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Depois do fim: Cornelio Penna e Oswaldo Goeldi

After the end: Cornelio Penna and Oswaldo Goeldi

Resumo

Estabelecendo um diálogo entre Cornelio Penna e Oswaldo Goeldi, este ensaio vai das experiências do fim do mundo e da melancolia para a impotência, o repouso e o desaparecimento, evitando leituras que coloquem os dois artistas como figuras isoladas na cultura brasileira e os coloca dentro de uma leitura diferente do Modernismo junto com Mário Peixoto.

Palavras-chave:
Impotência; Repouso; Desaparecimento; Fim do mundo

Abstract

Stablishing a dialogue between Cornelio Penna and Oswaldo Goeldi, this essay goes from the experiences of end the world and melancholy to helplessness, rest and disappearance, so to avoid readings that put the two artists are isolate figures inside Brazilian culture and to put them inside a different reading of Modernism that includes Mário Peixoto.

Keywords:
Helplessness; Rest; Disappearance; End of world

Após ter publicado Nós, os mortos: melancolia e Neobarroco (Lopes, 1999LOPES, Denilson. Nós, os mortos: melancolia e Neobarroco. Rio de Janeiro: 7Letras, 1999.), em que discuti A menina morta (1954) numa série de romances de decadência de famílias patriarcais, como voltar a Cornelio Penna e o que dizer mais de vinte anos depois? Poderia o debate sobre o fim de mundo interessar para rever Cornelio Penna e para também contribuir para retirá-lo de seu suposto isolamento? Não poderia ser uma destruição do planeta, da espécie humana. Deveria ser como foram a maior parte dos fins de mundo, experiências locais, regionais, de grupos ou de sociedades, culturas. Para dialogar com Cornelio Penna (1896-1958), pensei num contemporâneo seu, Oswaldo Goeldi (1895-1961). O mundo do vale do Paraíba e de Itabira de Cornelio e os subúrbios de Goeldi poderiam se encontrar?

No ano de comemoração do centenário da semana de Arte Moderna, discuti, com mais detalhes, uma outra linhagem do Modernismo (Lopes, 2022a LOPES, Denilson. Um outro Modernismo. Matraga, v. 29, n. 57, p. 485-498, 2022a.), aqui os fragmentos vêm depois do fim, na decomposição, nas ruínas, nos corpos apodrecendo, nos espectros. Diferente das intensidades, velocidades e superposições dos meios de transporte e de comunicação das grandes cidades, das máquinas e das multidões, vejo personagens solitários das pequenas cidades aos subúrbios. Ao invés das utopias futuristas ou passadistas, o tempo é da catástrofe e naufrágio presentes, da ameaça da morte e de doenças. Não se trata, contudo de um mundo morto, mas de um mundo ainda vivo que me assombra e perturba. Há uma vaga tristeza, uma impotência, uma pequenez, uma fragilidade da experiência. Se podemos pensar numa estética da impotência não deriva de uma paralisia por excesso de demanda, precariedade, ansiedade, burn out no contexto do capitalismo flexível contemporâneo (Virno, 2021VIRNO, Paolo. Sobre la Impotencia: la vida en la era de su parálisis frenética. Madrid: Traficante de Sueños, 2021.), mas de uma ausência do desejo de poder, numa recusa do empoderamentos, na recusa de imagens fálicas masculinas ou femininas, cis ou trans, binárias ou não binárias, humanas, inumanas ou pós-humanas, ocidentais ou de povos originários. A potência se concentra no gozo das penetrações e orifícios enquanto a impotência se dispersa, se dilui nas superfícies. A impotência, a impossibilidade de agir e não o fracasso por suas possíveis realizações, está, contudo, não só nos personagens:

Curioso que, nos anos 30, de revoluções e projetos de nova fundação do Brasil como nação e como estado político, a literatura pareça descrever e afirmar a impotência do herói para protagonizar a história, desfeita em erros, culpas e crimes que impelem o destino individual e nacional à perdição (Luz, s.d.LUZ, Rogério. Cornelio Penna: uma leitura a menos de quatro tragédias brasileiras. Rio de Janeiro [Manuscrito inédito ], s/d. , p. 92).

A impotência é uma marca da linguagem: “Na arte do escritor, a condição humana está, com certeza, posta em xeque, mas essa condição é a da impossível improdutividade e impotência de uma linguagem em dissolução nos arredores da pura natureza, irredutível à pequena realidade da interioridade psicológica ou do mundo social instituído” (Luz, s.d. LUZ, Rogério. Cornelio Penna: uma leitura a menos de quatro tragédias brasileiras. Rio de Janeiro [Manuscrito inédito ], s/d. p. 55). Essa “impotência para narrar é, quem sabe, sua maior qualidade” (Luz, s.d. LUZ, Rogério. Cornelio Penna: uma leitura a menos de quatro tragédias brasileiras. Rio de Janeiro [Manuscrito inédito ], s/d. p. 136) parece nos levar a uma outra dimensão para além dos confrontos da experiência trágica, enfatizada por Rogério Luz, estando mais próxima de um repouso, de uma dissolução, de um desaparecimento, de fantasmas que não se tocam ao invés de uma afirmação do corpo e da presença.

Após ter feito alguns ensaios sobre Mário Peixoto e sugerido a partir de seu trabalho esta outra linhagem modernista (Lopes, 2020; 2021LOPES, Denilson. Mário Peixoto, antes e depois do Limite. São Paulo: e-galáxia, 2021. ; 2022bLOPES, Denilson. Um Outro Modernismo: Limite, de Mário Peixoto. In: MARQUES, Ivan. (org.). Releituras do Modernismo: o Legado de 1922 na Cultura Brasileira. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2022b. p. 155-175.), gostaria aqui de me deter nos outros artistas que foram discutidos por Paulo Venâncio (1992VENANCIO , FILHO Paulo. A crise da pessoalidade e o outro modernismo: Cornélio Penna, Oswaldo Goeldi e Mário Peixoto. 1992. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura) - Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1992. ): Cornelio Penna e Oswaldo Goeldi.

Fim do mundo

Começo então com o fim, com um fim do mundo agora. Diante da avalanche de produções, vindas das mais diferentes áreas, sobre o fim do mundo no presente, tentei escapar de trabalhos muito pontuais que remetessem a um trabalho artístico para reler os problemas iniciados acima.

O que é o fim do mundo? Fim de todo o planeta? Fim da espécie humana? Em que medida o fim da espécie humana ou da Terra seria diferente dos outros fins de culturas, de sociedades, de uma época? Nas últimas décadas, o que nos assombra e perturba: um provável fim decorrente da ação humana desde a possibilidade de um extermínio por guerra nuclear a partir de 1945 a um colapso ecológico, derivado da Revolução Industrial e dos riscos de aquecimento global. Há fins de mundo associados a relatos míticos e religiosos, como no caso do milenarismo associado no cristianismo ao livro do Apocalipse e incorporado por tantos movimentos e seitas. Há fins de mundo associados a doenças, como a peste negra na Europa medieval, ou que assombraram a recepção recente das pandemias da AIDS e do coronavírus. Ou seja, o fim do mundo que estaríamos vivendo está no campo das possibilidades, das mentalidades, dos imaginários, das sensibilidades, embora a possibilidade real de fim da espécie humana ou da destruição da Terra pela ação humana seja mais possível do que no passado. Mas, insisto, algo muda pelo fato da extinção ser mais possível ou provável? Se o fim da narrativa coincide com o fim do mundo como em Melancolia (2011) de Lars von Trier ou 4:44 O Fim do Mundo (2011) de Abel Ferrara haveria outras possibilidades de encenar o desafio estético de encenar o fim do mundo? Filmes catástrofes de ficção científicas, filmes e séries distópicas, alguns com grande apelo comercial, e diversas produções artísticas experimentais têm, especialmente, se inserido nesse debate. Mas será que não nos encontramos em situações semelhantes a outros momentos da história humana em que culturas, sociedades, grupos desapareceram deixando pouco rastros? Pode nosso fim próximo ter destino parecido para futuros arqueólogos e artistas de outros mundos? Quais suas consequências para o campo da cultura e da arte? O que a cultura e a arte podem dizer sobre isso não como meras representações dos debates filosóficos, políticos, sociais e econômicos do fim do mundo?

São perguntas para as quais não tenho respostas amplas, mas que talvez possam ser guias para os mundos criados, mais do que representados, por Cornelio Penna e Oswaldo Goeldi, que pretendo me deter, senão com mais cuidado, mas com um pouco mais de tempo nesse ensaio, na esperança de que estes mundos crepusculares possam interessar tanto como os outros tantos mencionados acima. Esta sensação de que algo está acabando está intimamente associada à melancolia e à decadência, podendo ser percebida, com mais ou menos força, tanto social quanto individualmente, uma sensibilidade que está ligada à crise da mineração, do café e da escravidão, no caso de Cornelio Penna, e, no caso de Goeldi, à experiência da Primeira Guerra Mundial, mas a elas não se limitam, constituindo uma sensibilidade e um imaginário transhistóricos, pelo menos desde o Barroco e que se desdobra até hoje em dia.

Aqui, neste Modernismo que trilho, o que acontece depois da explosão vanguardista dos anos 20? Incorporar suas aberturas, mas não seus gestos públicos ou o desejo de reformar a cultura nacional? Balbucios, sussurros, falas em tom menor atentos aos silêncios e vazios, não tanto dos que têm ou querem mais visibilidade, mas do que perderam o poder, o lugar e a fala, antes que desapareçam, diante da normalização da destruição, da sua desaparição?

Não se trata de criar sentidos, de assumir controle sobre os signos da extinção (Hovart, 2021, p. 35), como afirmação do sujeito moderno que ordena e decide, mas deixar ser tomado pelo naufrágio, pela decomposição, por forças muitos maiores que as humanas, individuais e sociais, e ser sensível para perceber aonde elas possam nos levar, à deriva, aprender a não temer o dilaceramento, a dispersão.

Pensei que lendo Os homens ocos (1925) de T. S. Elliot (1981) poderia encontrar um outro fim de mundo que pudesse me ajudar mais na leitura de Cornelio Penna e Oswaldo Goeldi. Apesar da epígrafe inicial do poema que remete a Kurtz de O Coração das Trevas (1902) de Joseph Conrad, li vendo, ao contrário de personagens heroicos, de tipos sociais e alegorias da nação, aqueles que habitam os mundos de Cornelio e Goeldi que me lembram mais espectros de uma história esquecida, pouco vistos, com poucas falas e poucos encontros, no caminho da desaparição, próximos da morte, mas ainda não lá. O fim é sempre menos, não comporta ressurreição, renascimento, renovação. E o que resta não será nenhuma hecatombe, explosão nuclear, choque de planetas, invasão dos oceanos, secas, incêndios.

Um Artista, nunca um intelectual público

Cornelio Penna teve uma carreira como pintor, gravador, ilustrador, desenhista, tendo como referências Aubrey Beardsley e Gustav Klimt (Luz, s/dLUZ, Rogério. Cornelio Penna: uma leitura a menos de quatro tragédias brasileiras. Rio de Janeiro [Manuscrito inédito ], s/d. , p. 17), jornalista e desenhista. Em 1929, publica uma declaração de insolvência, em A Ordem, fruto de sua insatisfação com sua produção visual, desiste das artes visuais em favor da literatura, alegando um maior “adiantamento literário” tanto pelas livrarias quanto pelos literatos”, considerando a literatura como “dominadora e único refinamento do brasileiro” (Penna, 2020bPENNA, Cornelio. Caderno de pinturas e desenhos. São Paulo: Faria e Silva , 2020b., p. 5-6) e dizendo, em outro momento, em 1948, “se não me convenci de todo que sou escritor, pelo menos estou certo de que não sou pintor” (Penna, 2020bPENNA, Cornelio. Caderno de pinturas e desenhos. São Paulo: Faria e Silva , 2020b., p. 89)

Aqui vale à pena um parêntesis porque se parece que o uso dos capítulos curtos e o interesse mais pela atmosfera do que por uma narrativa dramática culmina em seu último romance, Menina Morta, na composição de cenas pictóricas e teatrais; já em Caderno de Pinturas e Desenhos, predominam ilustrações e caricaturas em que cenas urbanas possivelmente para jornais e livros, me chamam a atenção alguns retratos de figuras solitárias, a que me falta repertório pictórico1 1 Para uma leitura detalhada e rica da produção visual de Cornelio Penna (Eulalio, 2012, p. 221-246). para discuti-las, mas onde há presença de sombras ou figuras fantasmagóricas, monstruosas mesmo, por vezes andróginas e sedutoras, numa composição decorativa e cheia de detalhes nos objetos, misturando corpos e roupas, em que mesmo o espaço livre parece um cenário, com elementos do art nouveau, do decadentismo, do simbolismo e do Expressionismo cinematográfico que talvez explicite demais, figure em demasia o que serão, em geral, mais aparições fugazes, momentos de sono, nos romances. Curiosamente esta sensibilidade finissecular também está presente em ilustrações de Goeldi para jornais e livros de literatura, onde se aproxima mais de uma certa profissionalização, de um mercado de artes, como sintetiza Fabris (2006FABRIS, Annateresa. Goeldi em Contraluz. In: RUFINONI, Priscila Rossinetti. Oswaldo Goeldi: iluminação, ilustração. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 8-20., p. 9-11) sobre o trabalho de Priscila Rufinoni.

Em 1935, Cornelio se reconverte ao catolicismo, mas seus personagens não são místicos (Villaça, 2020VILLAÇA, Antonio Carlos. Romance e mística. In: PENNA, Cornelio. Alma Branca . São Paulo: Faria e Silva . 2020. p. 175-177., p.178) nem vivenciam os dilemas do pecado, muito mais de um mundo esvaziado de grandes sentidos. Publica, também em 1935, seu primeiro romance, quase aos quarenta anos, aos quais seguiram mais três romances até sua morte, período em que distancia da vida pública depois de 1943, e graças à herança familiar, no final da década de 1930, afasta-se de qualquer trabalho regular em 1941 (Luz, s/d.), situação próxima a de Mário Peixoto e de Otavio de Faria e pode se dedicar mais à literatura. Ao escapar da lógica do trabalho ininterrupto, do rendimento, da visibilidade, em que o próprio tempo supostamente livre é incorporado ao trabalho, Cornelio Penna mereceria ser discutido senão entre os artistas que dizem não, que abandonam a arte, que têm obras esparsas, mais do que um artista não profissional, por não viverem da arte que fazem, como talvez seja ainda a maioria dos artistas brasileiros. No caso de Cornelio Penna, não se trata de autor sem obra, ou melhor, sem publicações. As noções de autor e de obra não me interessam devido a seu possível caráter homogeneizador, mas quatro romances podem ser poucos numa vida, mas constituem um certo conjunto de trabalhos e esforços. Um artista com carreira discreta e pouco produtiva talvez sintetizasse melhor Cornelio Penna, em particular nos seus escritos literários, bem diferente dos autores que vendem muito, são intelectuais públicos ou são reconhecidos só pela crítica e seus mecanismos de prêmios. Cornelio Penna seria, no máximo, um artista valorizado por alguns críticos, escritores, aparentemente com poucos leitores, tanto distante da tradição dos intelectuais públicos ou com carreira política.

O que me interessa nessa discreta posição de Cornelio Penna é que talvez faça de valores que atravessam sua ficção como impotência e invisibilidade se constituírem marcas de si mesmo. Em meio à valorização do produtivismo seria uma marca do ócio ou da preguiça? Cornelio parece não ter deixado tanto manuscritos inéditos substantivos como podemos ver pelas oito páginas do romance publicado postumamente Alma Branca, diferente do caso de Mário Peixoto que deixou inéditos seu monumental Inútil de de cada um em seis volumes, em duas mil páginas, do qual só o primeiro volume foi publicado, seus diários e vários roteiros que não foram filmados. Mário Peixoto parece ter escrito muito mais do que publicado, já Cornelio parece ter publicado o que escreveu. No que gastava seu tempo, recolhido em sua casa, só podemos imaginar. Leitura? Certamente ela houve, mas não transparece nos seus escritos. Não precisando trabalhar para viver nos seus últimos anos de vida, o que escreve não tem uma dimensão profissional e se havia um desejo de reconhecimento como escritor ele parece não ter feito muito para conseguir esse reconhecimento, sem se envolver em polêmicas, com poucas e lacunares entrevistas, sem frequentar a vida cultural. Assim como aqueles que não perdem uma oportunidade para dar sua opinião, a recusa de dá-las pode ser uma estratégia para que o silêncio seja uma forma de atrair a atenção pública, uma forma de criar mais curiosidade sobre seu trabalho, na ausência de depoimentos sobre processos, ou na falta de interesse por esse, os diversos assuntos da vida pública ocupam o lugar da leitura da obra. Se foi esse o motivo, ele, de todo modo e Cornelio Penna só tem caminhado para o seu lugar discreto e à margem. Apesar de ter produzido uma das mais impactantes encenações da escravidão, nada parece prenunciar um possível resgate por estudiosos de raça e da negritude. Vivendo e escrevendo num período conturbado como foi o entre-guerras percebe que “Em uma época de primarismo político, (...) quase todos ameaçam e ninguém escuta, tenho vontade de ir viver bem longe, em um lugar onde não chegue o eco do mundo” (Penna, 2020aPENNA, Cornelio. Alma Branca e outros escritos . São Paulo: Faria e Silva , 2020a., p. 100), “eu, pessoalmente, me considero um fantasma, mas não acredito em assombrações” (Penna, 2020aPENNA, Cornelio. Alma Branca e outros escritos . São Paulo: Faria e Silva , 2020a., p. 101). Nos últimos anos, contudo, nunca mudou do Rio de Janeiro, mas viveu, de forma reservada, com sua esposa e sem filhos.

O relativo silêncio de Cornelio não levou a um maior interesse e curiosidade pelo que escreveu, mas ele não deixa de constatar: “Aquele cujo destino é o afastamento e a solidão devem contar muito pouco com alegrias” (Penna, 2020a PENNA, Cornelio. Alma Branca e outros escritos . São Paulo: Faria e Silva , 2020a., p. 78). Por mais que esteja a fazer o esforço de associar seus escritos a uma certa linhagem, ele era percebido mesmo por um grande amigo como Augusto Frederico Schmidt: “Nunca deixou de ser um exilado... jamais tive a impressão de que ele fosse um contemporâneo, um homem de minha época” (Schmidt, 2020SCHMIDT, Augusto Frederico. Cornelio Penna. In: PENNA, Cornelio. Alma Branca . São Paulo: Faria e Silva , 2020. p. 119-125. , p. 119). Lembrando um personagem que Autran Dourado batizou no título de romance, era um cavalheiro de antigamente: “Era um homem pouco conhecido; extremamente delicado, polido, e composto no seu comportamento exterior. Mas seus próximos sabiam que ele gostava de brincar e rir-se, não só das fraquezas alheias, como também das próprias” (Schmidt, 2020SCHMIDT, Augusto Frederico. Cornelio Penna. In: PENNA, Cornelio. Alma Branca . São Paulo: Faria e Silva , 2020. p. 119-125. , 119).

O artista improdutivo seria uma prorrogativa de classe, para quem não precisa trabalhar, ou de uma sensibilidade, de quem não precisa de ou não consegue um grande reconhecimento? Afinal, trabalho e obra podem não ser o centro da vida mesmo de artistas. Tanto a arte como a vida não têm tanta importância assim. Há uma certa ausência de grandes causas em Cornelio Penna, como uma certa frivolidade em Mário Peixoto. Se em Mário Peixoto, sugeri que talvez houvesse uma criação de uma rede social e afetiva distinta da família (Lopes, 2022LOPES, Denilson. Um Outro Modernismo: Limite, de Mário Peixoto. In: MARQUES, Ivan. (org.). Releituras do Modernismo: o Legado de 1922 na Cultura Brasileira. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2022b. p. 155-175.a), a opção de Cornelio Penna parece ter sido algo mais próxima do claustro, como vários de seus personagens, mesmo casados, como era o caso dele, um claustro sem ordens religiosas. Não se trata de um ócio revolucionário que derrubaria as formas de trabalho e produção do capital, vislumbrando alguma utopia social, mas uma ilha de sobrevivência, nem um ativismo pela lentidão, nem constatação da inutilidade da arte. Não se trata de criar um exemplo a ser seguido, talvez uma forma, diria aristocrática, de ser menos incomodado pelo mundo como Des Esseintes de Às Avessas de Huysmans, com exceção, de que não vemos o discurso da vida como arte em Cornelio. Se não se trata de produzir obras, também não se trata de fazer acontecimentos ou criar experiências a serem compartilhadas, reconquistar ou vender o comum, como tantas performances fazem. Se houve alguma aproximação entre arte e vida para Cornelio, ela só teve consequências para ele mesmo.

A impotência

Os romances de Cornelio Penna já foram chamados de “obras de um antiquário apaixonado, que em cada objeto antigo vê nascer nos dedos, uns braços, uma vida, todo um passado vivo, que a seu modo e em seu mistério ainda manda sobre nós” (Andrade, 2020ANDRADE, Mario. Romances de um antiquário. In: PENNA, Cornelio. Alma Branca. São Paulo: Faria e Silva, 2020. p. 113-116. , p. 115) nos quais “o silêncio das coisas é também o silêncio das criaturas” (Mendes, 2020MENDES, Oscar. Uma sombra entre as outras. In: PENNA, Cornelio. Alma Branca . São Paulo: Faria e Silva , 2020. p. 141-146. , p. 144). “Os diálogos são raríssimos em Cornelio Penna [ainda menos, nos romances anteriores à Menina Morta] e, quando aparecem, têm mais feição de monólogos. A maioria das vezes os próprios monólogos se limitam a expressar pensamentos silenciosos” (Cunha, 2020CUNHA, Fausto. Dor em câmera lenta. In: PENNA, Cornelio. Alma Branca. São Paulo: Faria e Silva , 2020. p. 184-188., p. 193). Coisas e personagens vivem em simbiose (Millet, 2020MILLET, Sergio. Repouso. In: PENNA, Cornelio. Alma Branca . São Paulo: Faria e Silva , 2020. p. 147-150., p. 150), se situando numa experiência em direção a algo fora do humanismo e do antropocentrismo. Os objetos estão fora da mera reificação, de sua condição de mercadoria ou meras extensões do humano, apontam para uma subjetividade outra, espectral e fantasmática, que não tem só a ver com a condição periférica de uma sociedade escravocrata tensionada pelo liberalismo, mas de uma cena em que objetos são quase tão centrais como os personagens e os personagens se assemelharam a coisas. Os objetos e os personagens não são referências ou reféns de um passado que não passa, mas de um passado que se dissolve lentamente, fazendo da melancolia e da decadência modos de vida que derivam em sensações de impotência e desaparecimento, aqui mais explicitadas em Dois Romances de Nico Horta (1929) e Repouso (1948). Ao invés da dualidade de observar e participar, a imersão é solicitada nesse mundo de coisas e pessoas.

Já “em A Fronteira, a inação é acrescida da mudez quase total das personagens e da indeterminação dos dados do enredo que perfazem um todo dominado pelo mistério” (Rufinoni, 2010RUFINONI, Simone Rossinetti. Favor e melancolia: estudo sobre Menina Morta, de Cornelio Penna. São Paulo: Nankin; Edusp, 2010., p. 19) talvez como uma herança finissecular, sem rebuscamento verbal, que fará dos capítulos breves em A Menina Morta quase uma composição plástica de cenas, em que a descrição se sobrepõe à pouca ação dramática, numa espécie de teatro mudo, ou feito de poucas palavras e sussurros, que se fossem encenados me talvez fossem adequado a peças de câmara em que o espectador deveria estar muito próximo da cena.

Já “em A Fronteira, a inação é acrescida da mudez quase total das personagens e da indeterminação dos dados do enredo que perfazem um todo dominado pelo mistério” (Rufinoni, 2010RUFINONI, Simone Rossinetti. Favor e melancolia: estudo sobre Menina Morta, de Cornelio Penna. São Paulo: Nankin; Edusp, 2010., p. 19) talvez como uma herança finissecular, sem rebuscamento verbal, que fará dos capítulos breves em A Menina Morta quase uma composição plástica de cenas, em que a descrição se sobrepõe à pouca ação dramática, numa espécie de teatro mudo, ou feito de poucas palavras e sussurros, que se fossem encenados me talvez fossem adequado a peças de câmara em que o espectador deveria estar muito próximo da cena, Encenar seria não só um meio de sobrevivência, porque não se restringe ao fingimento, é forma de viver, de comunicar, de estar no mundo.

Em Dois Romances de Nico Horta, o romance é dedicado a Itabira, “a minha melhor amiga”, situado num tempo incerto indicado por um recorte do Jornal do Comércio, um gramofone e três gravatas. E o espaço é uma “paisagem demasiado sobrecarregada de ornamentos, que se reuniam ali em desordem, como se tivessem sido guardados, retirados de uma só vez das montanhas negras e nuas que a cercavam num círculo de ferro (Penna, 2021a PENNA, Cornelio. Dois romances de Nico Horta. São Paulo: Faria e Silva , 2021a [1929]., p. 62). Estamos no mundo da província, de uma cidade do interior. O que primeiro aparece é a casa que “parecia suspensa na luz trêmula, e tudo afastava de si, em esquisito encantamento”, distante de um outro mundo que ameaçava trazido pela estrada de ferro que passava muito fora de seu limite (Penna, 2021aPENNA, Cornelio. Dois romances de Nico Horta. São Paulo: Faria e Silva , 2021a [1929]., p. 7), mundo marcado pelo movimento. A casa com seus grandes espaços abertos era tomada lentamente pela morte, com corpos imóveis em leitos enormes. O sol tornava a casa um grande sepulcro em que “as almas tinham fugido, espantadas pela luta violenta e irreal do negro e da luz”. Dentro da casa, um quarto fechado onde está o segredo da vida de todos e D. Ana deitada, sobrevivente ao seu pai, aos seus dois maridos, aos seus filhos, à violência patriarcal, à solidão. A partir da casa, sabemos que ela está numa fazenda de mineração de ferro (Penna, 2021aPENNA, Cornelio. Dois romances de Nico Horta. São Paulo: Faria e Silva , 2021a [1929]., p. 8) e “além das terras sombrias, a cidade espreitava silenciosa” (Penna, 2021aPENNA, Cornelio. Dois romances de Nico Horta. São Paulo: Faria e Silva , 2021a [1929]., p. 11). É a partir de D. Ana que será contada, “uma sombra suspensa, surda e silenciosa”, “no seu longo e arrastado desparecimento do mundo” (Penna, 2021aPENNA, Cornelio. Dois romances de Nico Horta. São Paulo: Faria e Silva , 2021a [1929]., p. 8), de um mundo assombrado por espectros de indígenas. Aqui,

outros índios surgiram, outros olhos espreitaram, por trás dos primeiros, todos aqueles olhos... podres! Olhos podres, olhos podres pelo tempo, olhos podres pelo esquecimento, olhos podres que o fitavam, lentamente, com lutuoso horror... os índios se desdobraram até o infinito, com surdo ruído, como o rufar de tambor do rio distante. E aquelas bocas mortas se entreabriram, cobrindo com suas vozes o palpitar de seus pés inumeráveis (Penna, 2021aPENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 44).

Nico julga saber o que estão dizendo, mas por fim “Eu nada sei e nada posso - disse com infinito cansaço” (Penna, 2021a PENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 44).

Repouso

Nos romances de Cornelio Penna, a imobilidade atinge tanto aqueles que trabalham como não, senhores, agregados, empregados e escravos, as poucas iniciativas de realizar algo distinto do cotidiano, não são mais que fugas provisórias em meio à decadência. A imobilidade, algo além da melancolia e do esgotamento, é uma possibilidade de sobrevivência, uma serenidade possível num mundo sem deus nem grandes esperanças, “a única serenidade que conseguira fora a sonolência em que tinha vivido os últimos anos de sua estada na Ponte, à espera de qualquer coisa que não ousava definir” (Penna, 2021aPENNA, Cornelio. Dois romances de Nico Horta. São Paulo: Faria e Silva , 2021a [1929]., p. 85). Imobilidade, talvez mais do que inação, porque não se trata de recusar a ação porque esta não se apresenta como horizonte.

O que fazer desses personagens decadentes, em ocaso, desaparecendo, fantasmagóricos? A sombra da escravidão seria maior? Em Repouso, Urbano, viúvo, sem amigos, não acolhido pela sua cidade quando retorna, marcado desde o nascimento pela melancolia e pelo isolamento, encarna uma paralisia, uma impotência: “Como poderei andar, como poderei erguer-me e caminhar até lá fora, sair para as ruas, viver, respirar e falar - interrogava-se ele, e sentia a atonia que estava latente sob a paralisia provisória de sua sensibilidade que adormecia os seus membros” (Penna, 2021a PENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 90). Urbano, com quem Dodôte se casa, é “prisioneiro do nada” (p. 116), já Dodôte, mesmo mudando de lugares, “seria sempre a prisioneira dos seus. Era como se transportassem o cárcere em que fora encerrada, e mudariam apenas as paisagens que veria das janelas...” (Penna, 2021bPENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 11), “um joguete” (Penna, 2021aPENNA, Cornelio. Dois romances de Nico Horta. São Paulo: Faria e Silva , 2021a [1929]., p. 49), nem a morte dos que lhe antecederam tirariam essa dimensão mineral, um objeto, num sentido além de reificação ou submissão. Como em outros romances em terras mineiras, aparecem curiosas metáforas líquidas, aqui, o próprio corpo de Dodôte aparece como “triste navio”, cuja “missão que lhe cabia agora, agora que eram apenas restos de um longo naufrágio” em que a cama aparece como lugar de defesa, “secreto refúgio em seu abrigo verdadeiro e livre do mundo” (Penna, 2021bPENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 17). Ao invés das viagens a continentes desconhecidos dos navegantes do século XVI, em que o naufrágio era um risco, aqui a própria viagem, a própria vida era um naufrágio sem nenhum espectador, cujo único relato seriam esses romances pouco lidos. Aqui a decadência parece se traduzir numa imobilidade, “o sofrimento dela, Dodôte, era o sofrimento da vida, que a dor estava nela mesma, e não no luto e na saudade que via em torno de si”, estava num estágio para além da decadência e da melancolia, o que chamo de paralisia, imobilidade. Se antes se empenhara em fazer “uma colcha enorme” que “quando pronta, resultaria certamente em uma obra faustosa e inútil, em absurdo contraste com os móveis austeros e escuros que compunham o parco e severo mobiliário da casa” (Penna, 2021bPENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 46) cuja realização parece ter sido abandonada ou esquecida pois, no fim, “há já milhares de anos que se sentara naquela cadeira, de onde não se levantaria, e ninguém viria libertá-la daquele pesadelo espesso e denso, que a enlouquecia, queimava os seus olhos sem uma lágrima, e pesava em seu peito sem um soluço. Era um desespero morno, vagaroso, que a invadia em marcha quase imperceptível, aniquilando uma a uma as suas energias” ... “Não sei se encontrarei minha morte...” (Penna, 2021bPENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 187).

Ninguém gosta de mim, terei que caminhar para sempre entre estranhos. Terei que caminhar para sempre na estrada sem destino que se abre diante de mim. Terei que caminhar para sempre ladeada por altos muros que se afastarão a minha passagem. Até onde irei, nesse caminhar cego e interminável? (Penna, 2021b PENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 192).

Mesmo Dodôte e Urbano não formam um par, são seres isolados no casamento, na “verdadeira solidão” (Penna, 2021b PENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 118) na mesma casa, lentamente se objetificando e desaparecendo, “uma fuga para o silêncio e para o repouso totais” (Penna, 2021bPENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p.146), “seu quarto era uma sepultura sagrada, inviolável... sem saída e sem entradas, sem caminhos, sem limites, e a cama em que se deitava era o centro do mundo, mas de um mundo incolor, sem forma, que se desvanecia no silêncio” (Penna, 2021bPENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 176). A constante leitura de Urbano, os sonhos de viagem ou de convento de Dodôte pouco mudam suas vidas. Eles desaparecem mais do que morrem. Seu destino não é serem espectros a serem lembrados, não há esta vitalidade, esta energia de permanecer.

Novamente, como em Fronteira, a marca mais explícita da decadência está na protagonista feminina, Dodôte, apresentada no início do romance já viúva sem recursos (Penna, 2021c PENNA, Cornelio Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021 [1935]., p. 7), ninguém nem nada a quer (Penna, 2021cPENNA, Cornelio Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021 [1935]., p. 8), sua solidão é comparada a uma rua deserta (Penna, 2021bPENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 5) e as ruas desertas da cidade têm muros arruinados (Penna, 2021cPENNA, Cornelio Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021 [1935]., p. 36) a que não pertencia:

[...] lhe vieram os pensamentos habituais, de que não era aquela cidade a sua pátria, não consciência do lugar onde nascera, ela própria não se conhecia, não sabia quem era e não se encontrava naqueles que a tratavam familiarmente. (...) Nada tinha com aquelas mulheres austeras, de olhos limitados e secretos, cujos retratos costumava ver no velho álbum de família (Penna, 2021c PENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 19).

Talvez com o tempo gradualmente ela fosse se aproximando dessas imagens antepassadas, se imobilizando como uma estátua. Dodôte era “bisneta de patriarca que governara a cidade tanto tempo, descendente de homens que tinham construído a cidade pedra por pedra” (Penna, 2021b PENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 81). Já seus pais viveram num mundo de aparências. Uma imagem era da família nas ruas da cidade, mas por dentro, a decadência acontecia (Penna, 2021bPENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p.83), representada pela venda das joias pela mãe (Penna, 2021bPENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 84). Dodôte vivia recolhida, todos se afastavam dela diante de sua solidão sobre-humana (Penna, 2021bPENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 88), mesmo casada se considerava uma solteirona, “que não tem qualquer coisa que as prenda realmente à vida...que sejam sozinhas no mundo, sem amor, sem amparo" (Penna, 2021bPENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 167). A solidão e a loucura unem Dodôte e a cidade pobre com minas fantasmagóricas (Penna, 2021bPENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., 206). Sua única ligação com o mundo parecia vir da fazenda do Jirau (Penna, 2021bPENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 20). As imagens recorrentes das montanhas de ferro que cercavam e aprisionavam a cidade aqui parecem para-raios e que encontram nas nuvens negras uma imagem de máquinas de guerra (Penna, 2021bPENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 196) que nem as lâmpadas elétricas recentemente instaladas (Penna, 2021bPENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 135) parecem iluminar.

Sua família contara agora mais inimigos que amigos (Penna, 2021b PENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 170), mas tanto uns como outros não parecem ser forças dramáticas visíveis. Na fazenda,

[...] os anos correram velozes, sombrios, sempre iguais, na regularidade inflexível dos trabalhos de mineração, lá fora, feitos pelos homens que vinham de terras de nomes desconhecidos, escuros, maltrapilhos, sem sangue. Obedeciam em silêncio às ordens dos capatazes e eram sozinhos e tristes, pois deixavam suas famílias e vinham para a fazenda para o exílio (Penna, 2021b PENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 9)

então uma terra abandonada (Penna, 2021b PENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 107), posta à venda, como depois a farmácia. Só restando a casa do Poente, assolada como se fosse por uma doença (Penna, 2021bPENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 238) e ameaçada pela tempestade, destinada a uma morte sem perdão e, ao mesmo tempo, a um espetáculo desmedido, pelo dilúvio que se anunciava (Penna, 2021bPENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 197), pelo tropel de milhões de cavalos de guerra que fazem as entranhas da terra tremer (Penna, 2021bPENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 198), invadida por goteiras nos quartos, cercada por um mar de lama (idem), imagem que faz lembrar catástrofes mais recentes. A casa de onde Dodôte não sairia, permanecia “o deserto, o silêncio e o vazio, no meio do ruído confuso e ensurdecedor lá de fora” (Penna, 2021bPENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 199) criando um forte contraste entre o interior e o exterior.

Por fim,

Dodôte não pode deixar de refletir um momento no misterioso destino de sua família, que se afundava em um triste naufrágio, sem luta e sem desespero, e tudo desaparecia na miséria e na obscuridade, vencidos os homens por irremediável inaptidão para a vida, e as mulheres pela paixão do sacrifício e da resignação que as aniquilava. Estava encerrada a sua missão de fornecer homens de grande altura moral e mulheres de extraordinário caráter (Penna, 2021b PENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 214).

Não é só a vida que se vê como navio naufragando, mas as fazendas, pessoas, corpos, por esta imagem se aproximando de Limite (1931) de Mário Peixoto.

Na infância, o único momento de liberdade que Dodôte vislumbrava era do mirante (Penna, 2021b PENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 9), que a afastava da terra e da imagem mais tenebrosa, encenada como um pesadelo:

Diziam que naquele charco, muito próximo da casa, havia sanguessugas, que tremiam em suas águas torvas, e se escondiam entre as folhas viscosas, as raízes podres das plantas aquáticas, e aranhas venenosas e negras, de grossas patas aveludadas, viviam em suas margens. Noites a frio que, quando criança, ela as imaginara fugindo e caminhando todas, em um terrível e silencioso cortejo, até sua janela, onde subiam penosamente, deixando-se cair no soalho e, finalmente, avançando para o seu leito, agarrando-se às suas cobertas e nelas escondendo-se (Penna, 2021b PENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 26).

Todas as imagens de fantasmagorias, morte, decadência resultam em desaparecimento. “Era preciso tudo destruir, tudo matar e reduzir a cinzas” (Penna, 2021b PENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 186). Contudo, de forma inesperada, devido ao casamento distanciado, Dodôte engravida e adoece, pensando que irá conceber “o filho de um fantasma” (Penna, 2021bPENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., 203), ameaçada de noite por sonhos de uma carruagem à noite que trazia uma senhora assassinada pelas escravas (Penna, 2021bPENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 208) ou ameaça da revolta dos escravos e os sanguessugas do charco que aparecem como vampiros soltos (Penna, 2021bPENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 209) que se aproximam de usos recentes em filmes contemporâneos brasileiros de recursos do terror para falar da herança da escravidão ou, aqui, na imagem mais lírica do jardim misterioso que ocultava o cemitério dos escravos (Penna, 2021bPENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 219).

Se os parentes, herdeiros do patriarca que viera de Portugal, na aventura da mineração, eram acolhidos como indigentes na Santa Casa, outrora casa de seu ancestral; toda a aventura da mineração se acabaria no filho, “o último grau de toda a monstruosa decadência (Penna, 2021b PENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., 214). Um herdeiro nada significaria, assim Dodôte vê o álbum de retratos que talvez uma criança veria, no futuro, um passado sem conexão e sem sentido, “contemplava o filho, morrendo minuto por minuto, ameaçado de trevas, ameaçado de imobilidade definitiva, ameaçado de tudo, mas vivo, vivo sempre!...” (...) Num gesto de recusa ao trágico, diz ao fim “Não sofrerei... não sofrerei - disse Dodôte, muito baixinho, com infinita doçura - meu filho será o meu repouso!” (Penna, 2021bPENNA, Cornelio. Repouso. São Paulo: Faria e Silva , 2021b [1948]., p. 247). Não há futuro para brancos, negros ou indígenas no mundo de Cornelio Penna. Não há futuro.

Desaparecimento

Minha aproximação recente das muito mais conhecidas gravuras de Oswaldo Goeldi encontra um caminho crítico estabelecido pelo Expressionismo, um caminho por uma Modernidade extraviada (Cabo, 1995CABO, Sheila. Modernidade extraviada. Rio de Janeiro: Diadorim, 1995. ). Apesar da singularidade dos trabalhos de Cornelio e Goeldi, é pertinente, mas insuficiente dizer que eles se encontram na incompatibilidade com a crença na razão e na utopia do progresso. Nas artes visuais, Goeldi nãos se situa na oposição central entre Modernismo e Academia, mas à margem tanto de um quanto de outro. Goeldi, apesar de estrangeiro no Brasil, onde vive e faz arte por quarenta anos, se sentia numa carta a Hermann Kümmerly datada de 16 de fevereiro de 1935, um “europeu sentimental” exilado, mas que não produz uma obra exotizante nem parece apenas se manter fiel a sua formação europeia. Rompido com a família, abandona o emprego que esta lhe impusera num banco, celibatário, sobrevive como ilustrador de jornal, de livros de importantes autores modernistas, de romances de Dostoievski (Goeldi, 2014GOELDI, Lani. Oswaldo Goeldi & Fiódor Dostoiévski - Recordações da Casa dos Morto. Rio de Janeiro: Caixa Cultural, 2014. ), entre outros, e professor, mas também se mantém longe de grupos vanguardistas e manifestos, distinto tanto do Modernismo paulista dos anos 20, tanto na da visão de Mário de Andrade quanto da antropofagia, encontra um caminho próprio. Curiosamente sendo reconhecido, inicialmente, sobretudo por escritores (Álvaro Moreyra, Ronald de Carvalho, Aníbal Machado, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Geraldo Ferraz, Tasso da Silveira, Andrade Muricy, Murilo Araújo) e, entre os pintores, só por Di Cavalcanti (Goeldi, 2021GOELDI, Lani. Oswaldo Goeldi: repaginando a história. São Paulo: Projeto Goeldi, 2021., p. 29). Se ao menos nos anos 30 e 40 não vendia suas gravuras (Goeldi, 2021GOELDI, Lani. Oswaldo Goeldi: repaginando a história. São Paulo: Projeto Goeldi, 2021., p. 12), no decorrer de sua vida acaba respeitado nos meios intelectuais, como sintetiza Rachel de Queiroz: “Todos tinham noção do verdadeiro valor de sua arte. Apenas nas rodas oficiais é que não havia espaço para seu reconhecimento” (apudCabo, 1995CABO, Sheila. Modernidade extraviada. Rio de Janeiro: Diadorim, 1995. , p. 127).

Minha leitura não passa como para Sheila Cabo pelo Expressionismo, apesar de muitas de suas percepções tenham me ajudado a me aproximar de Goeldi. Meu desejo é ao aproximá-lo de Mário Peixoto e Cornelio Penna, fortalecer esta outra linhagem modernista sobre a qual tenho escrito que se situa no Brasil, diferente de considerá-los de forma isolada, naturalmente em diálogo com referências de outras culturas, e também da tentativa de pensar um Expressionismo nos trópicos (Venancio Filho, 2012VENANCIO , FILHO Paulo. Goeldi: um expressionista nos trópicos.Novos Estudos Cebrap, v. 40, p. 117-124, 1994.), pensando os espaços não como projeções da subjetividade, mas com uma visão particular e material. Curiosamente, seria no deslocamento para o Brasil (Cabo, 1995CABO, Sheila. Modernidade extraviada. Rio de Janeiro: Diadorim, 1995. , p. 37), onde chega em 1919, que se salva das vanguardas, em particular, das vanguardas construtivas. Ao invés do anseio pelo novo, o que o toca é a decadência e o instante, a decadência a cada instante. Mário Peixoto e Cornelio tinham amigos em comum, mas não parecem terem sido íntimos. Teria Goeldi conhecido os dois?

Logo no início do livro de Sheila Cabo, a exploração da catástrofe, numa perspectiva benjaminiana, evocar na obra de Goeldi um particular anjo bêbado, ao invés do Angelus Novus de Klee. Mas qual seria a história desse anjo bêbado, a mesma que Benjamin inventa a partir de Klee? De forma diferente da leitura benjaminiana que Sheila Cabo incorpora, o bêbado, mais do que um anjo, “não nos parece olhar para trás, para qualquer passado; antes vaga os olhos pela rua” (Rufinoni, 2006RUFINONI, Priscila Rossinetti. Oswaldo Goeldi: iluminação, ilustração. São Paulo: Cosac Naify , 2006, p. 17). Creio que há um deslocamento particular que me interessa nesse gesto.

O mundo é a paisagem desolada de uma noite branca. Talvez tão negra que tenha assumido seu inverso, ou o seu devir, quando o negro não é negro, ausência de luz, sendo toda luz - o branco. Em Goeldi tudo é inteiro e inverso, não há meio termo (Cabo, 1995CABO, Sheila. Modernidade extraviada. Rio de Janeiro: Diadorim, 1995. , p. 11).

E “a história da arte de Goeldi é necessariamente a história do reconhecimento da noite branca, é o reconhecimento desta como verdade, como estado de exceção, que se concretiza e dá frutos” (Cabo, 1995CABO, Sheila. Modernidade extraviada. Rio de Janeiro: Diadorim, 1995. , p. 15). A noite branca é mais do que a luz da cidade, mas seria bom lembrar que nas primeiras décadas do século XX, ainda pareciam conviver os velhões lampiões a gás e a energia elétricas nos espaços públicos, talvez ainda mais nos subúrbios. Mesmo o que parece ser luz elétrica, ela parecia ser fraca, como em O Anjo (1940). O que seria esse clarão que aparece e ilumina o homem caminhando (Abandono, 1930) e não se sabe de onde vem, como um canhão de luz de cinema iluminando um ator, mas ao mesmo tempo aparentando ser algo que vem da figura humana como uma aura? Essa sensação de aura também aparece nas palmeiras em Subúrbio (cerca de 1930). Seria efeito do pouco alcance da iluminação pública que fazia desaparecer os detalhes do espaço? Teria a ver com as noites brancas de Dostoievski? Em Rua Molhada (s.d.), cena de rua sem pessoas, apenas com um rato, alguns urubus, guarda-chuva jogado, uma estranha roupa vermelha num varal no meio da rua (?), uma panela virada, a luz parece vir só de onde há a cor branca, seja no chão das ruas, nos contornos de objetos e espaços. e curiosamente no céu, embora não pareça ser dia...

Passando das xilogravuras (boa parte do que menciono aqui eram) para ilustrações de nanquim a traço (Casarão, sem data), os espaços parecem se dissolver não pela presença ou não da luz como no Impressionismo. Há ainda objetos como postes e entradas de casas, mas não vemos o prédio. Há uma figura humana quase desaparecendo (Ilustração para um artista desconhecido, cerca de 1926). Diferente das paisagens de um Brasil da luz intensa, há algo próximo a um mundo humilde como o de Manuel Bandeira, diferente tanto de um discurso cristão quanto de um realismo social. Os subúrbios têm casas com certo espaço entre uma e outra, estão, às vezes no limiar mesmo da natureza e dos morros, embora estes não sejam centrais, como em Casa e poste (s/d.), curiosamente ganham um relevo em Subúrbio (1939), já tomado por casas, em que fábricas, depósitos e hotéis são indicados na parte mais baixa da gravura. Há arvores que aparecem isoladas como em Mangueira (1954-1959) ou em Dança do Sol (s/d). Crepúsculo (1950) e A Árvore (s/d.). “O Rio de Janeiro que ele [Goeldi] nos revela é um mundo espectral. Nas gravuras e desenhos de Goeldi são escassos os sinais do mundo moderno; nem um só automóvel, um arranha-céu. Alguns postes elétricos é tudo. Estamos diante de uma cidade inacabada” (Venancio Filho, 1992VENANCIO , FILHO Paulo. A crise da pessoalidade e o outro modernismo: Cornélio Penna, Oswaldo Goeldi e Mário Peixoto. 1992. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura) - Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1992. , p. 122), mas mesmo assim diante de um outro Modernismo. Nos distantes bairros cariocas, antigos casarões abandonados e ruas com móveis destroçados fazem sentir o peso de uma excessiva tranquilidade.

Goeldi mostra mais as janelas fechadas do que as prováveis pessoas solitárias em suas pensões, casas. Quase tudo é em preto e branco, com exceção de alguns momentos de cor que explodem certos objetos. Mesmo quando há pessoas num mesmo lugar eles raramente se encontram, mesmo quando parecem caminhar na mesma direção, como em Luz sobre a praça (1930, 1949). Nada parece sugerir que falarão, mesmo que se esbarrem. Mesmo em ambientes fechados, limpando, mantêm uma certa distância (Pescadores, 1940; Vassourada, 1945), mesmo quando suas figuras parecem se misturar, há uma estranha sensação de estarem separados (Pescadores, 1957) ou só o trabalho parece por vezes os aproximar (Busca do peixe, 1940). Um momento raro de fraternidade aparece em [Pescadores conversando] (1950), ou em [Encontro sob chuva] (s.d.) embora como de praxe estão virados de costas para o espectador, como se houvesse um certo pudor em mostrar esse momento de intimidade, e no caso do último, mesmo uma certa distância é mantida sem mostrar rostos. Algo diferente e pouco comum acontece em [Briga de Rua] (cerca de 1930) onde de fato parece haver uma convergência física, quase coreográfica, na briga bem como ela é o foco dos olhares de pessoas em suas janelas, na lírica cena de balões sendo soltados em São João (s.d.) ou na iminência de uma aproximação em O Assassinato (s.d.). Não há grande vínculos, nem as famílias patriarcais em suas casas grandes nem as famílias nucleares urbanas.

Outro elemento que chama a atenção é a luz vermelha em meio à escuridão que parece sugerir o crepúsculo, um dia que finda. Quando não há o vermelho, o esmaecimento dos tons e o término do trabalho prenunciam a escuridão (Crepúsculo, 1957, Fim do dia, 1950) até chegar a noite e seus outros personagens em que a luz clara da lua parece às vezes ser a única fonte de luz (Luar, 1950) Por mais que o coração vermelho rime com o sol vermelho, o que resta é o Abandono (1937) de um homem deitado na rua, de um homem trabalhando (Tarde, 1954), na cidade ou no campo (Por de sol, 1955), todos só sob o sol vermelho que lança seus últimos raios.

Retorno ao conhecido Chuva (1957). seria o guarda-chuva, de fato vermelho, ou reflete a luz vermelha do sol? Nas janelas fechadas, não vemos seus habitantes, mas eles poderiam ser como esse que passa rápido, só, Em breve dobrará uma esquina e desaparecerá. Ele é só um instante, um momento em meio a casarões frágeis, de paredes tênues que parecem se dissolver na noite. Não é um mundo de fantasmas ancestrais e seculares, mas em meio às ruinas urbanas recentes.

Assim é que a penumbra grave das ruas, a sobriedade e a desolação das casas, a presença irredutível do poste de luz, nos direcionam, pela gravação despojada de qualquer virtuosismo técnico, para o reconhecimento de um mundo remoto, tempo de gente perdida no desabitado bairro mais semelhante a um bairro de recordações (Cabo, 1995CABO, Sheila. Modernidade extraviada. Rio de Janeiro: Diadorim, 1995. p. 93).

Mas recordações de que e de quem? De algo que estaria no entrelugar que constitui o olhar de Goeldi sobre a cidade que lhe coube viver? Aqui, nesses subúrbios, parece que o passado colonial brasileiro está pouco presente, em alguns corpos talvez, mas não parece haver muito para lembrar. Sob um olhar desterrado e acolhido que se dá pelo encontro no aqui e agora, pessoas que transitam ou mesmo se refugiam, em geral, na noite. Não se trata tanto mais do que sobrevive pela melancolia, nem tanto do que se perde pela impotência, pela imobilidade, mas do que existe embora esteja de passagem, em vias de desaparecer,

o presente goeldiano, embora instante, frio e noturno, pulsa diante da possibilidade de ser. Tendo como estado necessário para a criação artística a urgência especulativa, constitui-se como um passo para fora dos domínios subjetivos, num impulso de alcançar um algo invisível que transcende o indivíduo, e permeia toda a realidade (Cabo, 1995CABO, Sheila. Modernidade extraviada. Rio de Janeiro: Diadorim, 1995. p. 25).

Há toda uma materialidade dos espaços e dos objetos, ao invés de um discurso subjetivista e metafísico, que captados num instante, não são propriamente salvos do esquecimento, eles não são documentos ou registros, eles carregam em si sua própria decomposição, desagregação, transformam-se em algo difícil de definir, ganham uma autonomia para além de seus possíveis uso, mas não são vistos dentro de uma visão animista, como lembra Paulo Venancio (2012VENANCIO , FILHO Paulo. Oswaldo Goeldi: Sombria luz. São Paulo: MAM-SP, 2012. , p. 19-20).

Vistos nos museus, com frequência, disponíveis na internet e em catálogos, que sentidos os trabalhos de Goeldi trazem para uma geração atual, talvez mais interessada na arte e nos artistas contemporâneos? Serão hoje os contemporâneos mais estudados por uma necessidade mercadológica de curadores e críticas descobrirem novos nomes, em sua maioria, destinados em breve ao esquecimento no mundo mais fugaz das celebridades das redes sociais, lógicas a que muitos aderem por convicção ou por modismo? O que este mundo traz aos meus estudantes? O que posso oferecer a eles no que escrevo agora que consiga ultrapassar por exemplo a barreira do homem branco, ainda mais europeu, heterossexual, que escolheu viver no Brasil, de resto, como era a experiência de Cornelio Penna? A solidão e o desaparecimento são experiências concretas, materiais feitos de luz e sombra, claros e escuros, com peso e leveza, sem a “atitude agressiva que muitas vezes caracteriza o artista expressionista” (Cabo, 1995CABO, Sheila. Modernidade extraviada. Rio de Janeiro: Diadorim, 1995. , p. 27). Longe do grito, da explosão da figuração, seus rostos são reservados, silentes, como seus autorretratos (1950, 1956). Em geral, são transeuntes em que podemos ver por onde eles caminham naquele instante embora com poucas marcas nacionais. “A construção-síntese do mundo se dá assim, na imagem do homem que anda na noite” (Cabo, 1995CABO, Sheila. Modernidade extraviada. Rio de Janeiro: Diadorim, 1995. , p. 33). Apesar de lembrar de imagens de pescadores, também presentes em Limite de Mário Peixoto, são mais recorrentes homens sós andando de noite, em ruas vazias, em geral, associadas ao subúrbio, em contraponto ao centro durante o dia, possivelmente, repleto de pessoas. Curiosamente é esta constituição da masculinidade, longe do espaço da casa e dos vínculos familiares, figura transformada em algo a ser temido pelo Expressionismo e as histórias de terror, associando o homem solitário, talvez celibatário, que caminha pela noite como algo à margem, mesmo próximo à monstruosidade.

Voltando á Chuva (1957) vemos o homem de costas com sobretudo e guarda-chuva vermelho. O dar às costas para ser lido, evitando o rosto, não é só uma simples recusa mas uma outra forma de se dar a ver. Ao ocultar o rosto, podemos ver uma reserva, um anonimato, até mesmo um temor por ser reconhecido, embora esta última opção cara ao Expressionismo cinematográfico, pareça não ser a motivação dessas figuras, como parecia ser o próprio Goeldi deslocado do mundo artístico e da boemia vadia, andando pela madrugada (Cabo, 1995CABO, Sheila. Modernidade extraviada. Rio de Janeiro: Diadorim, 1995. , p. 39), que transitam não como se estivesse em fuga, nem como o flâneur em busca da multidão que parece inexistente, poderiam estar indo do trabalho à casa depois de ter passado por algum bar, na busca de prazeres ausentes em suas casas solitárias ou não, ou não teriam onde dormir, caminham por gosto ou por necessidade, as vezes estão parados, sem falar com ninguém, esperando alguém? contemplando algo banal? Diferente dos personagens de Limite de Mário Peixoto não parecem fugir de algo que lhes aconteceu ou do peso histórico dos personagens de Cornelio Penna, ou será que não consigo ver nos seus corpos essas marcas? Seriam já as aparições de Goeldi incapazes de expressarem suas histórias? Nos seus traços sem muitos detalhes é a ausência da história que transparece? O homem só no centro da gravura equivaleria à gravura em que vemos um pássaro? Não se trata de animalização, nem de antropomorfização do animal. Nos dois uma certa solidão física irredutível, como na velha senhora que dá nome à rua e ao desenho em Rua da Velha Aleijada (s/d.). Não sabemos de onde vieram nem para onde vão. Apenas esta solidão sem grandes dramas é o que os aproxima. Por vezes andam juntos (Na estrada, 1925; Noctívago, s/d.) ou mesmo conversam (Noturno, s/d.) mas essas situações não parecem ser comuns. Curiosamente, uma pintura chamada Amigos (1950) é a de um cachorro no colo de um homem velho. Há cães nas ruas olhados de longe e gatos parecendo mais próximos. Na natureza, o voo do bando de guarás ao por do sol (1945) ou uma garça solitária (1940), há um certo lirismo, mas porque pertenceriam mais à natureza do que às cidades? Há o tubarão (1945) e peixe (1938), em que estar fora do seu meio implica a morte, a imobilidade. Nos vários quadros com peixes, eles ecoam também o vermelho do sol poente.

O duplo fascínio por homens trabalhando, em especial pescadores, e pelos trânsfugas, mas não artistas, pessoas de sua classe originária, não aparecem como outros, mas semelhantes na solidão, nos seus pequenos dramas quando existentes, no seu silêncio. Não há revolta, nem heroísmo, epicidade, nem um lirismo estetizado que vai de Limite de Mário Peixoto a Terra Treme (1948) de Visconti. O pintor, se não for mais um trabalhador, é certamente mais um homem de poucas palavras, poucos gestos, andando pela cidade, desamparado a não ser pelo seu fazer.

Como em Mário Peixoto e Cornelio Penna, as metáforas marítimas aproximam o olhar de Goeldi sobre os subúrbios, numa carta a Kubin: “os enormes subúrbios do Rio - portos abandonados com navios encalhados apodrecendo - ferro velho de cargueiros enferrujados, âncoras enormes, boias e montanhas de correntes” (apudCabo, 1995CABO, Sheila. Modernidade extraviada. Rio de Janeiro: Diadorim, 1995. , p. 53-54), antecipando oniricamente as paisagens pós-industriais dos gigantescos cemitérios de navios fotografados por Edward Burstinksy. Nada de excepcional aparece nos casarões de janelas fechadas, nenhuma paisagem ou monumento deslumbrante. “Seu mistério deriva justamente de uma renúncia à significação por parte daquilo a que estamos estreitamente ligados. E por isso não são propriamente metrópoles, com sua estranheza intrínseca, e sim recantos perdidos de um lugar qualquer do mundo” (Naves, 2019NAVES, Rodrigo. Dois artistas das sombras: ensaios sobre El Greco e Oswaldo Goeldi. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 164). As casas são grandes e os homens são pequenos, talvez pelo afastamento em que o gravurista-narrador se coloca em relação a estas figuras, embora tenha uma sensibilidade atenta “ao valor do pequeno, do inútil, do pária social, do fragmento” (Cabo, 1995CABO, Sheila. Modernidade extraviada. Rio de Janeiro: Diadorim, 1995. , p. 53). Tanto os espaços como como as pessoas não têm detalhes, não carregam uma expressão subjetiva precisa.

Acrescentando a chuva à noite, como um outro contraponto a imagem solar e diurna do Rio de Janeiro que é mais recorrente. Imagem essa de Goeldi que sempre me identifiquei talvez por gostar de sobretudos de guarda-chuvas vermelhos, da chuva tanto para trabalhar quando para ver da janela. Os dias nublados são sempre os que mais me sinto melhor para andar. Como cantava Jesus and Mary Chain: “Happy when it rains”. O sol forte do verão sempre me trouxe mal-estar, a luz cegante, o calor insuportável.

Essa luminosidade não deslumbra o artista estrangeiro [Goeldi], como faz com os modernistas quando passam a procurar a identidade dentro de seu país. Exatamente por ter um olhar estranho, mas absolutamente lúcido, a luz da brasilidade tropical, terra mítica de euforia não o afeta (Cabo, 1995CABO, Sheila. Modernidade extraviada. Rio de Janeiro: Diadorim, 1995. , p. 11).

Contudo, a simples possibilidade da chuva, em [Ameaça de Chuva], 1945 nos mostra um homem segurando um chapéu, outro tentando abrir o guarda-chuvas e outro se apressando para chegar talvez em algum lugar onde a chuva não pegue. Aqui temos mais os efeitos do vento na rua do que uma grande alteração no céu ou no espaço escurecido, sendo que a dispersão dos objetos e pessoas parecem quase flutuar em [Ventania], s.d.

Os subúrbios não aparecem como microcosmo ou alegoria da nação e, se num sentido benjaminiano, são a margem como alegorias do mundo moderno pelas suas ruínas (Cabo, 1995CABO, Sheila. Modernidade extraviada. Rio de Janeiro: Diadorim, 1995. , p. 33). Sem dúvida, vemos objetos, vestígios, mas não configuraria uma outra modernidade como o campo e as pequenas cidades? Se não há multidões, em que estas figuras isoladas se diferenciariam de outras experiências modernas? “A arte de Goeldi se constrói como poética, na escuridão das ruas gravadas, nos desenhos dos móveis na calçada, dos urubus [presenças importantes também em Limite de Mário Peixoto) coniventes com sinaleiros semimortos: Todos mínimos” (Cabo, 1995CABO, Sheila. Modernidade extraviada. Rio de Janeiro: Diadorim, 1995. , p. 32). Ou não, como em Noturno (1950), uma natureza-morta em que uma cadeira intacta, um armário com as portas abertas ocupa o lugar central da gravura ao lado de um poste de iluminação ou uma cadeira vazia em que um pássaro pousa junto com uma mesinha ao ar livre enquanto um homem passa com cachorro (O Intruso, 1925). Nas laterais, um móvel onde se colocam chapéus e uma janela solta. Tudo poderia crer que são móveis jogados fora, e só por isto podemos intuir a relação de pessoas ausentes na ilustração com os objetos, que parecem agigantados comparado com o pequeno cachorro que cheira um chapéu no chão. Há um drama apagado nesses objetos, se foram de uma mesma pessoa despejada, tiradas de uma casa alugada por novo inquilino... Periferia de cidades, mas tenho dificuldade em se tratar de um país periférico. Há um localismo, mas não há interesse nos detalhes, no pitoresco, seja nos espaços, seja nos personagens anônimos.

Além das figuras isoladas ou sem comunicação com outras, há gravuras em que vemos um par ou um grupo, como um homem sendo levado por dois (Negro bêbado, cerca de 1930), um homem apontando algo para o outro (Temporal, s.d.) mas mesmo assim com frequência estão de costas ou de lado para o espectador para enfatizar o movimento. Há também estranhas aparições de caveiras num pote de frutas (Comilão, cerca de 1941), numa figura cadavérica suspendendo um lampião (O Bêbado, cerca de 1944). por vezes em figuras simplesmente andando, num comum Sinaleiro (1939), alguém com guarda-chuva [beco maldito], s.d. ou na série Balada da Morte (1944), que dão um tom fantástico, mas que não repercute na espacialidade, como em Cornelio Penna, a não ser em A Morte plaina n. 29 (que também parece ser uma série), em que uma figura gigantesca parece que vai pisar na cidade, ou em Abraço da Morte (1940).

Em tempos em que o confronto, a fratura, o dissenso parecem dar alguma chave para se estar no agora e na procura de um passado colonial persistente, prefiro olhar para outro lugar, como sempre, como sempre. Agora me fascinam, uma vez mais, os mundos de Mario Peixoto, Lucio Cardoso, Goeldi, Cornelio Penna, Autran Dourado e Farnese de Andrade. Viveram no fim do mundo, nos ecos cada vez mais silentes de um mundo que há muito se apagou. Deles temos ruínas, vestígios, traços. Nenhum desejo de serem cronistas do seu tempo, são seres antigos, não arcaicos, nem míticos. Fazem da anacronia um estar silente no mundo em meio às indignações e revoltas tanto ruidosas quanto ineficientes. Mergulham no local das pequenas cidades, nos subúrbios não para fazerem regionalismo, não há aqui dialética a Paulo Emilio Salles Gomes entre não ser e ser outro, não há desejo de nação à sombra do popular, da herança afro-ameríndia, há só espectros de desaparecimento, invisibilidade e sutileza que falam de pertencimentos precários, inserções cosmopolitas, dilaceradas por uma experiência católica ou vagamente espiritualista que enforma um mundo em constante catástrofe, tendo desconfiança das massas, das multidões, do fascínio pela reforma, pela revolução, pela revolta que cedo cederam a um pessimismo teórico mesmo quando há um otimismo prático, uma aposta na teatralidade das sensações, numa vida pouco profissional ou que não busca tanto o holofote das celebridades instantâneas. Estes serem estranhos, raros, mais afeitos à penumbra e ao cuidado de si, sobreviventes de horrores que não buscam dar testemunhos, mas criar outros mundos para viverem as horas depois do fim. O fim foi há muito tempo.

Referências

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  • VIRNO, Paolo. Sobre la Impotencia: la vida en la era de su parálisis frenética. Madrid: Traficante de Sueños, 2021.
  • 1
    Para uma leitura detalhada e rica da produção visual de Cornelio Penna (Eulalio, 2012EULALIO, Alexandre. Os dois mundos de Cornelio Penna. In: CALIL, Carlos Augusto (org.).Tempo Reencontrado: ensaios sobre arte e literatura. São Paulo: IMS; Ed. 34, 2012. p. 221-246., p. 221-246).
  • Declaração de Financiamento

    Agradecemos ao CNPq (309217/2020-2) e à FAPERJ (E-26/200.871/2021) pelo apoio financeiro.

Editado por

Editor-chefe dos Estudos de Literatura

Silvio Renato Jorge

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Abr 2023
  • Aceito
    21 Ago 2023
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