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Teoria, autoria...

Theory, Autorship...

RESUMO:

O ensaio realiza espécie de traveling sobre os processos de construção e de expansão de sentidos das noções de autor/autoria, relacionando essas mesmas questões com as condições do saber e do fazer teórico-crítico no campo dos estudos literários, em particular, e das humanidades, em geral.

PALAVRAS-CHAVE:
teoria; crítica, autoria

ABSTRACT:

The essay performs a kind of traveling on the processes of construction and expansion of meanings of the notions of author/authorship, relating these same questions with the conditions of theoretical-critical knowledge and doing in the field of literary studies, in particular, and the humanities, in general.

KEYWORDS:
theory; criticism; authorship

Começo de conversa...

Como continuar discutindo os fundamentos ontológicos do sujeito e o estatuto da autoria de uma perspectiva teórica e crítica depois do anúncio da morte do sujeito e do autor? As respostas a essa questão têm de reconhecer: que o ato teórico e crítico literário sentiu o solavanco causado pela reconfiguração da vida cultural de nossos tempos; que a recusa aos modos de exposição historiográfico e teórico-conceitual atestam uma grave crise da teoria no campo dos estudos literários; que a tendência etnográfica que se espraiou pelo campo das humanidades, depois de 1980, revisou e ampliou a noção de cânone; e que disso resultou as práticas de leitura literária cederem terreno para atividades de interpretação de novos objetos.

Baseado no princípio de que não há cultura, mas sim culturas, e a fim de superar o condicionamento exclusivo do nacional ao campo de uma língua, de uma cultura e de um território únicos, o modelo da diversidade instituiu o primado do ativismo ético-política sobre a intransitividade da reflexão teórica e analítica. Essa situação pouco propícia ao gesto teórico-crítico na produção da inteligência esgarçou o papel do intelectual, ao tempo em que consolidou a indústria cultural como instância de consagração dos processos de canonização.

Nesse ambiente, os estudos literários foram sendo destituído de suas práticas discursivas peculiares, enquanto o ato crítico passou a fazer pouco caso da espessura verbal das obras, haja vista que o ato de reflexão direto da identidade se tornou mais importante do que o trabalho com a expressividade. A ideia de valor, fundamento dos estudos literários, acabou sendo abalada pela quase absoluta relativização que vigora nos processos de análise cultural e literária.

Sendo assim, ainda seria possível pretender instituir a função do intelectual como avaliador independente da produção simbólica e conceber a arte como território de exercício de uma atividade reflexiva, diferenciada e diferenciadora? Indagar sobre a especificidade da arte e propor formas de interpretação que considerem a ordem intrínseca do fenômeno artístico literário implica situar-se fora da tendência dominante em nossos tempos, cujos modelos de abordagem se peculiarizam por operar com uma definição extrínseca de arte, e por conceberem a literatura enquanto fenômeno indiferenciado em meio aos demais produtos culturais. Essa “novidade” configura, a bem da verdade, o “entendimento de literatura como representação” e significa um virtual” retorno a concepções oitocentistas, com a diferença de que agora as obras não documentariam características nacionais unificadas, porém inúmeras identidades de grupos considerados marginais ou não hegemônicos” (Souza, 2014SOUZA, Roberto Acízelo de. História da literatura. Trajetória, fundamentos, problemas. São Paulo: É Realizações, 2014. , p. 36)

Nesse modelo, arte e literatura não são concebidas como esferas constituídas de especificidade, em razão de que a chave de interpretação vigente propõe um tipo de segmentação para os objetos cuja produção supõe a transparência de uma identidade que tem a ver com a “posição de fala” do locutor. Para essa política acadêmica, as identidades são dadas como obviedades dos lugares de fala e, por causa disso, as posições de sujeito ocupam pouco espaço como objeto de explicitação em termos históricos e conceituais. É nesse cenário infértil ao aprofundamento do debate teórico-crítico que as noções e conceitos em tela se apresentam na condição de categorias naturalizadas, ultrapassadas, anacrônicas e fora de moda.

Não obstante, somos da opinião das noções de sujeito, de autor e de autoria são categorias que seguem tendo relevância para as investigações literárias. Daí a pertinência em seguir tratando das noções de sujeito, de autor e de autoria nos processos de interpretação. Para tanto, não se pode perder de vista que: a) pensar em alternativas para o funcionamento do autor em nossos dias consiste em que não se pode dar lugar a mecanismos tradicionalmente naturalizados da abordagem crítico-historiográfica dos textos literários; b) assim como não se pode achar ser suficiente apelar “revolucionariamente” para a negação ou o desaparecimento do autor; c) nem tampouco aquiescer com a naturalização da subjetividade em termos de variantes identitárias.

Autor/autoria...

Apesar de naturalizadas, as noções de autor/autoria se institucionalizaram na segunda metade do século XVIII, quando se generalizaram como presença de um indivíduo e de uma consciência única nas obras. Desde então, a Crítica passou a conceber que, à diferença do autor-artífice, que praticava um trabalho de caráter mecânico, o autor-artista, que despontava no horizonte cultural da época, era fruto de condições em que o “indivíduo podia mostrar-se sensível a impressões nascidas dele mesmo e expressá-las como assunto” (Hansen, 1992HANSEN, João Adolfo. Autor. In: JOBIM, José Luís. Palavras da crítica. Tendências e conceitos no estudo da literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 11-44., p. 18). A partir de meados do Oitocentos, a noção de autor como artista encontrou condições favoráveis para superar a de autor-artífice, pedra de toque da interpretação Retórica e Poética quando passou a ocupar a atenção do crítico e do historiador da literatura.

Os problemas criados pela dispersão de sentidos que proliferaram em torno das noções de autor e de autoria têm ocupado, desde então, o centro das atenções dos estudos textuais e dos estudos literários, e têm produzido uma fortuna crítica cujas orientações podem ser definidas por serem tendencialmente opostas entre si e muito desniveladas em suas acepções.

Formas de conceber a subjetividade

Os antigos gregos foram os primeiros a demonstrar preocupação com a racionalização da vida subjetiva como forma de sistematizar ações humanas. Para esses antigos, o exercício da escrita pessoal e do pensamento sobre si próprio eram tomados como princípios racionais de ação. Para tanto, estabelecia-se uma relação entre o "cuidado de si" e o conhecimento, mediante exercícios espirituais que consistiam na renúncia ao prazer e na não satisfação das necessidades primárias do homem. Daí deriva a ascese, que abrange um grande espectro de práticas de autoimolação, atualizadas de diferentes maneiras em culturas diversas.

Em A escrita de si, Foucault (2009FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Passagem, 2009.) investiga a concepção de sujeito enquanto campo discursivo e afirma que, na Antiguidade, a noção era relacionada tanto com a arte do bem viver quanto com o treino e a formação do homem. Conforme declara, o tema foi caro ao mundo antigo porque tinha a ver com a agenda da "formação do homem de si por si mesmo", ou seja, com a formação do homem em dimensão ética, moral e física. Essas manifestações discursivas eram importantes porque contribuíam para a formação global do homem.

Os gêneros antigos constituídos em torno dos discursos em que o homem busca regular o autocontrole organizavam o campo da askêsis, estruturado em dois tipos de gênero: os hupomnêmata, espécies de cadernos em que se anotavam citações, reflexões ou pensamentos esparsos, e que serviam para ler, meditar e conversar com os outros; e a correspondência, gênero que, produzido para se dirigir a um outro, propiciava o adestramento do sujeito por meio da escrita. A produção discursiva intermediava as formas de controle do homem por si mesmo e as formas da askêsis estruturavam o estatuto da subjetividade. Daí a importância de ambos os gêneros para a formação integral do homem ético no mundo antigo.

Foucault demonstra como o “cuidado de si” foi substituído pelo dever de “conhecer a si mesmo” na visão ascética cristã que se sobrepôs ao antigo pensamento pagão. Também demonstra como o problema do autoconhecimento se tornou fulcral na estruturação do ascetismo, por que propiciou instituir a renúncia ao mundo e o desapegar dos prazeres terrenos como fundamentos da vida cristã. Nesse ambiente ascético, a capacidade doutrinadora da escrita de si passou a ser empregada como ferramenta de dominação de corpos e mentes.

Exemplar da representação da subjetividade cristã medieval são as Confissões, de Agostinho de Hipona (1973AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos, S.J. e A. Ambrósio de Pina, S.J. S. Paulo: Abril, 1973. Coleção Os Pensadores, v. VI.), obra autobiográfica em que o autor testemunha sua experiência religiosa e remonta ao seu passado mundano com vistas a explicar como conquistou a felicidade ao se aproximar de Deus. Nesse clássico do pensamento cristão, Agostinho se apresenta como indivíduo que descobre o fundamento subjetivo da certeza, como fundamento cognitivo e como fundamento moral. Para ele, a felicidade é decorrente de a alma adquirir a certeza de si mesma; mas para adquirir tal certeza, o sujeito necessita assumir sua própria história e reconhecer seu arraigamento num conjunto de condições reais que implica um fundo que a sustenta, mas que é invisível. As Confissões exploram os estados interiores da mente humana e a relação existente entre a graça e a liberdade, temas dominantes na história da filosofia e da teologia ocidentais daquele momento (cf. Strefling, 2007STREFLING, Sérgio Ricardo. A atualidade das confissões de Santo Agostinho. Revista Telecomunicações. Porto Alegre v. 37 n. 156 p. 259-272 jun. 2007. http://file:/// c:/users/cliente/downloads/2707-9639-2-pb.pdf. Acessado em 16/04/2020.
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).

A expansão das fronteiras físicas e imaginárias conformadoras do mundo, adjungida aos avanços do conhecimento técnico, científico e humanista, que marcam a passagem da Idade Média para a Moderna, fizeram com que a relação do homem com o mundo fosse perdendo a aura mediatizada pela fé, ascética e transcendentalizante, própria da cristandade medieval. A força da confluência de um conjunto de fatores, que vão das grandes navegações e da descoberta de novos mundos e de novos homens, até o desenvolvimento do conhecimento filosófico e humanista, técnico e científico, criou as condições para a ruptura com a obediência doutrinária dos dogmas que regulavam o pensamento durante o período medieval. Isso propiciou ao homem representar os fenômenos do mundo a partir de sua própria experiência e perspectiva.

Ao instalar a dúvida como princípio de compreensão, Descartes alavancou uma nova concepção do sujeito no mundo. Para tanto, partiu das próprias sensações como forma de conhecimento para, depois, atestar que os sentidos são falsos e enganosos. No Discurso sobre o método para bem conduzir a razão na busca da verdade dentro da ciência, de 1637, o pensador propôs um modelo matemático, no qual a “autoridade da razão” se sobrepôs à “autoridade dos sentidos”. Mediante a máxima cogito ergo sum, o ato de duvidar e especular se tornou princípio do pensamento racional. O passo seguinte foi definir que a verdade só é possível ser alcançada mediante o ato de questionar e propor soluções, ou seja, pelo cogito. Dúvida e observação rigorosa são eleitas como princípios do conhecimento racional e científico

A renúncia à obediência doutrinária fez lastro e levou um pensador do quilate de Montaigne a combater os modelos de pensamento legitimados apriori, em favor dos direitos de representação do sujeito individual. Ele defendia que a educação livresca afastava dos assuntos importantes da vida e que a educação tinha por dever formar para o julgamento e o discernimento de uma forma prática. Nesse movimento também se destacou a figura de Calvino, que não só impulsionou a tradução e a publicação das sagradas escrituras para as línguas vernáculas, então em processo de afirmação como “línguas de cultura”, mas também pregou o direito à leitura e à interpretação não mediatizada pelas instituições.

No período romântico, a virtude da individualidade se completou com a da sinceridade, inaugurando uma nova forma de conceber o sujeito e a noção de verdade - pedra de toque da filosofia ocidental. O Romantismo alemão colocou o sujeito artístico no centro da transformação do mundo e promoveu uma ruptura com a metafísica e a moral anterior, além de também já apontar caminhos para a crise e a crítica da modernidade e do mundo burguês. Ao colocar o ‘eu’ no centro da filosofia teórica e prática, o Romantismo radicalizou a posição da subjetividade. A dialética especulativa hegeliana bem resume o esforço para configurar a supremacia do Espírito face às contradições e limitações do mundo histórico e real.

O papel desempenhado pela escrita desde então tem importância fundamenta para que se possa compreender tanto a criação e a estabilização da categoria de indivíduo quanto a própria noção de literatura, no sentido moderno que ambas as noções veiculam. Para D. Klinger (2012KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012. 2ª Edição., p. 26), as noções de sujeito e literatura são solidárias e se pressupõem mutuamente: “não existe a forma moderna de literatura antes que se possa falar de indivíduo no sentido moderno, mas também não existe esse sem aquela”.

A emergência da noção de Autor: Hansen, Foucault, Chartier, Gumbrecht...

É imponderável, nos dias de hoje, um texto categorizado como pertencendo à série literária circular sem explícita designação autoral. Apesar disso, temos de reconhecer que a noção de autor/autoria é uma criação de projeção relativamente nova: segundo Foucault até o início do medievo não havia preocupação e nem obrigação de estabelecer responsabilidade pelos discursos que efetivavam obras concretas. A situação de anonimato em relação às fontes criadoras e emanadoras dos discursos que em nossos dias são categorizados como literários não afetava a circulação e a valorização dos discursos e das obras, em razão de que a própria antiguidade dos textos garantia sua autenticidade (cf. Foucault, 2009FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Passagem, 2009., p. 48).

Segundo Hansen (2002HANSEN, João Adolfo. Autor. In: JOBIM, José Luís. Palavras da crítica. Tendências e conceitos no estudo da literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 11-44., p. 28-29), “a auctoritas sistematizada pela Retórica [...] e pela Poética, não conhece o autor como concebido a partir do século XVIII romântico: como originalidade de uma intuição expressiva; unidade e profundidade de uma consciência; particularidade existencial no tempo progressista; psicologia do estilo; propriedade privada e direitos autorais. No discurso antigo, auctor e auctoritas especificam um gênero, um uso, uma disciplina: como no Trivium, em que “Cícero” é o auctor da Retórica; ‘Aristóteles’, da ‘Dialética; poetas antigos, da Gramática”. E acrescenta: “Como a emulação é prescritiva, tecnicamente não há 'plágio’, embora possa ocorrer, quando não opera o ingenium (gênio) próprio”.

O advento do desenvolvimento da escrita como meio de comunicação e de expressão, e da imprensa como meio de difusão de discursos, alterou as condições de circulação de textos e o processo de controle e de validação dos discursos. Isso acarretou que, em nossos dias, tornou-se inaceitável o anonimato em textos da série literária. Na era moderna - com a valorização do individualismo como padrão de vida social -, a questão da intencionalidade do autor dominou o cenário das discussões travadas sobre os processos de interpretação da escrita.

Para Foucault, a noção de autor “surge como resultado da necessidade de identificar, vigiar e punir indivíduos produtores de discursos transgressores” e que constitui “o momento forte de individualização na história das ideias, dos conhecimentos, das literaturas, na história da filosofia também, e das ciências, visto que representa o projeto da modernidade por meio da unicidade do sujeito e da sua obra, de sua unidade estilística, da sua coerência conceitual e até mesmo de sua originalidade” (Foucault, 2009FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Passagem, 2009., p. 33). A escalada da importância das noções de sujeito, de autor de autoria está associado ao aumento da complexidade dos processos de ordenamento e controle da produção e da circulação dos discursos nas sociedades modernas.

O processo de constituição da noção moderna de autor/autoria foi objeto de análise de pensadores com diferentes posições discursivas, como Foucault e Chartier. Ambos analisaram a noção considerando as implicações sociais, políticas, culturais e econômicas da sua historicidade, bem como suas repercussões no campo do fazer literário. Ambos concluem que a consolidação das noções de autor/autoria se instituiu com o advento da modernidade, e concordam com a realidade de que a constituição do conceito-função autor mantém relações com os lugares sociais que os autores ocupam em diferentes períodos históricos.

Foucault (2009FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Passagem, 2009., p. 47) explica que obras literárias não eram consideradas como criações individuais nem originais, e acrescenta que, no fim da Idade Média, embora ainda não se tratasse de um bem, como é assente em nossos dias, as obras se tornaram um tipo de propriedade peculiar que se caracterizava antes como ato capaz de ser imputado a todo aquele que o praticava. Essa situação foi importante para a definição do estatuto da autoria enquanto categoria estética, estilística e jurídica no âmbito da cultura ocidental desde então.

Esse estado de coisas tornava premente a necessidade de controle dos novos tipos de ato de escrita. Para Foucault, a necessidade de criar mecanismos para regular e punir produtores de textos que subvertessem algum preceito político, moral ou religioso, criou as condições para que, no fim do século XVIII, a noção de autoria se impusesse como ideia corrente. O estatuto da autoria garantiu então o benefício da propriedade autoral, ao tempo em que também definiu os tipos de risco que correm os que praticam uma escrita autoral:

Os textos, os livros, os discursos começaram efetivamente a ter autores [...] na medida em que o autor se tornou passível de ser punido, isto é, na medida em que os discursos se tornaram transgressores. [...] Historicamente foi um gesto carregado de risco antes de ser um bem preso num circuito de propriedades. Assim que se instaurou um regime de propriedades para o texto, que se promulgaram regras estritas sobre os direitos de autor, sobre as relações autores-editores, sobre os direitos de reprodução, etc. (Foucault 2009FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Passagem, 2009., p. 47).

Conforme Foucault, a noção de autor se instituiu pela necessidade de que fossem criados mecanismos de controle sobre as potencialidades subversivas de determinadas práticas discursivas.

Tendo dedicado maior tempo à investigação do tema e dispondo de maior quantidade de fontes, Chartier fez a revisão da tese da origem histórica da função-autor postulada por Foucault. Em A ordem dos livros (1994CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas entre os séculos XI e XVIII. Tradução de Mary del Priore. Brasília: Editora da UnB, 1994. ), Chartier entabula profícuo diálogo com Foucault sobre a questão da historicidade e da periodicidade do surgimento da noção. O historiador e o filósofo concordam com o fato de que a constituição jurídica do autor moderno teria ocorrido no século XVIII. Mas entram em desacordo quanto ao período de definição da noção como propriedade literária: segundo Chartier, o fenômeno de cultura teria ocorrido no início, e não no fim do século, como garante Foucault. Para Chartier, a definição da questão teria ocorrido na Inglaterra, e não por causa do interesse do autor ou da força da ordem do poder e do controle, mas por conta da atuação de certo editor londrino que, na iminência de perder direitos sobre determinada obra, conseguiu estabelecer o seu direito à propriedade do produto autoral.

Chartier (1994CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas entre os séculos XI e XVIII. Tradução de Mary del Priore. Brasília: Editora da UnB, 1994. , p. 38 e segs.) afirma que a suposta conquista do autor encobriu o verdadeiro objetivo da instituição da noção de autor: a de dar ao autor o direito de, ao repassar sua propriedade para determinado editor, também transmitir os direitos de perpetuidade e imprescritibilidade da obra. A constituição da figura moderna do autor proprietário não depende apenas da defesa do sistema de privilégios autorais que havia surgido com o mercado aberto, em razão de que a “afirmação da propriedade literária depende diretamente da defesa da livraria que garante um direito exclusivo sobre um título ao livreiro que o obteve”. Para Chartier, as conquistas do autor encobriram as conquistas do livreiro-editor, que conseguiu dar ao autor o direito de repassar sua propriedade.

O historiador francês observa que a criação do copyright se fundou tanto no direito natural - o homem é proprietário do seu corpo e dos produtos do seu trabalho -, quanto numa justificativa estética baseada na noção de originalidade. Chartier questiona o desapreço de Foucault pelas categorias estéticas e se empenha em levantar, da perspectiva da “história cultural”, as práticas relacionadas com os livros e ao modo como estes se vinculam com formas específicas que podem ser estudadas em suas transformações ao longo do tempo, através de operações como uso, apropriação, interpretação e comentário, dentre outros aspectos. Mais atento à datação das fontes, Chartier revisou a história das leis do copyright e o papel do autor na criação literária, bem como as conclusões de Foucault em relação ao anonimato dos textos científicos durante os séculos XVII e XVIII. Diferente de Foucault, Chartier defende que nesse momento acontece uma reviravolta provocada pela revolução científica que torna essencial a difusão do nome e da autoridade competente para enunciar o que é considerado verdadeiro.

Para H. U. Gumbrecht (1998, p. 100 e segs.) a passagem do regime de comunicação marcado pela prevalência da oralidade, para outro, em que a escrita ganha destaque como forma de comunicação, e a institucionalização da imprensa, são fatores de fortalecimento da noção de autor/autoria. Para esse teórico, a noção de autor/autoria se coloca, desde então, a serviço da garantia de manutenção da univocidade de sentido, uma vez que, no contexto da comunicação escrita, a ausência do corpo e da voz do autor não consegue assegurar nem garantir certo sentido pretendido aprioristicamente pelo sujeito real do enunciado, pelo escritor.

Gumbrecht (1998) aponta que dois outros fatores contribuíram para a consolidação das noções de subjetividade e de autoria modernas. O primeiro: para assegurar o domínio das terras recém-descobertas nas Américas o processo de colonização exigia o desenvolvimento de um tipo de escrita constituído de valor autoral e cartorial, a um só tempo. Cartas e Relatórios de Descoberta passaram a funcionar como misto de relato e de documento com valor de garantia da posse das terras recém-descobertas. A "Carta”, de Vaz de Caminha é prova dessa realidade.

O segundo tem a ver com o desenvolvimento de um complexo sistema burocrático que se prestou a validar os mecanismos de apropriação sobre as terras descobertas. O processo de descobrimento, posse e domínio das terras novas propiciaram o desenvolvimento de um tipo de relação com a escrita que acarretou o fortalecimento do caráter subjetivo e autoral da expansão colonizadora. A força de uma escrita patenteada por um nome de autor, que era realizada por certos atores sociais, e de acordo com um conjunto de regras e expectativas sociais historicamente definidas, era a condição necessária para que um nobre europeu garantisse a posse de terras que ele nunca havia pisado e que provavelmente sequer avistaria.

Desde então, a representação do autor assemelha-se à de um demiurgo, haja vista que é exerce autoridade e é responsável pela gênese do que escreve. No paradigma dos estudos literários de corte histórico-biográfico e psicologista, a noção de autor remete ao escritor, tomando-o na condição de portador de uma identidade biográfica e psicológica reconhecível por sua atuação extratextual e estilística. A noção de autoria fundadora desse modelo se estabelece a partir da situação ocupada pelo sujeito empírico, que exerce certa atividade intelectual reconhecível dentro de um sistema de produção cultural. Disso resultou que o autor adquiriu direitos exclusivos sobre os produtos de sua criação intelectual: “direitos autorais”.

Nesse cenário de fortalecimento do papel jurídico da autoria as “circunstâncias de enunciação” adquiriram peso nas projeções autorais produzidas por escritores de textos literários - apesar de que estes sejam concebidos para audiências de espectro bem mais vasto que aqueles textos em que predomina a linguagem com referência contextual imediata ou que dão informações diretas sobre sujeitos empíricos, produtores dos discursos reais. As “circunstâncias de enunciação” interferem no regime de modelização autoral que os escritores tentam imprimir, consciente ou inconscientemente, nos textos que produzem. O trabalho de leitura e de interpretação crítica desse modelo consiste basicamente na tarefa de tentar restituir, em plenitude, as intenções que o autor-escritor pretensamente imprimiu no texto que produziu.

O autor no ambiente acadêmico francês

Até os anos de 1950, ainda desfrutavam de prestígio no ambiente acadêmico francês as abordagens sustentadas por métodos de fatura autoral: o método biográfico, de Saint Beuve, que preconizava a busca do homem no fundo do poeta para a interpretação do texto literário; o método biológico-histórico-sociológico, de H. Taine, que resume no autor a herança de uma tradição recebida do passado e a influência do espírito de uma época; e o modelo baseado nas referências à biografia do autor e nas circunstâncias sócio-históricas e literárias em que cada obra se origina, de G. Lanson. Essa tríade era cultuada no ambiente acadêmico francês.

A problematização da noção de sujeito começou a ganhar fôlego no âmbito da tradição universitária francesa no final dos anos de 1960, quando várias categorias, até então naturalizadas pela cultura teórica e analítica vigente no campo dos estudos literários na França passaram a ser questionadas. Até aquele momento, eram prevalentes estratégias de leitura que utilizavam a figura autoral como base para o estabelecimento de relações diretas entre os pretensos sentidos atribuídos à obra literária e seu contexto/ambiente de origem. Operando com ferramentas teórico-metodológicas herdadas da tradição positivista do século XIX, os resultados desses dessas abordagens eram quase sempre redutores, uma vez que a interpretação e a construção de sentidos eram fixadas com base nos termos históricos e biográficos. Em termos de estratégia analítica, isso implica que a busca da verdade era filtrada pela ótica do sujeito e da sua consciência, concebida como anterior e transcendente ao texto.

Como elemento comum, as abordagens herdadas do positivismo científico-objetivista do século XIX apresentavam a compreensão de que o sujeito não apenas precede, mas também é transcendente em relação à linguagem. Nesse ambiente, a identidade do autor se definia pela vinculação direta da obra com o contexto de origem, o meio e o grupo de pertencimento do escritor. Tratava-se de abordagem com pretensão objetiva e que tentava mensurar a originalidade de uma individualidade singular de um escritor por meio da relação que este mantinha com as influências recebidas de uma tradição. Essa ideia de literatura se assenta numa espécie de essência imutável, sustentada por instituições também eternas e imutáveis.

Entretanto, por influência de vertentes muito diversas do pensamento (existencialismo, fenomenologia e marxismo, principalmente, dentre outros de menor projeção) e pelos avanços das ciências humanas (da psicanálise, da linguística e da antropologia, sobretudo), várias correntes foram ganhando espaço no ambiente da inteligência acadêmica francesa. Essas correntes que passaram a dominar a cena enunciativa da França reuniam pensadores com trabalhos tão díspares quanto os de Jean-Paul Sartre, Gaston Bachelard, Georges Poulet, René Girard, Lucien Goldmann, Georg Lukács, Jean Starobinski, Jean-Pierre Richard, Maurice Blanchot e George Bataille, dentre outros. Apesar das diferenças, esses pensadores recusavam a concepção de que o trabalho crítico consiste em meramente descobrir supostos segredos ocultos do autor ou alguma realidade positiva histórica e/ou biográfica dele derivada; também partilhavam o reconhecimento da consciência como lugar de transcendência da linguagem.

Nesse ambiente, as categorias do pensamento analítico cunhadas pelas várias vertentes do marxismo (tais que: “representação”, “ideologia”, “produção”, “produto”, “apropriação”, “valor de uso”", etc.) fizeram lastro no pensamento analítico, ao evidenciar que, “nas produções discursivas, as apropriações produzem a representação de uma autoria segundo uma posição determinada nas práticas produtivas: por definição, são transformações contraditórias, em que se explicita a luta de classes, no produto em que a representação autoral é situada, como posição de classe” (Hansen, 2002, p. 11). Nessa acepção marxista, toda posição de autor é concebida, pois, como "reflexo" de uma posição de classe.

As correntes teóricas da Nouvelle Critique francesa buscaram superar a história literária como método privilegiado de interpretação do fenômeno literário. Elas partilharam a concepção de que a consciência é transcendente e que o texto é passível de análise imanente. Conforme Hansen (2002, p. 13), as noções de “função”, “procedimento”, “prioridade dos elementos formais” e de “morte do autor” se prestaram a pavimentar o caminho da substituição da metafísica romântica da “origem e da presença do autor”, da “influência”, da “interpretação”, da “obra” e da “tradição”, por conceitos como “estrutura”, “escritura”, “imanência do discurso”, “falácia intencional”, “intertextualidade”, “textualização”, “diferença” e “traço”, dentre outros.

Uma das mais influentes reações da corrente de análise formal ao modelo de abordagem historicista e biográfico que então prevalecia no ambiente acadêmico francês veio à luz com a publicação dos Problemas de linguística Geral I, de É. Benveniste (2005BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral I. Tradução de Eduiardo Guimarães. Campinas: Pontes Editores, 2005.). Considerando a influência que o pensamento desse pensador exerceu no ambiente acadêmico francês, ele talvez possa ser apontado como espécie de escarificador do terreno em que foi decretada a morte do autor, e no qual, logo depois, iria proliferar a concepção estruturalista de análise literária.

Benveniste montou uma máquina de análise em que a linguagem passa a ter status de condição necessária para a constituição mesma da subjetividade. O autor defende que o lugar que até então havia sido ocupado pela consciência fenomenológica, concebida na condição de elemento unificador dos sentidos, devia ser doravante ocupado pela linguagem em si, ou melhor, pela produção de sentido derivado da interlinguagem, pelo jogo e pelas condições da enunciação intersubjetiva, em suma.

Para Benveniste (2005BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral I. Tradução de Eduiardo Guimarães. Campinas: Pontes Editores, 2005., p. 286.), os lugares da subjetividade estão sempre vazios, embora seus vazios sejam constante e correntemente preenchidos quando um locutor, que se propõe como eu, se dirige a um tu, no jogo enunciativo. Assim, a noção de subjetividade se define pela capacidade do locutor se propor como sujeito e experimentar, por contraste, a consciência de si, e o fundamento da subjetividade está no exercício sempre referencial e atualizado da língua. Para ele, não existe o homem separado da linguagem, em razão de que é “na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de ego”.

Benveniste, (2005BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral I. Tradução de Eduiardo Guimarães. Campinas: Pontes Editores, 2005., p. 286) afirma que o vazio sempre preenchido dos pronomes na enunciação constitui o ponto de apoio para a revelação da subjetividade na linguagem; e acrescenta que “a linguagem está de tal forma organizada que permite a cada locutor apropriar-se da língua toda designando-se como eu” e que, portanto, “é verdade ao pé da letra que o fundamento da subjetividade está no exercício da língua”. As teses de Benveniste sobre o problema da subjetividade na escrita literária marcaram fundo o pensamento acadêmico francês e serviram de base para que Roland Barthes decretasse, pouco mais tarde, a morte do autor.

Nietzsche...

Os alicerces da categoria de sujeito e de autor vinham sendo paulatinamente aluídos e, para tanto, muito contribuiu o pensamento de Nietzsche, que abalou tanto os dogmas da tradição cristã, decretando a morte de Deus, quanto os fundamentos da filosofia racionalista moderna, decretando a morte do homem. Nada escapou à sanha questionadora do filósofo alemão: nem a tradição cristã, assentada na interioridade, na renúncia e na consciência de si, nem a tradição da filosofia moderna, fundamentada no cogito cartesiano. Para ele, consiste em erro da razão crer que existe um sujeito por trás de qualquer ação, uma vez que o agente não passa de uma ficção acrescentada à ação - e “a ação é tudo” (Nietzsche, 2004NIETZSCHE, Friedrich. A Genealogia da moral. Tradução de Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2004 [1887]. , p. 40)

Nesse movimento, foi abalada a própria noção universalizante e transcendente de verdade. Em A Genealogia da moral (2000NIETZSCHE, Friedrich. A Genealogia da moral. Tradução de Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2004 [1887]. [1887]) Nietzsche demonstra que qualquer verdade é mera ilusão, é enganação que se toma como valor de verdade e que serve para o adestramento dos corpos, uma vez que impulsiona nossas ações e define nossos padrões de julgamento. Por outro lado, a verdade é também a virtude dos fortes, porque fruto da vontade de potência, do impulso de exercer poder para viver sem a sujeição da moral. Para Nietzsche, a verdade é, em suma, uma imposição daqueles que exercem poder.

A verdade é um problema que Nietzsche jamais abandonará e, segundo ele, envolvia ao mesmo tempo a ciência e a arte numa constante disputa. Nesse passo, o filósofo alemão chama a atenção para o caráter eminentemente desesperador da verdade da ciência, em contraste com a natureza redentora da arte. Segundo ele, a verdade científica aniquila a vida e a tarefa da arte é exatamente salvá-la. Nietzsche é considerado o filósofo trágico por excelência: aquele que se opõe à idolatria de qualquer tipo de verdade absoluta e ao otimismo esvaziado dos modernos. A crítica do filósofo alemão criou ecos e foi sendo adensada ao longo de todo o século XX e, mais tarde, acarretou a constatação e o decreto intelectual da morte do autor.

No campo dos discursos literários, a corrente estruturalista desempenhou papel de fundamental importância nesse processo de desmontagem da figura autoral. Mas antes de Barthes decretar “a morte do autor”, e de Foucault definir o autor como mera “função” no jogo discursivo, o linguista francês Émile Benveniste se destacou por conceber o sujeito como lugar de transitoriedade de uma posição sempre vazia no jogo enunciativo da linguagem. Antes de tratarmos de como o pensamento de Benveniste impactou as concepções de sujeito, autor e autoria, parece necessário apresentar breve panorama do ambiente da inteligência francesa.

A morte do autor...

Como vimos, o reconhecimento da consciência como lugar de transcendência da linguagem foi questionado pela percepção de que não é raro haver notáveis diferenças entre as intenções pretendidas por um determinado autor e a forma com que ele, de fato, as expressou nos textos e nas obras que efetivamente produziu; e, por conseguinte, pela impossibilidade de haver qualquer tipo de certeza no trabalho de recuperação dessa pretensa intenção original impingida pelos escritores nos textos de sua autoria, e; por fim, pelo fato de que toda interpretação tem de ser processada sempre numa perspectiva histórica e contextual, a qual deve considerar o trabalho de interpretação e de construção de sentidos realizado pelo leitor.

No movimento de deslocamento teórico do processo interpretativo de textos escritos ganha relevância o fato de que, ao ser produzido por meio da escrita, o texto desvincula-se do autor empírico, passando a gozar de relativa autonomia de sentido, uma vez que é por meio de suas próprias estruturas internas, fechadas, que deve ser lido e interpretado. Nesse contexto de recusa da noção de autor/autoria como elemento principal do processo de interpretação dos textos ganham fôlego as propostas de análise imanente das obras, característica comum das abordagens que proliferaram a partir do primeiro quartel do século XX.

Nesse momento, o conceito de autor ainda não é exatamente objeto de recusa e não chega a desaparecer no bojo do largo movimento de compreensão do ato interpretativo - apesar de se estabelecer como forte reação ao positivismo de cunho biográfico que predominava nos estudos literários produzidos no século XIX. Mas o passo seguinte foi dado no sentido de criar condições para a emergência de uma epistemologia que, de fato, decretou a “morte do autor”. A questão foi assim prefigurada com o fortalecimento da concepção da escrita como condição de apagamento, desaparecimento e morte da instância autoral. Grosso modo, a tônica desse movimento pode ser apontada na fixação de um princípio - de corte saussuriano - para os discursos escritos, o qual se consubstancia tanto no reconhecimento da primazia do significante sobre o significado, quanto na constatação funcional do princípio da arbitrariedade do signo.

Nessa concepção, em que o discurso ocupa posição dominante, a noção de autoria assume diferentes funções: ora de estrito papel actancial do enunciado (cf. Jakobson, 1957 apud Eco, 1986; Barthes, 1988BARTHES, Roland. A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988. ); ora a qualidade de pura estratégia textual (cf. Eco, 1986); ou, ainda noutros termos, a forma de específica função do jogo do sistema literário (cf. Foucault, 1992FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Tradução de Antonio Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro. Lisboa: Passagens, 1992. ). Conforme esse modo de conceber o estatuto da comunicação escrita, o fenômeno do surgimento e posterior desenvolvimento da escrita enquanto forma prevalente de comunicação literária implica, em si mesmo, o desaparecimento, ou antes, a própria morte do autor.

Para tanto, o funcionamento da enunciação interlocutiva desenvolvido pelo pensamento estrutural de Benveniste foi levada às últimas consequências por Barthes no ensaio intitulado “A morte do autor”. Nesse ensaio, apesar de reconhecer que a figura do autor ocupa um lugar dominante nas práticas discursivas do campo da literatura, a pedra de toque da argumentação de Barthes é que a escritura moderna constitui um “lugar neutro”, que não expressa nem refere a sujeito particular que a antecede; e assim ocorre porque é ela mesma, a escritura, conforme o autor, o exercício e a execução efetiva do sujeito em sua própria natureza.

O fato de a linguagem ser concebida predominantemente como materialidade composta de um conjunto de marcas que não podem ser submetidas ao controle total da consciência põe em xeque, da perspectiva barthesiana, a hegemonia da instância autoral enquanto fonte única produtora de sentidos. Para o crítico francês, sendo a escritura moderna o resultado do exercício intransitivo do símbolo e o sentido um simples efeito da execução da escritura, ela pressupõe a dissipação de toda identidade particular.

Marcelo Topuzian (2014TOPUZIAN, Marcelo: Muerte y resurrección del autor (1963-2005). Santa Fe, Argentina: Universidad Nacional del Litoral, 2014., p 99) alerta para o fato de que Barthes rechaça implicitamente a específica funcionalidade do símbolo com as pretensões tradicionais da estética sobre a autonomia da arte, já que “nesse momento a especificação se dá não em função de uma ideia de arte ou literatura, no sentido de uma definição baseada em considerações sobre como uma forma se converte em significativa para uma consciência, [...] mas das relações específicas entre significantes”.

Na concepção teórica de Barthes, a morte do autor tem a ver com o caráter eminentemente intransitivo da linguagem literária, cujo modo próprio de existência pressupõe a dissolução de toda e qualquer instância de referência, mas principalmente daquela que diz respeito à identidade do corpo que escreve. Assim ocorre, conforme Barthes, porque no espaço da escritura literária se encontram, se misturam e contrastam diversas escrituras de forma concomitante, sem que nenhuma delas possa ser considerada exatamente original. Ao afirmar que todo escritor imita outros que lhe antecedem, e que todo texto remete e é constitutivamente composto de partes de outros vários textos, o gesto interpretativo de Barthes amplia radicalmente as possibilidades de leitura e de construção de sentidos para os textos e as obras. Conforme Topuzian:

Barthes faz uma leitura não apenas ideológica do papel histórico do autor, mas também institucional: uma concepção da leitura dominada pela figura do autor é a melhor salvaguarda da naturalização das instituições da crítica literária, supostamente devotada, por definição, à decifração privilegiada do que o autor pôs no texto para que só o crítico fosse capaz de decifrá-lo de acordo com os protocolos de leitura de sua disciplina. (Topuzian, 2014TOPUZIAN, Marcelo: Muerte y resurrección del autor (1963-2005). Santa Fe, Argentina: Universidad Nacional del Litoral, 2014., p. 102).

De uma só tacada, o crítico francês propôs solapar tanto a naturalização da obra como criação de um sujeito único, ligado à figura de um autor pré-existente ao texto, quanto o tradicional trabalho da crítica centrada na figura do autor. Para Barthes, estas constituíam duas entidades ideológicas urdidas com o fim de legitimar a entidade crítica enquanto discurso.

Da perspectiva barthesiana, à Crítica cabe o trabalho de conectar múltiplos códigos e diversas partes dispersas de uma multiplicidade de textos para construir os sentidos de cada texto particular. Não é à toa, que Barthes encerre o ensaio fazendo referências à leitura e à figura do leitor como aquele que constrói o sentido a partir do embate com o texto de forma ativa. Como se percebe, as posições de Barthes almejavam antes uma transformação do ato de ler, em vez de simplesmente desabilitar a figura do autor. Prova disso é o fato de que mais tarde, nos anos de 1970, Barthes propôs espécie de reabilitação das figuras do sujeito e do autor na condição de um elemento a mais no jogo da deriva textual da leitura e da construção de sentidos.

Topuzian (2014TOPUZIAN, Marcelo: Muerte y resurrección del autor (1963-2005). Santa Fe, Argentina: Universidad Nacional del Litoral, 2014., p 117) questiona se a importância que alcançou a tópica da morte do autor não constitui um fenômeno típico e característico do ambiente literário francês e europeu da época em que o ensaio em tela foi escrito e se, noutra vertente, não decorre do próprio prestígio de que desfrutava seu autor no momento de sua ruidosa difusão. E mais: se, desse modo, Barthes não estaria fazendo exatamente aquilo que mais criticava: “Enunciar a morte do autor seria constituir-se ao mesmo tempo como único dono legítimo do campo dos estudos literários a partir da instância da teoria?” (Topuzian, 2014TOPUZIAN, Marcelo: Muerte y resurrección del autor (1963-2005). Santa Fe, Argentina: Universidad Nacional del Litoral, 2014., p 117)

Topuzian também observa, com ironia, que R. Barthes enunciava de uma posição tipicamente autoral e que, ao mesmo tempo que levava a cabo uma ação teórica, criava as condições para sua legitimação. O teórico argentino questiona, também, se, ao propor a morte do autor e o consequente nascimento do leitor, Barthes não estaria simplesmente substituindo um sujeito transcendente por outro de igual porte. Abordando a mesma questão, D. Klinger (2012KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012. 2ª Edição., p. 30) questiona se a destruição da “identidade do corpo que escreve não constitui menos um produto da escritura do que concepção modernista de escritura”.

Apesar da grande voga acadêmica de que desfruta, a concepção de leitura imanente da obra literária foi posta em xeque, primeiramente, pela óbvia constatação de que, por si só, o texto não diz nada ou diz muito pouco, senão também pelo reconhecimento da necessidade do processo de leitura para que ele possa verdadeiramente significar. Trata-se da tentativa de restabelecer não apenas a historicidade do texto, mas também de fixar um lugar para a leitura na equação interpretativa das obras escritas

Nesse novo cenário, ganha relevância cada vez maior o processo de leitura em si, que é visto, então, como verdadeiro ato potencial da produção dos sentidos do texto. Levada ao extremo, essa acepção gera um estado de coisas em que os textos são capazes de produzir tantos sentidos distintos quantas forem as leituras que deles forem feitas. Daí a voga dos estudos da recepção, sobretudo no último quartel do século XX.

Nos momentos finais de sua atuação crítica, ao defender a dispersão dos sentidos das linguagens de uma perspectiva que reconhece uma pluralidade de manifestações artísticas até então não consideradas pelos cânones nacionais, o teórico francês assumiu a posição de que tudo é cultura e é igualmente passível de leitura e de interpretação cultural. E nesse terreno, vestidos, livros, alimentos, imagens, lutas de boxe, reclames comerciais, tudo passa a ser equivalente no complexo jogo de leitura das semióticas textuais

Foucault: formações discursivas e autor como função...

Ao proferir a comunicação “O que é um autor?”, na Société Française de Philosophie, Foucault iniciou sua argumentação retomando a abordagem textualista barthesiana da morte do autor, em que a escritura deixa de definir-se pelo paradigma expressivo e passa a confundir todos os signos da identidade no jogo heterogêneo dos significados textuais. Foucault se voltava, então, não apenas contra o estatuto de verdadeiro sujeito universal e transcendente da linguagem da abordagem barthesiana, mas também contra a transcendência da consciência típica das abordagens levadas a cabo pela Nouvelle Critique francesa. Diferentemente daquilo que era professado pelos defensores dessas concepções, para Foucault, as práticas discursivas é que realmente fornecem o material para a genealogia da verdade.

Na sequência, o conferencista afirma a existência de uma regra imanente que domina a escrita como prática, e que pode ser especificada em dois grandes temas: expressão e morte. Quanto à expressão, Foucault destaca a existência de dois extremos: ou o texto diz tudo (e nesse caso o autor não importa, já que tudo está contido no próprio texto), ou o leitor diz tudo (nesse caso também não, porque o sentido depende unicamente do leitor). Em relação à morte, Foucault destaca que a escrita serviria tanto para imortalizar os heróis, quanto para adiar a morte. Daí o filósofo salienta, em ato de pirotecnia verbal, que, outrora tendo servido para conjurar metaforicamente a morte, a escrita, nos dias de hoje, está ligada ao sacrifício da própria morte do autor: “a marca do escritor não é mais que a singularidade da sua ausência” [...] e ele representa “o papel do morto na escrita” (Foucault, 1992FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Tradução de Antonio Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro. Lisboa: Passagens, 1992. , p. 36).

A seguir, Foucault argumenta que há duas noções que preservam a existência do autor: a noção de obra (que segundo ele é tão problemática quanto a de autor) e a de escrita (que caracteriza o empirismo do autor, seja pelo comentário ou pela interpretação). Daí o pensador francês passa a delinear seu projeto teórico: “localizar o espaço deixado pelo vazio do desaparecimento do autor e seguir de perto a repartição das lacunas e das fissuras e perscrutar os espaços, as funções livres que esse desaparecimento deixa descoberto”; ele conclui esse passo de sua argumentação afirmando que a função autor caracteriza o modo de circulação e funcionamento dos discursos em diferentes sociedades (Foucault, 1992FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Tradução de Antonio Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro. Lisboa: Passagens, 1992. , p. 41)

O passo à frente se dá no sentido de que, no caso da sociedade ocidental, a função-autor, se caracteriza como: a) mecanismo de apropriação marcado pela função de controle; b) mecanismo de fiança dos discursos científicos e de marcação da origem do texto literário; c) marco de construção de um “certo ser racional que chamamos de autor” e que também agrega d) diversos “eus” que os indivíduos ocupam de fato na obra (Foucault, 1992FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Tradução de Antonio Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro. Lisboa: Passagens, 1992. , p. 50).

A análise interna e arquitetônica da obra permite questionar o caráter absoluto e o papel fundamental do sujeito na constituição dos sentidos e, por isso, a função-autor possibilita tanto retirar do sujeito o papel de fundamento originário, quanto analisá-lo como uma função específica do discurso literário. Para Foucault, a função autor a) está ligada ao sistema jurídico e institucional que contém, determina e articula o universo dos discursos; b) não se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização; c) não é definida pela atribuição espontânea de um discurso a seu produtor, mas por uma série de operações específicas e complexas; d) não remete pura e simplesmente a um indivíduo real, podendo dar lugar a vários egos, várias posições-sujeito que classes diferentes de indivíduos podem vir a ocupar, o que parece constituir o aspecto menos revisado esta parece ser a menos revisada pela fortuna crítica. (Foucault, 2009FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Passagem, 2009., p. 56):

Conforme essa concepção, os discursos são constituídos por um conjunto de enunciados heterogêneos que determinam e condicionam o sujeito e o conjunto de enunciados possíveis para a enunciação de um sujeito que ocupa uma determinada posição de fala é definido, grosso modo, pela posição que ele ocupa e pelas zonas de abrangência da formação discursiva a que se filia. Esses elementos conformam os dizeres, a representação e a própria vida social dos sujeitos. Por causa disso, o sujeito assume a condição de uma instância de “dispersão de vozes” de uma dada formação discursiva, uma vez que o campo dos enunciados não remete exatamente a um sujeito individual, nem a uma consciência coletiva, nem a uma subjetividade transcendente, mas a uma definição sobre os lugares que podem ser ocupados pelos falantes.

O resultado desse modo de conceber o problema da relação entre a escritura e o texto literário é a destruição da “identidade do corpo que escreve”. Nessa versão da morte do autor, a noção assume a forma de uma função no jogo de construção de sentidos da obra. Nesse movimento, o filósofo questiona o sujeito como fonte de verdade, de liberdade, mas também de conhecimento; ademais, ainda pluraliza os sujeitos em conformidade com as configurações discursivas que fixam os protocolos dos enunciados possíveis para uma dada tópica, numa determinada situação. Essas condições distribuem as posições de sujeito, pois são elas que tornam possível tanto a enunciação quanto a subsequente apropriação do discurso por uma subjetividade. São essas as condições que, segundo Foucault, tornam possíveis que posições de sujeito possam ser reivindicadas ou revogadas.

Nesse passo vale lembrar que Hutcheon (1991HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. História, teoria, ficção. Tradução de Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago , 1991. ) questionou se a destruição do corpo que escreve não está estreitamente relacionada a uma concepção modernista de escritura, e se a concepção não é constrangida por uma concepção de arte autônoma, na qual a realidade externa é irrelevante, uma vez que a arte cria sua própria realidade. Da perspectiva de Hutcheon, trata-se de uma concepção datada e historicamente localizada no seu tempo.

Para o teórico argentino Marcelo Topuzian,

Foucault busca destacar o caráter intrinsecamente social e histórico do discurso a partir de uma análise radicalmente material, cujo propósito fundamental é não transcender nunca a materialidade do próprio acontecer discursivo. Isto não implicará, todavia, recolocar uma noção empírica de sujeito da enunciação, aquele que em seu exercício da palavra expressaria uma série de conteúdos mentais substanciais a seu discurso. (Topuzian, 2014TOPUZIAN, Marcelo: Muerte y resurrección del autor (1963-2005). Santa Fe, Argentina: Universidad Nacional del Litoral, 2014., p. 135).

Apesar de também ter como referência os mesmos artigos de Benveniste, bem distantes de Barthes são as posições mantidas por Foucault, em relação à categoria de autor. Para este pensador, ao ter sido concebida como condição de possibilidade transcendente do exercício radical da escritura, a atitude teórica que prenunciava a morte do autor se tornou a melhor tábua de sobrevivência que a figura (o autor) poderia encontrar. Para Foucault, assim ocorre porque, ao mesmo tempo que perde as referências empíricas, a teoria da morte do autor constrói uma outra autoridade ainda mais forte para o autor, agora na ordem e no âmbito da linguagem.

O autor no modelo da diversidade...

O caráter irreversível do processo de desuniversalização da noção de sujeito, provocado pelas propostas revolucionárias da morte do autor, de Barthes, e do autor como função, de Foucault, que vieram à luz nos idos dos anos de 1960 e início de 1970, impactou a constituição dos estudos das humanidades na cultura acadêmica estadunidense a partir dos anos de 1980. Nesse movimento de transposição das noções de sujeito/autor-autoria para o ambiente renovado de difusão da cultura norte-americana, ganhou nova e peculiar força o questionamento do caráter transcendente e universal do sujeito.

Nos Estados Unidos, país cuja vida cultural e acadêmica é marcada pela peculiaridade de parte dos defensores do movimento por direitos civis colocarem o ativismo por direitos civis estadunidense como modelo universal da vida civil, o resultado mais imediato e impactante dos usos e empregos dessa nova concepção das noções de sujeito e de autor/autoria foi, como já dissemos, a promoção de sensível esvaziamento das funções tradicionais da Crítica e da Teoria Literária. Nesse ambiente, como vimos, a crítica e a teoria foram substituídas pelo ativismo acadêmico de salvaguarda e autenticação das identidades das minorias étnicas e de gênero.

Essas condições propiciaram a ampliação das maneiras de conceber outros modos de pensar e fazer a política da academia. Da perspectiva de Topuzian (2014TOPUZIAN, Marcelo: Muerte y resurrección del autor (1963-2005). Santa Fe, Argentina: Universidad Nacional del Litoral, 2014., p. 151), o fato de estarem “privados do resguardo implicado pelo seu acesso epistemológica a instâncias gerais de subjetivação, sempre de caráter mais ou menos transcendental [...], garantia que o intelectual ocupasse posição determinante dos cursos da ação política”. Devido a esse estado de coisas, “os profissionais acadêmicos se viram obrigados a buscar em outra parte as credenciais capazes de sustentar sua legitimidade, especialmente quando, como no caso da universidade estadunidense, certa aura de consciência civil passou a ser um requisito fundamental para autorizar os discursos no âmbito das humanidades”. Daí a substituição da noção de consciência, que era palavra-chave da atividade política dos anos 1960-70, por identidade.1 1 Pierre Bourdieu e Loïcq Wacquant (2002, p. 15) denunciaram o modo por que, por força do afluxo de uma nova e poderosa onda - a da razão imperialista estadunidense -, “numerosos tópicos oriundos diretamente de confrontos intelectuais associados à particularidade social da sociedade e das universidades americanas impuseram-se, sob formas aparentemente desistoricizadas, ao planeta inteiro”. Para os autores, a política de identidades culturalista se tornou fenômeno de escala mundial, com particularidades na cultura brasileira.

Nesse ambiente, o vazio do lugar de sujeito instituído pelas abordagens estruturalista e desconstrutivista propiciou a emergência da necessidade de readequar a finalidade da crítica. Baseado no trabalho de Foucault, e açulado pelo ambiente de colapso da teoria, Séan Burke (1993BURKE, Séan. The death and return of the author. Criticism and subjectivity in Barthes, foucault and Derrida . Edinbourgh: Edinbourgh University Press, 1993., p. 112), um proeminente pensador americano da época, instalou no cenário da discussão sobre autor e o sujeito uma dimensão empírica, histórica e contextualizada, cujo objetivo pode ser definido como maneira de “promover novas formas de subjetividade através da recusa do tipo de individualidade que tem sido a nós imposta por muitos séculos”. Essa noção de autoria paga tributo à “ânsia de expressão de novas subjetividades” e é decorrente de uma concepção em que o tecido social das sociedades contemporâneas é concebido segundo parâmetros de gênero e etnia. Nesse ambiente, o intelectual acabou assumindo a militância de uma ética particular e se tornou avesso a manobras metodológicas que confiram alguma importância à dimensão estética dos fenômenos literários e culturais.

Para Burke, a morte do autor constitui, a bem da verdade, "uma impostura intelectual" típica da vida acadêmico-literária norte-americana que, em última instância, torna visível os seus limites [da vida acadêmica estadunidense], na exata dimensão em que a transforma em simples “alegoria através da luta no plano da leitura e da interpretação de textos contra um autor que não pode ser concebido senão como opressor, para garantir as credenciais libertárias da crítica”2 2 Do ponto de vista de Séan Burke, a tópica da morte do autor que tomou o cenário acadêmico estadunidense na década de 1980 não deriva daquela mesma origem que se expandiu a partir da radical experiência francesa do final dos anos de 1960; trata-se, antes da derivação norte-americana da "falácia intencional", típica do New criticism de origem anglo-saxã. (Topuzian, 2014TOPUZIAN, Marcelo: Muerte y resurrección del autor (1963-2005). Santa Fe, Argentina: Universidad Nacional del Litoral, 2014., p. 244).

Nesse contexto é que estão conformadas as condições para a emergência de uma teoria capaz de unificar o campo dos estudos literários e o da cultura popular. Por consequência da integração do campo dos estudos literários com a dimensão e o espaço político e social dos fenômenos culturais foi que se passou a rejeitar as especificidades das formas tradicionais dos estudos literários, fenômeno que, para Topuzian (2014TOPUZIAN, Marcelo: Muerte y resurrección del autor (1963-2005). Santa Fe, Argentina: Universidad Nacional del Litoral, 2014., p. 2009), “consiste antes numa revolução ‘palaciana’, interna, que só é capaz de assustar velhos professores de literatura”.

O cenário de perturbação teórica dos estudos literários na contemporaneidade tem sido constrangido pela necessidade de enfrentar a configuração da noção de autor/autoria vigente em nossa época - quando a resiliente concepção típica do período romântico (centrada na exaltação capitalista do indivíduo e da subjetividade concebida como una, única e consciente de si, e concentrada em torno da noção de autor enquanto entidade responsável pela coerência do sentido do texto escrito) ainda disputa espaço com a noção anti-autorialista da escrita (em que foi decretada a “morte do autor” e do sujeito da escrita), senão também com a franca retomada e o consequente fortalecimento dessa noção no contexto do pensamento social contemporâneo (em que se dá o surgimento inflacionado de novas subjetividades e, consequentemente, de novas autorias, oriundas da necessidade e da ânsia de expressão de discursos de grupos minoritários, ligados aos mais variados movimentos de circulação das vozes subalternizadas no conjunto dos estados nacionais).

Ainda nos dias de hoje, leitores não especialistas, costumam associar a noção de autor/autoridade de forma exclusiva ao polo irradiador do ato de enunciação, quer dizer, ao autor empírico, ao cidadão detentor dos direitos autorais das obras - de quem quase sempre ele, o leitor, dispõe de alguma notícia anterior para fins de sua orientação na construção de sentido para as obras.3 3 O fenômeno do best-seller ocorre, em boa medida, influenciado pela força e pelo prestígio de que alguns nomes de escritores desfrutam em determinados momentos da nossa história. Essa situação não pode ser vista como diapasão totalmente dissonante das estratégias de interpretação teórico-crítica de textos ora vigentes, haja vista que se coaduna, em alguma medida, com questionamentos éticos originados a partir da necessidade e da ânsia de expressão de discursos minoritários e da consequente emergência de novas subjetividades.

Assim, apesar de ainda gozarem de grande prestígio, sobretudo no ambiente cerrado da crítica acadêmica, tanto as concepções imanentista e antiautorialista de interpretação do texto escrito, quanto as propostas de leitura centradas na recepção das obras, têm sido relativizadas, pela ressurgência de uma noção de autoria em que o polo da produção assume de novo grande relevância no processo de interpretação. Mas a essa altura, autor e leitor já não podem se constituir em limites absolutos das estratégias de construção de sentido.

M. Topuzian se dedicou à questão da tópica do sujeito e do autor no campo dos estudos literários e culturais e produziu um longo ensaio intitulado Muerte y ressurrección del autor (1963-2005). Nesse trabalho, ele parte do reconhecimento tanto de que o discurso da teoria literária é quase sempre um discurso sobre o autor, quanto do princípio de que ‘sujeito’ e ‘autor’ são categorias que seguem tendo um lugar importante nos “procedimentos hegemônicas dos investigadores”, para, depois, fazer um percurso em que levanta, step by step, as camadas de sentidos históricos acumulados pelas noções-chave que investiga.

O texto se divide em duas partes solidárias: a primeira se intitula “La teoria de la muerte del autor y lo estudio de la literatura”, e a segunda trata de “Las condiciones contemporáneas para volver a interrogar la figura del autor”. O autor se empenha em levantar os pressupostos que sustentam cada uma das etapas históricas da teorização sobre essas concepções-chave dos estudos literários, para, em seguida, perquirir a problemática da "morte do autor", que deixou marcas indeléveis no mundo da teoria literária e cultural. Dessa perspectiva, depois de terem sido abandonados os princípios e as ferramentas da expertise teórico-literária, o retorno do autor se definiu metodologicamente a partir de um conglomerado de elementos e de recursos selecionados nas zonas de abrangência das diversas disciplinas de ‘origem’ de pensadores que se ocuparam da questão, que, por sua vez, são oriundos de diferentes campos do conhecimento.

Para Topuzian, a guinada conservadora que transformou o paradigma dos estudos literários nos anos 1980 e 1990 constitui “manobra defensiva de uma crise generalizada da disciplina”, que, desde então, voltou a recorrer ao autor e ao seu contexto como ferramenta de legitimação de seus pareceres sobre os objetos (ainda que que estes agora não fossem mais a literatura do cânon, branco, central [...])”. Para o teórico argentino, enquanto os "estudos de área" levaram a um avanço das Ciências Sociais sobre o campo da cultura, os Estudos Culturais, nas suas múltiplas variantes, designam o peculiar compromisso do aparelho conceptual da teoria - devidamente purificado das suas pretensões universalistas mais radicais (e disciplinarmente imperialistas) - com a história literária tradicional e a sociologia da cultura.

Nesse passo, o autor atenta para como

[...] a influência de Michel Foucault sobre os estudos literários [...] posteriores à década de 80 [...] com sua denúncia das falsas pretensões universalistas e transcendentalizantes das teorias da ‘morte do autor’ e da ‘escritura intransitiva’, [...] terminou provendo [..] de um conjunto de ferramentas e de operações básicas o (multi-)culturalismo relativista como única filosofia aceitável para os estudos literários e culturais posteriores à queda do estruturalismo em suas versões mais radicais [...]. É surpreendente que muitas das ferramentas teóricas que ele cunhou tenham contribuído para a reconstituição das disciplinas da história literária e da análise sociocultural da literatura [...] ajudando, assim, a resguardar as posições institucionais [...]. ‘Enunciados’, ‘formações discursivas’, ‘posições de sujeito’ podem encobrir hoje simplesmente o tranquilo desempenho da normalidade de uma história e de uma análise social da cultura bem enquadradas e respaldadas institucionalmente. (Topuzian, 2014TOPUZIAN, Marcelo: Muerte y resurrección del autor (1963-2005). Santa Fe, Argentina: Universidad Nacional del Litoral, 2014., p. 217 e segs.).

Partindo das premissas de que a noção (abstrata e universal) de sujeito encobre interesses particulares, não passa de efeito de estruturas, e é sempre fruto de uma construção contingente, a política de identidades definiu a premissa teórica de que todo sujeito é particular e resultante de traços culturais que fornecem identidades sempre parciais e culturalmente marcadas. Nesse ambiente, arremata Topuzian (2014TOPUZIAN, Marcelo: Muerte y resurrección del autor (1963-2005). Santa Fe, Argentina: Universidad Nacional del Litoral, 2014., p. 217), a “singularidade-identidade-sujeito-autor se converte na salvaguarda da política de crítica literária e cultural: como cuidado de um núcleo que não deve ser tocado pela reflexão”. Daí foi um passo pequeno até que fosse fixada em definitivo a concepção de que, sendo o autor e o sujeito efeitos de formações históricas e culturais específicas, haverá várias formas específicas de subjetivação e de autorialidade.

Em razão disso, os estudos literários e culturais passaram a dar particular importância à lógica dos “vínculos entre escritores e seus modos de ser, de dedicar-se à profissão, ao métier d'écrivain, à maneira, enfim, que eles constroem para si mesmos lugares nos campos da literatura e da cultura, como cumprem, se o fazem, o papel de intelectual” (Topuzian, 2014TOPUZIAN, Marcelo: Muerte y resurrección del autor (1963-2005). Santa Fe, Argentina: Universidad Nacional del Litoral, 2014., p. 360). Alavancado pelo transnacional sistema de editoração, esse ambiente transforma escritores em celebridades segundo uma lógica ditada pelo rendimento econômico, no bojo da qual o escritor-autor participa do processo de venda da obra, feito marqueteiro de si e do selo editorial publicador da obra. Em nenhuma época houve tantas celebridades literárias.

Eis que se pode constatar o “retorno” de uma concepção tipicamente oitocentista de "literatura como representação”. Para Topuzian (2014TOPUZIAN, Marcelo: Muerte y resurrección del autor (1963-2005). Santa Fe, Argentina: Universidad Nacional del Litoral, 2014., p. 12), a ‘redução’ do sujeito à identidade fez com que certos

traços identitários dos autores se converte[ssem]ram em condição das ações interpretativas ao mesmo tempo [...] que muitos desses mesmos traços se transformavam nos objetos privilegiados dos mecanismos de promoção editorial. Deste modo, gênero, etnia, raça, nacionalidade e até classe, não somente resultaram contrassenhas fundamentais da política acadêmica de identidades e das diversas modalidades de investigação e estudo da literatura dela derivadas, senão marcas específicas que passaram a definir (culturalmente) uma noção mais ou menos clássica de autor se não plenamente rediviva, ao menos muito renovada em suas fontes de legitimação, e sem dúvidas com muita força histórica. (Topuzian, 2014TOPUZIAN, Marcelo: Muerte y resurrección del autor (1963-2005). Santa Fe, Argentina: Universidad Nacional del Litoral, 2014., p. 12).

Essa nova substancialização da autoria resultou na fundamentação do princípio segundo o qual a figura do autor não pode ser postulada do mesmo modo em diferentes culturas, uma vez que sua configuração depende de modos étnicos, de gênero, raciais e de classe específicos. Demais, também tornou possível que escritores passassem a ocupar, cada vez mais ostensivamente, lugares de destaque no modo de comercialização em relação com outros valores residuais próprios do campo literário. Nesse novo marco teórico-conceitual, os meios de comunicação e o sistema editorial e periodista assumem particular importância no processo de definição do novo estatuto referencial da literatura, transformado de forma imediata em cultura. “O autor é, assim, quando não mera marca comum e corrente, a sede de uma ilusão de profundidade estética que é o correlato contemporâneo da substância subjetiva da obra de arte lograda que alguma vez se pensou oposta ponto por ponto ao mundo dos interesses objetivos.

Topuzian (2014TOPUZIAN, Marcelo: Muerte y resurrección del autor (1963-2005). Santa Fe, Argentina: Universidad Nacional del Litoral, 2014., p. 19 e segs.) reconhece os problemas derivados de uma concepção de literatura definida a partir de interesses meramente mercadológicos, mas também os problemas próprios a um tipo de lógica idealizante tal como aquela proposta por Bourdieu, baseada na noção de capital cultural, e que defende que o problema do autor não deve ser colocado em relação ao que a literatura produz em termos de efeitos específicos de sentidos, mas em relação a como o autor e a obra devem suas credenciais aos efeitos de sua posição estrutural no campo da cultura”. Topuzian é da opinião de que a nova configuração do campo não admite mais posições conservadoras, que simplesmente desqualificam as forças do mercado.

De minha perspectiva, “nem tanto à terra, nem tanto ao mar”: partilho da convicção de que, por mais relevante que seja o fato de o mercado editorial investir e impor suas sucessivas modas literárias a um mercado sempre ávido por todo tipo de novidade politicamente correta, a realidade - essa incômoda - sempre bate à porta; e, em razão disso, ao que parece, somente textos que apresentam uma real capacidade tanto para entreter e deleitar, em razão da beleza e da agudeza da expressão, quanto para edificar a vida, problematizando em profundidade a sua diversidade, parecem ser dotados da capacidade para se tornarem “texto-matrizes”, derivando apropriações diversas e quase sempre marcadas pela polêmica.

Tal como M. Topuzian, teóricos, críticos e historiadores literários contemporâneos vêm se dedicando aos estudos que envolvem questões referentes ao estatuto e às formas de manifestação das subjetividades/autorias na economia dos discursos literários e, por conseguinte, vêm desenvolvendo propostas de análise com variados pontos de apoio e de expansão. Recusando a simplificação quase grosseira de que os discursos literários refletem lugares de fala específicos e substancializam identidades transparentes, esses pesquisadores oriundos de áreas diversas do campo dos estudos literários têm-se dedicado aos estudos das subjetividades nos discursos literários buscando recolocar na pauta de discussão a retomada da noção de autor em sua complexidade.

Nesse cenário despontam nomes como o de Leonor Arfuch, autora de O espaço biográfico, dilemas da subjetividade contemporânea (2010ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico. Dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução de Paloma Vidal. Rio de Janeiro, Editora da UERJ, 2010.), obra de fatura histórica e teórica que trata com profundidade sobre o modo por que os periagentes - editores, agentes e demais profissionais ligados às editoras - encorpam as formas de manifestação das subjetividades no âmbito do fazer literário; e Diana Klinger, autora de Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica (2012), obra que trata de como em nossos dias se entrecruzam nos discursos romanescos as formas da escrita de si e a necessidade do encontro com o outro distante. Essas pesquisadoras praticam abordagens que exemplificam procedimentos teórico-metodológicos que buscam superar a obviedade das identidades literárias como chave analítica única e exclusiva para explicação das subjetividades que estruturam os discursos literários.

Da perspectiva de Klinger (2012KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012. 2ª Edição., p. 10-11), as formas literárias da narrativa contemporânea são marcadas por dois aspectos que a caracterizam e definem: “uma presença marcante da primeira pessoa e um olhar sobre o outro culturalmente afastado. [...]. A escrita de si e a escrita do outro”. Estas duas problemáticas, derivadas da ética e da estética, são terminologicamente definidas como os processos de “retorno do autor” e da “virada etnográfica” nas formas discursivas de diferentes áreas das humanidades. Juntas, elas apontam tanto para a representação da hiperinflação da subjetividade na sociedade midiática do espetáculo quanto para uma atração pelas “figuras marginais da sociedade”.

Kliger tanto afirma que a relação mantida entre formas de representação do eu e a questão da representação do outro na constituição da narrativa moderna se tornaram tópicos importantes na pauta recente das disciplinas humanísticas, quanto trata da existência de uma zona da prosa literária da atualidade marcada pela presença problemática da primeira pessoa autobiográfica na América Latina4 4 Diana Klinger (2012, p. 17) reconhece que estas características não constituem “marca privativa da literatura latino-americana” e que se trata de uma “vertente que aparece na narrativa contemporânea universal”, especialmente na literatura francesa, onde se manifestou em decorrência do impasse existente entre o “formalismo e o estruturalismo em literatura” levado a cabo por literatos ligados aos grupos do Nouveau Roman, Oulipo e Tel Quel. Mas, como seu interesse é “contribuir para um pensamento sobre o presente”, ela se volta para a análise das manifestações literárias latino-americanas. Daí sua análise de um significativo grupo de escritores latino-americanos, sobretudo brasileiros e argentinos. . A ensaísta afirma que a realidade de muitos “romances contemporâneos se voltarem sobre a própria experiência do autor “tem a ver como avanço da cultura midiática de fim de século [que] oferece um cenário privilegiado para a afirmação dessa tendência”.

Tomando por base o trabalho de Leonor Arfuch, a ensaísta acrescenta:

Nela se produz uma crescente visibilidade do privado, uma espetacularização da intimidade e a exploração da lógica da celebridade, que se manifesta numa ênfase tal do autobiográfico, que é possível afirmar que a televisão se tornou um substituto secular do confessionário eclesiástico e uma versão exibicionista do confessionário psicanalítico. Assistimos hoje a uma proliferação de narrativas vivenciais, ao grande sucesso mercadológico das memórias, biografias, das autobiografias e dos testemunhos; aos inúmeros registros biográficos na mídia, retratos, perfis, entrevistas, confissões, talk show e reality shows; ao surto dos blogs na internet, ao auge das autobiografias intelectuais, de relatos pessoais nas ciências sociais, a exercícios de ‘ego-história’, ao uso de testemunhos e dos ‘relatos de vida’ na investigação social, e à narração autorreferente nas discussões teóricas e epistemológicas. (Klinger, 2012KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012. 2ª Edição., p. 18).

O retorno do autor tem a ver não apenas com o questionamento do sujeito, de que já tratamos anteriormente, e que tem nos nomes de Foucault e Barthes seus maiores expoentes, mas também com o processo de supercelebrização da figura do escritor, o qual guarda, por sua vez, estreita relação com o processo de “espetacularização da intimidade”, tão típica dos nossos tempos. No âmbito da cultura de massas que predomina em nossos dias, o que mais interessa não é exatamente aquele que fala? No jogo da enunciação literária que ora vige, a condição do escritor (a origem étnica e geográfica, o gênero, a classe, o extrato social, enfim) se tornou elemento privilegiado no processo de construção de sentido e no jogo de atribuição de valores.

Klinger (2012KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012. 2ª Edição., p. 34) assume a posição de que o retorno do autor não constitui, todavia, um mero e simples “retorno de um sujeito pleno no sentido moderno, cartesiano, mas haveria um deslocamento: nas [boas] práticas contemporâneas da ‘literatura do eu’ a primeira pessoa se inscreve de maneira paradoxal num quadro de questionamento da identidade”. Essa constitui uma hipótese bastante interessante para discutir a emergência de uma literatura e de uma nova concepção de autorialidade no âmbito da cultura brasileira.

O retorno do autor ao jogo de construção de sentidos na cultura a de nossos tempos está ligado à “hermenêutica do outro”. Para Klinger (2102KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012. 2ª Edição., p. 60 e segs.), desde os “anos 1980 antropólogos questionaram a autoridade em produzir representações válidas sobre o outro, e assim insinuaram que a prática etnográfica tinha algo a ver com a ficção”. Nesse terreno floresce a “crise de representação” do outro e a “insistente persistência nos problemas da identidade e da diferença, do multiculturalismo, da exclusão social, das minorias. Desde os anos 1990, o universo de figuras marginais e não letradas tem sido objeto de interesse privilegiado na América Latina e no Brasil. Baseada no pensamento de Foster, Klinger afirma que “o paradigma do artista como etnógrafo, que surge ao redor dos anos 1980, preserva do anterior o romantismo do outro, quer dizer a noção de sujeito da história que não está na ideologia e sim na verdade [...]”. Nesse paradigma, sobressai a ‘fantasia primitivista’ de que o outro tem acesso especial à psique primária e a processos sociais a que o ‘sujeito branco’ tem acesso vedado”.

Diferentemente de Foster, Klinger defende a posição de que não se trata do “retorno e sim do apagamento da fantasia primitivista e da reformulação da categoria do outro”, o que acontece, segundo ela, por duas razões: primeiro porque o outro tem começado a falar e a escrever e, segundo, porque o outro não é mais o outro radical e puro. Da perspectiva de Topuzian, o retorno do autor é o nome que se dá a um tipo de operação através da qual

os estudos literários e culturais parecem simplesmente voltar a um trabalho que sistematicamente exclui de sua consideração seus próprios pressupostos, de modo que possam se sustentar como programas válidos com sua agenda de investigação positiva, às vezes obtendo credenciais de compromisso político social, como vimos, que frequentemente formam parte das características standards e obrigatórias desses mesmos programas de investigação. (Topuzian, 2014TOPUZIAN, Marcelo: Muerte y resurrección del autor (1963-2005). Santa Fe, Argentina: Universidad Nacional del Litoral, 2014., p. 244).

Levando em consideração as condições tanto da questão teórica sobre o estatuto da autoria em nossos dias (em que diferentes concepções de autor convivem) quanto o fato de que a análise objetiva de obras concretas figura entre os procedimentos mais produtivos dos estudos literários, creio termos aqui revisado alguns dos mais importantes fundamentos dos quadros de referência a partir dos quais são formulados os julgamentos críticos e teóricos no campo da literatura, mediante o desenvolvimento de estudos sobre a noção de autoria e sua consequente objetivação.

Referências

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  • BURKE, Séan. The death and return of the author Criticism and subjectivity in Barthes, foucault and Derrida . Edinbourgh: Edinbourgh University Press, 1993.
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  • FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Passagem, 2009.
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  • TOPUZIAN, Marcelo: Muerte y resurrección del autor (1963-2005). Santa Fe, Argentina: Universidad Nacional del Litoral, 2014.
  • 1
    Pierre Bourdieu e Loïcq Wacquant (2002BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loïc. Sobre as artimanhas da razão imperialista. Estudos afro-asiáticos, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 15-33, 2002. Available from http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-546X2002000100002&lng=en&nrm=iso . Acesso em 15 maio 2018.
    http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
    , p. 15) denunciaram o modo por que, por força do afluxo de uma nova e poderosa onda - a da razão imperialista estadunidense -, “numerosos tópicos oriundos diretamente de confrontos intelectuais associados à particularidade social da sociedade e das universidades americanas impuseram-se, sob formas aparentemente desistoricizadas, ao planeta inteiro”. Para os autores, a política de identidades culturalista se tornou fenômeno de escala mundial, com particularidades na cultura brasileira.
  • 2
    Do ponto de vista de Séan BurkeBURKE, Séan. The death and return of the author. Criticism and subjectivity in Barthes, foucault and Derrida . Edinbourgh: Edinbourgh University Press, 1993., a tópica da morte do autor que tomou o cenário acadêmico estadunidense na década de 1980 não deriva daquela mesma origem que se expandiu a partir da radical experiência francesa do final dos anos de 1960; trata-se, antes da derivação norte-americana da "falácia intencional", típica do New criticism de origem anglo-saxã.
  • 3
    O fenômeno do best-seller ocorre, em boa medida, influenciado pela força e pelo prestígio de que alguns nomes de escritores desfrutam em determinados momentos da nossa história.
  • 4
    Diana Klinger (2012KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012. 2ª Edição., p. 17) reconhece que estas características não constituem “marca privativa da literatura latino-americana” e que se trata de uma “vertente que aparece na narrativa contemporânea universal”, especialmente na literatura francesa, onde se manifestou em decorrência do impasse existente entre o “formalismo e o estruturalismo em literatura” levado a cabo por literatos ligados aos grupos do Nouveau Roman, Oulipo e Tel Quel. Mas, como seu interesse é “contribuir para um pensamento sobre o presente”, ela se volta para a análise das manifestações literárias latino-americanas. Daí sua análise de um significativo grupo de escritores latino-americanos, sobretudo brasileiros e argentinos.

Editado por

Editor-chefe dos Estudos de Literatura

Silvio Renato Jorge

Editores convidados

Manoel Mourivaldo Santiago e Ceila Maria Ferreira Batista

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    21 Jun 2023
  • Aceito
    14 Mar 2024
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