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Ilhas de vozes em reencontros compartilhados: a ilha no imaginário das letras

Islands of Voices in Shared Reunions: The Island in the Imaginary of Letters

Resenha de: ANTUNES, Susana L. M.. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados . Holden, Massachusetts: Quod Manet, 2021, 517p.

Um dia que já lá vai, D. João o Segundo, nosso rei, perfeito de cognome e a meu ver humorista perfeito, deu a certo fidalgo uma ilha imaginária, diga-me você se sabe doutro país onde pudesse ter acontecido uma história como esta, E o fidalgo, que fez o fidalgo, foi-se ao mar à procura dela, gostaria bem que me dissessem como se pode encontrar uma ilha imaginária, A tanto não chega a minha ciência, mas esta outra ilha, a ibérica, que era península e deixou de o ser, vejo-a eu como se, com humor igual, tivesse decidido meter-se ao mar à procura de homens imaginários [...].

(José Saramago. A jangada de pedra, p. 61)

Publicado pela editora Quod Manet em 2021, o livro Ilhas de vozes em reencontros compartilhadosANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados. Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021a. , organizado por Susana L. M. Antunes, é uma monumental coletânea sobre a(s) ilha(s), o(s) arquipélago(s) e suas simbologias nas letras. Ora expressos pela escrita poética, ora por reflexões críticas e/ou ensaísticas, os artigos sobre o singular espaço da insularidade que compõem a obra, organizada por Antunes, são assinados por 27 colaboradores, entre escritores, poetas, pesquisadores e professores de diferentes países. A pluralidade de articulistas faz-se representar também por meio da expressão linguística, com textos em português, espanhol e inglês.

Composto de 25 textos, entre poemas, artigos, depoimentos e ensaios, o livro nasce como desafio decorrente do Simpósio Internacional de pesquisadores em Lisboa, em 2019, reunidos sob o tema “Lembrando vozes perdidas”. Do encontro, resultaram dois painéis motivados pela temática “Ilhas de vozes em reencontros compartilhados”, que dá nome à coletânea. Além dos participantes do Simpósio, alguns articulistas convidados abraçaram a ideia de compor um grande amálgama reflexivo, que tem na(s) ilha(s) e/ou no(s) arquipélago(s) o espaço privilegiado de uma cartografia afetiva. É no ano seguinte, na primavera de 2020, que essa escrita poético-reflexiva se inicia em condições muito singulares. Como observa Susana Antunes (2021ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados. Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021a. ): “Logo depois, surgiu a pandemia que fez de cada um de nós uma ilha, uma ilha ainda mais ilha, com todas as ilhas a necessitarem de muitas, muitas mais partilhas”. (ANTUNES, 2021aANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados. Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021a. , p. i). Possivelmente, algo da condição humana desse tempo-ilha em que estivemos sitiados se inscreva nos textos que compõem a coletânea, tornando ainda mais instigantes as reflexões que nela se engendram.

Os artigos agrupam-se em duas partes: “Vozes de mistério” e “Vozes de resistência”. Na primeira parte, o espaço insular vislumbra-se como um imaginário topos envolto em mistério. “Antífonas de las islas los bosques y los mares” é o poema de Margara Russotto que abre a seção de artigos, e, de certo modo, evoca, pelo viés poético, as dimensões enigmáticas e oníricas do espaço insular. Para além do espaço geográfico, os artigos ampliam a dimensão física, personificando as ilhas que habitam em nós. Também somos sujeitos de nossas ilhas, e nelas traçamos os caminhos afetivos no espaço/tempo de nossas vidas. Enfatizando o enigma que cerca a nossa relação com o espaço por meio da experiência, encontra-se o texto “Ilha, que mistério é esse?”, uma sensível reflexão de Onésimo Teotónio Almeida, a partir de sua experiência pessoal. O texto alcança um tom filosófico sobre a condição do ilhéu e apresenta a percepção diversa que se tem de uma ilha no momento mesmo em que se está fora dela.

Na sequência, o artigo “Ilhas desconhecidas, ilhas (re)descobertas ao encontro de Raul Brandão”, de Luci Ruas, passeia pelo relato de viagem do autor de Húmus aos Açores e à Ilha da Madeira, mostrando como As ilhas desconhecidas se transformam num painel de belas imagens, expressas por um pungente e lírico relato da paisagem humana e social, sob o olhar atento do escritor.

Em “Bellis Azorica: as lições das ilhas”, Ida Alves e Nathália Primo analisam com acuidade a obra Bellis Azorica, do poeta João Miguel Fernandes Jorge. Composto de 72 poemas dedicados às ilhas dos Açores, para onde o poeta português viajou com frequência desde 1998, o livro é um retorno “às trilhas percorridas por suas viagens ao arquipélago” (ALVES; PRIMO, 2021ALVES, Ida; PRIMO, Nathália. Bellis Azorica: as lições das ilhas. In: ANTUNES, Susana L. M.(org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados. Holden, Massachusetts: Quod Manet, 2021. p. 43-59., p. 45-46), por meio de uma visualidade da qual não está ausente a experiência da intimidade, da familiaridade e do reconhecimento espacial.

No artigo “Sophia, a cronista visionária do visível”, Maria da Conceição Oliveira Guimarães discorre sobre a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen com base no livro de poemas Navegações, publicado pela poetisa após uma viagem feita a Macau (China). A pesquisadora investiga “os poemas de Navegações como uma poética com perfil de crônica de viagem” (GUIMARÃES, 2021GUIMARÃES, Maria da Conceição Oliveira. Sophia, a cronista ‘visionária do visível. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados . Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 61-84., p. 63), viagem essa marcada em três seções itinerantes: “Lisboa”, “As ilhas” e “Deriva”. É na seção ‘As ilhas’ que se percebe uma “poética do espanto” (GUIMARÃES, 2021GUIMARÃES, Maria da Conceição Oliveira. Sophia, a cronista ‘visionária do visível. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados . Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 61-84., p. 66) diante do deslumbramento em correspondência com a visão primeva dos navegantes.

Marcelo Pacheco Soares, no artigo “Viagem à Ilha de Satanás, um conto em três tempos de José Cardoso Pires”, analisa o referido conto de Pires, da coleção 98 Mares, uma compilação de textos (crônicas, contos, excertos de romances etc.), alguns dos quais inéditos, organizada por ocasião da Exposição Internacional de Lisboa de 1998. No conto inédito de Cardoso Pires, que faleceria em outubro daquele ano, são apresentados três momentos da história de Portugal, com referência à Ilha de Satanás ou Ilha de Satanases, pedregosa e vulcânica, surgida a caminho do Triângulo das Bermudas, ou seja, a ilha parece constituir “como tudo indica, uma referência mitológica. Trata-se do resgate de uma fábula, uma reminiscência lendária do século XV.” (SOARES, 2021SOARES, Marcelo Pacheco. Viagem à Ilha de Satanás: um conto em três tempos de José Cardoso Pires. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados . Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 85-111., p. 89). Contudo, como conclui o estudioso, resgata-se uma história lendária para dar nova configuração ao espaço insular, transformando-o numa ilha da utopia.

“Locus y focus em los mares del sur: Los Paraísos Oceánicos de Aurora Bertrana” é o título do estudo de Guillem Molla, no qual ele analisa a imagem insular na obra Paraísos Oceánicos, da escritora, jornalista e violoncelista catalã. Na obra, Bertrana exprime sua relação com a Polinésia Francesa, e Molla faz uma aguda reflexão, com base na obra de Bertrana, sobre a natureza da(s) ilha(s) como espaço em que se inscreve a questão geopolítica, além de se voltar ao conceito de insularidade na versão espanhola da obra.

O artigo de Gonçalo Cordeiro, “Condição flutuante e insularidade: representações de Timor-Leste na ficção de Luís Cardoso”, é uma interessante análise do lugar privilegiado da ilha na ficção do escritor timorense. Para o ensaísta, será preciso pensar esse topos como um espaço para além do geográfico, ou seja, como uma ideia de flutuação. Segundo sua perspectiva, “a ilha de Timor tende a ser representada como um lugar flutuante e em movimento, que permite a realização de travessias de diversa ordem, sem se deixar reduzir à territorialização geográfica” (CORDEIRO, 2021CORDEIRO, Gonçalo. Condição flutuante e insularidade: representações do Timor-Leste na ficção de Luís Cardoso. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados . Holden: Massachusetts: Quod Manet, 2021. p. 147-161., p. 147). Passando pelas ideias de figuração da ilha na obra de Luís Cardoso, o estudioso sublinha o papel do livro, do barco e da travessia permanente como elementos de uma poética do diverso, rizomática, em contraposição a um modelo monolítico figurativo de ilha construído pelo Ocidente a partir da colonização.

Maria Otília Pereira Lage, no estudo “As ilhas desconhecidas de Raul Brandão: vozes comunicantes”, retoma a obra de Raul Brandão para focalizar, em As ilhas desconhecidas, composta de notas e paisagens, de que maneira o autor referencia a matéria visual e sonora como “uma partilha entre vozes das ilhas e ilhas de vozes, sem deixar de considerar a concomitante presença do silêncio/silêncios, parte vital da resistência humana sob a produção contínua do som cavo de fundo - o mar da procura em dor e sonho.” (LAGE, 2021LAGE, Maria Otília Pereira. As ilhas desconhecidas de Raul Brandão: vozes comunicantes. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados . Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 163-187., p. 163). Enfatizando o sintagma “vozes comunicantes” a estudiosa observa que, n’As ilhas desconhecidas, o escritor prima por um registro quase impressionista de busca por captar a insularidade açoriana.

No texto “Cartografia insular pós-humana em Dois rios, de Tatiana Salem Levy”, Cecília Paiva Ximenes Rodrigues analisa o romance Dois rios, da escritora brasileira, por meio d um diálogo prévio com o pensamento de Rosi Braidotti, filósofa feminista que defende a cartografia como metáfora para a compreensão do presente. Nesse caso, segundo sua compreensão, a ilha seria “o espaço propício à desestabilização de discursos baseados em oposições tradicionais que, neste caso, revolvem em torno de água e terra, interior e exterior, aberto e fechado”. (RODRIGUES, 2021RODRIGUES, Cecília Paiva Ximenes. Cartografia insular pós-humana em Dois rios, de Tatiana Salem Levy. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados . Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 189-210., p. 190-191). Além disso, a ilha (Córsega) é um espaço transformador da subjetividade quando possibilita a expansão e percepção das personagens.

No estudo intitulado “A ilha como dispositivo literário em The Lighthouse, de P.D.James”, Marcelo Tadeu Schincariol examina, com base em algumas obras de crítica, a fascinação que, há muito, o espaço insular exerceu sobre a literatura, que o ressignifica literariamente. Em seguida, o articulista analisa a ilha e sua subversiva significação no romance policial de P.D.James, tecendo, ainda, considerações sobre a presença e a imagem da ilha em outros autores desse gênero narrativo.

“The concept of Island in film: The case of I. Bergman’s Summer with Monika” é o estudo de Eduardo Urios-Aparisi sobre a relação da ilha com o cinema, mais precisamente, sobre a sua imagem no filme Summer with Monika, de Bergman. Aqui, o estudioso assinala que o espaço insular não é meramente cenário do filme, mas lugar de metáforas importantes.

Finalizando a primeira parte do livro, Susana L. M. Antunes, no estudo “Mistério e resistência n’A ilha de Izunari, de Olinda Beja”, distingue a força da(s) ilha(s) no referido conto de Beja, poeta, nascida na Ilha de São Tomé e imigrante em Portugal. Como observa Antunes, Olinda Beja “transportou sempre ao colo a ilha, acarinhando-a e divulgando-a quer através da sua escrita, quer através da docência levada a cabo na Suíça, ao longo de dez anos.” (ANTUNES, 2021bANTUNES, Susana L. M. Mistério e resistência n’A ilha de Izunari, de Olinda Beja. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados. Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021b. p. 261-282., p. 263). Em sua obra, desenha-se uma cartografia sentimental na qual a ilha é também envolta em mistério, uma paisagem que se configura como uma escrita em camadas, e é também lugar de resistência.

Se a primeira parte põe em movimento as vozes de mistério, o último artigo parece fazer a ligação com a temática da segunda parte do livro, que se organiza sob o título “Vozes da Resistência”.

É a pujança da poesia de Vera Duarte que abre a segunda parte da coletânea de artigos. A Trilogia. Ilhadamente amado amor é um texto poético-manifesto que faz um passeio histórico pelas ilhas submetidas à colonização, pelas culturas que convergem e divergem, e termina na ilha-utopia, o seu chão sagrado pelo qual a poeta caminha enamorada. A resistência faz-se presente no poema de Vera Duarte e também no artigo seguinte de Urbano Bettencourt, intitulado “Da ilha-prisão às ilhas avistadas na poesia de Pedro da Silveira”. Bettencourt (2021BETTENCOURT, Urbano. Da ilha-prisão às ilhas avistadas na poesia de Pedro da Silveira. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados. Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 289-301., p. 289) observa que, na poesia de Pedro da Silveira, a presença das ilhas é uma constante, desde os Açores até as “ilhas todas do mar de sua poesia.” Se a paisagem insular se faz presente, ela nunca é passiva, ao contrário, movimenta-se através dos vários ângulos pelos quais se pode ver a(s) ilha(s). Além disso, Bettencourt salienta a presença de vozes nas ilhas do poeta: as da oralidade popular e a do discurso autoral.

Gilda Santos, com o artigo “As ilhas (des)afortunadas de Jorge de Sena”, faz um passeio pela obra de Jorge de Sena, destacando, inicialmente, os contos nos quais as ilhas estão presentes, não só em sentido literal como espaços de terra cercados pela água, mas também no “que, por seu isolamento ou incomunicabilidade em relação ao que o cerca, se assemelha a uma ilha, seja em perspectiva espacial, seja humana.” (SANTOS, 2021SANTOS, Gilda. Sobre as ilhas (des)afortunadas de Jorge de Sena. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados . Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 303-320., p. 304). Após abordar a prosa, a estudiosa volta-se para o registro das escassas ilhas geográficas da poesia seniana, observando, contudo, que, na poesia de Sena, o que se percebe é “o tempo do ‘orgulhosamente sós’ [que] faz de Portugal um espaço insular irrespirável sob o tacão da onipresente censura”. (SANTOS, 2021SANTOS, Gilda. Sobre as ilhas (des)afortunadas de Jorge de Sena. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados . Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 303-320., p. 305).

Meridiano 28: uma ‘leitura interdita’ da ínsula em tempo de guerra” é o título do artigo de Paula Cotter Cabral, que analisa o romance Meridiano 28, de Joel Neto. A ínsula interdita é, na verdade, a ilha do Faial, nos Açores, que, ao tempo da guerra, serviu de espaço estratégico para a Europa e a América. A precisão cartográfica dá lugar a um mundo idílico no Atlântico, que pressupõe, com a chegada de diferentes povos, uma espécie de comunidade globalizada antes do advento da globalização. A estudiosa observa que, como uma ilha de vozes diversas, a narrativa decorre tecendo-se entre o real e o ficcional e registrando a diversidade de uma ilha no meio do Atlântico.

Os Dores, de Henrique de Senna Fernandes: Uma narrativa insular entre o ostracismo e a integração” é o estudo de Mônica Simas, que percorre a obra Os Dores do referido escritor macaense para pensar como a narrativa engendra a relação espacial e identitária das personagens, especialmente da personagem Leontina das Dores com a ilha de Coloane, numa perspectiva que aborda, segundo a estudiosa, “tanto a literatura quanto a geografia humana e a etnografia.” (SIMAS, 2021SIMAS, Mônica. Os Dores, de Henrique de Senna Fernandes: uma narrativa insular entre o ostracismo e a integração. In: ANTUNES, Susana L.M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados . Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 337-360., p. 338). A simbologia da ilha figura, conforme observa Simas (2021SIMAS, Mônica. Os Dores, de Henrique de Senna Fernandes: uma narrativa insular entre o ostracismo e a integração. In: ANTUNES, Susana L.M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados . Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 337-360.), como um espaço fronteiriço “entre o mundo estranho de fora e o estranho de dentro, compreendido na trama social e política da cidade de Macau.” (SIMAS, 2021SIMAS, Mônica. Os Dores, de Henrique de Senna Fernandes: uma narrativa insular entre o ostracismo e a integração. In: ANTUNES, Susana L.M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados . Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 337-360., p. 339).

Lúcia Santos e Avelino Santos, em “O horizonte feminino na memória da ilha: tradição vs. mudança”, discorrem sobre a história das mulheres e da sua ação consciente, desde os fins do século XIX até ao século XX nos Açores, com base na presença de temas femininos, ou assim considerados, em artigos escritos por homens e mulheres nos jornais correntes no arquipélago, como o Açoriano Oriental, Diário dos Açores e A Persuasão. A situação da mulher tal como a apresentam nos jornais refletia também o seu lugar no arquipélago, e, para os articulistas, o espaço insular acabava por influenciar nos seus habitantes “formas muito particulares de pensar, ser e agir que os tornam capazes de perceber e ultrapassar os obstáculos de forma muito realista.” (SANTOS; SANTOS, 2021SANTOS, Lúcia; SANTOS, Avelino. O horizonte feminino na memória da ilha: Tradição vs. mudança. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados . Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 361-380., p. 377).

“O gênio e a ilha: uma leitura transcultural de ‘As duas ilhas’, de Castro Alves”, de Giovanna Gobbi Alves Araújo, é um estudo comparativo entre Les Deux Îles, de Victor Hugo, e As duas ilhas, do poeta baiano Castro Alves. Para a estudiosa, se a ilha de Hugo é pretexto para representar geograficamente o percurso pessoal e militar de Napoleão, em sua ascensão e queda, “em [Castro] Alves torna-se matéria modelável, amalgamada à mitologia épica grega e portuguesa, a fim de constituir uma estátua viva, síntese da agência histórica, investida da missão de fazer mover a humanidade rumo ao ideado progresso.” (ARAÚJO, 2021ARAÚJO, Giovanna Gobbi Alves. O gênio e a ilha: uma leitura transcultural de “As duas ilhas” de Castro Alves. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados. Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 381-402., p. 398).

Gisele Tordin, em seu artigo “Ilhas de lucidez nas obras de Stela do Patrocínio e Maura Lopes Cançado”, analisa como as duas escritoras, que estiveram internadas em um Manicômio no Rio de Janeiro, revelaram, em suas obras, ilhas de lucidez num universo de segregação social. Para a ensaísta, suas obras têm um caráter de resistência, e ambas

manifestaram nas águas manicomiais uma subjetividade ou sua fratura devolvendo a um processo autodenominado civilizatório a sua forma patológica naturalizada que servia para diagnosticar os internos como os desviantes. (TORDIN, 2021TORDIN, Giseli. Ilhas de lucidez nas obras de Stela do Patrocínio e Maura Lopes Cançado. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados . Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 403-430., p. 405)

O estudo de Robert Simon, intitulado “As ilhas prisões, as prisões das ilhas: algumas reflexões sobre o símbolo da ilha-cárcere e a noção da ilha encarcerada em Sobreviver em Tarrafal de Santiago de António Jacinto, Manual para amantes desesperados de Ana Paula Tavares e Ilhas de Sophia de Mello Breyner Andresen”, tece algumas comparações entre as obras dos três escritores, observando que existe uma grande “variedade de obras poéticas cujas referências, quer explícitas quer implícitas, ao singelo símbolo da ilha geram um espaço de transição para o posicionamento do sujeito poético no seu entorno sociopolítico e literário.” (SIMON, 2021SIMON, Robert. As ilhas prisões, as prisões das ilhas: algumas reflexões sobre o símbolo da ilha-cárcere e a noção da ilha encarcerada em Sobreviver em Tarrafal de Santiago de António Jacinto, Manual para amantes desesperados de Ana Paula Tavares e Ilhas de Sophia de Mello Breyner Andresen. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados . Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 431-442., p. 435). O estudioso acrescenta que há três versões desse fenômeno de deslocação: a física, a metafórica e a histórico-diacrônica, associando essas deslocações às obras de António Jacinto, Ana Paula Tavares e Sophia de Mello Breyner Andresen, respectivamente.

Frans Weiser, no artigo “A repeating island.: Ivan Ângelo’s A casa de vidro as postmodern penal colony”, discorre sobre o romance A casa de vidro do autor brasileiro, mostrando o aspecto opressor que as relações de poder apresentam. Estabelecendo uma relação com Foucault, o estudioso observa que a obra de Ângelo atualiza a figuração da ilha, ao mostrar o espaço insular da prisão. Trata-se não de uma apropriação geográfica da imagem da ilha, mas de uma imagem social e política que simboliza o isolamento vivido fora da democracia, ou seja, vivido dentro do muro da opressão.

Em “Ilhas, mares e continentes em In Dependence de Sarah Ladipo Manyka”, Sandra I. Sousa, estudando a obra In Dependence da escritora nígero-britânica, observa que a figuração da ilha é uma metáfora dos locais que aparecem ao longo do romance. Da Nigéria à Inglaterra, passando pelo Senegal, França e Estados Unidos, todos esses países representam, em sentido metafórico ou literal, “ilhas abertas, híbridas e ambivalentes ou, se quisermos, como metáforas de várias temáticas desenvolvidas no livro.” (SOUSA, 2021SOUSA, Sandra I. Ilhas, mares e continentes em In Dependence de Sarah Ladipo Manyica. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados . Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 465-484., p. 469). A estudiosa destaca que é necessário

ampliar, se não desconstruir, os discursos mais tradicionalitas e comuns sobre a literatura de ilhas. Por um lado, aqueles que continuam a romantizar fantasias da ilha como espaços isolados e idílicos e, por outro, os discursos que enfatizam o espaço ilhéu como um lugar perigoso de alteridade (SOUSA, 2021SOUSA, Sandra I. Ilhas, mares e continentes em In Dependence de Sarah Ladipo Manyica. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados . Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 465-484., p. 466).

Fechando a obra e a segunda parte da compilação organizada por Antunes, J. Chrys Chrystello constrói um depoimento pessoal de sua relação com as ilhas: os Açores. Intitulado “Um arquipélago prenhe de vozes. Sem ilhas não há vozes”, o texto de Chrystello é uma prosa poética na qual se evidencia que o autor, mesmo tendo partido das ilhas, sempre as encontra, porque as carrega consigo. Como observa poeticamente o autor,

para sentir melhor estas ilhas, terei de inventar como sair delas mais vezes, sem nunca as deixar para trás, e retornar de amor acrescido. Se houver estrelas no céu quero que sejam as minhas, gargantilha de pérolas para afagar pescoços arquipelágicos. (CHRYSTELLO, 2021CHRYSTELLO, J. Chrys. Um arquipélago prenhe de vozes. Sem ilhas não há vozes. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados . Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 485-506., p. 485).

Em outras passagens do texto, Chrystello busca mostrar a história lendária das ilhas e discorre sobre os autores que as representam.

Esses variados estudos sobre a(s) ilha(s) e arquipélago(s), sobre suas vozes e silêncios, inscrevem-se nos estudos sobre geopoética e fazem dialogar os mais diversos textos literários com o espaço insular, pensado por meio de sua descrição geográfica, mas não só. São muitas as maneiras de ressignificar metaforicamente a ilha, e, na atualidade em que os mapas se redesenham com extrema velocidade, por vezes forçados por situações de calamidade, ou de guerras, a ilha imaginária reverte-se, muitas vezes, em utopia, um “fora lugar” capaz de acolher os homens imaginários de que nos fala a epígrafe extraída do romance de José Saramago.

As vozes das ilhas, que dão título a essa coletânea de estudos e textos poéticos tão representativos e diversos no seu modo de pensar, refletir, poetar sobre a(s) ilha(s), finalmente, alargam as reflexões sobre o espaço geopoético e alcançam, ainda, a dimensão temporal em que o espaço se insere. As ilhas reais e imaginadas, físicas ou metafísicas, conhecidas ou desconhecidas são esses territórios onde todos estamos, por vezes, sem neles estar. Cada homem/mulher é uma ilha, ao contrário do que afirma um velho ditado de todos conhecido. Contudo, resta saber de onde falamos, e com quem, e como nos situamos nessa cartografia da vida. As vozes das ilhas dizem muito e suas falas estão, na coletânea organizada por Susana L. M. Antunes, ao nosso alcance.

REFERÊNCIAS:

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  • ANTUNES, Susana L. M. Mistério e resistência n’A ilha de Izunari, de Olinda Beja. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021b. p. 261-282.
  • ARAÚJO, Giovanna Gobbi Alves. O gênio e a ilha: uma leitura transcultural de “As duas ilhas” de Castro Alves. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 381-402.
  • BETTENCOURT, Urbano. Da ilha-prisão às ilhas avistadas na poesia de Pedro da Silveira. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 289-301.
  • CHRYSTELLO, J. Chrys. Um arquipélago prenhe de vozes. Sem ilhas não há vozes. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados . Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 485-506.
  • CORDEIRO, Gonçalo. Condição flutuante e insularidade: representações do Timor-Leste na ficção de Luís Cardoso. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados . Holden: Massachusetts: Quod Manet, 2021. p. 147-161.
  • GUIMARÃES, Maria da Conceição Oliveira. Sophia, a cronista ‘visionária do visível. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados . Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 61-84.
  • LAGE, Maria Otília Pereira. As ilhas desconhecidas de Raul Brandão: vozes comunicantes. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados . Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 163-187.
  • RODRIGUES, Cecília Paiva Ximenes. Cartografia insular pós-humana em Dois rios, de Tatiana Salem Levy. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados . Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 189-210.
  • SANTOS, Gilda. Sobre as ilhas (des)afortunadas de Jorge de Sena. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados . Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 303-320.
  • SANTOS, Lúcia; SANTOS, Avelino. O horizonte feminino na memória da ilha: Tradição vs. mudança. In: ANTUNES, Susana L. M. (org.). Ilhas de vozes em reencontros compartilhados . Holden, Massachusetts: Quod Manet , 2021. p. 361-380.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Nov 2022
  • Aceito
    09 Dez 2022
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