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Um sobrevoo por Terra Crua: para a gênese da obra de autoria de Jorge Ferreira Duque Estrada

Exploring Terra Crua: For the genesis of the book wrote by Jorge Ferreira Duque Estrada

RESUMO:

No presente artigo, apresentamos alguns dos resultados de nossos estudos sobre a gênese do livro Terra crua, escrito por Jorge Ferreira Duque Estrada. Essa obra foi a primeira a ser publicada sobre a História de Maringá-PR. Duque Estrada foi testemunha da formação da cidade e participante ativo dos fatos da primeira eleição municipal, temas abordados pelo autor em seu livro em tom memorialístico. Nossa pesquisa foi baseada na abordagem da Crítica Genética, apoiando-nos em Biasi (2010) e Pino e Zular (2007). Comparamos a versão publicada pelo autor em 1961 com o seu manuscrito, intitulado Originais do livro Terra Crua, composto por dois datiloscritos revisados à mão pelo autor. Além disso, analisamos uma carta datilografada que Duque Estrada enviou a Luiz Moreira de Carvalho, prefeito de Maringá, em 1966. A partir disso, discutimos as motivações do autor para publicação do livro destacando sua pretensão de “fotografar” os primeiros momentos da cidade, uma visão sobre a obra que será acentuada após a publicação de Terra crua, nos discursos de acadêmicos, memorialistas e agentes do poder público local. Por fim, avaliaremos algumas das inclusões e das exclusões de temas realizadas pelo autor no manuscrito, explorando suas possíveis motivações e seus desdobramentos.

PALAVRAS-CHAVE:
crítica genética; terra crua; Jorge Ferreira Duque Estrada

ABSTRACT:

In this article, we present some of the results of our studies on the genesis of the book Terra crua, written by Jorge Ferreira Duque Estrada. That work was the first to be published on the History of Maringá-PR. Duque Estrada was a witness to the formation of the city and an active participant in the events of the first municipal election, themes addressed by the author in his book in a memorialistic tone. Our research was based on the Genetic Criticism approach, relying on Biasi (2010) and Pino and Zular (2007). We compare the version published by the author in 1961 with his manuscript, entitled Originais do livro Terra crua, composed of two typewritten texts revised by hand by the author. In addition, we analyze a typewritten letter that Duque Estrada sent to Luiz Moreira de Carvalho, mayor of Maringá, in 1966. From this, we discuss the author's motivations for publishing the book, highlighting his intention to "photograph" the first moments of the city, a vision about the work that will be accentuated after the publication of Terra crua, in the speeches of academics, memoirists and agents of the local public power. Finally, we will evaluate some of the inclusions and exclusions of themes made by the author in the manuscript, exploring their possible motivations and their consequences.

KEYWORDS:
genetic criticismo; terra crua; Jorge Ferreira Duque Estrada

Introdução: um plano de sobrevoo para Terra crua

O presente artigo se propõe a realizar um sobrevoo sobre alguns aspectos que a pesquisa sobre a gênese do livro Terra crua, de Jorge Ferreira Duque Estrada, evidencia. Nosso intuito é destacar alguns dos resultados que encontramos ao comparar os Originais do livro Terra Crua, manuscrito1 1 O que estamos chamando de “manuscrito” é o documento organizado pelo autor composto por dois datiloscritos revisados. Duque Estrado o intitulou os originais do livro Terra Crua, denominação que utilizaremos ao longo deste trabalho. doado pelo autor para o município de Maringá, com o livro efetivamente levado ao público em 1961.

Como veremos, o estudo da gênese de Terra crua se faz importante pela relevância que a obra publicada ganhou. Assim, esse livro se tornou obra de referência para memorialistas e historiadores que se dedicam a estudar o passado de Maringá-PR, cidade cuja construção e fundação remonta a década de 1940, no processo de (re)ocupação da região do noroeste do Paraná (Tomazi, 1999TOMAZI, Nelson Darci Tomazi. Construções e silêncios sobre a (re)ocupação da região norte do estado do Paraná. In: DIAS, Reginaldo Benedito; GONÇALVES, José Henrique Rollo (org.) Maringá e o norte do Paraná: estudos de história regional. Maringá: Editora da UEM , 1999. p. 51-85). Além disso, a obra também tem sido objeto relevante para o poder público municipal, que também atuou e atua para sua divulgação, aproveitando-se do valor simbólico que a obra assumi. Mais recentemente, em 2021, realizou-se o tombamento do manuscrito produzido por Duque Estrada como patrimônio cultural de Maringá, o que amplia a relevância do estudo que aqui propomos.

O livro Terra crua tem sido utilizado amplamente como fonte para fatos históricos, biografias de pessoas importantes nas duas primeiras décadas da cidade de Maringá (Dias; Gonçalves, 2014DIAS, Reginaldo Benedito; GONÇALVES, José Henrique Rollo. Jorge Ferreira Duque Estrada: interprete de Maringá. In: DIAS, Reginaldo Benedito; GINI, Sérgio; SILVA, Miguel Fernandes Perez (org.). Terra Crua - Jorge Ferreira Duque Estrada. Maringá: Editora da UEM, 2014. p. 169-222). Também é peça fundamental para a sustentação dos discursos acerca do “pioneirismo” e do “pioneiro” maringaense, esse último lido muitas vezes como uma espécie de herói local que teria levado a “civilização” para a “região de matas virgens” e de “vazio populacional”, representações e construções que se perpetuam em diversos espaços da cidade ainda hoje, analisados de forma crítica por Tomazi (1999TOMAZI, Nelson Darci Tomazi. Construções e silêncios sobre a (re)ocupação da região norte do estado do Paraná. In: DIAS, Reginaldo Benedito; GONÇALVES, José Henrique Rollo (org.) Maringá e o norte do Paraná: estudos de história regional. Maringá: Editora da UEM , 1999. p. 51-85), dentre outros.

Para realizar nosso trabalho lançamos mão do instrumental da Crítica Genética, cujos contornos e procedimentos estão descritos em Biasi (2010BIASI, Pierre-Marc de. A genética dos textos. Porto Alegre: Editora da IPUCRS, 2010.) e Pino e Zular (2007). Essa área de estudos que se insere no campo dos estudos filológicos quer realçar exatamente o percurso genético das obras, para melhor compreendê-la. Reservamos uma seção para melhor explicar isso ao leitor.

Nesse trabalho nos propomos a investigar mais detalhadamente um dos fólios dos Originais do livro Terra Crua, escrito à mão pelo próprio autor, para apresentar esse documento, o que nos permitiu compreender melhor as motivações de Duque Estrada para a produção de seu livro. Também nos propomos a investigar trechos inclusos e cortados pelo autor no processo de composição da obra. Tais inserções e exclusões, além de ampliar o conhecimento sobre as temáticas da história da cidade de Maringá-PR, permitem-nos realizar uma reflexão sobre a autoria do manuscrito, mais precisamente se o autor contou ou não com a ajuda de terceiros para produzir os datiloscritos que o compõe.

Antes de seguirmos, entendemos que se faz necessário uma explicação acerca dos títulos que escolhemos. Como se poderá verificar, esses remetem à imagem de “sobrevoo de avião” e da fotografia. Adiante se perceberá a motivação de nossa escolha. O autor de Terra crua mantinha dentre suas diversas atividades econômicas a atuação no ramo de taxi aéreo, pilotando, ele mesmo, seu Stinson, aeronave a que se refere em vários momentos em seu livro. Sobre a escolha de palavras que remetem ao campo da fotografia, isso diz respeito à menção que Jorge Ferreira Duque Estrada fez ao se referir às suas pretensões ao publicar o livro: queria “fotografar” o passado da cidade. Entendemos, por esses dois motivos, que o uso dos dois campos imagéticos - o do “sobrevoo de avião” e o da “fotografia” - eram adequados compor os títulos e subtítulos do presente artigo que pretende tomar por objeto a gênese de Terra crua.

Um sobrevoo sobre a história de Terra crua e de seu manuscrito

O livro Terra crua foi publicado em 1961 por Jorge Ferreira Duque Estrada. O autor, que era fluminense de São Gonçalo-RJ e havia residido em São José do Barreiro- SP no seu início de carreira, na segunda metade da década de 1940, mudou-se para a região do que seria Maringá-PR, tendo tido a oportunidade de assistir o processo de formação da cidade que nasceu planejada. Ao chegar a essa cidade, Duque Estrada portava dois diplomas, de direito e de odontologia, fato raro naquela parte do país àquela altura, conhecida ainda como “boca do sertão” (Dias; Gonçalves, 2014DIAS, Reginaldo Benedito; GONÇALVES, José Henrique Rollo. Jorge Ferreira Duque Estrada: interprete de Maringá. In: DIAS, Reginaldo Benedito; GINI, Sérgio; SILVA, Miguel Fernandes Perez (org.). Terra Crua - Jorge Ferreira Duque Estrada. Maringá: Editora da UEM, 2014. p. 169-222). Certamente, Duque Estrada transferiu-se para lá com interesses semelhantes aos inúmeros migrantes dos estados oriundos principalmente de São Paulo, Paraná, Minas Gerais, mas também Bahia, Pernambuco, Ceará, Alagoas, Santa Catarina, Espírito Santo, grupos de estrangeiros e seus descendentes já brasileiros, como os japoneses, como mostra estudo sobre a migração para a região de Maringá de 1944 a 1980 realizado por Luz (1999LUZ, France A migração através dos dados dos registros dos casamentos dos cartórios da microrregião norte novo de Maringá. In: DIAS, Reginaldo Benedito; GONÇALVES, José Henrique Rollo (org.) Maringá e o norte do Paraná: estudos de história regional. Maringá: Editora da UEM , 1999. p. 141-153). Haviam sido atraídos pela propaganda da Companhia Melhoramentos Norte do Paraná, responsável pela construção da nova cidade no noroeste paranaense, e que prometia oportunidades de riqueza, alardeada pelos instrumentos publicitários disponíveis à época (Gonçalves, 1999GONÇALVES, José Henrique Rollo. Quando a imagem publicitária vira evidência factual: versões e reversões do norte (novo) do Paraná. In: DIAS, Reginaldo Benedito; GONÇALVES, José Henrique Rollo (org.) Maringá e o norte do Paraná: estudos de história regional. Maringá: Editora da UEM , 1999. p. 87-121). Lá atuou como advogado, proprietário da primeira empresa de taxi aéreo, como articulista da imprensa maringaense de então e, finalmente, como político (Dias; Gonçalves, 2014DIAS, Reginaldo Benedito; GONÇALVES, José Henrique Rollo. Jorge Ferreira Duque Estrada: interprete de Maringá. In: DIAS, Reginaldo Benedito; GINI, Sérgio; SILVA, Miguel Fernandes Perez (org.). Terra Crua - Jorge Ferreira Duque Estrada. Maringá: Editora da UEM, 2014. p. 169-222).

Em Terra crua, Duque Estrada tematiza a cidade em seus primeiros anos no período de sua fundação em 1947. O autor mantém ao longo de quase todo texto um tom memorialístico, lançando também mão de documentação que recolheu para comprovar fatos, principalmente os mais polêmicos.

O livro recompõe o cenário da cidade nos anos iniciais. Para isso, o autor compilou a biografias de alguns de seus moradores mais importantes do ponto de vista empresarial - proprietário de posto, do primeiro Hotel, das empresas comerciais, do cinema, etc. Menciona também as figuras relevantes da cidade àquela altura: o primeiro médico, a primeira professora, o primeiro padre, etc. Inclui na narrativa o “exército” de gente simples que atuava na derrubada da mata. Adicionalmente, conta sobre os grupos de jagunços e seus chefes envolvidos no processo de tomada das terras “devolutas” e da grilagem. Trata das primeiras formações de partidos e dos políticos da cidade para, em seguida, tematizar sobre a primeira eleição de vereadores e prefeito, na qual se envolveu atuando pelo PTB de Getúlio Vargas, concorrendo a um cargo na Câmara Municipal. Nesse ponto, narra a luta dos trabalhistas contra as forças políticas apoiadas pela Companhia de Terras Norte do Paraná que procurava fazer o primeiro prefeito e compor a Câmara de modo a garantir seus privilégios ao “repassar” a cidade aos moradores, obtendo vantagens principalmente na questão da isenção dos impostos municipais. Pragmático, mas ao mesmo tempo crítico, Duque Estrada desvela todo o processo eleitoral da época, reservado apenas aos alfabetizados, mas marcado por constantes episódios de compra de votos. Após uma campanha repleta de propaganda falsa sobre os candidatos petebistas, o grupo de Duque Estrada conseguiu impor sua vitória às forças contrárias. O livro, então, passa a narrar os acontecimentos da primeira legislatura que seria marcada pela manipulação e influência da empresa colonizadora sobre a Câmara. Os desdobramentos desembocariam em um processo de impeachment contra o prefeito eleito, Inocente Villanova, acusado de ter obtido vantagens indevidas para suas empresas em serviços prestados à prefeitura. Apenas após decisões do judiciário é que Villanova foi reconduzido ao cargo, mas o desgaste causado por todos esses fatos e, na opinião de Duque Estrada, a inabilidade do prefeito em conduzir acordos, levaria a derrota dos partidos getulistas na segunda eleição. O livro encerra-se narrando esse período, tempo em que o autor do livro que tomamos aqui como objeto considerava que a fase da “Terra crua”, da fase inicial da cidade de Maringá, havia ficado para trás.

No início da década de 1960, depois de ser derrotado em eleição por duas vezes - como candidato a deputado estadual pelo PSP (Partido Social Progressista) por Maringá em 1958 e na eleição municipal da cidade em 1960, pelo PST (Partido Social Trabalhista), Duque Estrada mudou-se para Curitiba em 1961DUQUE ESTRADA, Jorge Ferreira. Terra Crua. Curitiba: Prefeitura de Maringá, 1961. (Dias; Gonçalves, 2014DIAS, Reginaldo Benedito; GONÇALVES, José Henrique Rollo. Jorge Ferreira Duque Estrada: interprete de Maringá. In: DIAS, Reginaldo Benedito; GINI, Sérgio; SILVA, Miguel Fernandes Perez (org.). Terra Crua - Jorge Ferreira Duque Estrada. Maringá: Editora da UEM, 2014. p. 169-222). Longe da cidade que ajudou a formar no noroeste do Paraná, ele, estimulado por membros da família Barros, toma um datiloscrito do Terra crua que escreveu ainda em 1957, revisa-o e passa a trabalhar para sua publicação, produzindo ou conduzindo a produção de um novo datiloscrito, base para a publicação final, em 1961.

Lançado o livro, ao que parece, a obra deve ter tido adesão dos grupos que apoiavam as forças políticas às quais pertencia. Sua narrativa era incômoda para parte da elite maringaense, que havia jogado a favor das manobras da Companhia e contrário ao primeiro prefeito de Maringá. Como Dias e Gonçalves (2014DIAS, Reginaldo Benedito; GONÇALVES, José Henrique Rollo. Jorge Ferreira Duque Estrada: interprete de Maringá. In: DIAS, Reginaldo Benedito; GINI, Sérgio; SILVA, Miguel Fernandes Perez (org.). Terra Crua - Jorge Ferreira Duque Estrada. Maringá: Editora da UEM, 2014. p. 169-222) afirmam: “Como não tinha sido concebido para formar consensos, era natural que dividisse opiniões e que nem todos apreciassem ou mesmo tivesse interesse por sua leitura.” (p. 211)

Abaixo mostramos o livro com sua capa original (Figura 1).

Figura 1:
Terra crua, publicado em 1961, com capa original

Nos anos 1970, quando veio a Maringá lançar o romance Isto é você, Maria, cuja narrativa ocorria sobre a construção da cidade, misturando fatos reais a ficção, Duque Estrada recebeu do amigo e então prefeito eleito, Sílvio Barros - o mesmo que o havia estimulado a publicar o Terra crua - um espaço especial. A seção de autógrafos foi realizada em 11 de maio como parte das comemorações do aniversário de fundação da cidade (O Jornal de Maringá, 1974).

A partir daí, naquela década, vários exemplares de Terra crua passam a ser encontrados na cidade, mas agora com reencadernados, em percalux azul, como vemos na Figura 2.

Figura 2:
Terra crua publicado, com capa dura azul

Ao que tudo indica, esses volumes, que ainda são encontrados nos sebos de Maringá, são exemplares da primeira edição, que haviam passado por um processo de re-facção da capa, muito provavelmente usando a estrutura da Biblioteca central de Maringá. Do acervo dessa instituição, todos os exemplares foram registrados em 1977 (Dias; Gonçalves, 2014DIAS, Reginaldo Benedito; GONÇALVES, José Henrique Rollo. Jorge Ferreira Duque Estrada: interprete de Maringá. In: DIAS, Reginaldo Benedito; GINI, Sérgio; SILVA, Miguel Fernandes Perez (org.). Terra Crua - Jorge Ferreira Duque Estrada. Maringá: Editora da UEM, 2014. p. 169-222, p. 211)

A obra, então, passa a ser referência dos discursos de memorialistas da cidade. Nesse sentido, passa a colaborar para a construção para imagem do chamado “pioneiro” um indivíduo que teria emprestado sua coragem para a construção da cidade que teria trazido para o noroeste do Paraná o progresso e a civilização (Dias; Gonçalves, 2014DIAS, Reginaldo Benedito; GONÇALVES, José Henrique Rollo. Jorge Ferreira Duque Estrada: interprete de Maringá. In: DIAS, Reginaldo Benedito; GINI, Sérgio; SILVA, Miguel Fernandes Perez (org.). Terra Crua - Jorge Ferreira Duque Estrada. Maringá: Editora da UEM, 2014. p. 169-222).

A obra seguiu também ganhando espaço no campo da pesquisa acadêmica sobre a cidade, como fonte para estudo da formação da cidade de Maringá. Na década de 1980, trabalhos de pesquisadores da História local lançam mão do livro Terra crua para buscar informação sobre o passado da cidade. Dentre esses trabalhos, destaca-se a dissertação de mestrado da professor France Luz, do departamento de História da Universidade Estadual de Maringá. Atualmente, a obra de Duque Estrada é referência frequente em pesquisas feitas sobre o passado da cidade (Dias; Gonçalves, 2014DIAS, Reginaldo Benedito; GONÇALVES, José Henrique Rollo. Jorge Ferreira Duque Estrada: interprete de Maringá. In: DIAS, Reginaldo Benedito; GINI, Sérgio; SILVA, Miguel Fernandes Perez (org.). Terra Crua - Jorge Ferreira Duque Estrada. Maringá: Editora da UEM, 2014. p. 169-222, p.216).

A relevância do livro desembocou com a publicação de uma edição fac-símile do Terra crua em 2014. Essa versão, cuja capa pode ser vista na Figura 3, organizada por Reginaldo Benedito Dias, Sérgio Gini e Miguel Fernando Perez Silva, resultou de um esforço que envolveu a Universidade Estadual de Maringá, a ACIM (Associação Comercial de Maringá) e empresas privadas, contando com apoio financeiro a Lei de Incentivo à Cultura do governo federal e de recursos de fomento municipal à cultura. A junção de todas essas forças demonstra o grau de importância que obra atingiu como elemento importante para a constituição dos discursos oficial e científico acerca da cidade.

Figura 3:
Edição fac-símile de Terra crua, publicado em 2014.

Foi provavelmente na época da visita de Duque Estrado a Maringá para lançar seu romance Isto é você, Maria que Duque Estrada organizou os datiloscritos que utilizara para publicar o Terra crua em 1961. Após encaderná-lo, doou-o ao município de Maringá, dando-lhe o título de Originais do livro Terra Crua.

Segundo relatos ao quais tivemos acesso, de moradores antigos da cidade, ainda na década de 1980, o exemplar manuscrito podia ser visto na Biblioteca Central da cidade de Maringá. O passar do tempo e uma mudança de endereço dessa entidade em 2012 devem ter favorecido para que esse volume caísse no esquecimento e se perdesse em uma seção de obras não catalogadas no acervo bibliográfico da instituição. Em 2018, os seus funcionários localizaram novamente o volume, que após processo de avaliação pela Gerência de Patrimônio Histórico do município, foi tombado como patrimônio cultural da cidade. Apresentamos sua imagem na figura abaixo (Figura 4):

Figura 4:
Originais do livro Terra Crua, doados pelo autor ao município de Maringá.

É justamente da comparação do manuscrito com o livro Terra crua publicado em 1961 que se fará boa parte de nossas análises a seguir.

Os instrumentos de sobrevoo: o politestemunho da gênese do livro e a abordagem da Crítica Genética

O estudo do Terra crua tal qual propomos nos leva a lidar com politestemunho (Cambraia, 2005CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à Crítica Textual. São Paulo: Martins Fontes, 2005., p. 104). Para estudo da gênese da obra utilizaremos dois testemunhos que Duque Estrada deixou-nos: os dois datiloscritos revisados que compõem os Originais do livro Terra Crua.

O primeiro deles, com um de seus fólios apresentados na Figura 5, foi datado pelo autor, como tendo sido produzida em 1957 e contém 154 fólios, em grande parte, anopistógrafos, em papel A4, com mancha de 17 cm x 26 cm.

Figura 5 -
Fólio de Originais do livro Terra Crua, datado de 1957.

Já o segundo testemunho que utilizamos, ilustrado na Figura 6, é composto de 155 fólios, em papel medindo 21 cm x 28 cm e mancha de 15 cm x 22 cm. Sobre sua datação, ele é provavelmente de 1961, já que foi resultado da retomada das iniciativas do autor para publicação, após a mudança do autor para a capital do Paraná (Duque Estrada, 961, p.1), o que só aconteceu em 1961DUQUE ESTRADA, Jorge Ferreira. Terra Crua. Curitiba: Prefeitura de Maringá, 1961. (Dias; Gonçalves, 2014DIAS, Reginaldo Benedito; GONÇALVES, José Henrique Rollo. Jorge Ferreira Duque Estrada: interprete de Maringá. In: DIAS, Reginaldo Benedito; GINI, Sérgio; SILVA, Miguel Fernandes Perez (org.). Terra Crua - Jorge Ferreira Duque Estrada. Maringá: Editora da UEM, 2014. p. 169-222, p. 177), mesmo ano da publicação do livro.

Figura 6 -
Fólio de Originais do livro Terra Crua, datado de 1961

Adicionalmente, acrescentamos como testemunho a carta que apresentamos a seguir, enviada por Duque Estrada ao prefeito em exercido de Maringá em 1966, Luiz Moreira de Carvalho. Essa carta (Figuras 7 e 8) acompanharia três volumes do livro publicado, uma para o acervo pessoal do mandatário do executivo, outro para compor o acervo da biblioteca e o último para ser enviado à Câmara Municipal de Maringá.

Figura 7 -
Fólio 1 de carta enviada por Jorge Duque Ferreira Duque Estrada a Luiz Moreira de Carvalho em 1966.

Figura 8 -
Fólio 2 de carta enviada por Jorge Duque Ferreira Duque Estrada a Luiz Moreira de Carvalho em 1966.

A existência desses testemunhos permite-nos analisar o Terra crua a partir da perspectiva da abordagem da Crítica Genética. Para Biasi, esta perspectiva

[...] propõe-se renovar o conhecimento dos textos à luz de seus manuscritos, deslocando a interrogação crítica do autor para o escritor, do escrito para a escritura, da estrutura para os processos, da obra para a gênese. [...] A crítica genética toma por objeto essa dimensão temporal do devir-texto, colocando como hipótese que a obra, na sua perfeição final, conserva o efeito de suas metamorfoses e contém a memória de sua própria gênese. (Biasi, 2010BIASI, Pierre-Marc de. A genética dos textos. Porto Alegre: Editora da IPUCRS, 2010., p. 13).

Para os estudos de Crítica Genética, interessa, portanto, a noção de “processo” de reconstrução das etapas de criação da obra. Nesse sentido, o trabalho do geneticista não é apenas o de trazer à tona os manuscritos criados no processo de produção realizado pelo autor, mas o de interpretar esse movimento criativo.

Para Grésillon, por exemplo, uma das fundadoras da disciplina esse suposto ‘processo’ seria principalmente um processo de leitura, e não de um autor, mas do geneticista. Os manuscritos não constituem em si um processo: é na leitura desses documentos que um processo será construído. (Pino; Zular, 2007, p. 27).

A inclusão não somente dos textos relacionados diretamente aos processos de publicação dos textos, ou seja, dos datiloscritos produzidos pelo autor ou frutos de sua gestão, mas também da carta que Duque Estrada enviou ao prefeito Luiz Carvalho em 1961DUQUE ESTRADA, Jorge Ferreira. Terra Crua. Curitiba: Prefeitura de Maringá, 1961., encaixa-se no conceito de dossiê de Gênese, que deve reunir manuscritos e documentos ligados ao processo genético a que pretendemos estudar. “O dossiê de gênese pode também ser enriquecido com documentos (autógrafos ou não, manuscritos ou impressos, privados ou públicos) contendo informações exteriores à gênese da obra, mas preciosas para análise [...]” (Biasi, 2010BIASI, Pierre-Marc de. A genética dos textos. Porto Alegre: Editora da IPUCRS, 2010., p. 40).

Duque Estrada não deixou, até onde sabemos, esboços realizados antes da produção das primeiras versões. Entretanto, os datiloscritos a que tivemos acesso, os quais compõem os Originais do livro Terra Crua, contêm, como mostramos antes, ricos elementos para leitura dos processos de gênese. Evidenciam as revisões e parte do processo de “passagem a limpo corrigidas” (Biasi, 2010BIASI, Pierre-Marc de. A genética dos textos. Porto Alegre: Editora da IPUCRS, 2010., p. 57). Como o manuscrito mais recente, datado segundo levantamos de 1961, contém ainda marcas de revisões, o dossiê de gênese que constituímos não apresenta um “manuscrito definitivo” nos termos de Biasi (2010BIASI, Pierre-Marc de. A genética dos textos. Porto Alegre: Editora da IPUCRS, 2010., p.60), nem nos mostram uma possível etapa das provas corrigidas produzidas pelo editor. Da fase editorial propriamente dita, temos a única edição realizada pelo autor em vida em 1961, reimpressa postumamente em edição fac-símile, como vimos na introdução deste trabalho.

Primeira fotografia de nosso sobrevoo: os propósitos comunicativos do Terra crua

Uma das questões importantes para pensar a gênese do livro Terra crua refere-se às motivações e finalidades do texto e de seu autor. A leitura do livro publicado em 1961 transparece três objetivos principais. O primeiro deles é o de registrar uma história sobre o período inicial da cidade, guardar a fotografia dos tempos na qual Maringá era uma “cidade fantasma”, com terrenos e casas sem moradores. Registra-se os nomes dos primeiros habitantes ilustres. Após o registro do cenário urbano e social dos primeiros momentos, passa narrar a organização da vida política da cidade, principalmente após a elevação de Maringá à município em 1952. Feito esse cenário, coloca em cena a primeira eleição e a primeira legislatura.

E é nesse ponto, ao falar da eleição e dos embates políticos da primeira legislatura, que um segundo propósito emerge no texto publicado por Duque Estrada: o da denúncia. Nesse sentido, o autor conduz o discurso de modo a, de certa maneira, tomar partido na luta que se travava. Assim, o texto ganha um certo ar de denúncia das interferências que a Companhia Melhoramentos Norte do Paraná impunha sobre a Câmara Municipal naquela altura. Dois trechos a seguir, retirados da obra publicada ilustram essa finalidade2 2 Para transcrição dos trechos que retiramos da obra publicada e de seu manuscrito, optamos por adotar “|” para identificar a quebra de linha e “||” para marcar o final do parágrafo, muito embora tais procedimentos não interfiram na discussão que propomos neste artigo. :

Num passe de mágica, Basílio Sautchuk foi reintegrado | como funcionário da Companhia; deixou nosso grupo e foi re- | forçar a U.D.N., comandada por Napoleão Moreira da Silva. || (Duque Estrada, 1961DUQUE ESTRADA, Jorge Ferreira. Terra Crua. Curitiba: Prefeitura de Maringá, 1961., p. 117).

Tive de usar de todos os meus conhecimentos para, mais uma | vez, vencer as pretenções udenistas. Derrotei Napoleão e con- | segui eleger Joaquim Pereira de Castro, do P.T.B., para ocu- | par a Presidência. || Todavia. pouco tempo depois, inexplicàvelmente, no dia 5 | de maio de 1954, Joaquim Pereira de Castro renunciava à Pre- | sidência. Não desejo fazer qualquer insinuação, nem acusar | quem quer que seja. Atenho-me aos fatos. Seis dias depois de | sua renúncia, isto é, no dia 11 de maio de 1954, Joaquim Pe- | reira de Castro recebia as quitações: da data número 22, zo- | na 1, recibo número 121, assinado pelo Dr. Hermann Moraes | Barros, que foi vendida ao sr. Néo Martins, conforme transfe- | rência lavrada no Cartório do Tabelião Esmeraldo Leandro [...] (Duque Estrada, 1961DUQUE ESTRADA, Jorge Ferreira. Terra Crua. Curitiba: Prefeitura de Maringá, 1961., p. 117)

Nos dois trechos acima, Duque insinua - ainda que negue fazer “qualquer insinuação” - que a Câmara estava sendo cooptada pelas forças políticas apoiadas pela Companhia. No primeiro excerto, um dos políticos aliados muda de lado depois de ser, “num passe de mágica”, readmitido como funcionário daquela empresa. No segundo trecho, a renúncia da presidência da Câmara Municipal concomitantemente à quitação da dívida que o político tinha para com a empresa colonizadora em função da venda de um terreno.

O livro dá também direito de defesa ao prefeito municipal, Inocente Villanova, que sofreria um processo de cassação conduzido pela Câmara Municipal. Duque publica textualmente a defesa que esse político fez em um dos processos crimes abertos contra ele. Portanto, o autor de Terra crua acrescenta ao seu livro a finalidade de defender o prefeito pelo qual havia trabalhado na eleição.

Desses três propósitos, o de se constituir como obra que guarda a memória dos primeiros tempos maringaenses, passa a ser ressaltado pelo autor com o passar do tempo. A carta enviada ao então prefeito de Maringá Luiz Moreira de Carvalho, em 1966, Duque afirma: “Ao escrever ‘Terra crua’ ou começos de Maringá, não tive | por objetivo fazer literatura e nem ressaltar ou criticar ês- | te ou aquêle personagem. Quis isto sim, ‘fotografar’ o nasci- | mento de uma cidade [...]” 3 3 Trecho retirado de carta de Jorge Ferreira Duque Estrada enviada ao prefeito Luiz Moreira de Carvalho, reproduzida nas figuras 7 e 8. Mais adiante afirma: ‘Terra crua’ - repito-o - não tem qualquer valor literá- | rio nem imediato. Mas, daqui a alguns anos, quiçá no centenário | da cidade, servirá para reviver os tempos que não voltam mais ||4 4 Trecho retirado de carta de Jorge Ferreira Duque Estrada enviada ao prefeito Luiz Moreira de Carvalho, reproduzida nas figuras 7 e 8. ”.

Nosso sobrevoo sobre o manuscrito de Duque Estrada revela exatamente essa imagem de obra memorialística. É o que percebemos no fólio de apresentação de Originais do livro Terra Crua, escrito à mão, pelo próprio autor provavelmente na década de 1970, momento em que doou os Originais para a municipalidade. Na Figura 9, a seguir, e em sua transcrição subsequente, pode-se constatar isso:

Figura 9:
Fólio de apresentação dos Originais do livro Terra Crua

Transcrição:

Êstes, são os originais do primeiro livro escrito | em Maringá, sobre Marin- | gá. Por acreditar que um | dia, quando a cidade com- | pletar meio século, seus | filhos queiram saber como | foram os primeiros tempos, | é que escrevi êste li- | vro. Os originais, guar- | dei-os para oferecer à | cidade apenas como um | documento de seus primei- | ros anos de existência. || Uma espécie, assim, de / retrato da (infância), que | a gente sempre gosta de | rever. Se estes originais, | por ventura, chegarem até | o centenário de Maringá, | terei atingido o meu | objetivo: prestar minha | sincera homenagem, esteja | eu onde estiver, à Terra | onde vivi feliz durante | quatorze anos. ||| Boa sorte, Maringá! || Jorge Ferreira Duque Estrada ||

Como se pode ver o autor pretendia que a obra fosse lida como guardiã da memória e da História da formação de Maringá e seus primeiros passos como município. Assim como na carta enviada ao prefeito Luiz Carvalho em 1966, o autor menciona as datas comemorativas significativas da cidade para justificar porque escreve o livro. Pretendia que a obra fosse relevante para o “cinquentenário” e para o “centenário” da cidade, que fosse lida como um “documento de seus primeiros anos de existência”.

Tanto a carta enviada em 1966 ao mandatário municipal maringaense daquele período, como a posterior doação dos Originais do livro Terra Crua são, portanto, sementes plantadas pelo autor para que sua obra se tornasse referência sobre o passado da cidade. Foi o primeiro passo para que atualmente, o livro Terra crua ser entendido na cidade como obra renomada e definitiva sobre a fundação de Maringá. Esse gesto também permitiu que, mais tarde, no campo acadêmico Duque Estrada fosse tomado como referência confiável, passando a frequentar artigos, dissertações e teses que tematizam a história do município. O fólio de apresentação do manuscrito que tomamos por objeto de pesquisa confirma esse movimento.

Mais fotografias de nosso sobrevoo: as revisões de corte de conteúdo

A investigação genética do Terra crua mostra que os cortes textuais de trechos de seu datiloscrito inicial, escrito em 1957, foram realizados pelo autor ao longo do processo que levou a cabo para a publicação do livro em 1961. Para essa seção do presente trabalho selecionamos alguns dos momentos em que isso ocorreu.

No capítulo III, intitulado nos dois datiloscrito e na obra publicada em 1961 como “Conjuminações”, Duque Estrada se dedica a apresentar o processo de arranjo das forças políticas no município antes da primeira eleição para prefeito e composição da Câmara. Tematiza, então, a formação dos quadros que formariam cada partido político, bem como os acordos e as movimentações para a filiação e apresentação das candidaturas. Feito isso, o autor também se dedica a mostrar o funcionamento do jogo eleitoral de então, baseado, em grande medida, na compra de votos. Na visão do autor, os políticos eram vítimas desse processo, sendo caçados pelo eleitor que o extorquia, de certo modo, em troca do voto. Na obra publicada consta:

Lembro-me de uma mulher que percorreu todos os diretó- | rios oferecendo o próprio voto e o do marido em troca de um | chapéu novo; de outra que só votaria em quem tirasse o seu | filho da cadeia, condenado por homicídio; de gente querendo | telhas, ou um casal de porcos de raça. Pequenas e regulares | quantias em dinheiro são pedidas a todo momento. Certo dia, | por curiosidade, anotei e somei as parcelas que me haviam so- | licitado naquelas vinte e quatro horas: - Cr$ 65.340,00, apro- | ximadamente. (Duque Estrada, 1961DUQUE ESTRADA, Jorge Ferreira. Terra Crua. Curitiba: Prefeitura de Maringá, 1961., p. 25).

Segundo a obra efetivamente publicada em 1961, o político era obrigado a pagar o processo de qualificação do eleitor5 5 O processo de qualificação do eleitor naquela época envolvia a entrega em Cartório Eleitoral de documentos pessoais e a comprovação de que o eleitor não era analfabeto. que custava cerca de Cr$ 100 por eleitor. E esse valor naquela campanha municipal em questão tinha sido acrescido com a imposição de taxa adicionais caso o eleitor não tivesse votado no processo eleitoral anterior.

No datiloscrito de 1957, primeira versão do livro, descobrimos quanto o processo todo custava no caso dos eleitores em dívida com a justiça por ausência no pleito eleitoral. É o que podemos ver no trecho a seguir:

Assim, para depositar o seu voto secreto na urna, | exige que o candidato que se interesse pelo seu voto pague a sua | multa por não ter votado (CR$ 150,00) na eleição passada, ou /as despesas decorrentes de novo título, (fotografia, viagens, | almoço e até o “dia de serviço”). [rasura a máquina] No dia da elei- | ção ainda quer transporte de ida e volta, churrasco, bebidas, etc. || (Datiloscrito 1957, fólio 023).

Já no datiloscrito de 1961, reformula-se totalmente este parágrafo, mantendo-se ainda a ideia das exigências do eleitor pelo pagamento de despesas no dia da votação, mas omitindo-se o valor real em cruzeiros do custeio de multas com inadimplentes com a justiça eleitoral:

Alguns, cheios de negaças e choramingando penúrias simu- | lam timidez; mas para votar exigem que o candidato não | só pague suas taxas de eleitores recalcitrantes como lhes | atafulhe os bandulhos de fartos churrascos, cerveja, pão | e manteiga num festão de tabaréus. E, corando a burla, | com a maior desfaçatez, terminada a eleição, virão recla- | mar o “dia de serviço”... || (Datiloscrito de 1961, fólio 29).

Importante mencionar que essa reformulação se deu sem qualquer marca nos fólios de 1957. Ou seja, nenhuma revisão a caneta indicava a revisão da escrita do parágrafo, omitindo-se o valor da multa eleitoral. Esse fato nos leva a duas hipóteses. A primeira é a de que o próprio autor teria feito tal modificação datilografando ele próprio o texto de 1961, cortando uma informação que nos parece importante para quem queria dar a dimensão completa das despesas do processo. Outra possibilidade, é supor que outra pessoa tenha trabalhado para datilografar essa última versão, recebendo de Duque Estrade instruções para o corte ou, ao menos, validando com ele a alteração realizada.

De qualquer maneira, o trecho inteiro, com a referência às custas da multa e o pagamento das despesas adicionais com o eleitor (transporte, alimentação e ausência no trabalho), não aparece na versão publicada efetivamente no livro. Mais uma vez isso se deu sem que tenha havido qualquer marca de revisão no datiloscrito de 1961. Essa modificação “silenciosa” do datiloscrito de 1961 leva-nos a suspeitar que possa ter existido alguma outra versão desse trecho do livro, a partir do qual se produziu matriz para impressão final do livro em gráfica.

Outro trecho interessante que evidencia um corte textual, na comparação das diferentes versões do texto, aparece no capítulo IV, intitulado Forças em confronto. Nele, Duque Estrada fala sobre os primeiros políticos de Maringá e acaba por discorrer sobre os laços que tais forças mantinham com os bandos de jagunços, grupos que por meio da violência grilava as terras e se apropriava das chamadas “terras devolutas”. O mais famoso chefe de grupos armados era Aníbal Goulart Maia, conhecido por sua violência, por ter grilado a chamada gleba 19 em Paranavaí-PR e por usa relação com o Partido Social Democrático (P.S.D.) local, liderado por Mário Jardim. Outro líder desses bandos violentos era Alberto Ribeiro de Andrade, conhecido como “Galo Cego”, protegido do então famoso deputado João Chede (também do P.S.D.). Por fim, o texto de Duque Estrada menciona a figura de um líder de jagunços conhecido turco Abbud.

Ao falar do tamanho e das forças desses chefes e seus bandos armados, Duque Estrada mensura a força de Aníbal e do turco Abbud, em trecho que já estava presente no datiloscrito original escrito em 1957. “Anibal comandava cêrca de 80 jagunços que não eram | «flor de se cheirar» e, os outros, não ficavam atrás, principal- | mente o turco Abbud. ||” (Duque Estrada, 1961DUQUE ESTRADA, Jorge Ferreira. Terra Crua. Curitiba: Prefeitura de Maringá, 1961., 29).

Essa relação da política com os violentos bandos armados na versão final do Terra crua publicado parece apresentar-se como um procedimento utilizado pelos adversários do grupo ao qual Duque Estrada se filiava, mostra-se, no datiloscrito de 1957, como uma manobra partilhada também pelo próprio autor, o qual, do ponto de vista ideológico, tinha um posicionamento mais à esquerda que se aglutinava em torno do “getulismo”. É o que podemos ver no trecho a seguir: “Nós, mais modestos, tínhamos apenas 30 homens | [rasura]. Eu abastecia | minha gente com meu avião Stinton - prefixo PP-DDE - com o qual | descia numa ilhota de areia quando baixavam as aguas do rio | Paraná. ||” (Datiloscrito de 1957, fólio 27).

Mais uma vez, sem qualquer marca de revisão que anunciasse sua exclusão, o trecho acima foi cortado do datiloscrito de 1961 e, não constou da obra publicada. O autor parece ter decidido apagar o envolvimento com tais bandos armados e seu envolvimento com as lutas pelas terras.

A retirada desse trecho deixou ao leitor da obra publicada um certo grau de incoerência no tratamento que Duque Estrada deu para o fenômeno da grilagem de terras. Se mais para o início do capítulo o autor afirma que Aníbal Goulart “[...] grilara a gleba 19, em Paranavaí enriquecendo da noite para o dia” (Duque Estrada, 1961DUQUE ESTRADA, Jorge Ferreira. Terra Crua. Curitiba: Prefeitura de Maringá, 1961., p. 28), alguns parágrafos depois, após detalhar o embate entre este e o turco Abudd, defende-os da seguinte maneira:

Seria uma conclusão errônea pensar que êsses homens se | destinavam a «expulsar alguém» das terras, que lá não haviam | «humanos». As terras eram requeridas legalmente do Estado; | mas, os requerentes, eram obrigados a defendê-las contra o | ataque brutal dos «grileiros» que, antes de se aproximarem de | um posseiro, tinham o hábito de verificar, primeiro, se êste es- | tava morto. || (Duque Estrada, 1961DUQUE ESTRADA, Jorge Ferreira. Terra Crua. Curitiba: Prefeitura de Maringá, 1961., p. 28).

Ou seja, atribui, em um primeiro momento, a Aníbal a grilagem e depois pede aos leitores que não concluam que as ações realizadas por esses bandos servissem para expulsar do campo qualquer morador, isentando-os dos violentos processos que a grilagem de terras envolvia. No argumento publicado no livro, o uso da violência, ao contrário, era mecanismo de defesa contra o ataque de grileiros e a requisição de terras era feita sempre de maneira legal.

Portanto, a inconsistência foi produzida exatamente no processo de reformulação empreendido pelo autor. Ao retirar o trecho no qual declarava ter tido relação com um desses bandos, mantendo o parágrafo que explicava melhor esse proceder isentando-se de lançar mão de procedimento para expulsar, com violência, posseiros, generaliza o argumento, aplicando-o também às ações dos grupos de jagunços citados anteriormente no texto.

Últimas fotografias de nosso sobrevoo: as revisões de inserção de conteúdo

A comparação entre os datiloscritos de 1957 e o de 1961 mostraram algumas inserções de conteúdos relevantes que constaram no livro final publicado pelo autor. Nessa seção vamos explorar os desdobramentos desses procedimentos para compreensão da gênese da obra.

No capítulo II, intitulado “Aparecimento dos ‘chefes’”, Duque Estrada se dedica a contar sobre os indivíduos importantes para o povoado que se transformaria na cidade de Maringá. Boa parte dos nomes listados se envolveriam com a política da cidade direta ou indiretamente, como o autor deixou claro a partir do capítulo III. Assim, Duque Estrada, no datiloscrito de 1957, inicia essas menções com João Tenório Cavalcanti, chefe dos machadeiros e homem relevante para a manipulação da grande massa de eleitores, seguindo no texto com porção textual dedicada a contar quem foi Napoleão Moreira da Silva, o grande adversário político dos petebistas e a quem o Terra crua efetivamente publicado foi dedicado. A relação de biografados seguiu se ampliando: Ângelo Planas, José Ignácio da Silva e sua esposa Eleutera Cordeiro, os Haddad, Hilário Alves, José Abraão, Antônio Carniel, Henrique Pinto Pereira e o Dr. Raul Maurer Moletta.

A partir do datiloscrito de 1961, outras biografias foram acrescentadas, tendo sido mantidas na versão efetivamente publicada naquele ano. Assim, acrescentaram-se palavras sobre os seguintes empreendedores: Alfredo Moysés Maluf, Alfredo Zamponi, Avelino Pereira, Alfredo Relm e Dr. Luiz Tourinho.

O que nos chama atenção nesse procedimento é que ele foi realizado novamente de maneira silenciosa. Nada, nenhum sinal de revisão feita a caneta no datiloscrito de 1957, indicava que essas inclusões seriam realizadas.

O mesmo procedimento ocorreu no capítulo IV cujos contornos temáticos já exploramos na seção anterior. Nesse capítulo, no datiloscrito de 1961, Duque Estrado acrescentou informações adicionais sobre os violentos Aníbal Goulart Maia, o turco Abbud e o temido Galo Cego. Há inclusive a inserção de episódio pitoresco, no qual Abbud após ter se desentendido com Aníbal foi parar em um avião pilotado por Victor Neubern do qual “quase caiu” “atraído pelo abismo”, expressões entre aspas que sugerem que o chefe dos jagunços teria passado por uma peça de intimidação em pleno sobrevoo.

Oras, esses temas não poderiam ser inseridos sem que o próprio Duque Estrada tivesse total controle sobre a produção do datiloscrito de 1961DUQUE ESTRADA, Jorge Ferreira. Terra Crua. Curitiba: Prefeitura de Maringá, 1961.. Para um livro produzido em Curitiba, em um contexto no qual Maringá mantinha ainda certo isolamento em relação à capital do Paraná, somente o autor poderia ser o responsável pelas inserções desses fatos e das biografias dessas figuras.

As mesmas hipóteses que aventamos antes sobre a produção do datiloscrito de 1961 surgem para explicar esse fato. Em uma primeira possibilidade, foi o próprio Duque Estrada o responsável por datilografar a segunda versão do manuscrito, inserindo o episódio sem qualquer “aviso”. Outra possibilidade é a existência textos - oral ou escrito - com informações complementares produzidas pelo autor para que um terceiro datilografasse essa segunda versão do manuscrito do livro. Nessa segunda possibilidade, claro, tais textos não chegaram até nós, nem foram selecionados pelo autor para compor os Originais do livro Terra Crua.

No presente artigo, não gostaríamos de fechar essa questão, optando por uma dessas possibilidades. Investigações futuras sobre os usos da língua mais comuns nos textos de Duque Estrada poderão elucidar melhor esse ponto.

Considerações finais

O presente artigo procurou evidenciar os resultados que encontramos no trabalho de recomposição da gênese do livro Terra crua. Embora o que apresentamos aqui ainda não se estabeleça como achados definitivos, foi-nos possível sobrevoar o processo de constituição da obra e fotografas alguns aspectos que consideramos relevantes.

Em primeiro lugar, percebemos mais a fundo os propósitos comunicativos do autor. A gênese da obra revela objetivos mais imediatos - relacionados às polêmicas em torno das interferências da Companhia Melhoramentos Norte do Paraná sobre a política municipal e a defesa do prefeito Inocente Villanova Jr, que sofreu processo de cassação. Também revela pretensões do autor em oferecer por seu livro “fotografias” do passado da cidade de Maringá, o que ao longo das décadas, pelas apropriações discursivas da obra por memorialistas, acadêmicos e agentes públicos ganhou ainda mais relevância no cenário da cidade.

A gênese revela ainda que coerentemente com este segundo propósito no processo de gestão do livro, etapa de escrita, revisão e reescrita de manuscritos, vários temas foram acrescentados pelo autor, de modo a rechear a publicação final com mais informações sobre fatos e personagens maringaenses relevantes nas décadas de 1940 e 1950.

Nosso trabalho, ainda, identificou que o autor cortou temas que vinculariam mais diretamente sua atuação - e a de seu grupo político - com a violência no campo pela posse das terras. Preferiu deixar isso para os grupos políticos adversários e ocupar uma posição mais elevada, na qual poderia julgar tais ações e relevá-las como invitáveis em um tempo na qual a terra ainda era crua.

Por fim, sobre os processos de produção efetiva dos datiloscritos, aventamos possibilidades de as inserções e os cortes terem sido realizadas por Duque Estrada diretamente ou por terceiros a seu serviço. Inegável, porém, é que qualquer que tenha sido a opção utilizada, Duque Estrada teve enorme controle sobre o processo da gênese do livro Terra crua, como se evidencia a leitura de os Originais.

Referências

  • BIASI, Pierre-Marc de. A genética dos textos Porto Alegre: Editora da IPUCRS, 2010.
  • CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à Crítica Textual São Paulo: Martins Fontes, 2005.
  • DUQUE ESTRADA, Jorge Ferreira. Terra Crua Curitiba: Prefeitura de Maringá, 1961.
  • DIAS, Reginaldo Benedito; GONÇALVES, José Henrique Rollo. Jorge Ferreira Duque Estrada: interprete de Maringá. In: DIAS, Reginaldo Benedito; GINI, Sérgio; SILVA, Miguel Fernandes Perez (org.). Terra Crua - Jorge Ferreira Duque Estrada Maringá: Editora da UEM, 2014. p. 169-222
  • GONÇALVES, José Henrique Rollo. Quando a imagem publicitária vira evidência factual: versões e reversões do norte (novo) do Paraná. In: DIAS, Reginaldo Benedito; GONÇALVES, José Henrique Rollo (org.) Maringá e o norte do Paraná: estudos de história regional. Maringá: Editora da UEM , 1999. p. 87-121
  • LUZ, France A migração através dos dados dos registros dos casamentos dos cartórios da microrregião norte novo de Maringá. In: DIAS, Reginaldo Benedito; GONÇALVES, José Henrique Rollo (org.) Maringá e o norte do Paraná: estudos de história regional. Maringá: Editora da UEM , 1999. p. 141-153
  • TOMAZI, Nelson Darci Tomazi. Construções e silêncios sobre a (re)ocupação da região norte do estado do Paraná. In: DIAS, Reginaldo Benedito; GONÇALVES, José Henrique Rollo (org.) Maringá e o norte do Paraná: estudos de história regional. Maringá: Editora da UEM , 1999. p. 51-85
  • 1
    O que estamos chamando de “manuscrito” é o documento organizado pelo autor composto por dois datiloscritos revisados. Duque Estrado o intitulou os originais do livro Terra Crua, denominação que utilizaremos ao longo deste trabalho.
  • 2
    Para transcrição dos trechos que retiramos da obra publicada e de seu manuscrito, optamos por adotar “|” para identificar a quebra de linha e “||” para marcar o final do parágrafo, muito embora tais procedimentos não interfiram na discussão que propomos neste artigo.
  • 3
    Trecho retirado de carta de Jorge Ferreira Duque Estrada enviada ao prefeito Luiz Moreira de Carvalho, reproduzida nas figuras 7 e 8.
  • 4
    Trecho retirado de carta de Jorge Ferreira Duque Estrada enviada ao prefeito Luiz Moreira de Carvalho, reproduzida nas figuras 7 e 8.
  • 5
    O processo de qualificação do eleitor naquela época envolvia a entrega em Cartório Eleitoral de documentos pessoais e a comprovação de que o eleitor não era analfabeto.

Editado por

Editor de seção

Silvio Renato Jorge

Editores convidados

Manoel Mourivaldo Santiago
Ceila Maria Ferreira Batista

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2023
  • Aceito
    13 Mar 2024
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