mais a uma semântica idealista, comum ao discurso de Nehru de acordo com Chakrabarty, que unia desenvolvimento técnico e questões da “alma nacional”.

Mais especificamente, além da fé na modernização e na missão espiritual que também o Brasil cumpriria ao se modernizar, o que aproxima Candido e Nehru, ou o Brasil de Candido e a Índia de Nehru, ou, ainda, a literatura brasileira segundo Candido e as montanhas do Himalaia segundo o Nehru de Chakrabarty, é o idealismo do passado versus “o choque de realidade” que o presente traz e o futuro ativa e a ideia de uma força e uma vontade populares que se devem encaminhar em direção à formação da nação. Chakrabarty cita Nehru vastamente sobre o tópico da cadeia do Himalaia e mostra, como vimos, que a natureza imponente e o passado original que vivem nas montanhas impulsionam a Índia a um futuro também grandioso. Mais uma vez, Chakrabarty (2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p.) reproduzindo Nehru:

Quando pensava sobre o futuro, Nehru dizia, sua atenção se “concentrava naquele bloco massivo de montanhas chamado Himalaias que guarda nossa fronteira nordeste.” “Olhe para elas. Pense nelas”, ele exortava sua audiência. “Não conheço nenhum outro lugar no mundo que contenha tamanha força guardada dentro de si como os Himalaias e a água que vem dos seus rios. Como devemos utilizar essa força?”13 13 When he thought of the future, Nehru said, his attention would be “concentrated on that huge block of massive mountains called the Himalayas which guard our north-eastern frontier.” “Look at them. Think of them,” he would exhort his listeners. “I know of no other place in the world which has as much tremendous power locked up in it as the Himalayas and the water that come to the rivers from them. How are we to utilize it?” (CHAKRABARTY, 2021, p. 108). (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 108).

De certo modo, é como se Nehru concentrasse na sua visão dos Himalaias a perspectiva de Candido sobre os escritores brasileiros desde o romantismo até a segunda metade do século XX, ou desde que a literatura brasileira é formada até o super-regionalismo, expressão cunhada por ele. O que une Nehru e os Himalaias, de um lado, a Candido e a literatura brasileira, de outro, é, precisamente, o conceito moderno de (Estado-)nação e o desenvolvimento tanto da nação quanto do Estado e da sua economia. Em outras palavras, o desejo pela modernização, a construção portanto do futuro moderno, orientava as letras brasileiras de Candido e a política indiana através da liderança de Nehru. E se, no início, o desenvolvimento se ligava à natureza suntuosa, que justificava as expectativas - “com efeito, a ideia de país novo produz na literatura algumas atitudes fundamentais derivadas da surpresa, do interesse pelo exótico, de um certo respeito pelo grandioso e da esperança quanto às possibilidades” (CANDIDO 2017aCANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul , 2017a. p. 169-196., p. 169) -, ela logo se revelaria insuficiente (e mentirosa?) para alçar o país à condição de moderno:

a consciência do subdesenvolvimento como mudança de perspectiva, que evidenciou a realidade dos solos pobres, das técnicas arcaicas, da miséria pasmosa das populações, da sua incultura paralisante. A visão que resulta é pessimista quanto ao presente e problemática quanto ao futuro [...] O precedente gigantismo de base paisagística aparece então na sua essência verdadeira - como construção ideológica transformada em ilusão compensadora. (CANDIDO, 2017aCANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul , 2017a. p. 169-196., p. 171).

Se, inicialmente, “a ideia de pátria se vinculava estreitamente à de natureza e em parte extraía dela a sua justificativa” (CANDIDO, 2017aCANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul , 2017a. p. 169-196., p. 170), o que acontece posteriormente é a passagem da natureza super valorizada à cultura desvalorizante. (Será a cultura, no entanto, que em momento posterior reativará a natureza, mas de forma sofisticada, com o super-regionalismo. Na nossa comparação, Nehru proporia “o equivalente” ao super-regionalismo, isto é, a liberação da tremenda força contida naquele espaço nacional, os Himalaias). Poderíamos afirmar que o enaltecimento do conhecimento do subdesenvolvimento em detrimento da esperança que a natureza gerava, e que passa a ser enganosa, fortalece a ideia de domínio da natureza pela técnica e tecnologias humanas? Poderíamos, ainda, abusadamente imaginar que se Candido fosse o hipotético primeiro-ministro de um Brasil parlamentar, leríamos hipotéticos discursos de defesa da exploração e do aproveitamento dos recursos naturais como forma de superar o subdesenvolvimento?

Talvez pudéssemos tentar uma resposta pela constatação de que a urbanização aparece como algo inevitável em “Literatura e subdesenvolvimento”. Não há, com efeito, a defesa declarada da urbanização como etapa do desenvolvimento, mas indícios de que urbanização, industrialização e desenvolvimento sejam, de fato, processos análogos e contíguos. Talvez seja impossível pensar, no contexto desenvolvimentista das décadas de 1960 e 1970, em desenvolvimento sem cidades e sem indústrias. Por isso, intuímos, as metrópoles ibero-americanas, Espanha e Portugal, tenham ainda, segundo Candido (2017aCANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul , 2017a. p. 169-196., p. 173), “áreas subdesenvolvidas” (as extensas áreas rurais?). Também o contexto desenvolvimentista explicaria a comparação entre elas e os “países plenamente desenvolvidos” (CANDIDO, 2017aCANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul , 2017a. p. 169-196., p. 173), noção articulada em torno da literatura como bem de consumo restrito em Portugal e Espanha e, imaginamos, não restrito no caso dos avançados (França?, Inglaterra?, Alemanha?).

A situação descrita não é absurda apesar de nebulosa e remete às “condições materiais da existência da literatura” (CANDIDO, 2017aCANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul , 2017a. p. 169-196., p. 172). Estas são, primeiramente, a erradicação do analfabetismo, mas também o combate a outras “manifestações de debilidade cultural”, como a “falta de meios de comunicação e difusão (editoras, bibliotecas, revistas, jornais)” (CANDIDO, 2017aCANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul , 2017a. p. 169-196., p. 172). Seria possível, portanto, afirmar que, ao contrário, a vitalidade cultural de “um povo” parece depender, ao menos em uma boa parte, da cultura urbana. Não necessariamente da grande cidade, mas de aglomerados urbanos onde existam bancas de jornais, livrarias e bibliotecas. Todas elas, por sua vez, garantidas pela indústria da impressão. Digamos, então, que ao menos alguma urbanização é desejável e que sua ausência acarreta problemas de fragilidade e frouxidão cultural.14 14 Segue, na lista das manifestações de debilidade cultural, “a inexistência, dispersão e fraqueza dos públicos disponíveis para a literatura [...]; impossibilidade de especialização dos escritores em suas tarefas literárias [...]; falta de resistência ou discriminação em face de influências e pressões internas” (CANDIDO, 2017a, p. 172), das quais se depreende, ainda, outra das tendências comuns aos textos de Candido que é sua opção pela formação de uma tradição literária interna e nacional. O assunto não é de menor interesse uma vez que “Literatura e subdesenvolvimento” visa a criação de um trânsito entre obras que extrapolem as fronteiras nacionais, retroalimentando as literaturas nacionais. Ainda assim, parece ser inevitável, e nesta altura, bastante “candidiano”, a afirmação, encontrada também em “Literatura e subdesenvolvimento”: “Um estágio fundamental na superação da dependência é a capacidade de produzir obras de primeira ordem, influenciada, não por modelos estrangeiros imediatos, mas por exemplos nacionais anteriores” (CANDIDO, 2017a, p. 184). O parágrafo termina com o exemplo da “causalidade interna”, citando gerações de escritores brasileiros influenciados pela geração precedente, mas sem conseguir alçar voo para além das fronteiras nacionais. O parágrafo que segue introduz a figura de Jorge Luís Borges, primeiro a se tornar influência para os países metrópoles. O interessante, contudo, é que a obra de Borges, apesar de bastante identificável, no nível temático, com motivos argentinos, muito dificilmente surge de qualquer “causalidade interna”, haja vista a reconhecida influência da literatura de língua inglesa na obra.

Além disso, em outro movimento reconhecível do texto, o “quadro dessa debilidade se completa por fatores de ordem econômica e política, [...] articulados com políticas educacionais ineptas ou criminosamente desinteressadas” (CANDIDO, 2017aCANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul , 2017a. p. 169-196., p. 172). Como a literatura é considerada por Candido o principal elemento cultural de uma civilização e medida para aferição do grau de desenvolvimento de um país, a educação formal, a alfabetização e a introdução à literatura erudita como política de estado se mostram rigorosamente necessárias nas suas formulações. A literatura erudita se torna a condição sem a qual as massas são abandonadas à própria sorte e se tornam presas fáceis da “cultura de massa”. Voltando à comparação com Nehru, sem a educação voltada à erudição literária, a energia do povo ou mantém-se presa ou, como parece ser inevitável, é liberada na direção errada.

Na maioria dos nossos países há grandes massas ainda fora do alcance da literatura erudita, mergulhando numa etapa folclórica de comunicação oral. Quando alfabetizadas e absorvidas pelo processo de urbanização, passam para o domínio do rádio, da televisão, da história em quadrinhos, constituindo a base de uma cultura de massa (CANDIDO, 2017aCANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul , 2017a. p. 169-196., p. 174).

Entendamo-nos: não bastam a urbanização e a alfabetização, sob o risco do influxo da cultura massificada e dos seus possíveis efeitos políticos. O temor de Candido parece tão grave que chegamos a ler a defesa da catequese colonial (em oposição à “catequese às avessas” [CANDIDO, 2017aCANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul , 2017a. p. 169-196., p. 175] que ocorre contemporaneamente a “Literatura e subdesenvolvimento”):

No tempo da catequese os missionários coloniais escreviam autos e poemas, em língua indígena ou em vernáculo, para tornar acessíveis ao catecúmeno os princípios da religião e da civilização metropolitana, por meio de formas literárias consagradas, equivalentes às que se destinavam ao homem culto de então (CANDIDO, 2017aCANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul , 2017a. p. 169-196., p. 174)

A apologia da literatura erudita é algo que povoa os textos de caráter didático que Antonio Candido escreveu ao longo dos anos. Talvez o melhor exemplo se encontre em “O direito à literatura” (2017bCANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: CANDIDO, Antonio. Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul , 2017b. p. 171-193.), cuja ambivalência no tratamento da literatura já foi plenamente notada.15 15 Em “Além da literatura” (2006), de Marcos Natali, e “A função da literatura nos trópicos: notas sobre as premissas evolucionistas de Antonio Candido”, de Anita Martins Rodrigues de Moraes (2018). Este último, aliás, executa, de certa forma, uma reconstrução da defesa da “literatura erudita” por Candido ao longo de seus textos. A dificuldade de divergir de Candido quando defende a alfabetização16 16 De um outro lado do espectro (não do lado oposto), Gayatri Spivak (2003) também defende a educação das populações rurais na Índia. Nisto consiste seu trabalho de campo. Em Death of a Discipline ela articula o isolamento das comunidades rurais com a necessidade de educação para acesso aos sistemas culturais. De fato, e, assim, diversamente ao que é exposto em “Literatura e subdesenvolvimento”, Death desenvolve sua defesa da educação de modo a acolher a relação com a natureza e a terra, ou a Terra, como uma saída do esquema cidade - nação. e a responsabilidade do Estado de prover educação é inegável. Não podemos nos desvencilhar dessas demandas sem pagar um preço alto por isso. Por outro lado, debates da ordem do que deveria constituir a educação formal oferecida estão na ordem do dia e parecem querer respeitar a diversidade cultural que forma a população de um Estado. Esta diversidade, entretanto, não me parece estar no raio de observação de Candido que enaltece, via de regra, a aquisição da literatura erudita no lugar de (e não além de) manifestações folclóricas populares. A menção à catequese dos indígenas só vem reforçar minha percepção. Em “O direito à literatura”, a literatura erudita substitui, em um estágio posterior, a popular, caracterizada ali como folclore, lendas, chistes (CANDIDO, 2017bCANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: CANDIDO, Antonio. Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul , 2017b. p. 171-193., p. 176). Em “Literatura e subdesenvolvimento”, publicado 18 anos antes, o inimigo é o folclore urbano da cultura de massa e sua ingerência em uma população desavisada.17 17 A observação de Moreiras sobre o paradoxo de “Literatura e subdesenvolvimento” precisa, então, de um ajuste para tornar-se ainda mais clara. O imperialismo cultural que deve ser acolhido é um, enquanto há outro que deve ser rechaçado, assim como o imperialismo econômico e político. Candido não quer abrir mão das formas culturais eurocêntricas e quer usá-las contra as formas ascendentes daqueles anos. O texto, assim, mostra também seu viés conservador, ou, simplesmente, “iluminista”. A educação assume, assim, a maior das tarefas na realização da modernidade brasileira. É por isso que Candido (2017aCANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul , 2017a. p. 169-196.) lembra que “D. Pedro II dizia que teria preferido ser professor, o que denota atitude equivalente ao famoso ponto de vista de Sarmiento, segundo o qual o predomínio da civilização sobre a barbárie tinha como pressuposto uma urbanização latente, baseada na instrução.” (CANDIDO, 2017aCANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul , 2017a. p. 169-196., p. 177). Não é desprezível a menção a Sarmiento, seu propósito de urbanização e seu “mote”, civilização e barbárie. É ele juntamente com D. Pedro, duas figuras do século XIX evocadas como modelos, que ilustram um passado melhor porque mais preocupado com a educação, isto é, com a transformação do nativo (bárbaro) em cidadão urbano, leitor, instruído nas melhores práticas civilizacionais, ou eurocêntricas.

O século XX brasileiro, já com seus amontoados de “bárbaros” mortos em todo tipo de guerra civil, torna mais complicada a defesa pura e simples da civilização, mas Candido não consegue desvencilhar-se da fé iluminista na modernidade que orienta seus escritos. Ao se dedicar à consciência do subdesenvolvimento como propulsor da modernização latino-americana, portanto, suas menções à educação não nos permitem esquivar da sua estratégia modernizadora, lembrando que, assim como para Nehru, a modernização era o percurso em direção à liberação da energia do povo (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 109). Com a direção já conhecida, preconizando levar a nação subdesenvolvida aos níveis de urbanização, educação e industrialização dos países “plenamente desenvolvidos”, mais uma vez podemos perguntar se estamos lidando, ao ocupar-nos de Antonio Candido, com um exemplo, no plano cultural, do que Naipaul, relembrado por Chakrabarty (2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 111), chama de mimic men.

Ao tentar responder a essa questão sobre o primeiro-ministro indiano, Chakrabarty (2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 112) invoca novamente palavras do próprio Nehru: “Temos que encontrar uma maneira de combinar os dois - uma síntese entre o que consideramos valioso no antigo e valioso no novo. Uma mera tentativa de copiar outros países não é suficiente.”18 18 We have to find some way of combining the two - a synthesis between what we consider of value in the old and what we consider of value in the new. Mere attempt to copy other countries is not good enough (CHAKRABARTY, 2021, p. 112). Comparando essas às tantas palavras que Antonio Candido emprega em “Literatura e subdesenvolvimento” para qualificar o trabalho de criação do autor brasileiro/latino-americano a partir da consciência do subdesenvolvimento - como, por exemplo, “não há imitação nem reprodução mecânica. Há participação nos recursos que se tornaram bem comum através do estado de dependência, contribuindo para fazer deste uma interdependência” (CANDIDO, 2017aCANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul , 2017a. p. 169-196., p. 187) -, fica a impressão de que poderíamos tentar o mesmo início de resposta de Chakrabarty (2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 112): “Esta não era a autoimagem de um mimic man”.

O ponto para Chakrabarty é compreender a política atual da Índia e por que ela é guiada pela noção de globo (de globalização) e não de planeta, que o Antropoceno indica. Segundo ele, devemos aprofundar nossos estudos até a “secular ética de cuidado do bem-estar do povo que os ímpetos anticoloniais modernizadores encarnavam” (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 112). Antonio Candido seguramente enuncia um tanto dessa ética e compreendê-la nos ajuda, como com Chakrabarty, a localizar melhor nossos anseios contemporâneos.

Por outro lado, não nos deixa de assombrar a ideia de que Candido não tenha sido um líder anticolonial, seja no plano político ou no plano cultural, no qual se insere plenamente. Até onde sei, a personalidade e a importância de Antonio Candido para as letras brasileiras se relacionam muito mais com a instituição de paradigmas, modos e temas de estudo da literatura brasileira, inclusive com a formação do seu cânone, do que com qualquer ideia anticolonial (em um sentido não ontológico; por exemplo, anticolonial pensado como a reunião de estratégias para a emergência de subjetividades subalternas apagadas pela “grande história” ou para construção de uma cultura anti-hegemônica). Seus textos, tais como “Literatura e subdesenvolvimento”, são determinados por uma confiança inabalável na modernização como o destino desejado para o Brasil, de modo que a sua reivindicação mais comum em favor “do povo” tem mais a ver com o acesso à literatura erudita como passaporte para a modernidade (além, é claro, das suas investidas contra a miséria e as desigualdades sociais, o que não é pouco, mas também não parece muito diante do que o crítico representa para o âmbito das letras e da cultura brasileiras) do que com a recuperação de vozes silenciadas ou com a sublevação diante de uma elite política, econômica e cultural “colonialista”. Talvez, então, para retomar a pergunta sobre os mimic men de Naipaul, poderíamos tentar uma resposta que afirme a mímica em certo nível. Queremos ser aquilo que vemos em algumas outras nações, mas faremos isso através de um percurso próprio e original (os Himalaias lá, o sertão aqui).

Cerrado

Retornamos, assim, ao terreno reconhecido da dialética entre particular e universal que organiza tanto do que já foi escrito sobre a literatura brasileira e a latino-americana. Em outras palavras, voltamos à dicotomia natureza/cultura e ao apego crítico a essa ideia que Antonio Candido demonstrou ao longo dos anos, e em “Literatura e subdesenvolvimento”. É ela que nos pode indicar um pouco do que a modernização representou e, assim, acenar à “fixação humana por ‘descrições rasas’ da natureza e, portanto, da modernização” (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 113). Ou seja, ela demonstra que os modos de pensar o desenvolvimento do país (e da sua cultura) consideraram, via de regra, a inércia dos “objetos dispostos” - florestas, matas, animais, rios, etc. - para o (bom) aproveitamento do humano, sujeito ativo da relação.

A meu ver, a dificuldade de romper com as oposições que organizam tão bem os desejos terceiro-mundistas (não, claro, completamente equivocados) de desenvolvimento e modernização tem a ver com a relutância em compreender o humano como um ser em relação com outros. Destronar o humano do seu posto de patrão do planeta parece implicar em desprovê-lo de força, de poder e, quem sabe até, de liberdade. A questão, me parece, ultrapassa a luta, legítima, por justiça e por justiça climática, alocando-se no medo de abandonar um conceito arraigado de ser humano como espécie privilegiada.19 19 Declina-se da dicotomia natureza/cultura, além de objeto/sujeito, outra importante: humano/animal. Essa foi explorada de forma bastante contundente pela filosofia e nos fornece insights importantes para a autocompreensão do humano (e para a autocompreensão da filosofia também). É de Derrida (2002) uma boa síntese do problema: “Fazer aparecer em todo o discurso sobre o animal, notadamente no discurso filosófico ocidental, a mesma dominante, a mesma recorrência de um esquema na verdade invariante. Qual? Este: o próprio do homem, sua superioridade assujeitante sobre o animal, seu tornar-se-sujeito mesmo, sua historicidade, sua saída da natureza, sua sociabilidade, seu acesso ao saber e à técnica, tudo isto, e tudo o que constitui (em um número não finito de predicados) o próprio do homem, consistiria neste defeito originário, em verdade neste defeito de propriedade, neste próprio do homem como defeito de propriedade...” (DERRIDA, 2002, p. 83). ,20 20 A discussão nos levaria a retomar as observações de Donna Haraway em favor de um estatuto humano muito mal definido, profundamente instável e prazerosamente precário. Levar-nos-ia, também, ao feminismo e à sua notória crítica ao homem como o sujeito da modernidade. Nada disso soa despropositado pois também este texto já mencionou a alusão ao tema feita por Chakrabarty (2021), “A dominação tecnológica da natureza foi experimentada como masculinidade para além das fronteiras do chamado Ocidente.” (CHAKRABARTY, 2021, p. 101). Também Antonio Candido poderia ser lido através da perspectiva feminista.

As oposições parecem também organizar a crítica laudatória que Candido faz do “super-regionalismo”. Depois de adquirida a consciência do subdesenvolvimento, a referência à matéria local que os autores viriam a executar superaria qualquer elaboração tentada anteriormente, alçando as regiões geográficas específicas e os “contornos humanos” (CANDIDO, 2017aCANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul , 2017a. p. 169-196., p. 195) à universalidade. Em outras palavras, os escritores super-regionalistas teriam logrado executar aquela síntese entre universal e local que Candido já defendia em Formação da literatura brasileira.

O super-regionalismo constitui a última etapa descrita em “Literatura e subdesenvolvimento” daquilo que ousaríamos chamar de relação entre humano e natureza, não fosse o fato de que a relação efetiva modifica os dois termos relacionados. Como apresentado, o super-regionalismo se torna a mais refinada forma estética literária latino-americana de apreensão e fabricação da natureza pelo humano.

Descartando o sentimentalismo e a retórica; nutrida de elementos não-realistas, como o absurdo, a magia das situações; ou de técnicas antinaturalistas, como o monólogo interior, a visão simultânea, o escorço, a elipse - ela implica não obstante em aproveitamento do que antes era a própria substância do nativismo, do documentário social. Isto levaria a propor a distinção de uma terceira fase, que se poderia [...] chamar de super-regionalista. Ela corresponde à consciência dilacerada do subdesenvolvimento e opera uma explosão do tipo naturalismo, que se baseia na referência a uma visão empírica do mundo; naturalismo que foi a tendência estética peculiar a uma época onde triunfava a mentalidade burguesa e correspondia à consolidação das nossas literaturas. (CANDIDO, 2017aCANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul , 2017a. p. 169-196., p. 195).

A compreensão de que a natureza havia chegado ao ponto no qual ela não era simplesmente documentada mas elaborada e aliada a elementos contrários a uma representação realista não é, em si, problemática. Pelo contrário. Poderíamos ver o indício não da consciência do subdesenvolvimento (uma vez que escrevemos a mais de 50 anos da publicação de “Literatura e subdesenvolvimento”), mas da exaustão do que Chakrabarty chama, mencionando Jane Bennet, “‘thin description’ of nature” (a “descrição rasa” da natureza que mencionei acima).21 21 Chakrabarty (2021, p. 100) cita Bennet: “Theories of democracy that assume a world of active subjects and passive objects being to appear as thin descriptions at a a time when the interactions between human, viral, animal, and technological bodies are becoming more and more intense.” Contudo, a teleologia declarada da análise de Candido, demonstrada pelas etapas evolutivas da literatura, não nos deixa imaginar um outro fim para sua narrativa senão o desenvolvimento enquanto modernização (da cultura, e, quem sabe neste momento, da economia e da política). A história evolucionista em direção à modernidade, ou ao universal, não nos permite ler, em Candido, uma guinada em direção a um mundo de categorias mais complicadas. Este, o mundo mais thick a que aludem Bennet, Haraway e Latour - para ficar com alguns pensadores mencionados em The Climate of History - não é nunca o mundo ou a natureza (matéria local) do autor, segundo Candido, ou do próprio crítico. Para ele, o autor trabalha sobre a natureza, que permanece sempre o objeto de uma dicotomia epistemologicamente ativa. E é a capacidade humana que, na última instância, logra elaborar algo diferente (e melhor) a partir daquele mesmo material. A natureza, ou a paisagem local, permanece inerte. É o homem, ou a cultura, que agindo sobre ela (vitória da técnica), gera algo novo.22 22 Para Moreiras (2001), “na história de Candido [...] a singularidade regional é, mais uma vez, subalternizada pelo próprio aparato literário, que não pode proceder à sua apropriação e rasura tendencial enquanto afirma fazê-lo da perspectiva de uma suposta universalidade teórica.” (MOREIRAS, 2001, p. 205).

É neste ponto que podemos voltar as estórias, imaginando-as como relatos de um mundo pós-utópico, pós-humano, pós e alter-moderno, o planeta. Ao assumirem a perspectiva do menino, as estórias de Rosa desbancam o homem, oferecendo-nos, ao contrário do que se poderia pensar, um mundo bem mais espesso (thick), complexo, misturado - como insistirá Grande sertão: veredas. Nesse mundo, a criança cresce a partir da relação com os animais e com a melancolia de uma paisagem que se perde enquanto a cidade símbolo do desejo de modernização terceiro-mundista nasce. No entanto, sabemos que não podemos ingenuamente afirmar que as máquinas e a devastação que possibilitam a existência de Brasília não entram em relação com o menino-tornando-homem. O avião, o jipe, a derrubadora.

Em The Climate of History, Chakrabarty insere duas fotos de uma criança, as duas únicas fotos que encontramos no livro. Na primeira, o garotinho Theo, de dois anos, está ao lado de uma pá carregadeira em um parque. Na segunda, Theo, em um tanque de areia, distrai-se com seus brinquedos: miniaturas de uma escavadeira e de um caminhão que transporta terra. De certa forma, as duas cenas resumem sua intenção no livro e nos servem como descrição da complexidade do problema.

[...] quando vejo, em uma praça, uma criança inconscientemente caminhando ao redor de uma pá carregadeira [an earth moving machine] e depois vejo a mesma criança deslocando areia em um tanque de areia com a ajuda de versões em miniatura daquele mesmo maquinário - brinquedos do Antropoceno! - entendo quanto a nossa agência geomorfológica foi “naturalizada”. Não há possibilidade de separar artificialmente o tempo do Antropoceno do tempo humano e das nossas vida e história. De muitas maneiras, nossa capacidade de agir como força geofísica é conectada a formas modernas de diversão (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 11).23 23 When I see in a neighborhood park a child unselfconsciously walking around an earthmoving machine and then see the same child moving sand in a sand pit with the help of miniature versions of the same machinery - Anthropocene toys! - I see how much our geomorphological agency has been naturalized. There is no question of artificially separating the time of the Anthropocene from the human time of our lives and history. In many ways, our capacity to act as a geophysical force is connected to many modern forms of enjoyment. (CHAKRABARTY, 2021, p. 11)

Entretanto, em Os cimos, o trabalho que realmente vale, aquele nominado e que dá título a uma parte da estória é “o trabalho do pássaro” (ROSA, 1985ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 160 p., p. 156) - e não o trabalho do humano ou do homem sobre a máquina. É aquele trabalho que resgata o menino do mundo triste da perda (da mãe, é claro, mas, da mata?) e é o voo do tucano, mais importante que o voo do avião, que traz a boa nova. “O vôo do pássaro habitava-o mais” (ROSA, 1985ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 160 p., p. 158). Se voltamos nossa atenção a este tipo de leitura, uma crítica sob o signo do Antropoceno, o fazemos também porque as prerrogativas da literatura - literatura como vanguarda das mudanças sociais, políticas e econômicas - e do super-regionalismo presentes em “Literatura e subdesenvolvimento” caem por terra tanto porque o desenvolvimento entendido teleologicamente e/ou qualquer chance de interdependência dentro dos parâmetros da modernização não se realizam, quanto porque a modernização acabada se torna, efetivamente, impossível e indesejável na era planetária. Entre a arquitetura de Brasília e a mata do Cerrado, é a manutenção da última que nos preocupa e nos habita mais.

References

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  • SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Death of a Discipline New York: Columbia University Press, 2003. 136 p.

Notas

  • 1
    I am vastly outnumbered by my tiny companions; better put, I become an adult human being in company with these tiny messmates (HARAWAY, 2008HARAWAY, Donna J. When Species Meet. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008. 440 p., p. 4). Todas as traduções para o português foram feitas por mim, salvo quando indicada outra autoria.
  • 2
    We have no way of experiencing in unmediated forms these other modes of being human that we know cognitively at an abstract level. Humans in their internally differentiated plurality, humans as a species, and humans as the makers of the Anthropocene constitute three connected but analytically distinct categories (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 15).
  • 3
    Neste sentido, Haraway está mais próxima de uma postura que Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro compreendem como impossibilidade em Chakrabarty e Latour. Em Há mundo por vir? (2014DANOWSKI, Deborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis: Cultura e Barbárie e Instituto Socioambiental, 2014. 176 p.), Danowski e Viveiros de Castro ressaltam a dificuldade dos autores de imaginar o conceito ameríndio de humanidade, “uma apreensão fenomenológica, tão intensa quanto se queira, de sua própria e precária especificidade enquanto bloco de afetos, corporalidade vivida, subjetividade perspectiva em tensão cosmopolítica perpétua com as outras humanidades ocultas sob as corporalidades das outras espécies” (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014DANOWSKI, Deborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis: Cultura e Barbárie e Instituto Socioambiental, 2014. 176 p., p. 111; grifos dos autores).
  • 4
    A história humana no planeta e a história planetária geram, assim, respectivamente, o tempo centrado no humano, isto é, a escala da história mundial, e o tempo do planeta, operando em escalas de tempo geológicas. Esses diferentes tempos obedecem a interesses e estão inseridos em discursividades muito diferentes, com as quais, o pensador das humanidades, agora, deve obrigatoriamente lidar. Para os estratígrafos, por exemplo, importa mostrar que o sistema planetário está reconhecidamente mudando, sem que eles necessariamente se preocupem com quem é o autor da mudança (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 170). Já para os pensadores treinados nas disciplinas modernas das ciências humanas, a questão é central. Se o planeta se modifica por conta das ações dos humanos, que dependem dele, isso deverá querer dizer algo sobre nossa humanidade. Ou, ainda, qual é nosso compromisso ético com a vida do e no planeta - nossa e de outras espécies?
  • 5
    The human in our anticolonial mode of thinking was a figure of sovereignty. We wanted to make the peasant and the subaltern the subject of his or her history, period. And we thought of this subject in the image of the autonomous rights-bearing person with the same access to representation in national and other histories as others from more privileged backgrounds enjoyed. [...] Becoming human was for us a matter of becoming subject (CHAKRABARTY, 2018CHAKRABARTY, Dipesh. The Crises of Civilization: exploring global and planetary histories. New Delhi: Oxford University Press, 2018. 321 p., n. p.).
  • 6
    The reality of all that actually divided humans and formed the basis of different regimes of oppression: colony, race, class, gender, sexuality, ideologies, interest, and so on. [...] This unifying move seemed ideologically suspect and always appeared to have been made in the interests of power (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 17).
  • 7
    The widespread desire for growth, modernization, development, whatever one calls it, in the less developed nations of the world (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 96).
  • 8
    How do we square the reality of these popular aspirations that play out over electoral cycles and institutional politics with what scholarly voices from Earth System Science and from what we gather under the rubric ‘posthumanism’ tell us about an entangled world, distributed agencies, the role of planetary processes, the nonhuman, and so on? (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 99-100).
  • 9
    Para Chakrabarty (2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 101), ainda, o problema ultrapassa o que ele chama de “desejos do terceiro-mundo”, uma vez que a dominação da natureza pela tecnologia era/é experimentada como masculinidade em diversos lugares do globo. Ao analisar como e por que visões de futuros modernizados estruturaram as imaginações das classes médias e de outras classes das nações que haviam sido colônias dos poderes europeus, não parece possível ignorar que esta imaginação é devedora do patriarcado, sendo, portanto, moldada por ele. O patriarcado, por sua vez, constituía/constitui um ideal de modernização. O tema ocupa muito do pensamento feminista. Para uma compreensão da relação entre o feminismo e a teoria da Formação da literatura brasileira, ver, por exemplo, “Fora do eixo: notas feministas sobre a teoria da Formação da literatura brasileira” (SANTOS, 2020SANTOS, Carolina Correia dos. Fora do eixo: notas feministas sobre a teoria da Formação da literatura brasileira. Revista Criação & Crítica, v. 1, n. 26, p. 98-108, 2020. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1984-1124.v1i26p88-108.
    https://doi.org/10.11606/issn.1984-1124....
    ).
  • 10
    Sobre a consciência do subdesenvolvimento a partir da leitura da teoria produzida pela CEPAL, Francisco de Oliveira afirma: “Como singularidade e não elo na cadeia do desenvolvimento, e pela ‘consciência’, o subdesenvolvimento não era, exatamente, uma evolução truncada, mas uma produção da dependência pela conjunção de lugar na divisão internacional do trabalho capitalista e articulação dos interesses internos” (OLIVEIRA, 2003OLIVEIRA, Francisco de. O ornitorrinco. In: OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista: O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. p. 120-150., p. 127). De acordo com Oliveira, ainda, o termo subdesenvolvimento denotaria o lugar na divisão internacional do trabalho capitalista, portanto, hierarquizada. Não se tratava, segundo ele, de uma etapa, mas, precisamente, de um conhecimento do todo - periferia e centro - capitalista e da consequente localização da América Latina nele. Chamo a atenção a esse ponto porque não queremos, como alerta Chakrabarty, entender que os defensores das teses desenvolvimentistas acreditavam, ou necessariamente acreditam, em um etapismo simplório. A questão, assim, é compreender a complexidade do desejo pela industrialização aliado à urbanização que Candido também parece defender.
  • 11
    By his own recounting, the first images that came to his mind were not that of industrial progress but of a much gentler picture ‘of the long past of our history, [...] of the early days when perhaps the first canals and irrigation works were constructed and all that flows from them’ (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 107-108).
  • 12
    We would get the likes of Nehru or Mao or Nasser or Nyerere wrong if we thought of them as pragmatic people expressing a simple and naive faith in technocratic solutions to the problem of energy or water supply. Nehru saw the task of making the nation “advance” as nothing short of a spiritual mission, one that required both idealism and faith on the part of the technocrat - but a faith that went far beyond questions of technological effectiveness. What Nehru’s vision called for was faith in both people of the country and in the project of modernization in the interest of unleashing popular energies in creating a nation (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 109).
  • 13
    When he thought of the future, Nehru said, his attention would be “concentrated on that huge block of massive mountains called the Himalayas which guard our north-eastern frontier.” “Look at them. Think of them,” he would exhort his listeners. “I know of no other place in the world which has as much tremendous power locked up in it as the Himalayas and the water that come to the rivers from them. How are we to utilize it?” (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 108).
  • 14
    Segue, na lista das manifestações de debilidade cultural, “a inexistência, dispersão e fraqueza dos públicos disponíveis para a literatura [...]; impossibilidade de especialização dos escritores em suas tarefas literárias [...]; falta de resistência ou discriminação em face de influências e pressões internas” (CANDIDO, 2017aCANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul , 2017a. p. 169-196., p. 172), das quais se depreende, ainda, outra das tendências comuns aos textos de Candido que é sua opção pela formação de uma tradição literária interna e nacional. O assunto não é de menor interesse uma vez que “Literatura e subdesenvolvimento” visa a criação de um trânsito entre obras que extrapolem as fronteiras nacionais, retroalimentando as literaturas nacionais. Ainda assim, parece ser inevitável, e nesta altura, bastante “candidiano”, a afirmação, encontrada também em “Literatura e subdesenvolvimento”: “Um estágio fundamental na superação da dependência é a capacidade de produzir obras de primeira ordem, influenciada, não por modelos estrangeiros imediatos, mas por exemplos nacionais anteriores” (CANDIDO, 2017aCANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul , 2017a. p. 169-196., p. 184). O parágrafo termina com o exemplo da “causalidade interna”, citando gerações de escritores brasileiros influenciados pela geração precedente, mas sem conseguir alçar voo para além das fronteiras nacionais. O parágrafo que segue introduz a figura de Jorge Luís Borges, primeiro a se tornar influência para os países metrópoles. O interessante, contudo, é que a obra de Borges, apesar de bastante identificável, no nível temático, com motivos argentinos, muito dificilmente surge de qualquer “causalidade interna”, haja vista a reconhecida influência da literatura de língua inglesa na obra.
  • 15
    Em “Além da literatura” (2006NATALI, Marcos Piason. Além da Literatura. Literatura e Sociedade, v. 11, n. 9, p. 30-43, 2006.), de Marcos Natali, e “A função da literatura nos trópicos: notas sobre as premissas evolucionistas de Antonio Candido”, de Anita Martins Rodrigues de Moraes (2018MORAES, Anita Martins Rodrigues de. A função da literatura nos trópicos: notas sobre as premissas evolucionistas de Antonio Candido. Revista Cerrados, v. 26, n. 45, p. 41-54, 2018. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/cerrados/article/view/22747/20535 . Acesso em: 29 jan. 2022.
    https://periodicos.unb.br/index.php/cerr...
    ). Este último, aliás, executa, de certa forma, uma reconstrução da defesa da “literatura erudita” por Candido ao longo de seus textos.
  • 16
    De um outro lado do espectro (não do lado oposto), Gayatri Spivak (2003SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Death of a Discipline. New York: Columbia University Press, 2003. 136 p.) também defende a educação das populações rurais na Índia. Nisto consiste seu trabalho de campo. Em Death of a Discipline ela articula o isolamento das comunidades rurais com a necessidade de educação para acesso aos sistemas culturais. De fato, e, assim, diversamente ao que é exposto em “Literatura e subdesenvolvimento”, Death desenvolve sua defesa da educação de modo a acolher a relação com a natureza e a terra, ou a Terra, como uma saída do esquema cidade - nação.
  • 17
    A observação de Moreiras sobre o paradoxo de “Literatura e subdesenvolvimento” precisa, então, de um ajuste para tornar-se ainda mais clara. O imperialismo cultural que deve ser acolhido é um, enquanto há outro que deve ser rechaçado, assim como o imperialismo econômico e político. Candido não quer abrir mão das formas culturais eurocêntricas e quer usá-las contra as formas ascendentes daqueles anos. O texto, assim, mostra também seu viés conservador, ou, simplesmente, “iluminista”.
  • 18
    We have to find some way of combining the two - a synthesis between what we consider of value in the old and what we consider of value in the new. Mere attempt to copy other countries is not good enough (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 112).
  • 19
    Declina-se da dicotomia natureza/cultura, além de objeto/sujeito, outra importante: humano/animal. Essa foi explorada de forma bastante contundente pela filosofia e nos fornece insights importantes para a autocompreensão do humano (e para a autocompreensão da filosofia também). É de Derrida (2002DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou (A seguir). Tradução de Fábio Landa. São Paulo: Editora UNESP, 2002. 93 p.) uma boa síntese do problema: “Fazer aparecer em todo o discurso sobre o animal, notadamente no discurso filosófico ocidental, a mesma dominante, a mesma recorrência de um esquema na verdade invariante. Qual? Este: o próprio do homem, sua superioridade assujeitante sobre o animal, seu tornar-se-sujeito mesmo, sua historicidade, sua saída da natureza, sua sociabilidade, seu acesso ao saber e à técnica, tudo isto, e tudo o que constitui (em um número não finito de predicados) o próprio do homem, consistiria neste defeito originário, em verdade neste defeito de propriedade, neste próprio do homem como defeito de propriedade...” (DERRIDA, 2002DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou (A seguir). Tradução de Fábio Landa. São Paulo: Editora UNESP, 2002. 93 p., p. 83).
  • 20
    A discussão nos levaria a retomar as observações de Donna Haraway em favor de um estatuto humano muito mal definido, profundamente instável e prazerosamente precário. Levar-nos-ia, também, ao feminismo e à sua notória crítica ao homem como o sujeito da modernidade. Nada disso soa despropositado pois também este texto já mencionou a alusão ao tema feita por Chakrabarty (2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p.), “A dominação tecnológica da natureza foi experimentada como masculinidade para além das fronteiras do chamado Ocidente.” (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 101). Também Antonio Candido poderia ser lido através da perspectiva feminista.
  • 21
    Chakrabarty (2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 100) cita Bennet: “Theories of democracy that assume a world of active subjects and passive objects being to appear as thin descriptions at a a time when the interactions between human, viral, animal, and technological bodies are becoming more and more intense.”
  • 22
    Para Moreiras (2001MOREIRAS, Alberto. A exaustão da diferença: a política dos estudos culturais latino-americanos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. 405 p.), “na história de Candido [...] a singularidade regional é, mais uma vez, subalternizada pelo próprio aparato literário, que não pode proceder à sua apropriação e rasura tendencial enquanto afirma fazê-lo da perspectiva de uma suposta universalidade teórica.” (MOREIRAS, 2001MOREIRAS, Alberto. A exaustão da diferença: a política dos estudos culturais latino-americanos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. 405 p., p. 205).
  • 23
    When I see in a neighborhood park a child unselfconsciously walking around an earthmoving machine and then see the same child moving sand in a sand pit with the help of miniature versions of the same machinery - Anthropocene toys! - I see how much our geomorphological agency has been naturalized. There is no question of artificially separating the time of the Anthropocene from the human time of our lives and history. In many ways, our capacity to act as a geophysical force is connected to many modern forms of enjoyment. (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: The University of Chicago Press. 2021. 296 p., p. 11)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2022
  • Aceito
    03 Maio 2022
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