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O efeito da familiaridade como variável pragmática no processamento de metáforas

The effects of familiarity as a pragmatic variable in metaphorical sentence processing

Resumo

A convencionalidade é normalmente considerada a principal variável atuante no processamento de frases metafóricas. Neste artigo, defende-se, alternativamente, a hipótese de que é a familiaridade o fator pragmático determinante para a compreensão de metáforas nominais do tipo “X é um Y”. Autores como Searle (1993 [1979]), Gibbs (1981), Janus e Bever (1985), Glucksberg (1988; 2003), Bowdle e Gentner (2005) e Ricci (2016) utilizaram-se da convencionalidade como variável fundamental para os seus estudos experimentais, ignorando o efeito da familiaridade. É dentro deste contexto, e por contraste, que o presente estudo se insere. Um experimento on-line de leitura segmentada autocadenciada com frases metafóricas do tipo “X é um Y” apresentadas sem contexto prévio foi aplicado e revelou que a familiaridade (e não a convencionalidade) foi a única variável que registrou efeito significativo.

Palavras-chave:
Psicolinguística; Processamento; Metáfora; Pragmática; Familiaridade

Abstract

Conventionality is usually considered the main operating variable in metaphorical sentence processing. This article argues that familiarity is actually the determining pragmatic factor in regular understanding of nominal metaphors of the type as “X is a Y”. Authors such as Searle (1993 [1979]), Gibbs (1981), Janus and Bever (1985), Glucksberg (1988; 2003), Bowdle and Gentner (2005) and Ricci (2016) manipulated conventionality as a fundamental variable in their experimental studies. They’ve ignored familiarity effects. It is within this context, and by contrast with it, that the present study is addressed. An online self-paced reading experiment with metaphorical sentences presented without prior context was applied and revealed that familiarity was the only variable with a significant effect.

Keywords:
Psycholinguistics; Language Processing; Metaphor; Pragmatics; Familiarity

Introdução

O termo “metáfora” está popularmente relacionado à linguagem conotativa diretamente ligada às obras literárias. Nas ciências da linguagem, entretanto, já é antiga a concepção de que as expressões linguísticas comuns de simples usuários de uma língua são muitas vezes recheadas de metáforas cf. (Clark; Lucy, 1975CLARK, Herbert; LUCY, Peter. Understanding what is meant from what is said: A study in conversationally conveyed request. Journal of Verbal Learning and Verbal Behavior, v. 14, n. 1, p. 335-359, 1975.; Searle, 1993SEARLE, John. Metaphor. In: ORTONY, Andrew. Metaphor and thought. 2nd edition. New York. Cambridge University Press, 1993 [1979]. p. 83-111 [1979]; Gibbs, 1981GIBBS, Raymond W. Jr. Your wish is my command: Convention and context in interpreting indirect request. Journal of Verbal Learning and Verbal Behavior , v. 20, n. 4, p. 435-444, 1981. , entre outros1 1 Reconhecemos a influência de Lakoff e Johnson (1980) e outros estudos cognitivas no estudo das “metáforas do cotidiano”, mas deixamos essa citação em nota porque o presente artigo se insere noutra tradição (psico)linguística de estudos das metáforas, inteiramente distinta em termos teóricos e metodológicos. ). O presente artigo se insere nessa linha de investigação dedicada às metáforas do uso ordinário da língua. Ele relata parte da pesquisa experimental conduzida por Silva (2022SILVA, Gladiston Alves da. Psicolinguística da metáfora: o processamento da familiaridade em PB. 2022. Tese (Doutorado em Estudos de Linguagem) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2022), que investigou o papel da variável pragmática familiaridade, por contraste a outras variáveis, na percepção e no processamento de frases metafóricas. Com efeito, as expressões metafóricas consideradas por Silva e aqui retomadas se caracterizam como frases nominais, representadas pela fórmula “X é um Y”. Nessa fórmula, o argumento X é o tópico da expressão e é o seu sentido que deve ser alterado ou transportado para esfera de domínio de outra palavra, que é o argumento Y, o veículo metafórico, ou seja, a palavra que cuidará do transporte do sentido do tópico para esfera de significado de outro domínio (cf. Janus e Bever, 1985JANUS, Raizi; BEVER, Thomas. Processing of metaphoric language: an investigation of the three-stage model of metaphor comprehension. Journal of Psycholinguistic Research, v. 14, n. 5, p. 473-487, 1985.; Glucksberg, 1998GLUCKSBERG, Sam. Understanding metaphors. Current Directions in Psychological Science, v. 7, n. 2, p. 39-43, 1998.; 2003GLUCKSBERG, Sam. The Psycholinguistics of metaphor. Trends in Cognitive Sciences, v. 7, n. 2, p. 92-96, 2003.). Por exemplo, na expressão ‘Alguns carros são abacaxis’, a palavra ‘carro’ é o tópico X e a palavra ‘abacaxi’ é o veículo Y, sendo que, nesse caso, é ‘carro’ que precisa ter o seu sentido transportado para a esfera de domínio da palavra ‘abacaxi’, para então ser interpretada metaforicamente com o sentido de que alguns carros são problemáticos e apresentam defeitos constantemente.

Os estudos (psico)linguísticos dedicados à metáfora divergem na interpretação de como expressões do tipo “X é um Y” são processadas cognitivamente. Por exemplo, o Standard Pragmatic Model (SPM - Modelo Pragmático Padrão), de Searle (1993SEARLE, John. Metaphor. In: ORTONY, Andrew. Metaphor and thought. 2nd edition. New York. Cambridge University Press, 1993 [1979]. p. 83-111 [1979]), assume que frases metafóricas, tais como ‘Alguns carros são abacaxis’, deveriam ser interpretadas primeiramente como literais. Dado que não haveria coerência nessa interpretação, seria necessário passar a outro estágio de análise, em que se cotejam as características do tópico e do veículo para, por fim, se chegar a um terceiro momento, em que se produz uma interpretação não-literal adequada: ‘Alguns carros são abacaxis’ é uma metáfora que quer dizer ‘Alguns carros são problemáticos’. Para esse modelo, o processamento de uma metáfora é mais custoso do que o de expressões literais, devendo envolver, portanto, mais operações cognitivas em tempo real. Por outro lado, diversos pesquisadores, em particular aqueles que interpretaram o fenômeno da metáfora como inclusão de classe (class inclusion), tais como Glucksberg (2003GLUCKSBERG, Sam. The Psycholinguistics of metaphor. Trends in Cognitive Sciences, v. 7, n. 2, p. 92-96, 2003.) e Ricci (2016RICCI, Adiel Queiroz. O processamento psicolinguístico da metáfora: um estudo experimental no PB. 2016. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016.), contestam as assunções do SPM, pois, para eles, o processamento de frases metafóricas convencionalizadas na sociedade não deve ser mais custoso do que o de expressões literais, uma vez que o ouvinte/leitor teria conhecimento pragmático das classes abrangidas por veículos metafóricos e, assim, ao se deparar com uma expressão do tipo “X é um Y”, faria associação imediata entre o veículo metafórico e a respectiva classe a que ele pertence. Por exemplo, ‘abacaxi’ está convencionalizado no português como sendo um veículo metafórico que se refere a uma classe de coisas problemáticas, então para o ouvinte/leitor bastaria enquadrar o tópico dentro dessa classe para que a frase fosse perfeitamente interpretável.

Outra questão teórica importante no estudo da metáfora diz respeito a quais variáveis relevantes estariam envolvidas no processamento cognitivo de expressões como “X é um Y”. Na literatura sobre o tema desenvolvida nas últimas décadas, essas variáveis foram identificadas como apenas três, que funcionam como uma espécie de tripé de sustentação para metáforas. De fato, para que uma metáfora seja estabelecida ou se torne permanente na língua, é preciso que ela seja sustentada por uma base fixa que, nesse caso, é formada pela convencionalidade, pela familiaridade e por ‘aptness’ (termo não traduzido, que quer dizer algo como ‘adequação’, em tradução livre). A convencionalidade diz respeito especificamente ao veículo metafórico, ou seja, ao Y da fórmula. É essa palavra que está inserida no dicionário não só com o seu sentido literal, mas também com o figurado. Tal palavra ganhou polissemia justamente por ser convencionalmente usada de maneira metafórica, a tal ponto de ser dicionarizada. A familiaridade, por sua vez, se refere à própria frase metafórica construída, isto é, não se limita apenas ao veículo metafórico, pelo contrário, além de englobar o veículo (Y), envolve também o tópico (X), além de todas as outras palavras incluídas na expressão. Portanto, qualquer mudança na estrutura da frase pode alterar o grau de familiaridade de uma expressão.

Além disso, diferentemente do caráter mais dicionarizado da convencionalidade, a familiaridade é uma variável de natureza pragmática, relacionada à percepção individual da relação entre o tópico e o veículo de uma metáfora, numa espécie de relação entre X e Y que pode parecer mais ou menos familiar a um indivíduo específico, isto é, a variável pragmática familiaridade se refere, grosso modo, ao fato de um pessoa já ter ouvido antes a associação entre um dado tópico e um determinado veículo e, assim, conhecer o valor metafórico presente na expressão.2 2 Autores como Glucksberg (2003) mensuraram a familiaridade de expressões “X é um Y” em inglês por meio de questionários realizados com centenas de falantes daquela língua. Esses falantes indicavam, caso a caso, se uma expressão metafórica específica lhe parecia familiar, no sentido de já ter sido por ele ouvida ou lida antes. No PB foi somente com o estudo de Ricci (2016) que um banco de dados capaz de objetificar a percepção subjetiva da familiaridade foi constituído, por meio da mesma técnica utilizada por Glucksberg. O ‘aptness’, por fim, concerne à relação entre tópico e veículo. Aptness é a variável que regula o quão adequada/dedutível/feliz é a relação entre um dado tópico e um dado veículo metafórico. As frases metafóricas que apresentam adequação elevada entre tópico e veículo, em tese, podem ser processadas mais prontamente pelo ouvinte/leitor independentemente de serem novas ou convencionalizadas, familiares ou não.

Considerando-se o tripé (de variáveis) que dá sustentação às metáforas, o presente artigo tem um foco experimental voltado para a familiaridade como variável pragmática fundamental para a interpretação de uma expressão metafórica do tipo “X é um Y”. Ele apresenta os detalhes de um experimento de leitura segmentada autocadenciada com frases metafóricas que continham um desnivelamento entre alta ou baixa convencionalidade e alta ou baixa familiaridade. Esse desnivelamento foi necessário para aferir se a familiaridade, por si só, interferia no tempo de processamento de metáforas, já que alguns estudos identificaram que expressões cujos veículos possuíam alta convencionalidade eram processadas tão prontamente quanto expressões literais equivalentes, sem que, no entanto, fossem feitas aferições em relação à familiaridade. É o caso, por exemplo, de Glucksberg (2003GLUCKSBERG, Sam. The Psycholinguistics of metaphor. Trends in Cognitive Sciences, v. 7, n. 2, p. 92-96, 2003.), que não levou em consideração o grau de familiaridade das expressões para construir seus experimentos, que deram conta de explicar a sua teoria do class-inclusion. Outro estudo importante foi o desenvolvido por Ricci (2016RICCI, Adiel Queiroz. O processamento psicolinguístico da metáfora: um estudo experimental no PB. 2016. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016.), que aplicava a teoria do class-inclusion no português brasileiro (PB). Porém, diferentemente de Glucksberg (2003GLUCKSBERG, Sam. The Psycholinguistics of metaphor. Trends in Cognitive Sciences, v. 7, n. 2, p. 92-96, 2003.), Ricci (2016RICCI, Adiel Queiroz. O processamento psicolinguístico da metáfora: um estudo experimental no PB. 2016. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016.) teve em conta tanto a convencionalidade quanto a familiaridade e o aptness das expressões. Porém, para não fugir de seu objetivo principal, Ricci (2016) se utilizou apenas de expressões com alta convencionalidade, alta familiaridade e alto grau de aptness a fim de demonstrar o processamento direto (isto é, não mediado por uma leitura literal primária) dessas expressões no PB com base na teoria de inclusão de categoria de Glucksberg (2003GLUCKSBERG, Sam. The Psycholinguistics of metaphor. Trends in Cognitive Sciences, v. 7, n. 2, p. 92-96, 2003.). É essa lacuna teórica e experimental deixada para a variável pragmática familiaridade que se pretende preencher no presente artigo.

O artigo está organizado em três grandes seções. Na primeira delas, se passam em revista os aspectos teóricos mais importantes envolvidos nos estudos psicolinguísticos dedicados ao processamento de metáforas. Assim, são sumarizados os modelos de processamento indireto (SPM) e direto (class-inclusion), bem como são detalhadas as motivações para a eleição das três variáveis (convencionalidade, familiaridade e aptness) como aquelas que atuam na sustentação cognitiva do processamento metafórico. Na segunda seção, apresentam-se os detalhes do experimento de leitura segmentada autocadenciada desenhado para explorar, pela primeira vez na literatura, a hipótese de que a familiaridade possui um papel diferente das outras duas variáveis do tripé, que é, senão determinante, pelo menos particularmente importante para o êxito da interpretação metafórica de expressões do tipo “X é um Y”. Por fim, a última seção interpreta os dados do referido experimento e indica as possíveis contribuições que ele pode trazer para a compreensão das variáveis pragmáticas envolvidas no processamento psicolinguístico de expressões metafóricas.

Aspectos teóricos

Os estudos sobre o processamento de metáforas têm se debruçado sobre dois aspectos fundamentais. O primeiro se refere ao modo de interpretação de uma frase metafórica: metáforas do tipo “X é um Y” são compreendidas pelos falantes como declaração ou como comparação? Ou seja, diante das frases ‘Alguns carros são abacaxis’ (declaração) e ‘Alguns carros são como abacaxis’ (comparação), qual delas um falante do PB consideraria mais natural e espontânea? O segundo aspecto é se metáforas demandam mais tempo para serem processadas em relação a expressões literais (processamento indireto) ou se são processadas em latências equivalentes às de expressões literais (processamento direto).

Sobre o primeiro aspecto, pode-se destacar o trabalho de Bowdle e Gentner (2005BOWDLE, Brian F.; GENTNER, Dedre. The career of metaphor. Psychological Review, v. 112, n. 1, p. 193-216, 2005.), que desenvolveram a teoria da carreira da metáfora, a qual reunia evidências de que as metáforas que possuíam alta convencionalidade eram processadas livremente pelos modos de declaração e de comparação, enquanto metáforas novas (baixa convencionalidade) eram processadas exclusivamente pelo modo de comparação. Ainda sobre esse primeiro aspecto, Silva (2018SILVA, Gladiston Alves Da. A interferência da familiaridade no processamento de metáfora no PB. 2018. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018.) buscou aferir a interferência da familiaridade na percepção de metáforas, fazendo uso no PB, com as devidas adaptações, dos experimentos off-line produzidos por Bowdle e Gentner (2005BOWDLE, Brian F.; GENTNER, Dedre. The career of metaphor. Psychological Review, v. 112, n. 1, p. 193-216, 2005.). As evidências reunidas por Silva (2018SILVA, Gladiston Alves Da. A interferência da familiaridade no processamento de metáfora no PB. 2018. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018.) com a realização de quatro experimentos off-line apontaram que a familiaridade interferia na percepção de metáforas e mudava a preferência pela aceitação de um ou outro modo de expressão (declaração ou comparação).

Sobre o segundo aspecto da discussão, é importante salientar que inúmeros pesquisadores divergem quanto ao modo pelo qual o processamento das metáforas ocorre (cf. Clark e Lucy, 1975CLARK, Herbert; LUCY, Peter. Understanding what is meant from what is said: A study in conversationally conveyed request. Journal of Verbal Learning and Verbal Behavior, v. 14, n. 1, p. 335-359, 1975.; Searle, 1993SEARLE, John. Metaphor. In: ORTONY, Andrew. Metaphor and thought. 2nd edition. New York. Cambridge University Press, 1993 [1979]. p. 83-111 [1979]; Gibbs, 1981GIBBS, Raymond W. Jr. Your wish is my command: Convention and context in interpreting indirect request. Journal of Verbal Learning and Verbal Behavior , v. 20, n. 4, p. 435-444, 1981. ; Janus e Bever, 1985JANUS, Raizi; BEVER, Thomas. Processing of metaphoric language: an investigation of the three-stage model of metaphor comprehension. Journal of Psycholinguistic Research, v. 14, n. 5, p. 473-487, 1985.; Glucksberg, 1998GLUCKSBERG, Sam. Understanding metaphors. Current Directions in Psychological Science, v. 7, n. 2, p. 39-43, 1998.; 2003GLUCKSBERG, Sam. The Psycholinguistics of metaphor. Trends in Cognitive Sciences, v. 7, n. 2, p. 92-96, 2003.; Bowdle e Gentner, 2005BOWDLE, Brian F.; GENTNER, Dedre. The career of metaphor. Psychological Review, v. 112, n. 1, p. 193-216, 2005.). Na linha do processamento indireto, destaca-se o trabalho de Searle (1993 SEARLE, John. Metaphor. In: ORTONY, Andrew. Metaphor and thought. 2nd edition. New York. Cambridge University Press, 1993 [1979]. p. 83-111[1979]), que aponta para um modelo de processamento de metáforas em três estágios discretos, ou seja, no primeiro momento, no qual o ouvinte/leitor se depara com uma expressão metafórica, de imediato, ele constrói uma interpretação literal. Num segundo momento, ele testa essa interpretação contra o contexto para determinar a sua plausibilidade e adequação. Não sendo essa interpretação literal coerente com o contexto, essa interpretação é rejeitada e se passa ao terceiro momento, qual seja: uma nova interpretação derivada do significado literal e do significado não literal adequado ao contexto. Tal modelo de processamento tornou-se historicamente conhecido como Pragmático Padrão (SPM)3 3 Numa rápida ilustração do modelo, o SPM prediz que, diante de uma frase como “Alguns carros são abacaxis”, o leitor/ouvinte primeiramente faria uma leitura literal, que falharia e dispararia a busca de uma interpretação alternativa, com a busca de informações contextuais que indicassem o valor pretendido na metáfora. Finalmente, o leitor/ouvinte associaria “abacaxi” ao valor de “coisa que gera dificuldades” para interpretar a frase. .

Nessa mesma linha de processamento indireto se enquadram os estudos produzidos por Janus e Bever (1985JANUS, Raizi; BEVER, Thomas. Processing of metaphoric language: an investigation of the three-stage model of metaphor comprehension. Journal of Psycholinguistic Research, v. 14, n. 5, p. 473-487, 1985.), que demonstraram que o tempo de leitura para metáforas era mais longo quando comparado à leitura de expressões literais correspondentes. Outros estudos também davam conta da visão de que metáforas eram processadas mais lentamente do que os seus correlatos literais, dentre eles, destacam-se Clark e Lucy (1975CLARK, Herbert; LUCY, Peter. Understanding what is meant from what is said: A study in conversationally conveyed request. Journal of Verbal Learning and Verbal Behavior, v. 14, n. 1, p. 335-359, 1975.) e Gibbs (1981GIBBS, Raymond W. Jr. Your wish is my command: Convention and context in interpreting indirect request. Journal of Verbal Learning and Verbal Behavior , v. 20, n. 4, p. 435-444, 1981. ). As evidências experimentais, com dados de tempo de reação durante a leitura, apontadas por estes estudos davam o suporte empírico ao modelo SPM.

Por outro lado, os estudos que contestam o SPM afirmam que a interpretação de uma expressão metafórica não demanda necessariamente mais tempo do que o de uma expressão literal correlata, pois, desde que esteja convencionalizada na língua, uma metáfora se comporta como qualquer outra palavra ou expressão, levando o ouvinte/leitor a processá-la automaticamente. Pensando justamente no modo de processamento direto, Glucksberg (2003GLUCKSBERG, Sam. The Psycholinguistics of metaphor. Trends in Cognitive Sciences, v. 7, n. 2, p. 92-96, 2003.) demonstrou experimentalmente que frases literais não possuem prioridade incondicional sobre frases metafóricas. Pelo contrário, por meio de experimentos engenhosos4 4 Glucksberg (2003) apresentou aos participantes frases que deveriam ser julgadas como literalmente falsas ou literalmente verdadeiras, como, por exemplo, “Algumas frutas são tabelas” (que é literalmente falsa) e “Algumas frutas são maçãs” (que é literalmente verdadeira). Interessante, frases que continham metáforas, como “Algumas estradas são serpentes” e, assim, são literalmente falsas, demandavam muito mais tempo de julgamento do que frases literalmente falsas nas quais não havia metáforas. Esse dado é indicativo de que o leitor/ouvinte não pode deixar de perceber o valor metafórico de uma expressão assim que se depara com ela. , o autor apontou que as pessoas não podem deixar de produzir interpretações metafóricas, mesmo que significados literais façam algum sentido dentro de um mesmo contexto discursivo em que as metáforas fazem mais sentido. Glucksberg (2003GLUCKSBERG, Sam. The Psycholinguistics of metaphor. Trends in Cognitive Sciences, v. 7, n. 2, p. 92-96, 2003.) argumentou que as metáforas criam uma classe específica e, a partir do momento que o falante da língua tem o domínio dessa classe, então ele apenas insere os tópicos (X) das expressões dentro das classes vinculadas ao veículo (Y). Por exemplo, na expressão ‘Alguns advogados são tubarões’, o termo ‘tubarão’ pode ser usado no sentido metafórico para qualquer ser vicioso e predatório e, assim, cria-se a classe dos seres com essas características representada pelo veículo (Y) ‘tubarão’. Havendo uma classe assim, é possível inserir nela qualquer tópico (X), como por exemplo, ‘Alguns empresários são tubarões’, ‘Alguns banqueiros são tubarões’ etc.

Glucksberg (2003GLUCKSBERG, Sam. The Psycholinguistics of metaphor. Trends in Cognitive Sciences, v. 7, n. 2, p. 92-96, 2003.) reuniu evidências de que metáforas convencionalizadas na língua (dicionarizadas) demandam os mesmos tempos de processamento que qualquer expressão literal correlata, demonstrando, com isso, que os falantes guardam na mente uma classe vinculada aos veículos metafóricos e, durante o uso regular da linguagem cotidiana, ao indivíduo cabe apenas vincular o tópico à classe representada pelo veículo, numa operação mental que não se refletiu em qualquer necessidade de adição de tempo de reação durante a realização da leitura durante o experimento. Com os dados levantados por esse pesquisador, evidenciou-se que o SPM não parecia empiricamente válido, pelo menos em relação às expressões metafóricas cujos veículos possuíam alta convencionalidade na língua. O estudo de Glucksberg (2003) não entrou na seara dos veículos metafóricos novos (ou de baixa convencionalidade), abrindo, assim, espaços para novas pesquisas.

Outro pesquisador que trilhou o caminho da inclusão de classe foi Ricci (2016RICCI, Adiel Queiroz. O processamento psicolinguístico da metáfora: um estudo experimental no PB. 2016. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016.), que testou no PB essa teoria de processamento direto. Após realizar um ranqueamento5 5 A técnica utilizada por Ricci para realizar este ranqueamento é conhecida na psicolinguística experimental como Norming Studies. Sendo assim, Ricci indagou diretamente a cada um dos participantes dessa etapa da pesquisa se uma expressão específica (uma metáfora particular do tipo “X é um Y”) era para ele, por exemplo, mais ou menos ‘familiar’. de metáforas no Brasil, Ricci (2016) selecionou metáforas que aglutinavam em si as características de alta convencionalidade, alta familiaridade e alto aptness e, a partir destas expressões, realizou um experimento on-line. Tal experimento encontrou evidências de que metáforas com as variáveis citadas calibradas sempre como ‘altas’ não demandavam mais tempo para serem processadas do que expressões literais - por exemplo, a frase “Irene é um furacão” foi processada com as mesmas latências de “Irena é uma jovem”, possivelmente em razão da alta convencionalidade, da alta familiaridade e do alto aptness da expressão “furacão” para indicar alguém ou algo vigoroso.

Interessantemente, tanto os modelos de processamento direto, quanto os de processamento indireto negligenciaram o papel da familiaridade como uma variável de natureza pragmática particularmente relevante no processamento de metáforas. Ora, será que a noção coletiva da convencionalidade sempre coincide com a percepção individual da familiaridade? Ou seria possível que expressões com alta convencionalidade pudessem ser percebidas pragmaticamente como pouco familiares por indivíduos específicos? Nesse caso, expressões metafóricas percebidas como pouco familiares poderiam ser processadas de maneira indireta, ainda que sua convencionalidade fosse alta - contrariando, assim, as predições da teoria da inclusão de classe. É justamente a atuação, possivelmente independente, da variável familiaridade que se explorou no experimento descrito a seguir neste artigo.

Uma pesquisa especialmente importante para os objetivos do presente artigo foi a de Bowdle e Gentner (2005BOWDLE, Brian F.; GENTNER, Dedre. The career of metaphor. Psychological Review, v. 112, n. 1, p. 193-216, 2005.). Os autores aplicaram um experimento on-line, de leitura de frases, e registraram que metáforas novas, portanto com baixa convencionalidade foram processadas muito mais lentamente do que metáforas altamente convencionalizadas. Além disso, Bowdle e Gentner registraram que expressões literais eram processadas mais rapidamente do que metáforas, quase na metade do tempo. Contudo, os autores não consideraram em sua pesquisa a variável familiaridade, deixando de manipulá-la nas frases de seu experimento. É justamente essa lacuna que a presente pesquisa procurou explorar, conforme será descrito a seguir.

Investigando o efeito da variável familiaridade no processamento de metáforas

Motivado pelos resultados de seu estudo de 2018, Silva (2022SILVA, Gladiston Alves da. Psicolinguística da metáfora: o processamento da familiaridade em PB. 2022. Tese (Doutorado em Estudos de Linguagem) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2022) realizou um experimento on-line de leitura, que investigou duas variáveis do ‘tripé’ que atuam sobre o processamento de expressões metafóricas: a convencionalidade e a familiaridade. Durante a tarefa de leitura, eram apresentadas aos participantes do experimento frases metafóricas do tipo “X é um Y” que variavam em termos de convencionalidade (alta ou baixa) e de familiaridade (alta ou baixa), conforme ranqueamento feito a esse respeito por Ricci (2016RICCI, Adiel Queiroz. O processamento psicolinguístico da metáfora: um estudo experimental no PB. 2016. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016.). O objetivo desse experimento foi verificar se as frases com alta familiaridade apresentariam latências de leitura menores independentemente do grau de convencionalidade (alto ou baixo) do veículo metafórico. Portanto, esse experimento visou verificar o efeito da variável familiaridade sobre o processamento de frases metafóricas nominais do tipo “X é um Y”.

A familiaridade caracteriza-se como uma variável pragmática porque diz respeito ao conhecimento individual que um usuário da língua possui ou não acerca de uma expressão metafórica específica.

O experimento

Um experimento on-line de leitura segmentada autocadenciada, com frases apresentadas sem contexto prévio6 6 Silva (2022) conduziu outro experimento com as mesmas características daquele ora apresentado, mas com a particularidade de apresentar um contexto linguístico prévio antes de cada frase metafórica em estudo. Os achados de ambos os experimentos convergem para a interpretação aduzida no presente artigo. , foi idealizado com o objetivo de verificar o tempo de leitura dos segmentos críticos respectivos, que apresentam oposição entre metáforas (1) de alta convencionalidade e baixa familiaridade e (2) de baixa convencionalidade e alta familiaridade, no cotejo entre si e entre as expressões literais correspondentes.

Variáveis e Condições

O experimento se compõe de duas variáveis independentes: (1) a familiaridade e (2) a convencionalidade. Cada uma dessas variáveis será realizada no experimento em dois níveis, um polo positivo e outro negativo. Sendo assim, a variável (1) se realiza nos níveis mais convencional (+C) e menos convencional (-C). Também a variável (2) possui dois níveis: mais familiar (+F) e menos familiar (-F).

Do cruzamento dos níveis de cada uma de ambas as variáveis independentes, deveriam resultar quatro condições experimentais. No entanto, esse experimento possui um desenho 2x2 incompleto. Isso ocorre porque não utilizamos estímulos que possuíssem ambos os níveis de cada variável em seus polos coincidentemente positivos e negativos, ou seja, não foram projetadas frases metafóricas (+C+F) ou (-C-F), em razão de que, nos estudos realizados por outros pesquisadores e já relatados neste artigo, os polos do tripé da metáfora sempre foram calibrados com todos os seus traços em positivo ou negativo. O objetivo da presente pesquisa é justamente desequilibrar os polos de convencionalidade e familiaridade a fim de observar uma possível variação. Seguem-se ilustrações das duas condições exploradas no experimento:

frase metafórica (+C-F): “Alguns carros são abacaxis para possuir.”;

frase metafórica (-C+F): “Algumas frases são pérolas para falar.”

Para além das expressões metafóricas, o experimento também contou com expressões literais respectivas às duas condições em teste. Essas expressões literais correspondem, portanto, a um controle experimental que possuíam os traços C e F idênticos aos de suas versões metafóricas correspondentes. São exemplos desses controles:

frase de controle (+C-F): “Alguns carros são valiosos para possuir..”;

frase de controle (-C+F): “Algumas frases são ótimas para falar..”

Tempo médio de leitura do segmento crítico em cada condição experimental é a variável dependente considerada no experimento.

Hipóteses e Predições

Com a hipótese da pesquisa, assume-se que os tempos de reação diante de uma expressão metafórica ou literal correspondem apenas ao maior ou menor grau de familiaridade da expressão - e não ao maior ou menor grau de convencionalidade do veículo. Por sua vez, a hipótese nula que se procura refutar é a de que os tempos de reação diante de uma expressão metafórica ou literal não correspondem à familiaridade ou à convencionalidade das expressões e dos seus veículos metafóricos, mas sim à variabilidade randômica das decisões dos participantes.

Levando-se em consideração a hipótese da pesquisa, espera-se, como predição experimental, que as metáforas de baixa convencionalidade e alta familiaridade [-C+F] sejam processadas mais rapidamente do que as metáforas de alta convencionalidade e baixa familiaridade [+C-F]. Da mesma forma, espera-se que as metáforas [+C-F] sejam processadas mais lentamente do que as expressões literais respectivas, enquanto as metáforas [-C+F] tenham tempos de processamento equivalentes às expressões literais. Tudo isso é previsto por força do efeito da familiaridade no processamento dessas metáforas. Ou seja, quando a familiaridade é baixa, há uma tendência de as metáforas serem processadas de forma indireta (mais lentamente que o literal, portanto), já, quando a familiaridade é alta, a tendência é que essas metáforas sejam processadas de forma direta (em tempos equivalentes ao literal, portanto), sem importar o grau de convencionalidade do veículo.

Participantes, materiais e distribuição dos estímulos

Participaram do experimento 100 universitários, alunos de diversos cursos da Universidade Federal Fluminense (UFF). Foram 27 pessoas do sexo masculino e 23 do sexo feminino, com idade média de 23 anos.

O experimento foi composto por frases divididas em três segmentos, sendo que o primeiro deles se constituía do tópico da expressão, enquanto o segundo foi constituído por um verbo e um ‘veículo’ metafórico e, finalmente, o terceiro apresentava um advérbio ou expressão equivalente, conforme detalhado mais adiante. O segmento crítico da leitura recaiu no segundo segmento, no qual os traços de convencionalidade e de familiaridade foram manipulados.

Partindo dos estudos iniciais sobre a interferência da familiaridade no processamento de metáforas de Silva (2018SILVA, Gladiston Alves Da. A interferência da familiaridade no processamento de metáfora no PB. 2018. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018.), recuperaram-se aquelas mesmas expressões originárias retiradas de Ricci (2016RICCI, Adiel Queiroz. O processamento psicolinguístico da metáfora: um estudo experimental no PB. 2016. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016., Apêndices A e B - Tabela B), conforme excerto abaixo (Tabela 1).

Tabela 1 -
Ranqueamento das expressões.

A partir de cada uma dessas expressões, fez-se uma divisão de segmentos com a finalidade de cronometrar o tempo de reação do participante ao se deparar com os veículos metafóricos. Ocorre que os veículos metafóricos em todas as frases surgem como última palavra e, por serem eles (os veículos) justamente os alvos do interesse da pesquisa, houve a necessidade de criarmos mais um segmento final de modo a não ocorrer nenhuma interferência (efeito de ‘empacotamento’ - wrap up em inglês) no tempo de processamento desse segmento específico. Por exemplo, na expressão ‘Alguns carros são abacaxis’, acrescentou-se outro segmento, ficando assim a expressão definitiva a ser avaliada: ‘Alguns carros são abacaxis para possuir’. Definido esse procedimento, criaram-se os três segmentos dessa expressão, sendo eles: Primeiro segmento - Alguns carros -; Segundo segmento - são abacaxis -; Terceiro segmento - para possuir. Essa segmentação em três partes é ilustrada a seguir.

Alguns carros / são abacaxis / para possuir.

Note-se que no primeiro segmento da expressão está disposto o tópico, enquanto no segundo aparece o veículo metafórico e, por último, no terceiro surge uma preposição seguida de um verbo no infinitivo, finalizando a frase. Registra-se que foi incluído nos estímulos, ainda, um quarto elemento, constituído de uma frase à parte, na forma de uma pergunta interpretativa acerca do conteúdo da frase anterior, que deveria ser respondida sempre com ‘sim’ ou ‘não’. Tal estrutura teve como finalidade reduzir do participante a possibilidade de identificar o objetivo real da pesquisa que estava sendo aplicada, uma vez que as perguntas apresentadas se referiam a conteúdos alheios ao da interpretação da metáfora. Por exemplo, após a leitura segmentada de ‘Alguns carros são abacaxis para possuir’, surgia a pergunta: ‘A indústria automobilística brasileira é moderna?’.

Insta ressaltar que além do grupo de condições das expressões metafóricas, foi incluído um grupo de expressões de controle literal. Por exemplo, para a expressão ‘Alguns carros são abacaxis para possuir’, foi criada a expressão ‘Alguns carros são valiosos para possuir’. Note-se que ‘valiosos’ equivale graficamente à ‘abacaxis’, uma vez que possui o mesmo número de letras e o mesmo número de sílabas. Este mesmo padrão foi adotado para as demais expressões, havendo um controle bastante equilibrado nesse sentido.

O desenho do experimento, portanto, apresentava um desenho 2x2 incompleto. Desta feita, representa-se na tabela abaixo o formato do design (Tabela 2). Note-se que a assinalação dos valores “+” ou “-” de cada condição seguiu o ranqueamento levado a cabo por Ricci (2016RICCI, Adiel Queiroz. O processamento psicolinguístico da metáfora: um estudo experimental no PB. 2016. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016.) em seus norming studies.

Tabela 2 -
variáveis e condições do Experimento.

Algumas poucas diferenças ocorreram na construção das frases dos estímulos, como por exemplo, número de letras e número de sílabas. Mesmo assim, essas diferenças foram controladas, uma vez que é importante, para o desenho do experimento, que as frases tenham a mesma ou quase a mesma disposição gráfica na tela, considerando-se que uma disposição maior demandaria mais tempo de reação (como variável não controlada). Por exemplo, na expressão metafórica ‘Algumas estradas são serpentes de fato’, criou-se a expressão literal ‘Algumas estradas são perigosas de fato’. Observe-se que, nesse caso, apesar de não haver a mesma quantidade de sílabas em ‘serpentes’ e ‘perigosas’, a quantidade de letras em ambas as palavras é a mesma. Com isso, acredita-se que haverá um equilíbrio na leitura e ambas as frases terão equivalência. É necessário destacar, também, que além dessas expressões foram acrescidas frases distratoras, que tinham como interesse desviar a atenção dos participantes das frases objeto do experimento, como, por exemplo, ‘A justiça mandou soltar o criminoso’.

Considerando-se todos os estímulos do experimento, construiu-se o seguinte Quadro: 8 expressões metafóricas (sendo quatro do tipo +C-F e quatro do tipo -C+F); 8 expressões literais correlatas das expressões metafóricas (controle); 32 expressões distratoras, totalizando 48 estímulos. Para que o experimento não se tornasse cansativo para os participantes, decidiu-se criar duas listas de estímulos, cada qual com apenas 24 frases (4 metafóricas, 4 literais e 16 distratoras). Cada participante tinha acesso aos estímulos de uma e somente uma das listas. A distribuição dos estímulos de cada lista foi intra-participantes (within-subjects), de modo que todos os participantes foram expostos a 2 itens de cada condição e a 2 controle correspondentes. Houve controle do material lexical de cada lista, com recurso à distribuição em quadrado latino, de modo que um participante não tivesse acesso à exata versão metafórica e literal de uma frase. A seguir, apresenta-se uma tabela contendo um exemplo de cada expressão utilizada no experimento (Tabela 3).

Tabela 3 -
exemplos dos estímulos segmentados

Procedimentos

As sessões de aplicação do experimento foram todas realizadas em um único equipamento (Macbook, com o software PsyScope X B57) e ocorreram em diversos locais dos campi visitados da UFF em ambiente adequado, livre de distrações e propício para o cumprimento da tarefa. Após os procedimentos de preenchimento de formulários e assentimento, o participante sentava-se à frente do notebook e a ele eram dadas as explicações de como seria a aplicação do teste. Foi realizada uma tarefa de aquecimento de modo que o participante se inteirasse de como seria o seu comportamento durante a aplicação da pesquisa.

Logo após o aquecimento, o participante iniciava a tarefa, que era fazer a leitura, em três segmentos, de uma frase e, em seguida, responder ‘sim’ ou ‘não’ a uma pergunta interpretativa sobre ela. As frases eram apresentadas em ordem aleatória a cada participante, devido ao procedimento de randomização automática programado para o experimento. Todos os participantes se mostraram comprometidos ao participarem da pesquisa e, a todos eles, foi emitido um certificado de participação para ser utilizado como atividade extracurricular.

Resultados

Iniciaremos a análise dos resultados esclarecendo que cada uma das expressões metafóricas em estudo foi tabulada e analisada pelo pacote estatístico do software Action Stat, um programa criado sobre a plataforma R e acoplado ao Excel (integrante do Microsoft Office). Destaca-se também que todas as análises foram precedidas pela rodagem de um resumo descritivo, que consiste numa ferramenta que permite a obtenção de diversas informações sobre o conjunto de dados gerados pelo experimento, como, por exemplo, os valores mínimos e máximos, a soma quadrática, o tamanho da amostra, o primeiro quartil e, além disso, informações sobre a média, a mediana, medidas de dispersão, desvio padrão e outros dados relevantes para a percepção global do experimento. Além disso, após a rodagem do resumo descritivo, verificou-se o estado do gráfico boxplot relativo ao segmento crítico, a fim de identificar eventuais outliers (valores discrepantes da amostra). Na presente análise, quando se detectou a presença de outliers, fez-se a retirada de todos eles, sem um valor específico de corte, para finalmente rodar um novo resumo descritivo sem a presença desses dados.

É importante ressaltar ainda que em cada um dos conjuntos de dados, logo após a exclusão dos outliers, foi aplicado o teste estatístico Kolmogorov-Smirnov com o objetivo de identificar a distribuição dos resultados obtidos no experimento. Com esse método é possível identificar se a distribuição dos dados contínuos (latências de leitura no segmento crítico) é normal e, por isso, esses devem ser analisados em testes paramétricos ou se é livre e, em vista disso, tais dados devem ser analisados em testes não-paramétricos. No caso desta pesquisa, todos os dados foram identificados como livres e, quando havia a necessidade de realizar comparações múltiplas em face de duas variáveis e duas condições mais os controles, o teste não-paramétrico utilizado foi o Kruskal-Wallis. Quando se verificava a necessidade de fazer comparações com apenas duas condições, o teste não-paramétrico utilizado foi o Wilcoxon.

Metáfora x Controles literais

Foi identificada uma diferença estatisticamente significativa entre as expressões metafórica e os seus respectivos controles, conforme pode ser visto na tabela que se segue (Tabela 4).

Tabela 4 -
Variáveis - valores em milissegundos

Percebe-se que, em geral, as metáforas obtiveram 1211ms de mediana enquanto as expressões literais de controle obtiveram 1072ms. Nessa comparação, o teste identificou p-valor=0,013, o que indica diferença significativa entre os grupos. Os desvios padrões são consistentes e muito próximos entre si, não apresentando diferença significativa.

Esses dados iniciais, em primeiro lugar, indicam que as variáveis fizeram o efeito esperado (metáforas se distinguem de seus respectivos controles) e, em segundo lugar, apontam para uma possível hipótese da pesquisa em face das diferenças verificadas, restando verificar, nas análises que seguem, se houve efeito da variável familiaridade sobre o processamento de metáforas.

Metáfora -C+F x Metáfora +C-F x Controle

Na análise das condições do experimento, identificaram-se diferenças e semelhanças, conforme se pode conferir na tabela a seguir (Tabela 5).

Tabela 5 -
Condições - valores em milissegundos

Nota-se aqui que a condição metafórica -C+F (mediana=1048ms) se assemelha bastante ao controle literal (mediana=1072ms) e, ambas, por sua vez, se diferenciam da condição metafórica +C-F (mediana=1296ms). Essa característica é um primeiro indício de que as condições metafóricas estão desalinhadas e tais diferenças parecem estar relacionadas, justamente, à maior ou à menor familiaridade em face da convencionalidade. Outro fator importante a ser destacado da Tabela 5 é o fato de que não houve diferença significativa do desvio padrão entre as condições e o controle. É possível notar o equilíbrio existente entre o controle literal e a condição metáfora -C+F, da mesma forma como notamos que a condição metáfora +C-F se sobressai nos dados, alcançando os mais altos tempos de processamento.

Feitos os testes de múltiplas comparações, observou-se a aglome-ração das condições e do controle em dois conjuntos distintos, o primeiro formado pela condição metafórica +C-F que ficou isolada e, o segundo, formado pela união da condição Metáfora -C+F e o Controle Literal, conforme pode ser visto na tabela a seguir (Tabela 6).

Tabela 6 -
Comparação das condições

Como pode ser visto na Tabela 6, a comparação entre o controle literal e a condição metáfora -C+F mostrou uma diferença insignificante entre essas condições, com p-valor˃0,05. Por outro lado, a comparação entre as condições metáfora -C+F e metáfora +C-F apresentou uma diferença significativa, com p-valor˂0,05. Da mesma forma, ocorreu uma diferença significativa entre o controle literal e a metáfora +C-F, com p-valor˂0,05. Estes dados sinalizam em favor da hipótese da pesquisa, uma vez que se esperava um tempo de reação maior entre as metáforas altamente convencionalizadas e com baixa familiaridade, por contraste às latências menores das metáforas de baixa convencionalidade e com alta familiaridade. Assim, esperava-se também que essas metáforas com alta familiaridade, apesar de possuírem baixa convencionalidade, fossem processadas tão rapidamente quanto as expressões literais, o que de fato ocorreu, apontando para um processamento direto dessas expressões, enquanto no outro polo, ou seja, em relação às metáforas com baixa familiaridade, apesar de possuírem alta convencionalidade, observou-se lentidão significativa em relação às expressões literais, fato que sugere um processamento indireto dessas expressões.

Condições x Controle comparados diretamente entre si

No Gráfico 1 a seguir, é fácil observar o equilíbrio entre o controle literal e a metáfora -C+F. Na outra ponta, permanece o mesmo desequilíbrio observado anteriormente, em relação à condição metáfora +C-F.

Gráfico 1 -
Distribuição das quatro condições em milissegundos.

Outra informação relevante para a análise relaciona-se ao desvio padrão. Note-se, pelo gráfico acima, que o desvio padrão da condição literal (+C-F) é 473ms, enquanto o da condição metáfora (+C-F) é 536ms, o da condição literal (-C+F) é 519ms e o da condição metáfora (-C+F) é 493ms. Nenhuma dessas diferenças foi detectada como significativa, fato que parece indicar certa consistência na reação a cada condição.

Destacamos que, apesar de serem quatro as condições do experimento aqui apresentado, a tabela dos agrupamentos gerada pelo teste de Kruskal-Wallis apresentou apenas dois conjuntos distintos, ou seja, ‘Conjunto1’ e ‘Conjunto2’, conforme pode ser visto na tabela que se segue (Tabela 7).

Tabela 7 -
Transformação em quatro condições.

Nas comparações realizadas entre as duas condições literais, o resultado foi p-valor>0,05, X²=0,4502, o que indica que não houve diferença significativa entre essas condições, conforme se esperava. O mesmo ocorreu quando as comparações de ambas as condições literais se deram em relação à condição metafórica -C+F, pois em todos os casos ocorreu p-valor>0,05, indicando também não haver diferença significativa de processamento do segmento crítico das frases nessas condições, o que já se esperava em face de nossa hipótese. Por outro lado, quando analisados os resultados da condição metafórica +C-F, primeiro com o resultado da condição metafórica -C+F, encontramos o p-valor<0,05, X²=3,6087, indicando, com isso, que há uma diferença significativa no momento do processamento do segmento crítico entre essas condições, ou seja, o traço +F fazia com que a metáfora fosse lida mais rapidamente em comparação a -F, ainda que o traço de C permanecesse constante. Tal diferença significativa também ocorre quando comparados os tempos de reação dessa condição metafórica +C-F com as duas condições literais separadamente, pois em ambos os casos foi detectado p-valor<0,05. Como é possível notar, os dados seguem apontando em favor da hipótese de pesquisa aqui relatada, demonstrando que a variável familiaridade é relevante no processamento das metáforas, a despeito da variável convencionalidade.

Discussão

O ponto central dessa discussão gira em torno do comportamento registrado na comparação entre expressões metafóricas e o seu correspondente literal. Aqui reside a principal análise, que pode apontar para o efeito da familiaridade no processamento psicolinguístico de metáforas. Os resultados da análise das variáveis demonstram que houve efeito da familiaridade.

Com os resultados obtidos nas análises estatísticas, foi possível verificar um comportamento parecido entre a condição metafórica -C+F e o controle literal, uma vez que a familiaridade, conforme a hipótese da presente pesquisa, parece ter a capacidade de interferir no processamento das metáforas e, nesse caso, pela alta familiaridade, esperava-se esse processamento tão rápido quanto o das expressões literais. Entretanto, essa mesma semelhança não se observa em relação à condição metafórica +C-F, tendo em vista que a sua mediana se mostra em 1296ms, ou seja, acima de 200ms de diferença tanto em relação ao controle literal, quanto em relação à condição metafórica -C+F. Tendo em vista que as diferenças dos dados encontrados nesta pesquisa se relacionam à variabilidade do nível de familiaridade da expressão metafórica, somente essa variável explicaria um tempo maior ou menor para processar essas frases em relação às demais, pouco importando a alta ou a baixa convencionalidade.

Com a aplicação do teste de Kruskal-Wallis, registrou-se o p-valor semelhante em três condições, sendo elas: 1) metáfora -C+F; 2) literais -C+F e 3) literais +C-F. A única condição que ficou isolada foi a metáfora +C-F. Na comparação entre esta última condição e as demais, os dados apresentaram p-valor<0,05, o que representa uma diferença significativa em favor da hipótese da pesquisa. Note-se que esses valores são bem baixos, estando em lados opostos. Tanto é assim que na tabela de agrupamentos foi indicado um conjunto formado por aquelas três condições e um segundo grupo formado pela condição metáforas +C-F. Quando se faz a reunião de três condições, ou seja, 1) controle literal, 2) metáforas -C+F e 3) metáforas +C-F, os resultados também seguem o mesmo padrão. Note-se que, na comparação entre as duas condições metafóricas, obteve-se p-valor=0,0001. Na comparação entre a condição metáfora +C-F e controle literal houve o registro de p-valor=0,000036. Tais informações são evidência de que a hipótese experimental está sendo confirmada e a hipótese nula está sendo rejeitada pela presente pesquisa.

Por fim, verifica-se, da análise individual dos veículos metafóricos, a formação de dois grupos distintos, ou seja, aqueles veículos metafóricos com medianas próximas ou superiores a 200ms em relação à condição literal correlata e outro grupo formado pelos veículos metafóricos com medianas próximas ou inferiores a 100ms em relação à condição literal correlata. Dentro do primeiro grupo estão inseridos todos os veículos metafóricos da condição metafórica +C-F e, dentro do segundo grupo, estão inseridos todos os veículos da condição metafórica -C+F. Essa é mais uma evidência do efeito da familiaridade no processamento dessas expressões metafóricas, pois se não fosse o efeito da familiaridade, provavelmente, pela alta convencionalidade dos veículos, os resultados teriam sido o inverso do que foi de fato registrado.

Conclusões

Iniciamos esta conclusão fazendo alusão ao trabalho seminal de Bowdle e Gentner, em especial à sua tabela de número três (2005BOWDLE, Brian F.; GENTNER, Dedre. The career of metaphor. Psychological Review, v. 112, n. 1, p. 193-216, 2005., p.203). Os autores registraram que metáforas de baixa convencionalidade foram processadas na média de 3284ms, enquanto as altamente convencionalizadas demandavam 2099ms e expressões literais, 1957ms. Note-se que as latências das metáforas de alta convencionalidade e das expressões literais foram muito próximas. Tal realidade também foi observada no presente estudo, porém, diferentemente de Bowdle e Gentner, argumentamos que essa pequena diferença recai, justamente, sobre a familiaridade da expressão metafórica e não sobre a convencionalidade do veículo. Aqui é que argumentamos em favor do efeito da familiaridade sobre o processamento de metáforas: o fato de um falante já ter conhecimento da associação entre um dado tópico e um certo veículo automatiza o processamento cognitivo da expressão metafórica.

Caso as metáforas altamente convencionalizadas se comportassem independentemente do grau de familiaridade, então, no nosso caso, teríamos encontrado tempos similares entre o processamento dessas metáforas e as suas correlatas literais, o que não foi detectado. Pelo contrário, o tempo de processamento dessas metáforas em relação às literais foi significativamente superior, o que indica haver alguma etapa a mais no momento do processamento dessas metáforas. Aqui, não se discute se o modelo de processamento dessas metáforas é aquele mencionado por Searle (1993SEARLE, John. Metaphor. In: ORTONY, Andrew. Metaphor and thought. 2nd edition. New York. Cambridge University Press, 1993 [1979]. p. 83-111 [1979]), o qual indica uma interpretação em três estágios discretos, pois nos parece que tal procedimento deveria demandar muito mais tempo do que os aferidos aqui. Talvez, como sugerido por Glucksberg (1988), um modelo em dois estágios faria mais sentido para interpretar os dados encontrados nesta pesquisa.

Por outro lado, caso entendêssemos que a baixa convencionalidade do veículo metafórico por si só explicaria o tempo de processamento das metáforas, fazendo-as serem mais lentas que o literal, então, por óbvio, encontraríamos tempos significativamente superiores destas em relação às próprias literais. Ocorre que não foram esses os resultados encontrados, pois, ao unirmos um veículo de baixa convencionalidade numa expressão de alta familiaridade, então, por influência dessa alta familiaridade, o tempo de processamento dessa expressão foi tão rápido quanto o das expressões literais, não havendo diferença significativa entre elas. Esse mesmo quadro foi observado quando se comparou a condição metafórica +C-F com a condição metafórica -C+F, ou seja, a primeira condição foi processada mais lentamente do que a segunda, provavelmente em função do traço -F, apesar do +C.

Concluímos que os nossos dados nos permitem assumir que a familiaridade seja uma variável determinante no processamento de metáforas no PB, tal como havia sugerido Silva (2018SILVA, Gladiston Alves Da. A interferência da familiaridade no processamento de metáfora no PB. 2018. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018.). Desta feita, reunimos aqui evidência em favor da hipótese de que, no processamento cognitivo da metáfora, a familiaridade possui um fator decisivo, desequilibrado em relação às demais variáveis do tripé de sustentação das metáforas. Argumentamos que é a familiaridade da expressão - e não a convencionalidade do veículo - que determina o processamento automático de uma expressão metafórica do tipo “X é um Y”, diferentemente, portanto, do que até então vinham até aqui assumindo os principais teóricos dedicados ao assunto.

Referências

  • BOWDLE, Brian F.; GENTNER, Dedre. The career of metaphor. Psychological Review, v. 112, n. 1, p. 193-216, 2005.
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  • GIBBS, Raymond W. Jr. Your wish is my command: Convention and context in interpreting indirect request. Journal of Verbal Learning and Verbal Behavior , v. 20, n. 4, p. 435-444, 1981.
  • GLUCKSBERG, Sam. The Psycholinguistics of metaphor. Trends in Cognitive Sciences, v. 7, n. 2, p. 92-96, 2003.
  • GLUCKSBERG, Sam. Understanding metaphors. Current Directions in Psychological Science, v. 7, n. 2, p. 39-43, 1998.
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  • LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana Tradução de Mara Sophia Zanatta. Campinas: Mercado das Letras; São Paulo: Editora da PUC-SP, 2002 [1980].
  • RICCI, Adiel Queiroz. O processamento psicolinguístico da metáfora: um estudo experimental no PB. 2016. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016.
  • SEARLE, John. Metaphor. In: ORTONY, Andrew. Metaphor and thought 2nd edition. New York. Cambridge University Press, 1993 [1979]. p. 83-111
  • SILVA, Gladiston Alves Da. A interferência da familiaridade no processamento de metáfora no PB 2018. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018.
  • SILVA, Gladiston Alves da. Psicolinguística da metáfora: o processamento da familiaridade em PB. 2022. Tese (Doutorado em Estudos de Linguagem) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2022
  • 1
    Reconhecemos a influência de Lakoff e Johnson (1980LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. Tradução de Mara Sophia Zanatta. Campinas: Mercado das Letras; São Paulo: Editora da PUC-SP, 2002 [1980].) e outros estudos cognitivas no estudo das “metáforas do cotidiano”, mas deixamos essa citação em nota porque o presente artigo se insere noutra tradição (psico)linguística de estudos das metáforas, inteiramente distinta em termos teóricos e metodológicos.
  • 2
    Autores como Glucksberg (2003GLUCKSBERG, Sam. The Psycholinguistics of metaphor. Trends in Cognitive Sciences, v. 7, n. 2, p. 92-96, 2003.) mensuraram a familiaridade de expressões “X é um Y” em inglês por meio de questionários realizados com centenas de falantes daquela língua. Esses falantes indicavam, caso a caso, se uma expressão metafórica específica lhe parecia familiar, no sentido de já ter sido por ele ouvida ou lida antes. No PB foi somente com o estudo de Ricci (2016RICCI, Adiel Queiroz. O processamento psicolinguístico da metáfora: um estudo experimental no PB. 2016. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016.) que um banco de dados capaz de objetificar a percepção subjetiva da familiaridade foi constituído, por meio da mesma técnica utilizada por Glucksberg.
  • 3
    Numa rápida ilustração do modelo, o SPM prediz que, diante de uma frase como “Alguns carros são abacaxis”, o leitor/ouvinte primeiramente faria uma leitura literal, que falharia e dispararia a busca de uma interpretação alternativa, com a busca de informações contextuais que indicassem o valor pretendido na metáfora. Finalmente, o leitor/ouvinte associaria “abacaxi” ao valor de “coisa que gera dificuldades” para interpretar a frase.
  • 4
    Glucksberg (2003GLUCKSBERG, Sam. The Psycholinguistics of metaphor. Trends in Cognitive Sciences, v. 7, n. 2, p. 92-96, 2003.) apresentou aos participantes frases que deveriam ser julgadas como literalmente falsas ou literalmente verdadeiras, como, por exemplo, “Algumas frutas são tabelas” (que é literalmente falsa) e “Algumas frutas são maçãs” (que é literalmente verdadeira). Interessante, frases que continham metáforas, como “Algumas estradas são serpentes” e, assim, são literalmente falsas, demandavam muito mais tempo de julgamento do que frases literalmente falsas nas quais não havia metáforas. Esse dado é indicativo de que o leitor/ouvinte não pode deixar de perceber o valor metafórico de uma expressão assim que se depara com ela.
  • 5
    A técnica utilizada por Ricci para realizar este ranqueamento é conhecida na psicolinguística experimental como Norming Studies. Sendo assim, Ricci indagou diretamente a cada um dos participantes dessa etapa da pesquisa se uma expressão específica (uma metáfora particular do tipo “X é um Y”) era para ele, por exemplo, mais ou menos ‘familiar’.
  • 6
    Silva (2022SILVA, Gladiston Alves da. Psicolinguística da metáfora: o processamento da familiaridade em PB. 2022. Tese (Doutorado em Estudos de Linguagem) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2022) conduziu outro experimento com as mesmas características daquele ora apresentado, mas com a particularidade de apresentar um contexto linguístico prévio antes de cada frase metafórica em estudo. Os achados de ambos os experimentos convergem para a interpretação aduzida no presente artigo.

Editado por

Editora-chefe dos Estudos de Linguagem

Bethânia Mariani

Editores convidados

Brenda Laca Luciana Sanchez-Mendes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    08 Nov 2023
  • Aceito
    12 Abr 2024
Programas de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF) Rua Professor Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/n, Bloco C - sala 518, CEP 24210-201 - Niterói, Rio de Janeiro, Brasil., Telefone +55 21 2629-2600 - Niterói - RJ - Brazil
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