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Capitalismo patriarcal em tempos de antropoceno: reflexões sobre a distopia feminista Deuses de Pedra

Patriarchal Capitalism in Times of the Anthropocene: Reflections on the Feminist Dystopia The Stone Gods

RESUMO:

Com base em uma visão ecocrítica feminista, este artigo analisa o romance Deuses de Pedra (2012), da autora britânica Jeanette Winterson, como uma distopia feminista que retrata o Antropoceno e suas urgências como um fio condutor de histórias trágicas que se entrelaçam em diferentes espaços-tempos. Entendida como sf, no sentido de equivaler à ficção científica, fabulação especulativa e feminismo especulativo (HARAWAY, 2016), a narrativa de enredo apocalíptico manifesta claras críticas às relações de opressão capitalistas e patriarcais, expondo-as como responsáveis pelo rumo catastrófico que a humanidade tomou, bem como especula sobre as possibilidades de resistência para desestabilizar tais estruturas. Partindo destes pressupostos, o estudo tem por base uma crítica feminista fundamentada, sobretudo, nas reflexões de Silvia Federici (2019), articulando as relações de raça, gênero e sexualidade na constituição do modelo de exploração capitalista, além de observar os efeitos que essas estruturas causam na natureza, por meio da intervenção dos humanos.

Palavras-chave:
Distopia feminista; Ecocrítica feminista; Antropoceno; Jeanette Winterson

ABSTRACT:

This paper analyzes the novel The Stone Gods (2012) by the British author Jeanette Winterson as a feminist dystopia that presents the Anthropocene and its urgencies as a thread of tragic stories that intertwine in different space-times. Considered as sf, in the sense that it is equivalent to science fiction, speculative fabulation, and speculative feminism (HARAWAY, 2016), the apocalyptic plot of the narrative manifests clear criticism of capitalist and patriarchal relations of oppression, exposing them as responsible for the catastrophic course humanity has taken, as well as speculating on possibilities of resistance to destabilize such structures. Based on these assumptions, the analysis is founded on a feminist critique grounded on the reflections of Silvia Federici (2019), articulating the relations of race, gender, and sexuality in the constitution of the capitalist exploitation model, and to observe the effects that these structures cause in nature as a result of human intervention.

Keywords:
Feminist dystopia; Feminist ecocriticism; Anthropocene; Jeanette Winterson

Distopias feministas e ecocrítica: aproximações

As ficções distópicas feministas têm ocupado um lugar de destaque nos estudos ecocríticos contemporâneos, sobretudo por sua capacidade de especular as inquietações do presente em enredos apocalípticos, apresentando problemáticas ecológicas atreladas às relações humanas e suas condições. Aquecimento global, desastres ambientais, crescimento populacional desenfreado, sistema capitalista, governos antidemocráticos, domínio patriarcal, discursos androcêntricos, sexualistas e de exclusão, entre outros sintomas de nosso tempo, são temas frequentes dessas narrativas. Para Ildney Cavalcanti (2002CAVALCANTI, Ildney. A distopia feminista contemporânea: um mito e uma figura. In: Boletim do GT da ANPOLL: ‘A Mulher na Literatura’. Florianópolis: UFSC, 2002. p. 247-262.), as distopias feministas constituem um subgênero literário, o qual é crítico em sua essência, podendo, dessa forma, contribuir com a formação de um público leitor crítico-feminista.

Levando em consideração que o mundo sempre foi distópico para as mulheres, por ser dominantemente patriarcal desde o início da história, como afirmam Deplagne e Cavalcanti (2019CAVALCANTI, Ildney; DEPLAGNE, Luciana C. Apresentação. In: CAVALCANTI, Ildney; DEPLAGNE, Luciana C. (org.). Utopias sonhadas/distopias anunciadas: feminismo, gênero e cultura queer na literatura. João Pessoa: UFPB, 2019. p. 9-21.), não é por acaso que grande parte das distopias escritas na contemporaneidade, e mesmo em tempos passados, sejam de autoria de mulheres. Pela perspectiva de Cavalcanti (2002CAVALCANTI, Ildney. A distopia feminista contemporânea: um mito e uma figura. In: Boletim do GT da ANPOLL: ‘A Mulher na Literatura’. Florianópolis: UFSC, 2002. p. 247-262.), a opressão de gênero é a fonte de conflito das ficções distópicas feministas, as quais utilizam o princípio distópico justamente para construir críticas negativas ao patriarcado. Assim, muitas dessas obras apropriam-se de uma política sexual e de discursos machistas que perpetuam o estereótipo de objeto sexual e representam as vivências de mulheres perante a supremacia masculina, de modo a admoestar esses aspectos tão intrínsecos à cultura humana. De acordo com Cavalcanti (2005CAVALCANTI, Ildney. “You’ve Been Framed”: o corpo da mulher nas distopias feministas. In: BRANDÃO, Izabel (org.). O corpo em revista: olhares interdisciplinares. Maceió: Edufal , 2005. p. 83-96. ):

[d]e modo geral, as distopias feministas representam ficcionalmente “a redução das mulheres” nas malhas sociais, sua transformação em bodes expiatórios através de uma política sexual de opressão de subjetividades femininas materializadas através da institucionalização de confinamento espacial, produção de trabalho escravo, reprodução controlada, proibição da autonomia nas expressões subjetivas (verbais ou outras), execução ritualística e abuso sexual. (CAVALCANTI, 2005CAVALCANTI, Ildney. “You’ve Been Framed”: o corpo da mulher nas distopias feministas. In: BRANDÃO, Izabel (org.). O corpo em revista: olhares interdisciplinares. Maceió: Edufal , 2005. p. 83-96. , p. 84-85).

Na maioria das distopias feministas, além das questões relacionadas às mulheres e suas condições de opressão, a exploração da natureza é uma pauta constante. Dessa forma, é inevitável o encontro com uma visão ecocrítica feminista1 1 Brandão e Lourenço (2019) alertam que a ecocrítica feminista não lida apenas com textos feministas ou ecofeministas, mas sua proposta é aberta e democrática, de caráter interdiscplinar, visto que colabora com a redefinição de certos conceitos em suas diferentes acepções e diálogos, exemplificados por meio do conceito de natureza pelas autoras. - ou então, simplesmente, ecofeminista, para analisar essas narrativas de um ponto de vista o qual relacione a opressão e a exploração. Tendo em vista a existência de variadas discussões a respeito do uso conceitual de ecofeminismo, considerando que inicialmente ele foi representado por uma base essencialista, é importante explicar e justificar seu uso. Muitas feministas e ecofeministas empenharam-se em revitalizar o termo, tal como Greta Gaard, estudada por Izabel Brandão (2017BRANDÃO, Izabel. Greta Gaard e a busca de rumos mais feministas para os estudos ecocríticos. In: BRANDÃO, Izabel et al. (org.). Traduções da cultura: perspectivas críticas feministas. Maceió: Edufal, Florianópolis: Editora da UFSC, 2017. p. 819-825.; 2020BRANDÃO, Izabel. Literatura e ecologia: vozes feministas e interseccionais. Ártemis, v. XXIX, n. 1, p. 2-13, 2020.), autora que defende o uso do ecofeminismo em seu sentido interseccional, distanciando-o de qualquer perspectiva essencialista. Por isso, na contemporaneidade, aponta Brandão (2020BRANDÃO, Izabel. Literatura e ecologia: vozes feministas e interseccionais. Ártemis, v. XXIX, n. 1, p. 2-13, 2020.), “o uso conceitual de ecofeminismo pode ser intercambiado com ecocrítica feminista” (BRANDÃO, 2020BRANDÃO, Izabel. Literatura e ecologia: vozes feministas e interseccionais. Ártemis, v. XXIX, n. 1, p. 2-13, 2020., p. 3), visto que só assim será possível realinhar o sentido dos termos e promover o afastamento da noção de “essência feminina”, a qual, atualmente, é ultrapassada.

Nesse âmbito dos estudos ecocríticos e ecofeministas, há outra discussão que vem se tornando cada vez mais emergente e urgente: o Antropoceno. Termo proposto por Crutzen e Stoermer (2000CRUTZEN, Paul; STOERMER, Eugene. The “Anthropocene”. IGBP newsletter, n. 41, 2000.) para denominar a época geológica atual, o Antropoceno consiste na noção de que a atividade humana afeta o planeta em uma escala global e que, por isso, a humanidade é quem desempenha o papel central nessa nova era. Em termos de reflexão, o conceito de Antropoceno ainda é muito recente, mas a produção de estudos acerca do tema é cada vez mais comum. Sonia Torres (2017TORRES, Sonia. O antropoceno e a antropo-cena pós-humana: narrativas de catástrofe e contaminação. Ilha do Desterro, v. 70, n. 2, p. 93-105, 2017.) observa que as mais diversas áreas apropriam-se do termo para discutir sobre o impacto da atividade humana no planeta, ao perceberem que a atmosfera não é a única atingida.

Não é apenas a geologia que está em estado de perturbação. O conceito de antropoceno serve para designar um momento histórico mundial: tudo que é construído pelos humanos e que interfere nos sistemas naturais, engloba, em grande medida, as mudanças paradigmáticas que estamos testemunhando [...] e nos lança em uma seara de incerteza tanto científica quanto discursiva (TORRES, 2017TORRES, Sonia. O antropoceno e a antropo-cena pós-humana: narrativas de catástrofe e contaminação. Ilha do Desterro, v. 70, n. 2, p. 93-105, 2017., p. 94).

No entanto, em artigo mais recente, Torres (2021TORRES, Sonia. Distopia no Antropoceno, ou re(a)presentando o interregno. Gragoatá, v. 26, n. 54, p. 558-587, 2021.) esclarece ser necessário criticar leituras que generalizam a culpa da ação humana, no sentido de culpabilizar a humanidade como um todo pela crise ecológica atual e não apenas pelos detentores do poder dos meios de produção de energia. A humanidade não é uma “corporação abstrata”, defende a autora (TORRES, 2021TORRES, Sonia. Distopia no Antropoceno, ou re(a)presentando o interregno. Gragoatá, v. 26, n. 54, p. 558-587, 2021.), assim como o acesso à energia não é igual para todos os seus produtores. Diante dessas considerações de Torres, há outro ponto a ser destacado. Alguns teóricos acreditam que essa nova era geológica teve início com o surgimento do sistema capitalista, pois foi o seu modo de produção que forneceu as ferramentas necessárias para a humanidade explorar e dominar a natureza. Assim, o termo Capitaloceno pareceu mais viável para esses teóricos, como é o caso de Jason Moore (2016MOORE, Jason. The Anthropocene or Capitolocene?: Nature, History, and the Crisis. Oakland: PM Press, 2016.), a qual concebe a “Era do Capital” no sentido de que o capitalismo organiza a natureza, como uma ecologia mundial capitalista, situada e multiespécies.

Muitos termos foram cunhados para designar a nova era geológica. Além desses mencionados, há também o Chthuluceno, de Donna Haraway (2016bHARAWAY, Donna. Staying with the Trouble: Making kin in the Chthuluceno. Durham: Duke UP, 2016b.), do qual trataremos oportunamente neste estudo. O fato é que, independente de conceituações, essa discussão está presente nas mais variadas áreas, e a literatura, sem dúvida, é uma delas. As incertezas são muitas na idade antropocênica, e a literatura oferece, mais uma vez, um espaço para a especulação e a experimentação das possibilidades de ocorrência, convidando leitoras e leitores a revisitar de forma crítica seus discursos e crenças e a refletir sobre seu papel em um mundo em franca caminhada para a destruição, precisamente aquilo que Cavalcanti (2002CAVALCANTI, Ildney. A distopia feminista contemporânea: um mito e uma figura. In: Boletim do GT da ANPOLL: ‘A Mulher na Literatura’. Florianópolis: UFSC, 2002. p. 247-262.) acredita ser a potência das distopias feministas. Por meio desse locus literário especulativo, o qual oferece a possibilidade de confronto entre realidade e ficção, desdobram-se possibilidades de crítica e resistência em uma sociedade dominada pelo modelo de exploração capitalista, responsável pela aniquilação dos espaços representados nas obras literárias, utilizando-se das mesmas lógicas de exploração e dominação na realidade.

As especulações ficcionais objetivam, portanto, retratar os rumos que a sociedade poderá tomar caso mantenha os modos de exploração e produção, ou até mesmo caso perpetue a mesma relação com a tecnologia, por exemplo. Em consonância com esse raciocínio, Hilário (2013HILÁRIO, Leomir Cardoso. Teoria Crítica e Literatura: a distopia como ferramenta de análise radical da modernidade. Anuário de Literatura, v. 18, n. 2, p. 201-215, 2013. ) compreende o romance distópico como um aviso de emergência, ou seja, uma chamada de atenção na tentativa de controlar, ou então, pelo menos, inibir o acontecimento perigoso e seus efeitos. Dessa forma, pode-se detectar o potencial crítico das narrativas distópicas por meio dessas imagens produzidas nesse gênero literário. Essas imagens que, quando confrontadas com a realidade, podem proporcionar efeitos de preocupação e/ou até mesmo de resistência. As distopias, especialmente as feministas, ao elaborarem caricaturas sobre as relações dos seres humanos com outros animais, com a natureza, ou até mesmo sobre as próprias relações humanas, desencadeiam reflexões importantes sobre a necessidade urgente de a humanidade modificar o seu modo de produção.

Percebe-se então o quanto o encontro entre as ficções distópicas feministas e o debate sobre o Antropoceno são inevitáveis, dada a semelhança entre as formas de organização sociais presentes nas distopias e a conjuntura global de superexploração dos recursos naturais, do neoliberalismo constituído pela individualização dos sujeitos e pelo livre consumo. As consequências, sobretudo ambientais, desencadeadas a longo prazo por essa estrutura econômica e social podem ser ainda desconhecidas, no entanto, as distopias feministas oferecem ferramentas ecocríticas para observação dessa realidade.

Nesse sentido, Deuses de Pedra (2012WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra. Tradução de Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2012.), da escritora britânica Jeanette Winterson, é uma distopia feminista que constrói uma narrativa antropocênica, nos parâmetros acima elencados. Publicado originalmente em língua inglesa, com o título The Stone Gods, em 2007, o romance apresenta cenários degradados pela constante e catastrófica intervenção humana na natureza em diferentes espaços-tempo, enquanto, paralelamente, narra o patriarcado e o capitalismo em suas piores faces. Dividida em quatro partes inter-relacionadas - “O Planeta Azul”, “Ilha de Páscoa”, “Depois da Terceira Guerra” e “Cidades dos Escombros” -, as quais representam universos e temporalidades alternativas, a obra retrata o Antropoceno e suas urgências como um fio condutor de uma história que se repete incansavelmente, tendo sempre como resultado a destruição do planeta causada pelos humanos. Com o objetivo de romper esse ciclo de destruição, presente em cada uma de suas partes, Deuses de Pedra configura-se, segundo Mariana Penteado (2020PENTEADO, Marina P. A ficção climática de Jeanette Winterson e a construção de uma memória do antropoceno em Deuses de Pedra. Revista Porto das Letras, v. 06, n. 4, p. 168-181, 2020.), em uma ficção climática responsável por construir uma espécie de memória do Antropoceno.

Sendo assim, este artigo propõe uma análise da distopia feminista de Winterson, utilizando as lentes analíticas da ecocrítica feminista e o Antropoceno como uma “chave de leitura” (TORRES, 2017TORRES, Sonia. O antropoceno e a antropo-cena pós-humana: narrativas de catástrofe e contaminação. Ilha do Desterro, v. 70, n. 2, p. 93-105, 2017., p. 102), com o objetivo de refletir sobre a crítica às relações de opressão capitalistas e patriarcais manifestadas na obra, assim como de interpretar as possibilidades de resistência que constrói para desestabilizar essas configurações sociais e culturais de ordens vigentes pautadas na exploração e na dominação. Tendo em vista que tais relações de poder são extremamente violentas com as mulheres e as aprisionam em papéis estipulados por um imaginário androcêntrico e misógino, privando-as de sua plena liberdade e emancipação, a análise dedica-se especialmente às personagens mulheres, visando discutir a respeito dos papéis que estas desempenham e os lugares por elas ocupados, pois é por meio dessas figuras que são elaboradas as possíveis manifestações de resistência apresentadas pela narrativa.

Da crítica à resistência: Deuses de Pedra e a obra como manifesto WINTERSON, 2012WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra. Tradução de Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2012.

Deuses de Pedra tem início com a seção “O Planeta Azul”, a qual dá conta da história de Orbus, “um planeta que está se tornando hostil à vida humana após séculos de hostilidade da vida humana para com o planeta” (WINTERSON, 2012WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra. Tradução de Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2012., p. 91). Em Orbus, a tecnologia e a ciência são incrivelmente avançadas, permitindo mutações de DNA, adaptações e reversões genéticas, além da extensa criação de robôs desenvolvidos para diversas tarefas, e mesmo assim, em cinquenta anos será impossível habitar o planeta devido ao esgotamento de recursos naturais, os quais nenhuma tecnologia pode substituir. No entanto, foi encontrado um novo mundo, o Planeta Azul, perfeito para a vida humana em todos os níveis e que, com o tempo, será o novo lar dos habitantes ricos de Orbus. Os pobres continuarão no planeta inabitável.

Billie Crusoe, narradora e protagonista, é uma figura de resistência que não acredita no sistema e o acha “repressivo, corrosivo e antidemocrático” (WINTERSON, 2012WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra. Tradução de Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2012., p. 69). Devido ao seu posicionamento crítico, é constantemente perseguida e julgada, sobretudo por morar em um sítio no meio da Cidade Tecnológica e também por rejeitar passar pela adaptação genética, procedimento para interromper o envelhecimento do corpo. Entretanto, o preço é alto para uma mulher que escolhe viver de acordo com seus parâmetros e ousa resistir a um sistema opressor. Billie é mandada para o Planeta Azul em uma missão de reconhecimento, porém, o objetivo é sua permanência definitiva por lá, mesmo que o lugar ainda não esteja pronto para abrigar humanos.

Apesar de denominar-se como cientista, Billie trabalha para o Serviço de Aperfeiçoamento, não para o Científico, e seu trabalho é visitar pessoas e ajudá-las a entender como levar a vida, beneficiando-as e à sociedade como um todo, “uma mistura de enfermeira distrital com corretor de seguros” (WINTERSON, 2012WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra. Tradução de Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2012., p. 17). A escolha dos termos não pode passar despercebida: uma enfermeira distrital tem como tarefa cuidar da saúde de pacientes em suas casas, em uma determinada comunidade, e fornecer ajuda educacional. Configura-se, portanto, como um trabalho doméstico, o qual denota paciência e zelo. Já um corretor de seguros, ao lidar com vendas e com o mercado, precisa ser frio e racional. Dessa forma, é muito significativo o uso do feminino para designar a primeira profissão e do masculino para a segunda. É intrínseca ao pensamento patriarcal e à organização social-econômica capitalista a noção de que os trabalhos domésticos e pessoais, assim como a emoção e o envolvimento direto, pertencem exclusivamente às mulheres, enquanto as atividades impessoais, ligadas à racionalidade, são destinadas aos homens.

Silvia Federici (2019FEDERICI, Silvia. O calibã e a bruxa. São Paulo: Elefante, 2019.) evidencia que essa concepção de trabalhos femininos versus trabalhos masculinos é um traço do capitalismo estabelecido com seu advento. Ao investigar a história das mulheres desde a caça às bruxas, a autora percebeu que o surgimento do capitalismo definiu uma nova estrutura de opressão que desvalorizou a posição social das mulheres e as confinou no espaço doméstico. Nas palavras de Federici, “[...] a discriminação contra as mulheres na sociedade capitalista não é o legado de um mundo pré-moderno, mas sim de uma formação do capitalismo, construída sobre diferenças sexuais existentes e reconstruída para cumprir novas funções.” (FEDERICI, 2019FEDERICI, Silvia. O calibã e a bruxa. São Paulo: Elefante, 2019., p. 11).

O chefe de Billie, Manfred, representa o homem racional, o qual ocupa uma posição de poder e liderança, “o tipo de homem que nasceu para ir cada vez mais alto: um elevador humano” (WINTERSON, 2012WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra. Tradução de Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2012., p. 15). Manfred silencia e interrompe Billie inúmeras vezes, contraria suas afirmações e banaliza seus problemas, em geral, com uma voz que insinua repressão. As opiniões profissionais de Billie não são ouvidas, mas sua vida pessoal torna-se pauta recorrente nos embates com Manfred. Ele a chama de "excêntrica", “negativa” e de “problema”, questiona suas escolhas, julga seu modo de vida e despeja ordens que não competem ao seu trabalho, como “quero que apareça bem bonita” (WINTERSON, 2012WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra. Tradução de Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2012., p. 37). Em certo momento, quando contrariado, chega ao nível de abuso físico2 2 “Manfred segurou meu braço com força surpreendente e ergueu-o para a luz.” (WINTERSON, 2012, p. 68) .

Billie é vítima de regras sociais estabelecidas há séculos. Federici (2019FEDERICI, Silvia. O calibã e a bruxa. São Paulo: Elefante, 2019.) evidencia que na transição do feudalismo para o capitalismo surgiu essa nova divisão sexual do trabalho, a qual consolidou a diferença entre homens e mulheres em todos os âmbitos. Criou-se, então, um imaginário androcêntrico pautado no masculino enquanto medida de tudo, assim como ficou

estabelecido que as mulheres eram inerentemente inferiores aos homens - excessivamente emocionais e luxuriosas, incapazes de se governar - e tinham que ser colocadas sob o controle masculino. Da mesma forma que ocorreu com a condenação da bruxaria, o consenso sobre essa questão atravessava as divisões religiosas e intelectuais [...] todos cooperaram constante e obsessivamente com o aviltamento das mulheres (FEDERICI, 2019FEDERICI, Silvia. O calibã e a bruxa. São Paulo: Elefante, 2019., p. 202).

Outro ponto que Winterson denuncia em sua narrativa é como as mulheres são limitadas a suas funções sexuais e corporais, além de reconhecidas por suas características físicas. Em Orbus, elas não engravidam, pois, com a tecnologia avançada, foram criados úteros artificiais substitutos dos naturais. Em um mundo utópico, isso seria um presente, contudo, em Orbus a lógica é: se as mulheres não reproduzem, então não são necessárias para o sexo. Esse ponto reafirma a condição de passividade dos corpos femininos, os quais não possuem desejo e só realizam o ato sexual em prol da reprodução ou do desejo masculino. De acordo com Billie, o amanhã é desconhecido para as mulheres de seu planeta, pois não possuem mais utilidade sexual.

A distopia problematiza, então, os efeitos nocivos da tecnologia desencadeados pelo capitalismo tardio e a forma como esses efeitos são ainda mais potencializados quando aplicados aos corpos e às subjetividades femininas. Apesar de ser fonte de identidade, o corpo também é para as mulheres um tipo de prisão, pois é o elemento que constitui a condição definitiva de feminilidade. A conhecida tese de Simone de Beauvoir (1970BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: Livro 1: Fatos e Mitos. 4. ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970.), sobre a relação das mulheres com seu corpo ser mais subjetiva, menos naturalizada ou aceita, permite compreender esses aspectos apresentados por Winterson mais profundamente:

A mulher tem ovários, um útero; eis as condições singulares que a encerram na sua subjetividade; diz-se de bom grado que ela pensa com suas glândulas. O homem esquece soberbamente que sua anatomia também comporta hormônios e testículos. Encara o corpo como uma relação direta e normal com o mundo que acredita apreender na sua objetividade, ao passo que considera o corpo da mulher sobrecarregado por tudo o que o especifica: um obstáculo, uma prisão. (BEAUVOIR, 1970BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: Livro 1: Fatos e Mitos. 4. ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970., p. 10)

Com isso, é possível depreender que, dentro desse corpo-prisão, a sujeição das mulheres a determinados padrões e comportamentos funciona de maneira ainda mais efetiva e nociva. A dupla opressão que afeta mulheres de todas as idades - pelo capitalismo e pelo patriarcado - atinge em cheio e destrói o processo de aceitação, normalização ou naturalização do corpo feminino, orgânico e falho. O próprio padrão de beleza, entendido aqui pela visão de Gilles Lipovetsky (1999LIPOVETSKY, Gilles. La tercera mujer: permanencya y revolución de lo femenino. Barcelona: Editorial Anagrama, 1999. ), sempre impôs às mulheres determinados ritos de modificação e emagrecimento dos corpos, de fuga das marcas trazidas pelo envelhecimento e de competitividade feminina, despertando uma hierarquização fundamentada na performatividade do belo vendido pela indústria capitalista, em que mulheres são vistas e aceitas (pelos homens) como mais bonitas enquanto outras são inferiorizadas, despertando um complexo de ódio e inferioridade do próprio corpo. Dessa maneira, o “belo sexo” não se vê belo e passa por ritos constantes de modificação dos corpos.

Na narrativa, as adaptações genéticas permitem suspender o envelhecimento e até reverter a idade do corpo. Sendo assim, envelhecer tornou-se um estigma e, quanto mais jovem o corpo, mais atrativo, principalmente os corpos femininos, que sempre são adaptados antes dos trinta anos. Não se comemoram mais aniversários, pois a idade é irrelevante, comemora-se o dia da adaptação genética. Contudo, todos são iguais e a consequência é a falta de atração entre esses corpos padronizados. Por esse motivo, o sexo com crianças e com pessoas fora desse padrão torna-se objeto de cobiça:

Quem quiser trabalhar no comércio do sexo tem de modificar a forma e o tamanho do corpo. As mulheres gigantes têm grande procura. Os grotescos ganham bom dinheiro. As crianças de menos de 10 anos são chamadas de ‘novilhos’ nessa atividade (WINTERSON, 2012WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra. Tradução de Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2012., p. 32-33).

Esse aspecto elucida o caráter mercadológico, sobretudo do corpo feminino e infantil, o qual, transformado em mercadoria, performa a aparência fetichizada por homens. Essa atividade é predominantemente exercida pelas pessoas que vivem fora da Potência Central, principalmente as vindas do Califado, lugar onde as adaptações genéticas são proibidas. Os habitantes que não pertencem à capital são abandonados pelo governo e vivem à própria sorte nas margens, encontrando, assim, nos serviços sexuais, seu sustento. Tal noção ilustra como as pessoas marginalizadas, que não fazem parte das camadas sociais elevadas, são esmagadas pela lógica das relações de classe. As crianças abusadas e exploradas também vêm do Califado e são compradas pelos habitantes da capital. “Não fazemos isso com crianças nascidas na Potência Central porque (a) é ilegal e (b) somos civilizados” (WINTERSON, 2012WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra. Tradução de Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2012., p. 33), ironiza Billie.

Na obra, a pedofilia é cometida por homens, pois são eles que preferem figuras jovens, com aspecto puro e virginal. Por isso, na adaptação genética, as mulheres sempre optam pelas idades mais baixas possíveis. Uma das personagens, Rosinha McMurphy, deseja fazer a regressão genética aos doze anos, pois seu marido pedófilo é apaixonado por uma cantora mirim dessa idade. Para ele, sua esposa é velha e não o satisfaz mais, então busca prazer com crianças. Rosinha não se importa, apenas quer ser desejada novamente pelo marido, porque se sente abandonada, pois mesmo “reduzindo a vagina”, que ficou “apertadinha como uma tampinha de garrafa” (WINTERSON, 2012WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra. Tradução de Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2012., p. 88), o marido não a deseja. Para fazer a reversão genética, Rosinha levará o caso ao tribunal, mas antes é preciso da aprovação do marido, evidenciando mais uma vez a mulher como propriedade tutelada pelo homem, impedida de decidir sozinha sobre seu próprio corpo.

Como já mencionado, a preceituação de um padrão de beleza é mais uma forma de aprisionamento das mulheres, o qual condiciona as suas escolhas de maneira que não consigam se desvencilhar das amarras patriarcais, além de fortalecer o capital. Winterson faz uma caricatura apurada desse princípio, ao demonstrar que os corpos de mulheres são vistos como produtos a serem consumidos por homens. Spike, por exemplo, é uma robô sapiens que performa o gênero feminino e, apesar de ter a inteligência mais avançada que existe, seu corpo robótico é usado como instrumento sexual de homens durante uma viagem de reconhecimento ao Planeta Azul. No diálogo abaixo, no qual Billie entrevista Spike para uma matéria sobre sua viagem exploratória ao novo mundo, fica clara a ordem de beleza prescrita para as mulheres em benefício masculino:

- Spike, você é uma robô, mas por que é uma robô tão extraordinariamente bonita? Quero dizer, é necessário ser a máquina mais sofisticada já construída e ao mesmo tempo ter a aparência de estrela do cinema?
Ela responde, simplesmente:
- Eles acharam que ia ser bom para os rapazes durante a missão.
[...]
- Mas você era o tripulante cientificamente mais avançado.
- Mas também sou mulher.
[...]
- Então você fez sexo com os astronautas durante três anos?
- Fiz. Gastei três vaginas de silicone

Após esse diálogo, mais uma vez Manfred retoma seu posto de homem opressor, interditando a fala das mulheres a esse respeito, alegando que não é importante para a entrevista. Essa postura reforça a ideia de que discutir sobre as tiranias sofridas pelas mulheres em seu cotidiano não é relevante para um homem favorecido pelo sistema patriarcal. Todo o discurso de Billie é silenciado por isso, afinal seus ideais não correspondem às estruturas sistêmicas instituídas. A personagem representa na narrativa as mulheres contrárias a uma ordem que sustenta a diferença de gênero, de classe e raça, constantemente caladas, no entanto, principalmente quando tentam estimular a oposição em outras pessoas.

Billie também simboliza a essência da sororidade. Com seu olhar crítico e empático, percebe o quanto esse acontecimento relatado por Spike é perturbador, por isso, ela questiona-se e reflete: “Seria como uma espécie de pin-up da época da guerra? Um antidepressivo vivo? Algo como a beleza é a verdade e a verdade é a beleza?” (WINTERSON, 2012WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra. Tradução de Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2012., p. 45). As Pin-ups, tal como sugere a personagem, são posters com fotos sensuais de mulheres, na maioria das vezes em ambiente doméstico, outrora pendurados na parede de soldados em guerra, proporcionando assim sua admiração por parte desses homens. Ana Paula Oliveira Barros (2018BARROS, Ana Paula O. A garota Pin-Up: objetificação e sexualização da mulher na contemporaneidade. In: Seminário Corpo, Gênero e Sexualidade, 7, 2018. Rio Grande. Rio Grande, 2018. Disponível em: https://7seminario.furg.br/images/arquivo/335.pdf . Acesso em: 10 jan. 2021.
https://7seminario.furg.br/images/arquiv...
), em seu estudo sobre o tema, identifica que as Pin-ups no período inicial de sua produção, de certa forma, representavam a libertação feminina das repressões sexuais, contudo, o seu uso como entretenimento masculino, acabou reforçando

a estigmatização do papel da mulher na sociedade contemporânea ao representarem imagens criadas por homens e serem consideradas objetos sexuais, possibilitando a popularização da sensualidade feminina como um produto de consumo (BARROS, 2018BARROS, Ana Paula O. A garota Pin-Up: objetificação e sexualização da mulher na contemporaneidade. In: Seminário Corpo, Gênero e Sexualidade, 7, 2018. Rio Grande. Rio Grande, 2018. Disponível em: https://7seminario.furg.br/images/arquivo/335.pdf . Acesso em: 10 jan. 2021.
https://7seminario.furg.br/images/arquiv...
, p. 1-2).

O corpo de Spike não é usado como objeto de satisfação sexual masculina por ser uma máquina e sim porque é um corpo feminino. A robô sapiens personifica a mulher acorrentada a um padrão de beleza que a torna própria para o consumo dos homens, desvalorizando suas características intelectuais. Capitão Handsome, o homem que comanda a viagem para o Planeta Azul, da qual Billie faz parte, assim como coordenou a primeira excursão oficial de reconhecimento, afirma que ama Spike porque “ela nunca fica gorda, nunca fica bêbada, nunca desiste, desde que haja sol.” (WINTERSON, 2012WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra. Tradução de Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2012., p. 104). Ou seja, ama o símbolo de mulher perfeita moldada pelas mãos do patriarcado e transformada em produto pelo capital.

Federici (2019FEDERICI, Silvia. O calibã e a bruxa. São Paulo: Elefante, 2019.) aponta: os corpos das mulheres sempre foram espaços privilegiados para o exercício das relações de poder. A autora italiana traça um paralelo entre seus corpos e a fábrica para explicar que ambos são terrenos de exploração e resistência, desde o estabelecimento do corpo feminino como propriedade do Estado e dos homens e, forçadamente, passou a ser um instrumento produtor e acumulador de trabalho. Ela compara: “o corpo é para as mulheres o que a fábrica é para os homens trabalhadores assalariados” (FEDERICI, 2019FEDERICI, Silvia. O calibã e a bruxa. São Paulo: Elefante, 2019., p. 34). Além disso,

[...] ao negar às mulheres o controle sobre seus corpos, o Estado privou-as da condição fundamental de sua integridade física e psicológica, degradando a maternidade à condição de trabalho forçado, além de confinar as mulheres à atividade reprodutiva de um modo desconhecido por sociedades anteriores (FEDERICI, 2019FEDERICI, Silvia. O calibã e a bruxa. São Paulo: Elefante, 2019., p. 181-182).

A maternidade, portanto, configura-se como um trabalho legitimador da posição das mulheres na sociedade, sob a condição de ser adequada aos padrões morais pré-estabelecidos. Todavia, a paternidade não é uma preocupação do Estado capitalista, na verdade, a ação paternal não é exigida, pois é a maternal que irá criar a mão de obra necessária para esse sistema explorar. Na terceira parte do livro em questão, é possível identificar certa relação com essa temática da maternidade e paternidade, por meio dos pais biológicos de Billie da Pós-3G3 3 As duas últimas seções do livro acontecem no mesmo espaço-tempo e narram um mundo que está sendo reconstruído após a terceira guerra mundial e é governado por uma corporação, a Mais. . A narradora relembra todas as memórias compartilhadas com a mãe, inclusive de quando estava no útero, para contar a história de uma mulher nascida durante a Segunda Guerra Mundial, engravidada na adolescência, e impossibilitada de ficar com sua filha, apesar do seu desejo. A vontade feminina aparece novamente ofuscada pelo domínio masculino, pois o pai de Billie prometeu se casar com sua mãe apenas se ela doasse o bebê. A dependência emocional e financeira manipula a mulher a tomar a decisão que exime o homem da responsabilidade paternal, exemplificando uma violência psicológica a qual deixa marcas profundas.

Ainda dentro desse tema, há outra passagem significativa nessa mesma seção, a qual faz referência à banalização do sofrimento causado nas mulheres em decorrência do parto. Billie recorda o momento brutal de seu nascimento e a violência que sua mãe, ainda adolescente, sofreu. A mulher deu à luz em cima de uma cama quebrada, teve sua filha puxada do ventre como uma bezerra e havia tanto sangue, tamanho foi o ferimento, que o lençol teve de ser queimado. Após o parto, todas as personagens presentes agiram normalmente, como se a mulher não tivesse quase morrido para trazer ao mundo uma filha que logo seria tirada dela.

Winterson faz de sua obra um palco de denúncia para os mais variados tipos de violência que sofrem os corpos das mulheres. Outro exemplo expressivo encontra-se na segunda parte, “Ilha de Páscoa”, onde os nativos realizam um determinado ritual, no qual as mulheres são agredidas repetidamente por homens e, em seguida, expulsas do local onde eles terminam o ritual, que consiste em derrubar a última árvore existente na ilha. Esse episódio possibilita comprovar, mais uma vez, que a violência encontra eco majoritariamente nos corpos femininos há séculos. Constitui, também, o único momento no qual as mulheres aparecem nesse fragmento narrativo, deixando claro quais eram seus papéis nessa sociedade em processo de colonização e que vive em constante guerra: instrumentos manipulados por homens e condicionados por um poder supremo.

Assim como na primeira parte, nessa também é representado um poder totalitário e controlador que é muito mais violento para as mulheres. De fato, essa estrutura é apresentada em todas as seções do livro. Percebe-se, então, com base nessas explanações, que a distopia feminista de Winterson, ao representar ficcionalmente os papéis que as mulheres desempenham e os lugares que ocupam em uma sociedade distópica de domínio patriarcal e de ordem social-econômica capitalista, denuncia como essa estrutura de relações de poder acaba violentando e oprimindo as mulheres nas mais diversas instâncias. Antes, contudo, de refletir sobre as possibilidades de resistência que a obra apresenta, é preciso dar atenção a algumas outras manifestações críticas presentes em Deuses de Pedra.

A primeira delas refere-se aos processos colonizadores e sua intrínseca característica agressiva tanto com a natureza, quanto com os nativos desses espaços colonizados. A seção número dois do livro constitui sua trama em torno das visitas europeias e suas tentativas colonizadoras na Ilha de Páscoa. Fazendo referência a alguns fatos históricos sobre o local, a narrativa realiza uma releitura dos diários do Capitão Cook, quando visitou a Ilha de Páscoa no século XVIII, e conta a história de Billy, um tripulante da embarcação de Cook que é deixado para trás. Ficando à mercê dos nativos, Billy é salvo por Spikers, um descendente europeu que vive na ilha. Além de construírem um relacionamento amoroso, as personagens lidam diretamente com a disputa travada entre as duas tribos que vivem no local.

Quando Billy chega à ilha, fica surpreso com a pouca vegetação, o baixo número de árvores e moitas e a falta de suprimentos naturais próprios para humanos. Tendo em vista os fatos históricos, acredita-se que a Ilha de Páscoa começou a ser povoada no século VIII por habitantes de outros territórios da Polinésia. É através da ocupação desses povos que a vegetação do lugar começa a declinar, especialmente pela implantação de técnicas agrícolas e ocorrência de pragas animais, mas também pela guerra civil que de fato ocorreu, suscitada pela disputa de poder entre dois grupos habitantes. Na narrativa de Winterson, a qual revisita essa história, Billy conta que, antigamente, a ilha era rica naturalmente, porém, com a chegada dos Ancestrais, que ergueram casas e lugares de culto, tudo mudou:

A madeira era usada para o fogo e para a construção e era preciso haver terra para as plantações de bananas e cultivos diversos. As florestas de palmeiras, tão espessas que era necessário andar de lado para atravessá-las, foram derrubadas, uma a uma, até que pouco a pouco os pássaros marinhos já não pousavam na ilha e a chuva já não caía, o solo se enfraquecia e esfarelava transformando-se em poeira vermelha onde não era possível plantar coisa alguma (WINTERSON, 2012WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra. Tradução de Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2012., p. 157).

A derrubada de árvores também acontece por outro motivo: para a construção dos gigantes deuses de pedra, os ídolos adorados pelos habitantes, era preciso que trenós e jangadas de madeira transportassem as pedras necessárias, além do próprio trabalho de cozimento e escultura, o qual requer uma grande quantidade de madeira. Assim, pelas suas crenças religiosas, esse povo destruiu a natureza de forma irreversível. Embora curta, essa seção do livro metaforiza de forma clara como a relação dos humanos com a natureza sempre foi pautada em benefício próprio e como sua interferência no ambiente natural afeta muito além de sua própria espécie, uma referência clara ao Antropoceno.

Considerando o fato de, ao longo da obra, as personagens lerem partes do próprio romance mediante um manuscrito encontrado e, também, o fato de as lembranças de algumas figuras serem recordadas por outras, Penteado (2020PENTEADO, Marina P. A ficção climática de Jeanette Winterson e a construção de uma memória do antropoceno em Deuses de Pedra. Revista Porto das Letras, v. 06, n. 4, p. 168-181, 2020.) afirma: “Deuses de Pedra fala sobre a memória” (PENTEADO, 2020PENTEADO, Marina P. A ficção climática de Jeanette Winterson e a construção de uma memória do antropoceno em Deuses de Pedra. Revista Porto das Letras, v. 06, n. 4, p. 168-181, 2020., p. 170). Então, ao colocar esse fragmento memorialístico em sua narrativa, Winterson demonstra como os humanos falham repetidamente e não modificam suas ações, continuando a agir da mesma forma. O enredo presente na primeira seção é assertivo nesse sentido. Com Orbus em vias de destruição, seus habitantes vão em busca de um novo planeta para colonizar. Eles invadem esse novo mundo, acreditando que estavam simplesmente de mudança. Com a intenção de torná-lo apto para sua moradia, iriam então destruir os monstros desse território de maneira “humanizada”, “com a possível exceção da captura de interesse científico de uma ou duas espécies para o Zoomuseu” (WINTERSON, 2012WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra. Tradução de Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2012., p. 13).

Dessa forma, assim como fizeram todos os colonizadores, os novos ocupantes do Planeta Azul provavelmente também marcariam aquele território de modo a impactar a sua ecologia, disputando violentamente o espaço com as outras espécies. Spike acredita ser possível ir até o planeta virgem, cheio de recursos naturais, e desenvolver uma sociedade de baixo impacto, depois de aprenderem com os erros cometidos no passado. No entanto, Billie pondera que essas pessoas já estão acostumadas com a vida que possuem e irão levar seus hábitos para esse lugar, transformando-o. Logo, o modo pelo qual a colonização é abordada ao longo da obra permite compreender como essa prática é mais uma ação humana que, visando ao crescimento econômico e ao progresso, agride o planeta em uma escala global.

Assim, a crítica ao colonialismo presente em Deuses de Pedra está intrinsecamente atrelada à crítica ao capitalismo, pois é o próprio movimento de colonização que intensifica o seu desenvolvimento. Conforme destacado anteriormente, a narrativa oferece diversas faces da aniquilação causada pela luta de classes constituída, sobretudo, nas relações de exploração de raça e gênero. Ao desenvolver tais reflexões, a escritora elabora um cenário de devastação da natureza que aponta para a especulação em relação aos rumos do desastre ambiental ocasionado e legitimado por uma política socioeconômica capitalista neoliberal.

De acordo com Dardot e Laval (2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução de Mariana Echalar. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016.), o neoliberalismo surge como uma reconfiguração do capitalismo que, em virtude de suas inúmeras crises, de tempos em tempos necessita de uma nova roupagem. Os autores apontam para o neoliberalismo como uma estratégia de individualização e estilhaçamento do sentimento de pertencimento de classe, o que corrobora para a contenção de processos de resistência e modificação do sistema, bem como de percepção das tragédias sociais e ambientais.

Ao desenhar uma caricatura tão vigorosa dos problemas ambientais da Terra atualmente, a autora faz uma crítica ao crescimento do neoliberalismo, o qual favorece a exploração dos recursos naturais por parte das empresas, em virtude de o Estado não ter preocupação em garantir os mecanismos legais que controlariam a produção, pois implicaria um declínio de lucro, indo contra os objetivos do liberalismo econômico. A forma como os governos elencados na obra são controlados por corporações deixa evidente o quão problemático é quando os ideais econômicos são os critérios para elaborar as políticas sociais.

Articular esse processo de individualização, apagamento do sentimento de pertencimento de classe e incentivo ao livre consumo é fundamental para a compreensão da especulação de Winterson, visto que, nela, o capital, representado pela empresa MAIS4 4 A MAIS está presente em todas as seções do livro, a não ser na “Ilha de Páscoa”. Na primeira parte, é uma empresa que financia o governo, a Potência Central, e age através dele. Nas duas últimas seções, ela tornou-se o próprio governo: “[o] governo acabou. ‘Sem MAIS Guerras’ tornou-se o slogan para um novo tipo de empresa global” (WINTERSON, 2012, p. 190). , é o principal agente de controle dos sujeitos, do incentivo ao consumo desenfreado em razão do lucro e da devastação da natureza. A MAIS, por meio de seu monopólio, deixava à disposição de todos os inúmeros produtos e possibilidades. Imersos na ilusão da liberdade de escolha produzida pelo capitalismo neoliberal, os sujeitos consumiam sem perceber os efeitos nocivos causados pela grande indústria à ordem social, ambiental e política:

A MAIS tem sido a mais agressiva das empresas mundiais no mercado, desrespeitando as regulamentações e aumentando as emissões de carbono. Seus advogados extremamente bem pagos combateram os acordos antipoluição, as tarifas e os subsídios, tudo o que pudesse parecer um freio aos gastos de consumo. Segundo a MAIS, as viagens aéreas não deveriam ter limitações, cada família podia ter seis automóveis e a TV seiscentos canais, qualquer censura devia ser abolida, assim como os sindicatos, e o governo não tinha por que interferir no comércio. (WINTERSON, 2012WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra. Tradução de Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2012., p. 189)

O trecho destacado denota a essência das consequências do livre mercado e os impactos que a falta de um plano socioambiental e político podem desencadear. Enquanto a MAIS, que figura na narrativa como uma representação do mercado, enriquece e produz alienação, os sujeitos consomem, e os recursos naturais se esgotam, na mesma medida em que a vida se torna insustentável. Outro ponto fundamental é o amparo jurídico-legal apontado pela autora, demonstrando que, na ordem do Estado capitalista-jurídico, os homens detêm não apenas os meios de exploração e lucro, mas também de legitimação de suas práticas por meio do controle das leis. Ou seja, esgotar todos os recursos que garantem a possibilidade de uma vida sustentável não é sequer crime, pois as leis também alicerçam a política do lucro acima da vida.

Esse processo acrítico de consumismo desenfreado só acontece porque a produção de entretenimento era voltada ao marketing e à propagação de ideias favoráveis à MAIS e ao governo da Potência Central. Podemos elencar como exemplo dessa prática no romance as propagandas relacionadas ao Planeta Azul e a possibilidade de vida nesse novo lugar. As lideranças políticas e as grandes empresas compactuavam, para que a população de Orbus aderisse à migração ao Planeta Azul, sem avaliar as consequências para os demais habitantes:

Da maneira que tem sido secretamente planejado, deixaremos este planeta em decomposição ao Califado e ao Pacto SinoMosco, que então poderão aniquilar-se com suas bombas enquanto os pacíficos habitantes da Potência Central transferem a civilização para o novo mundo (WINTERSON, 2012WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra. Tradução de Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2012., p. 15).

Orbus está dividido em três espaços, os quais representam um contraste de classes e a exclusão dos que vivem às margens. Enquanto os habitantes da Potência Central gozam da possibilidade de sobreviver em outro planeta e reproduzem as prerrogativas de “Guerra Zero” vendidas pelo governo, os demais habitantes de Orbus terão de lutar por sua sobrevivência em um planeta em decomposição. Aqueles da Cidade dos Escombros, por exemplo, vivem marginalizados em um lugar onde “não existe proteção: não há seguro, nem ajuda, nem apoio, nem polícia.” (WINTERSON, 2012WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra. Tradução de Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2012., p. 210). Essa representação na narrativa reflete um sintoma do capitalismo, que prioriza o lucro acima da vida e reproduz uma série de relações de opressão. Assim como na realidade, a ficção também constata a luta de classes como motor da história (MARX; ENGELS, 1998MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Tradução de Luiz Cláudio de Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes, 1998.) e condena a exploração de uma classe sobre a outra para sustentar o capitalismo mercadológico.

Todos os pontos até aqui analisados demonstram como a distopia de Winterson é constituída por uma pluralidade de manifestações críticas. Configurando-se nitidamente como feminista, visto que critica o status quo, enquanto revisita uma tradição literária centrada no masculino e, assim, contribui para a politização dos corpos das leitoras e leitores (DEPLAGNE; CAVALCANTI, 2019CAVALCANTI, Ildney; DEPLAGNE, Luciana C. Apresentação. In: CAVALCANTI, Ildney; DEPLAGNE, Luciana C. (org.). Utopias sonhadas/distopias anunciadas: feminismo, gênero e cultura queer na literatura. João Pessoa: UFPB, 2019. p. 9-21.), a narrativa evidencia como a violenta intervenção humana na natureza não causa apenas crises ambientais, mas também políticas, econômicas e sociais. É o Antropoceno claramente representado: caracterizado por ser um período marcado por dúvidas, a única certeza que parece oferecer é a ocorrência do apocalipse.

No entanto, Donna Haraway (2016aHARAWAY, Donna. Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes. ClimaCom Cultura Científica: pesquisa, jornalismo e arte I, ano 3, n. 5, p.139-146, 2016a.) sustenta que existem formas de evitar as catástrofes afirmadas pelo Antropoceno, pois o considera mais um “evento-limite” do que uma época geológica, por isso é viável, por meio de práticas colaborativas, tornar esse momento o mais curto possível (HARAWAY, 2016aHARAWAY, Donna. Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes. ClimaCom Cultura Científica: pesquisa, jornalismo e arte I, ano 3, n. 5, p.139-146, 2016a.). De acordo com sua visão, é problemático colocar o homem (antropos) como centro, atribuindo-lhe um papel de protagonista e provocando uma generalização. Além disso, problematiza-se também a impossibilidade de vislumbrar um futuro, visto que a afirmação do apocalipse presume um fim inevitável.

Por essas razões, ela propõe o termo Chthuluceno, como uma alternativa de pensar o mundo atual e suas urgentes crises por uma consciência tentacular, a qual abrange todas as espécies e suas relações. Os humanos não podem ser vistos enquanto únicos capazes de salvar o planeta da destruição, pois nenhuma espécie é capaz de transformá-lo sozinha. Salvar o mundo é sinônimo de salvar a humanidade no Antropoceno, enquanto no Chthuluceno acredita-se que o mundo não vai acabar, mesmo que a espécie humana seja extinta. “Nenhuma espécie, nem mesmo a nossa própria - essa espécie arrogante que finge ser constituída de bons indivíduos nos chamados roteiros Ocidentais modernos - age sozinha” (HARAWAY, 2016aHARAWAY, Donna. Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes. ClimaCom Cultura Científica: pesquisa, jornalismo e arte I, ano 3, n. 5, p.139-146, 2016a., p. 139).

Representado por Medusa, uma figura feminina proveniente das profundezas da terra (monstro ctônico) com o objetivo de se opor aos deuses, o Chthuluceno possui tentáculos os quais permitem criar relações e colaborações entre espécies para reverter o caminho trilhado pelo Antropoceno e assim gerar possibilidades de dar continuidade ao mundo. O pensamento tentacular também é composto pelas narrativas sf, isto é, ficção científica, fato científico, feminismo especulativo, fabulação científica, que elaboram e refletem sobre práticas colaborativas entre espécies:

String figures [sf] are like stories; they propose and enact patterns for participants to inhabit, somehow, on a vulnerable and wounded earth [...] sf is a sign for science fiction, speculative feminism, science fantasy, speculative fabulation, science fact, and also, string figures (HARAWAY, 2016bHARAWAY, Donna. Staying with the Trouble: Making kin in the Chthuluceno. Durham: Duke UP, 2016b., p. 10).

Deuses de Pedra é uma uma sf, uma vez que, com base em uma perspectiva feminista, especula possibilidades de futuros e proporciona refletir sobre o que deve ser feito para contornar essas estruturas de poderes mencionadas ao longo do trabalho, de modo a evitar não só a destruição do planeta, mas também transformar o mundo em um espaço inclusivo e sustentável. Para elucidar essas alternativas, pode-se começar pelo relacionamento entre Billie e Spike, os quais se conectam intimamente em todos os planos narrativos. A relação por eles estabelecida é muito significativa em relação aos papéis de gênero e, por se constituir como uma união interespécie, torna-se uma metáfora para o trabalho colaborativo entre espécies sugerida por Haraway como uma das saídas do Antropoceno. A bióloga e filósofa feminista afirma que outra prática indispensável no seu Chthuluceno é fazer uma “robusta recuperação e recomposição biológica-cultural-política-tecnológica” (HARAWAY, 2016aHARAWAY, Donna. Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes. ClimaCom Cultura Científica: pesquisa, jornalismo e arte I, ano 3, n. 5, p.139-146, 2016a., p. 141) e, para isso, as pessoas humanas precisam abordar os problemas e questionar as estruturas. Conforme indica:

Se for para existir uma ecojustiça de multiespécies, que esta também possa abraçar a diversidade das pessoas. É chegada a hora de as feministas exercerem a liderança também na imaginação, na teoria e na ação, para desfazer ambos os laços: de genealogia/parentescos e parentes/espécies (HARAWAY, 2016aHARAWAY, Donna. Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes. ClimaCom Cultura Científica: pesquisa, jornalismo e arte I, ano 3, n. 5, p.139-146, 2016a., p. 141).

A construção de Billie Crusoe como uma figura de resistência se materializa em diversas passagens da narrativa. Ressalta-se o diferencial da personagem em relação a vários processos de sujeição e alienação, como os métodos de alfabetização por apenas uma letra para designar objetos, além de continuar vivendo em uma “biobolha”, como lembrança dos tempos sustentáveis do planeta. Billie é retratada como uma pessoa capaz de ler de forma crítica sua própria realidade: “o discurso oficial é de que a Resistência foi esmagada. Não existe resistência à Potência Central. Por isso, é que eu acho útil saber ler - ainda que somente nas entrelinhas” (WINTERSON, 2012WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra. Tradução de Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2012., p. 42). Toda sua história é permeada pela resistência, desde seu sofrido nascimento: “[...] nasci, e ninguém foi capaz de impedir” (WINTERSON, 2012WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra. Tradução de Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2012., p. 170). Billie representa, então, as atitudes e ações que poderiam mudar os rumos do planeta se realizadas em conjunto.

Winterson constrói mundos que estão em crise e em vias de destruição, inclusive profetizando o fim do mundo, comandados exclusivamente por homens. Considerando essa estrutura de liderança encontrada na narrativa, é possível afirmar: a autora acredita que ter mulheres como líderes poderia modificar o cenário. Em uma passagem do livro, Capitão Handsome declara: as mulheres “não podem ser líderes mundiais” porque “sempre tratam as coisas no plano pessoal” (WINTERSON, 2012WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra. Tradução de Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2012., p. 86). Aqui, é necessário criar um breve paralelo com a crise mundial enfrentada recentemente - a qual, todavia, ainda não se pode considerar finda, a pandemia do novo Coronavírus, para analisar como as mulheres enfrentam conflitos quando estão na liderança. Um estudo feito pelo Fórum Econômico Mundial (2020HARAWAY, Donna. Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes. ClimaCom Cultura Científica: pesquisa, jornalismo e arte I, ano 3, n. 5, p.139-146, 2016a.) indica que os países governados por mulheres foram mais eficientes em contornar a crise, resultando em um número de mortes menor que a metade, quando relacionados com países liderados por homens.

As pesquisadoras afirmam que a liderança feminina possui um caráter democrático e pautado na empatia, principalmente porque suas preocupações recaem sobre as perdas de vida e não apenas nos problemas econômicos. Ao contrário, por exemplo, do governo brasileiro que colocou todos seus esforços em prol dos aspectos econômicos, sem se importar com as mais de 600 mil mortes. Argumenta-se, portanto: Billie está certa quando responde a Handsome que não haverá mais um mundo para liderar porque “os homens nunca levam para o lado pessoal” (WINTERSON, 2012WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra. Tradução de Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2012., p. 86).

Portanto, Jeanette Winterson exerce o papel que Haraway convida as feministas a assumirem, de exercer a liderança na imaginação, na teoria e na ação, quando constrói uma obra capaz de permitir pensar em possibilidades de resistência para desestabilizar as noções hierárquicas e heteronormativas, bem como os sistemas capitalista, patriarcal e o modelo antropocêntrico. A distopia da escritora britânica tece alternativas e novas formas de organização para transformar o mundo em um lugar sustentável e utópico, sobretudo para as mulheres. Suas pistas ao longo do texto são muito claras, como pontuamos. Pensamentos como o de Spike, por exemplo, que percebe o gênero como uma construção humana que condiciona limitações e entende a importância de não “supermasculinizar” (WINTERSON, 2012WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra. Tradução de Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2012., p. 204) nenhum dado, são noções importantes para construir um universo onde as mulheres possam ocupar todos os espaços e exercerem os papéis que desejarem, caracterizado, portanto, como um lugar de ser e estar no mundo de forma justa.

Esses aspectos somam-se, ainda, a outro ponto fulcral sustentado pela narrativa: a maneira como as relações de opressão se sobrepõem na constituição da luta de classes, de forma que as distopias feministas não incorporam apenas as desigualdades de gênero e sexualidade de maneira isolada e à parte das críticas ao capitalismo e sua forma neoliberal, mas sim as utilizam como ferramentas centrais para alicerçar a exploração do proletariado pelo capitalismo, o qual se serve da naturalização das desigualdades para manter a priorização do lucro acima da vida.

Sendo assim, a obra Deuses de Pedra é construída por meio de uma especulação feminista. Isso implica dizer que as relações de opressão de gênero são tão latentes que têm sido temáticas de diversas narrativas distópicas feministas. O patriarcado tem configurado narrativas dessa natureza, funcionando como um apelo crítico à estrutura social vigente. Através das representações ficcionais dessa obra plural, é possível depreender algumas conclusões sobre quais princípios e fundamentos deveriam ser repensados, sejam eles políticos, sociais, culturais ou ambientais, no intuito de que o mundo habitado por nós hoje não seja o da narrativa de Winterson amanhã.

REFERÊNCIAS

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  • PENTEADO, Marina P. A ficção climática de Jeanette Winterson e a construção de uma memória do antropoceno em Deuses de Pedra. Revista Porto das Letras, v. 06, n. 4, p. 168-181, 2020.
  • TORRES, Sonia. O antropoceno e a antropo-cena pós-humana: narrativas de catástrofe e contaminação. Ilha do Desterro, v. 70, n. 2, p. 93-105, 2017.
  • TORRES, Sonia. Distopia no Antropoceno, ou re(a)presentando o interregno. Gragoatá, v. 26, n. 54, p. 558-587, 2021.
  • WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra Tradução de Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2012.
  • 1
    Brandão e Lourenço (2019BRANDÃO, Izabel; LOURENÇO, Laureny (org.). Literatura e ecologia: trilhando novos caminhos críticos. Maceió: Edufal , 2019. ) alertam que a ecocrítica feminista não lida apenas com textos feministas ou ecofeministas, mas sua proposta é aberta e democrática, de caráter interdiscplinar, visto que colabora com a redefinição de certos conceitos em suas diferentes acepções e diálogos, exemplificados por meio do conceito de natureza pelas autoras.
  • 2
    “Manfred segurou meu braço com força surpreendente e ergueu-o para a luz.” (WINTERSON, 2012WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra. Tradução de Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2012., p. 68)
  • 3
    As duas últimas seções do livro acontecem no mesmo espaço-tempo e narram um mundo que está sendo reconstruído após a terceira guerra mundial e é governado por uma corporação, a Mais.
  • 4
    A MAIS está presente em todas as seções do livro, a não ser na “Ilha de Páscoa”. Na primeira parte, é uma empresa que financia o governo, a Potência Central, e age através dele. Nas duas últimas seções, ela tornou-se o próprio governo: “[o] governo acabou. ‘Sem MAIS Guerras’ tornou-se o slogan para um novo tipo de empresa global” (WINTERSON, 2012WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra. Tradução de Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2012., p. 190).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2022
  • Aceito
    20 Nov 2022
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