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Interpretação temporal de sentenças negativas em Karitiana

Temporal interpretation of negative clauses in Karitiana

RESUMO

Este artigo apresenta um estudo sobre a interpretação temporal de orações negativas em Karitiana (ISO 639-3: ktn). O Karitiana é uma língua da família Arikém e tronco Tupi (Rodrigues, 1986, p. 46), cujo sistema temporal é futuro vs. não-futuro (Storto, 2002; Müller; Ferreira, 2020). Semanticamente, tempo é uma relação entre um momento de tópico e o momento do proferimento (Klein, 2013). Nessa língua, ele é expresso por sufixos verbais que estão presentes em orações afirmativas, mas ausentes em orações negativas (Storto, 2018). O objetivo deste estudo foi verificar como se dá a interpretação temporal nas negativas, dada a ausência de morfologia de tempo nessas orações. Nossas hipóteses iniciais eram: (i) que a interpretação temporal é determinada contextualmente ou (ii) que ela é determinada gramaticalmente por outros fatores. Caso ela fosse determinada contextualmente, investigamos também se havia uma interpretação default na ausência de contexto que favorecesse uma leitura. Para testá-las, elaboramos uma tarefa em duas etapas: (i) coleta contextualizada de dados de negativas, tanto no futuro quanto no passado, com um falante nativo e (ii) apresentação descontextualizada e aleatória desses áudios para outro falante nativo para tradução. Essa tarefa mostrou que a interpretação temporal é determinada contextualmente, corroborando a primeira hipótese, e que, na ausência de um contexto, a interpretação default de sentenças negativas descontextualizadas é o não-futuro. A coleta de dados para análise semântica geralmente é feita de forma contextualizada (Matthewson, 2004; Sanchez-Mendes, 2014). No entanto, mostramos como a tradução descontextualizada pode também ser uma ferramenta para detectar a existência de mecanismos gramaticais não salientes ao linguista que determinam a interpretação.

Palavras-chave:
Interpretação Temporal; Negação; Karitiana; Metodologia; Análise Semântica.

ABSTRACT

This paper presents a study about temporal interpretation in negative clauses in Karitiana (ISO 639-3: ktn). Karitiana is a language of the Arikém family and Tupi stock (Rodrigues, 1986, p. 46) and it has a future vs. non-future system (Storto, 2002; Müller; Ferreira, 2020). Semantically, time is a relation between a topic time and the utterance time (Klein, 2013). This language expresses time through suffixes which are present in affirmative clauses, but absent in negative clauses (Storto, 2018). Thus, our goal was to verify how temporal interpretation happens in negative environments in which tense is absent. Our hypothesis were: (i) that temporal interpretation is contextually determined or (ii) that temporal interpretation is determined grammatically by other factors. In case it was determined contextually, we investigated if there were a default interpretation when there was not a context to favor a specific temporal reading. In order to test them, we elaborated a task in two steps: (i) Contextualized data elicitation of audios with a native speaker of negative clauses in the future and in the past and (ii) presenting the audios without the context to another native speaker so he could translate them. This task has shown that that temporal interpretation is contextually determined corroborating the first hypothesis, and, without any context, the default interpretation of negative clauses is the non-future. Data elicitation for semantic analysis is generally made using contexts (Matthewson, 2004; Sanchez-Mendes, 2014). However, this task has shown that translation without a context can be an important methodological tool when one wishes to verify if there are grammatical mechanisms not salient to the linguist determining the interpretation.

Keywords:
Temporal Interpretation; Negation; Karitiana; Methodology; Semantic Analysis.

Introdução

Este artigo apresenta um estudo sobre a interpretação temporal de orações negativas em Karitiana (ISO 639-3: ktn). O Karitiana é uma língua da família Arikém e tronco Tupi (Rodrigues, 1986RODRIGUES, Aryon. Línguas Brasileiras: Para o conhecimento das línguas indígenas. São Paulo: Loyola, 1986.) considerada vulnerável devido ao baixo número de falantes (Moseley, 2010MOSELEY, Christopher. Atlas of the World’s Languages in Danger. 3. ed. Paris: UNESCO Publishing, 2010.). Os Karitiana habitam uma reserva indígena na floresta amazônica, localizada cerca de 150km de Porto Velho, Rondônia (Storto; Rocha, 2018STORTO, Luciana; ROCHA, Ivan. Inventário sociolinguístico da Língua Karitiana. INDL - Inventário Nacional da Diversidade Linguística, IPHAN-MPEG, 2018). O Karitiana é falado como primeira língua pela comunidade e o português é geralmente aprendido posteriormente e falado como segunda língua.

Quando usamos a palavra ‘tempo’, podemos estar nos referindo a dois conceitos diferentes: (i) as marcas que certas sentenças carregam - o tempo morfológico - ou (ii) o sentido que essas marcas expressam - o tempo gramatical. Semanticamente, tempo é a relação entre o momento do proferimento e outro momento que o falante usa como referência (Klein, 2013KLEIN, Wolfgang.Time in language. Routledge, 2013.). Há diferentes sistemas que as línguas do mundo empregam para expressar essa relação. O Karitiana, por exemplo, é uma língua do sistema futuro vs. não-futuro, ou seja, ele possui uma marca para expressar o futuro e uma outra marca que codifica tanto o presente quanto o passado (Storto, 2002STORTO, Luciana. Algumas categorias funcionais em Karitiana. In: CABRAL, Ana Suely Arruda Câmara; RODRIGUES, Aryon D. Línguas indígenas brasileiras: Fonologia, gramática e história. Atas do I Encontro Internacional do Grupo de Trabalho sobre Línguas Indígenas da ANPOLL. Belém: EDUFPA, 2002. p. 151-164.; Müller; Ferreira, 2020aMÜLLER, Ana; FERREIRA, Luiz Fernando. O sistema aspecto-temporal da língua Karitiana.Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, v. 62, e020012, 2020a.).

Nessa língua, as marcas de tempo são sufixos verbais. No entanto, um fato curioso é que esses sufixos de tempo não estão presentes em todos os tipos de orações. Enquanto os verbos das orações afirmativas carregam morfologia de tempo, os verbos de orações negativas não carregam nenhuma morfologia de tempo (Landin, 1984LANDIN, David. An outline of the syntactic structure of Karitiana sentences.In: Estudos sobre línguas Tupi do Brasil. Brasília: Summer Institute of Linguistics, 1984. p. 219-254.; Storto, 2018STORTO, Luciana; ROCHA, Ivan. Inventário sociolinguístico da Língua Karitiana. INDL - Inventário Nacional da Diversidade Linguística, IPHAN-MPEG, 2018). Desse modo, o objetivo deste estudo foi verificar como os falantes determinam a interpretação temporal das negativas uma vez que elas não carregam morfologia de tempo. Nossas hipóteses iniciais eram: (i) que não existem mecanismos gramaticais que determinam a interpretação temporal nas negativas e ela é determinada contextualmente ou (ii) que existem fatores gramaticais não salientes para os linguistas que auxiliam na interpretação temporal.

A fim de testar essas hipóteses, elaboramos uma tarefa em duas etapas. A primeira consistiu na coleta áudios de sentenças negativas e afirmativas no Karitiana, tanto no futuro quanto no não-futuro, contextualizados pelo método de arcos de história (Louie, 2015LOUIE, Meagan. The problem with NoNonsense Elicitation Plans for Semantic Fieldwork. In: BOCHNAK, Ryan M. & MATTHEWSON, Lisa (ed.). Methodologies in Semantic Fieldwork. Oxford: Oxford University Press , 2015. p. 47-71.; Ferreira; Müller, 2022FERREIRA, Luiz Fernando; MÜLLER, Ana. Fieldwork Techniques in Semantics. In: VANDER KLOK, Jozina; FERREIRA RECH, Núbia; GUESSER, Simone.Modality in Underdescribed Languages: Methods and Insights. Berlin, Boston: De Gruyter Mouton, 2022. p. 15-46.). Nessa primeira etapa, foram empregadas diversas condições controle de modo a garantir que o primeiro falante havia prestado atenção na história que contextualizou a coleta de dados.

A segunda etapa consistiu na apresentação aleatória dos áudios descontextualizados das sentenças negativas e afirmativas para um segundo falante nativo solicitando que ele traduzisse o que estava ouvindo. Caso a primeira hipótese estivesse correta e não houvesse mecanismos gramaticais responsáveis por determinar a interpretação temporal nas negativas, o segundo falante nativo, ao tentar traduzir as negativas descontextualizadas, não conseguiria determinar se elas originalmente haviam sido coletadas em um contexto no passado ou no futuro. Nesse caso, poderíamos ter dois resultados diferentes, a resposta do consultor seria aleatória se não houvesse uma interpretação default ou, se existisse uma interpretação default, o falante demonstraria uma tendência na sua tradução para um dos tempos - isto é, ou para o futuro ou para o não-futuro.

No entanto, caso a segunda hipótese estivesse correta e houvesse algum mecanismo gramatical nas negativas que ajudasse a determinar a interpretação temporal, o segundo falante nativo, ao ouvir os áudios gravados pelo primeiro falante, seria capaz de determinar se as orações negativas haviam sido coletadas em um contexto no passado ou em um contexto no futuro. Sentenças afirmativas também foram dadas para o segundo consultor de modo a se ter um controle de seu nível de atenção e observar se ele estava atento às marcas de tempo em sua língua nativa e se ele era capaz de traduzi-las adequadamente para o português brasileiro.

Nessa tarefa, o segundo falante nativo traduziu as sentenças afirmativas no futuro ou no não-futuro mostrando a sua competência em reconhecer o tempo em sua língua e transpô-lo para o português. Já as sentenças negativas foram todas traduzidas no não-futuro, ou seja, no presente ou passado. Então, os resultados da coleta mostraram que, sem o devido contexto, o falante consegue determinar a interpretação temporal para uma sentença afirmativa, mas o mesmo não ocorre com as sentenças negativas. Esses resultados corroboram a hipótese de que não existe nenhum mecanismo gramatical nas negativas que opera determinando a interpretação temporal de modo que o tempo nas negativas fica a cargo do contexto.

Este artigo está dividido em cinco seções das quais esta introdução é a primeira. A segunda seção discute a concepção de tempo na semântica formal, apresenta a morfologia de tempo em Karitiana comparando as orações afirmativas com orações negativas nas quais o tempo está ausente e discute as duas hipóteses que serão exploradas e suas motivações. A terceira seção discute a metodologia de coleta e análise de dados. A quarta seção apresenta os resultados da tarefa. Por fim, a quinta e última seção apresenta as considerações finais deste artigo.

As concepções de tempo e a morfologia temporal no Karitiana

Quando falamos de ‘tempo’, existem duas concepções cuja distinção é importante: (i) a concepção semântica de tempo e (ii) a concepção morfológica.1 1 Em inglês essas noções recebem nomes diferente uma vez que concepção semântica é chamada de ‘time’ e a concepção morfológica é chamada de ‘tense’ (Klein, 2013, p. 2). A concepção semântica está relacionada à interpretação temporal que uma oração expressa. Klein (2013KLEIN, Wolfgang.Time in language. Routledge, 2013.) assume que as orações indicam um intervalo de tempo que funcionam como tópico da oração, chamado de tempo do tópico.2 2 Do inglês topic time (tradução do autor). Por exemplo, em (1a) tal intervalo é amanhã e em (1b) tal intervalo é ontem. O tempo do tópico pode aparecer de forma explícita, como em (1a), ou implícita, como em (1b).

1. a. Amanhã vou trabalhar neste artigo.

b. Trabalhei no artigo. (respondendo à pergunta “O que você fez ontem?”)

Semanticamente, tempo é uma relação entre o tempo do tópico e o tempo da proferimento3 3 Do inglês utterance time. Agradecemos ao parecerista anônimo que sugeriu a tradução tempo de proferimento para esse conceito. (Klein, 2013KLEIN, Wolfgang.Time in language. Routledge, 2013.). Quando o tempo do tópico (TT) é anterior ao tempo do proferimento (TP) temos o passado, quando o tempo do tópico (TT) é posterior ao tempo do proferimento (TP) temos o futuro e quando o tempo do tópico (TT) é concomitante ao tempo do proferimento (TP) temos o presente. Tais relações estão representadas em (2).

2. a. passado TT < TP

b. futuro TT > TP

c. presente TT ⸦ TP

O tempo morfológico, por sua vez, diz respeito às marcas que as línguas empregam em suas orações para expressar essas noções semânticas. Neste artigo, vamos usar ‘morfologia de tempo’ ou simplesmente ‘tempo’ para nos referir ao tempo morfológico e ‘interpretação temporal’ para nos referir a semântica de tempo de uma sentença. Nem todas as línguas possuem morfologia de tempo (Decaen, 1991DECAEN, Vincent. Tenseless languages in light of an aspectual parameter for Universal Grammar: A preliminary cross-linguistic survey. Toronto Working Papers in Linguistics, v. 14, p. 41-81, 1991.) e, as que possuem, podem não distinguir as três noções - presente, passado e futuro - morfologicamente (Comrie, 1985COMRIE, Bernard. Tense. Cambridge textbooks in linguistics. Cambridge: Cambridge University Press, 1985.).

Sendo assim, as línguas podem ser organizadas tipologicamente de acordo com a morfologia empregada para expressar a noção de tempo. Por exemplo, o Karitiana é uma língua do sistema futuro vs. não-futuro (Storto, 2002STORTO, Luciana. Algumas categorias funcionais em Karitiana. In: CABRAL, Ana Suely Arruda Câmara; RODRIGUES, Aryon D. Línguas indígenas brasileiras: Fonologia, gramática e história. Atas do I Encontro Internacional do Grupo de Trabalho sobre Línguas Indígenas da ANPOLL. Belém: EDUFPA, 2002. p. 151-164.; Müller; Ferreira, 2020MÜLLER, Ana; FERREIRA, Luiz Fernando. Modo - O caso do Karitiana. Revista Letras, v. 101, p. 45-70, 2020b.), possuindo um morfema que expressa o futuro e um outro morfema diferente que expressa o não-futuro, ou seja, tanto a noção de presente quanto para a noção de passado.

No Karitiana, a marcação de tempo se dá a partir de sufixos verbais. Enquanto os sufixos -i/-j expressam a noção de futuro, como ilustrado em (3a), os sufixos -t/-Ø podem expressar tanto o passado quanto o presente, como ilustrado em (3b), e, por isso, são chamados de não-futuro. É importante ressaltar que, semanticamente, o Karitiana possui as noções de presente e de passado, mesmo que sua morfologia não faça essa distinção (Müller; Ferreira, 2020MÜLLER, Ana; FERREIRA, Luiz Fernando. Modo - O caso do Karitiana. Revista Letras, v. 101, p. 45-70, 2020b.).

(03) a. taso Ø-na-oky-j boroja4 4 Este artigo usa dados coletados pelo próprio autor e alguns dados provenientes de outros trabalhos. Os dados provenientes de outros trabalhos trazem a referência logo após o dado.

homem 3-DECL-matar-FUT cobra5 5 Este artigo usa o sistema de glossa de Leipzig.

‘O homem matará cobras.’

b. taso Ø-na-oky-t boroja

homem 3-DECL-matar-NFUT cobra

‘O homem mata cobras.’/ ‘O homem matou cobras.’

Müller e Ferreira (2020MÜLLER, Ana; FERREIRA, Luiz Fernando. Modo - O caso do Karitiana. Revista Letras, v. 101, p. 45-70, 2020b.) analisam a marca de não-futuro como uma marca ambígua que pode expressar o presente, como ilustrado em (4a), ou o passado, como ilustrado em (4b). Desse modo, o Karitiana distingue entre presente e passado semanticamente mesmo que essa distinção não esteja presente na morfologia da língua. A marca de futuro expressa que o tempo de tópico é posterior ao tempo do proferimento, como ilustrado em (5).

(4) a. ⟦nfut 1⟧:def TT ⊂ TP (Tempo de Tópico contém Tempo do Proferimento)

b. ⟦nfut 2⟧:def TT < TP (Tempo de Tópico anterior ao Tempo do Proferimento)

(5) ⟦fut⟧:def TT > TP (Tempo de Tópico posterior ao Tempo do Proferimento)

No entanto, os sufixos de tempo não estão presentes em todos os tipos de orações. Os verbos das orações afirmativas carregam morfologia de tempo, como ilustrado em (3), mas quando as orações são negativas, eles não carregam morfologia de tempo (Storto, 2018STORTO, Luciana; ROCHA, Ivan. Inventário sociolinguístico da Língua Karitiana. INDL - Inventário Nacional da Diversidade Linguística, IPHAN-MPEG, 2018; Müller; Ferreira, 2020MÜLLER, Ana; FERREIRA, Luiz Fernando. Modo - O caso do Karitiana. Revista Letras, v. 101, p. 45-70, 2020b.), como ilustrado na sentença em (6).

(06) Y-otam padni yn 1SG-chegar NEG eu ‘Eu não cheguei.’ (Storto, 2018STORTO, Luciana; ROCHA, Ivan. Inventário sociolinguístico da Língua Karitiana. INDL - Inventário Nacional da Diversidade Linguística, IPHAN-MPEG, 2018)

A questão da ausência da morfologia de tempo em orações negativas já é conhecida há muito tempo na literatura (Landin, 1984LANDIN, David. An outline of the syntactic structure of Karitiana sentences.In: Estudos sobre línguas Tupi do Brasil. Brasília: Summer Institute of Linguistics, 1984. p. 219-254.; Storto, 1999STORTO, Luciana. Aspects of a Karitiana Grammar. 1999. Tese (Doutorado em Filosofia) - Massachusetts Institute of Technology, Cambridge, 1999.; 2018STORTO, Luciana. Negation in Karitiana.In: Wa7 xweysás i nqwalutteníha i ucwalmícwa: He loves the Peoples language: Essays in honour of Henry Davis. Vancouver: UBCOP, 2018. p. 227-240.; Müller; Ferreira, 2020MÜLLER, Ana; FERREIRA, Luiz Fernando. Modo - O caso do Karitiana. Revista Letras, v. 101, p. 45-70, 2020b.). No entanto, nenhum trabalho discutiu como se dá a interpretação temporal dessas sentenças. Por exemplo, a sentença (6) foi traduzida no passado, mas o verbo ‘otam’ (chegar) não carrega nenhuma morfologia de tempo. Então, as questões que queremos responder é se o tempo é determinado contextualmente sendo o não-futuro uma interpretação default das orações negativas ou se haveria algum outro mecanismo gramatical, para além dos morfemas de tempo, responsável por determinar a interpretação temporal dessas orações.

A fim de responder essa pergunta, o objetivo deste estudo foi testar a interpretação temporal nas orações negativas face à ausência de morfologia de tempo. Trabalhamos com duas hipóteses iniciais. A primeira hipótese assumida foi de que a língua não codifica tempo gramaticalmente nas orações negativas. Nesses ambientes, a interpretação temporal poderia ser determinada a partir de elementos lexicais que marcariam o tempo do tópico de forma explícita, tais como os advérbios de tempo - ‘dibm’ (amanhã) e ‘koot’ (ontem). Na ausência de um tempo de tópico explícito, a interpretação temporal seria determinada contextualmente.

Caso essa primeira hipótese estivesse correta, ao apresentarmos um áudio de uma sentença negativa descontextualizada e sem itens lexicais que codificam o tempo do tópico para um falante nativo e pedíssemos para ele traduzi-la, ele não conseguiria determinar se aquela sentença foi usada no futuro ou no não-futuro. Se a resposta do consultor fosse aleatória, seria um indício de que não há uma interpretação default, mas se o falante demonstrasse uma tendência na sua tradução para um dos tempos - isto é, ou para o futuro ou para o não-futuro, seria um indício de que essa é a interpretação default de sentenças descontextualizadas.

A segunda hipótese com a qual trabalhamos foi de que a gramática da língua possui mecanismos secundários, para além dos sufixos verbais, para codificar tempo nas orações negativas e que talvez esses mecanismos fossem menos óbvios para o linguista, como ordem de palavras ou alguma prosódia diferente. Se essa hipótese estivesse correta, um falante nativo seria capaz de determinar a interpretação temporal de orações negativas de forma descontextualizada e sem itens lexicais que codificam o tempo do tópico, mesmo com a ausência de morfologia de tempo.

De antemão, acreditamos que a primeira hipótese seria a mais provável uma vez que o Karitiana já foi alvo de descrição de vários trabalhos que abordaram aspectos fonológicos, morfológicos, sintáticos e semânticos da língua. Como diferentes linguistas já se debruçaram sobre a língua (Landin, 1984LANDIN, David. An outline of the syntactic structure of Karitiana sentences.In: Estudos sobre línguas Tupi do Brasil. Brasília: Summer Institute of Linguistics, 1984. p. 219-254.; Storto, 1999STORTO, Luciana. Aspects of a Karitiana Grammar. 1999. Tese (Doutorado em Filosofia) - Massachusetts Institute of Technology, Cambridge, 1999.; 2002STORTO, Luciana. Algumas categorias funcionais em Karitiana. In: CABRAL, Ana Suely Arruda Câmara; RODRIGUES, Aryon D. Línguas indígenas brasileiras: Fonologia, gramática e história. Atas do I Encontro Internacional do Grupo de Trabalho sobre Línguas Indígenas da ANPOLL. Belém: EDUFPA, 2002. p. 151-164.; 2018STORTO, Luciana. Negation in Karitiana.In: Wa7 xweysás i nqwalutteníha i ucwalmícwa: He loves the Peoples language: Essays in honour of Henry Davis. Vancouver: UBCOP, 2018. p. 227-240.; Müller; Ferreira, 2020 a MÜLLER, Ana; FERREIRA, Luiz Fernando. O sistema aspecto-temporal da língua Karitiana.Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, v. 62, e020012, 2020a.; 2020bMÜLLER, Ana; FERREIRA, Luiz Fernando. Modo - O caso do Karitiana. Revista Letras, v. 101, p. 45-70, 2020b., entre muitos outros), se houvesse algum elemento secundário responsável por expressar tempo nas negativas, muito provavelmente algum dos pesquisadores teria notado. No entanto, a segunda hipótese não poderia ser descartada porque: (i) nenhum dos trabalhos anteriores explicou como se dá a interpretação temporal em negativas mostrando que ela é de fato contextual e (ii) a marcação gramatical a partir de recursos secundários foi observada em outros ambientes nessa língua.

Um exemplo de marcação gramatical a partir de recursos secundários pode ser observado no caso das imperativas. Storto (2002STORTO, Luciana. Algumas categorias funcionais em Karitiana. In: CABRAL, Ana Suely Arruda Câmara; RODRIGUES, Aryon D. Línguas indígenas brasileiras: Fonologia, gramática e história. Atas do I Encontro Internacional do Grupo de Trabalho sobre Línguas Indígenas da ANPOLL. Belém: EDUFPA, 2002. p. 151-164.) afirma que o imperativo negativo e o imperativo afirmativo são expressos por morfemas diferentes. O imperativo afirmativo seria expresso pelo sufixo ‘-a’, como ilustrado em (7a), enquanto que o imperativo negativo seria expresso pelo sufixo ‘-y’, como ilustrado em (7b). No entanto, a marcação morfológica não é a única responsável por diferenciar um imperativo negativo de um imperativo afirmativo. Segundo a autora, o tom é um fator secundário que opera diferenciando os imperativos afirmativos, como (7a), que terminam em tom alto (Storto, 1999STORTO, Luciana. Aspects of a Karitiana Grammar. 1999. Tese (Doutorado em Filosofia) - Massachusetts Institute of Technology, Cambridge, 1999.), dos imperativos negativos, como (7b), que terminam em tom baixo (Storto, 2002STORTO, Luciana. Algumas categorias funcionais em Karitiana. In: CABRAL, Ana Suely Arruda Câmara; RODRIGUES, Aryon D. Línguas indígenas brasileiras: Fonologia, gramática e história. Atas do I Encontro Internacional do Grupo de Trabalho sobre Línguas Indígenas da ANPOLL. Belém: EDUFPA, 2002. p. 151-164.). Ou seja, para além dos morfemas, o tom seria uma marca suprasegmental que atuaria de forma secundária na diferenciação dos imperativos.

(07) a. A-tat-a 2SG-ir-IMP ‘Vá!’ (Storto, 2002STORTO, Luciana. Algumas categorias funcionais em Karitiana. In: CABRAL, Ana Suely Arruda Câmara; RODRIGUES, Aryon D. Línguas indígenas brasileiras: Fonologia, gramática e história. Atas do I Encontro Internacional do Grupo de Trabalho sobre Línguas Indígenas da ANPOLL. Belém: EDUFPA, 2002. p. 151-164., p. 158)

b. A-tat-y 2SG-ir-IMP.NEG ‘Não vá!’ (Storto, 2002STORTO, Luciana. Algumas categorias funcionais em Karitiana. In: CABRAL, Ana Suely Arruda Câmara; RODRIGUES, Aryon D. Línguas indígenas brasileiras: Fonologia, gramática e história. Atas do I Encontro Internacional do Grupo de Trabalho sobre Línguas Indígenas da ANPOLL. Belém: EDUFPA, 2002. p. 151-164., p. 159)

Um fato interessante apresentado pela autora é que a distinção morfológica entre imperativos negativos e afirmativos ilustrada em (7) não está presente em todos os tipos de verbos. Os sufixos serão diferentes apenas quando a raiz verbal termina em consoante, como é o caso de ‘tat’ (ir) em (7). Quando a raiz verbal termina em vogal, o morfema de imperativo é ‘-Ø’ tanto para o imperativo afirmativo como para o imperativo negativo, como ilustrado em (8).

(08) a. A-oty- Ø 2SG-tomar.banho-IMP ‘Tome banho!’ (Storto, 2002STORTO, Luciana. Algumas categorias funcionais em Karitiana. In: CABRAL, Ana Suely Arruda Câmara; RODRIGUES, Aryon D. Línguas indígenas brasileiras: Fonologia, gramática e história. Atas do I Encontro Internacional do Grupo de Trabalho sobre Línguas Indígenas da ANPOLL. Belém: EDUFPA, 2002. p. 151-164., p. 159)

b. An y-my- Ø 2SG 1SG-bater-IMP.NEG ‘Não me bata!’ (Storto, 2002STORTO, Luciana. Algumas categorias funcionais em Karitiana. In: CABRAL, Ana Suely Arruda Câmara; RODRIGUES, Aryon D. Línguas indígenas brasileiras: Fonologia, gramática e história. Atas do I Encontro Internacional do Grupo de Trabalho sobre Línguas Indígenas da ANPOLL. Belém: EDUFPA, 2002. p. 151-164., p. 159)

Mesmo não havendo distinção morfológica em (8), a autora afirma que a distinção entre imperativos negativos e afirmativos ainda pode ser feita por causa do tom, que continua sendo diferente em ambos os casos (Storto, 2002STORTO, Luciana. Algumas categorias funcionais em Karitiana. In: CABRAL, Ana Suely Arruda Câmara; RODRIGUES, Aryon D. Línguas indígenas brasileiras: Fonologia, gramática e história. Atas do I Encontro Internacional do Grupo de Trabalho sobre Línguas Indígenas da ANPOLL. Belém: EDUFPA, 2002. p. 151-164.). Dessa forma, o tom é um elemento suprassegmental que auxilia na distinção entre imperativas afirmativas e negativas de forma secundária em (7), mas, que, na ausência da morfologia, acaba se tornando o elemento principal na distinção das sentenças imperativas como ilustrado em (8).

Esse exemplo mostra que a segunda hipótese não seria infundada e que algo semelhante poderia ocorrer com a interpretação temporal das orações negativas, ou seja, na ausência de morfologia de tempo, a interpretação temporal poderia ser determinada por outros mecanismos secundários menos óbvios para o linguista, tais como tom ou uma prosódia diferente ou mesmo fatores sintáticos como uma ordem de constituintes diferente. Desse modo, este estudo se debruça sobre a interpretação de tempo nas negativas a partir de uma tarefa interpretativa que verifica quais das hipóteses está correta. Essa tarefa interpretativa será detalhada na próxima seção.

Metodologia

A fim de testar qual das hipóteses estava correta, elaboramos uma tarefa em duas etapas: (i) elicitação de dados contextualizada por arco de história de negativas no futuro e no passado com um falante nativo e (ii) tradução descontextualizada dos dados obtidos com outro falante nativo. O objetivo da primeira etapa foi coletar sentenças negativas no futuro e no passado em contextos que determinassem de forma clara qual o tempo essa oração estava ancorada, mas sem a presença de itens lexicais que deixassem explícito o tempo do tópico. O objetivo da segunda etapa foi apresentar os dados coletados para outro falante nativo de forma descontextualizada e aleatória de modo a verificar se ele seria capaz de diferenciar quais sentenças negativas haviam sido produzidas em um contexto passado e quais sentenças negativas haviam sido produzidas em um contexto futuro.

Uma vez que trabalhamos com apenas dois consultores, foram inseridas condições controle ao longo da elicitação de modo a garantir que os resultados encontrados não sofram interferência de fatores externos como o não entendimento da tarefa, não entendimento dos contextos ou falta de atenção. Detalharemos cada uma dessas etapas nas subseções abaixo:

Primeira etapa - Coleta de dados contextualizada

A primeira etapa da nossa tarefa consistiu na coleta de dados contextualizada. Na semântica formal, os procedimentos empregados na elicitação de dados geralmente se apoiam em contextos (ver Matthewson, 2004MATTHEWSON, Lisa. On the Methodology of Semantic Fieldwork.International Journal of American Linguistics, v. 70, p. 369-415, 2004.; Sanchez-Mendes, 2014SANCHEZ-MENDES, Luciana. Trabalho de campo para análise em semântica formal. Revista Letras, Curitiba, v. 90, p. 277-293, 2014.). Por exemplo, no procedimento chamado de tradução contextualizada, ilustrado em (9), solicita-se que o falante traduza uma oração da língua de contato para a língua alvo fornecendo um contexto no qual essa sentença pode ocorrer.

(09) O cenário é um ninho em cima de uma árvore. Eu quero dizer que o ovo que estava no ninho caiu; como eu falo em Karitiana: “O ovo caiu”? (Sanchez-Mendes, 2014SANCHEZ-MENDES, Luciana. Trabalho de campo para análise em semântica formal. Revista Letras, Curitiba, v. 90, p. 277-293, 2014., p. 286)

Outro procedimento comum para a análise semântica chama-se tarefa de julgamento de valor de verdade. Nele, dá-se um contexto e uma sentença na língua alvo e pergunta-se se é possível usar aquela sentença naquele contexto como ilustrado em (10). Esse procedimento permite verificar se o falante julga aquela sentença como verdadeira ou falsa naquele contexto, de onde vem o nome de julgamento de valor de verdade.

(10) a. Em um contexto em que o João trabalhou muitas vezes esta semana ou este mês, eu posso usar a sentença “João napytim’adn pitat”? b. Em um contexto em que o João trabalhou uma vez por muito tempo esta semana, eu posso usar a sentença “João napytim’adn pitat”? c. Em um contexto em que o João trabalhou uma vez por pouco tempo, mas bastante intensamente esta semana, eu posso usar a sentença “João napytim’adn pitat”? (Sanchez-Mendes, 2014SANCHEZ-MENDES, Luciana. Trabalho de campo para análise em semântica formal. Revista Letras, Curitiba, v. 90, p. 277-293, 2014., p. 289)

Como pode ser observado no exemplo (10), é comum que os contextos sejam construídos de forma paradigmática com diferenças mínimas entre si de modo que possibilite determinar exatamente a contribuição semântica de um elemento. Por exemplo, sabe-se que o advérbio ‘pitat’ em Karitiana pode ser traduzido como muito e, na tarefa (10), tenta-se determinar se ele pode interpretado como quantificando eventos (trabalhou muitas vezes), na extensão temporal do evento (trabalhou por muito tempo) ou ainda na intensidade do evento (trabalhou intensamente).

Como pode ser observado, o procedimento metodológico acima exige que cada interpretação a ser testada tenha um contexto de modo que a coleta é guiada por vários pares de sentenças e contextos. Um procedimento diferente para contextualização consiste na elaboração de uma história e usá-la para contextualizar todas as sentenças que se deseja coletar. Esse método é conhecido como contextualização por arco de história (Louie, 2015LOUIE, Meagan. The problem with NoNonsense Elicitation Plans for Semantic Fieldwork. In: BOCHNAK, Ryan M. & MATTHEWSON, Lisa (ed.). Methodologies in Semantic Fieldwork. Oxford: Oxford University Press , 2015. p. 47-71.). Escolhemos esse método para contextualizar na primeira parte da nossa coleta, pois parece ser menos cansativo para o consultor uma única história com começo, meio e fim do que lidar com vários pares de sentenças e contextos com diferenças mínimas entre si (Louie, 2015LOUIE, Meagan. The problem with NoNonsense Elicitation Plans for Semantic Fieldwork. In: BOCHNAK, Ryan M. & MATTHEWSON, Lisa (ed.). Methodologies in Semantic Fieldwork. Oxford: Oxford University Press , 2015. p. 47-71.; Ferreira; Müller, 2022FERREIRA, Luiz Fernando; MÜLLER, Ana. Fieldwork Techniques in Semantics. In: VANDER KLOK, Jozina; FERREIRA RECH, Núbia; GUESSER, Simone.Modality in Underdescribed Languages: Methods and Insights. Berlin, Boston: De Gruyter Mouton, 2022. p. 15-46.).

Uma outra vantagem de empregar histórias para contextualizar dados é que, posteriormente, elas podem ser empregadas para fins pedagógicos. Burton e Matthewson (2015BURTON, Strang; MATTHEWSON, Lisa. Targeted Construction Storyboards in Semantic Fieldwork. In: BOCHNAK, Ryan; MATTHEWSON, Lisa (ed.). Methodologies in Semantic Fieldwork .. Oxford: Oxford University Press, 2015. p. 135-156.) descrevem a contextualização via storyboards, que seriam histórias ilustradas, e argumentam que esse material pode extrapolar seu uso acadêmico e ter um fim pedagógico uma vez que os professores de língua da etnia poderão usá-lo como material didático nas escolas. Dessa forma, a história criada nesta tarefa usada para contextualizar os dados pode também ter um fim didático e ser usada nas escolas Karitiana para se trabalhar leitura e interpretação textual de orações afirmativas e negativas da língua em contextos de futuro e passado.

O tema da história era uma festa na aldeia. A história foi dividida em duas partes: (i) a primeira parte, ilustrada no Quadro 1 abaixo, relata o planejamento das pessoas na aldeia para a festa que ainda vai ocorrer. Ela é narrada no futuro e o tempo do tópico “depois de amanhã”, que está explícito no começo da história, deixa claro para nosso consultor que se trata de um momento após o tempo do proferimento e que os eventos narrados estão sendo planejados, ou seja, eles ainda vão acontecer.

Quadro 1 -
Primeira parte da história “Festa na Aldeia” em português (futuro)

Na segunda parte dessa história, ilustrada no Quadro 2 abaixo, ocorre um salto temporal uma vez que se parte para o momento posterior ao acontecimento da festa. Ela é narrada no passado e o tempo do tópico “ontem”, que está explícito no começo da segunda parte, deixa claro para nosso consultor que se trata de um momento após o tempo do proferimento e que os eventos narrados já aconteceram.

Quadro 2 -
Segunda parte da história “Festa na Aldeia” em português (passado)

Para que a história ficasse o mais natural possível, ela foi elaborada usando nomes de pessoas Karitiana e considerando o que essas pessoas fazem. Por exemplo, Elivar trabalha com artesanato e vende esses artesanatos na cidade, Vivaldo faz pintura corporal usando jenipapo e faz as pinturas para o autor quando este está em Porto Velho e o Cizino é o pajé que conta as histórias antigas dos Karitiana para os mais novos. Como pode ser observado na história criada, tais habilidades foram incorporadas, pois, na primeira parte da história, Elivar é o responsável por fazer os artesanatos, Vivaldo é o responsável pela pintura e, na segunda parte, Cizino conta histórias antigas dos Karitiana e as crianças escutam. Além das habilidades, considerou-se também questões culturais da etnia. Por exemplo, os homens são responsáveis pela caça e, dessa forma, Marcelo fica responsável por trazer a caça. Além disso, a história foi apresentada ao consultor que pode fazer alterações de modo a deixá-la mais natural. Por exemplo, na primeira versão, um homem estava responsável por fazer a chicha e o consultor pontuou que aquilo não era comum. Então, alteramos a história deixando Milaine, uma mulher, responsável por fazer a chicha.

Como mencionado anteriormente, um subproduto desta pesquisa é a possibilidade de empregar essa história nas escolas e que ela tenha um fim pedagógico. Então, tentou-se criar uma história que fosse o mais próximo possível da realidade do informante a fim de facilitar a transposição para um uso didático. A história foi dividida em duas partes em dois tempos diferentes uma vez que a primeira parte serviria para contextualizar a coleta de dados de sentenças negativas e afirmativas no futuro e a segunda parte serviria para contextualizar a coleta de dados de sentenças negativas e afirmativas no passado.

A história tinha vários personagens sendo que, na primeira parte, cada um deles fica responsável por ajudar na organização da festa com uma tarefa específica. O objetivo dessa distribuição biunívoca foi possibilitar tanto a coleta de sentenças afirmativas no futuro, como “Elivar vai fazer artesanato”, quanto de sentenças negativas no futuro, como “Elivar não vai fazer a pintura corporal com jenipapo”. A segunda parte da história constitui um relato depois que a festa já passou e narra o que diferentes pessoas fizeram na festa. Novamente, o objetivo de narrar cada personagem fazendo coisas diferentes era possibilitar tanto a coleta de sentenças afirmativas no passado, como “Luiz Carlos comeu muito peixe”, quanto de sentenças negativas no passado, como “Luiz Carlos não bebeu muita chicha”.

Após a elaboração das histórias, o procedimento de coleta da primeira etapa foi dividido em cinco passos: (i) leitura/escuta da história em português; (ii) transcrição/narração da história em Karitiana; (iii) perguntas controle sobre a história na língua de contato para monitorar o entendimento do falante; (iv) jogo controle para monitorar quanto o falante conseguia recuperar da história e (v) elicitação contextualizada de dados de sentenças afirmativas e negativas com base nas histórias.

O primeiro passo consistiu em entregamos o texto da história em português para o nosso consultor poder lê-lo enquanto a história era narrada pelo pesquisador também em português. Esse procedimento foi adotado para que o consultor pudesse se familiarizar com a história antes da tarefa de tradução. O segundo passo consistiu em solicitar que o consultor traduzisse as histórias para o Karitiana. Após a tradução, solicitou-se que o consultor gravasse áudios narrando a história. O objetivo dessa etapa era termos a história em Karitiana, tanto na modalidade escrita quanto na modalidade oral com o áudio, e que elas pudessem ser empregadas com as crianças para a leitura e interpretação de textos nessa língua.

Como mencionado na introdução, o Karitiana possui uma baixa quantidade de falantes e, devido a restrições financeiras do campo, nem sempre é possível trabalhar com vários falantes. Dessa forma, o terceiro e quarto passo são condições de controle que tem por objetivo monitorar o entendimento e o grau de atenção dos nossos consultores à história. Schmitt e Miller (2010SCHMITT, C.; MILLER, K. Using comprehension methods in language acquisition research. In: BLOM, E.; UNSWORTH, S. Experimental methods in language acquisition research. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 2010. v. 27. p. 35-56.) argumentam que uma tarefa necessita de Condições alvo e Condições de controle. Condições alvo são aquelas elaboradas para avaliar as estruturas de interesse do linguista e as Condições controle são aquelas que não avaliam estruturas de interesse para o linguista, mas são adicionadas para garantir que os resultados não sejam influenciados por algum tipo de problema. No nosso caso, garantir a atenção do consultor à história era fundamental para garantir que falta de atenção ou não entendimento da história interferisse na qualidade dos dados. O terceiro passo era uma condição controle consistindo em vinte e sete perguntas sobre a história, sendo treze sobre a primeira parte (ver Quadro 3) e quatorze sobre a segunda parte (ver Quadro 4), que deviam ser respondidas pelo consultor para avaliarmos a sua retenção do que tinha sido narrado.

Quadro 3-
Perguntas controle sobre a primeira parte da história
Quadro 4 -
Perguntas controle sobre a segunda parte da história

O quarto passo também foi uma condição controle que consistiu em um jogo com pedaços de papel com os nomes das pessoas e as atividades e o consultor teve que associar o papeis dos nomes das pessoas com os papéis das atividades correspondentes de acordo com o que havia sido narrado na história. O objetivo de inserir uma segunda condição controle em forma de jogo foi: (i) verificar a retenção do nosso consultor da história com outro método além do questionário; (ii) introduzir um elemento lúdico no meio do campo para deixar a coleta mais dinâmica e menos cansativa para o consultor e (iii) induzir o consultor a fazer a inferência de que cada pessoa tinha ficado responsável por apenas uma atividade. Foram elaborados trinta e quatro papéis. Dezesseis sobre a primeira parte da história (no futuro) e dezoito sobre a segunda parte da história (no passado). Esses papéis foram apresentados embaralhados para o nosso consultor que teve que organizá-los em pares de acordo com a história que estávamos trabalhando.

Por fim, prosseguimos para a última etapa que foi a coleta de dados propriamente dita. Elaboramos dois questionários. O primeiro questionário foi empregado para coletar dezesseis sentenças no futuro contextualizadas a partir da primeira parte da história, sendo oito sentenças negativas no futuro, como ilustrado em (11a) e (11c), e oito sentenças afirmativas no futuro, como ilustrado em (11b) e (11d). O questionário começava com uma pergunta controle que era feita ao consultor a fim de testar se sua memória dos fatos ocorridos e também se a interpretação que ele havia dado era de que a relação entre as tarefas a serem executas e os participantes da história era biunívoca, ou seja, se cada pessoa faria apenas uma atividade. Só se pedia o dado caso o consultor respondesse à pergunta controle adequadamente.

(11) a. Com base na história que você ouviu, vai ter uma festa na Aldeia Central depois de amanhã? ( ) SIM ( ) NÃO

Nessa situação, como você diria “Vai ter uma festa na Aldeia Central.” em Karitiana.

b. Com base na história que você ouviu, vai ter uma festa em Candeias depois de amanhã? ( ) SIM ( ) NÃO

Nessa situação, como você diria “Não vai ter uma festa em Candeias.” em Karitiana?

c. Com base na história que você ouviu, é a Maria de Fátima que vai limpar a casa amanhã? ( ) SIM ( ) NÃO

Nessa situação, como você diria “Maria de Fátima não vai limpar a casa” em Karitiana?

d. Com base na história, é o Marcelo que vai na floresta para tentar conseguir carne e conseguiu matar um porco do mato? ( ) SIM ( ) NÃO

Nessa situação, como você diria “Marcelo vai caçar um porco do mato” em Karitiana?

O segundo questionário foi empregado para coletar dezoito sentenças no passado contextualizadas a partir da primeira parte da história, sendo nove sentenças afirmativas no passado, como ilustrado em (12a) e (12c), e nove sentenças negativas no passado, como ilustrado em (12b) e (12d). O mesmo procedimento da pergunta controle antes de pedir o dado foi adotado.

(12) a. Com base na história que você ouviu, teve uma festa na Aldeia Central ontem?

( ) SIM ( ) NÃO

Nessa situação, como você diria “Teve uma festa na Aldeia Central.” em Karitiana?

b. Com base na história que você ouviu, teve uma festa em Candeias ontem?

( ) SIM ( ) NÃO

Nessa situação, como você diria “Não teve uma festa em Candeias.” em Karitiana?

c. Com base na história que você ouviu, o Cledson ascendeu uma fogueira?

( ) SIM ( ) NÃO

Nessa situação, como você diria “O Cledson ascendeu uma fogueira.” em Karitiana?

d. Com base na história que você ouviu, uma onça apareceu na festa?

( ) SIM ( ) NÃO

Nessa situação, como você diria “Uma onça não apareceu na festa.” em Karitiana?

A coleta desta primeira etapa foi realizada em dois dias, dezoito e dezenove de julho de 2023, com o mesmo consultor. Os cinco passos descritos acima foram executados duas vezes em dois dias diferentes. No primeiro dia, os cinco passos foram feitos apenas com a primeira parte da história, coletando apenas dados no futuro. No segundo dia, realizou-se os cinco passos novamente, apenas com a segunda parte da história, coletando, então, os dados no passado. Uma vez que a história tinha muitos personagens e muitas tarefas a serem feitas / atividades que foram feitas, essa divisão da história em dias diferentes evitou sobrecarregar o consultor com muitos detalhes e permitiu ao linguista focar na coleta apenas de estruturas no futuro em um dia e de estruturas no não-futuro no dia subsequente. A realização dos cinco passos levou cerca de quatro horas em cada um dos dias.

Segunda etapa - Tradução de dados descontextualizada

Os questionários permitiram a coletada de trinta e quatro sentenças afirmativas e negativas no futuro e no passado. As sentenças negativas no futuro e no passado foram agrupadas. As sentenças afirmativas no passado e no futuro também foram agrupadas. Apresentamos o áudio dessas sentenças para um falante nativo diferente de forma aleatória e descontextualizada e pedimos que ele traduzisse as sentenças que estava ouvindo em um papel.

Apresentamos primeiro todas as sentenças negativas coletadas tanto no contexto futuro quanto no contexto passado. Essa era a nossa condição alvo e o objetivo foi verificar se, sem o contexto, o consultor seria capaz de determinar se a sentença negativa que estava ouvindo tinha sido coletada em um contexto passado ou no futuro. Caso o segundo consultor fornecesse traduções adequadas ao contexto de coleta, conseguindo determinar quais sentenças negativas haviam sido coletadas em um contexto no futuro e quais haviam sido coletadas no passado, teríamos um indício de que existem fatores na língua, para além da marcação morfológica, que ajudam a determinar a interpretação temporal. No entanto, caso o segundo consultor não fornecesse traduções adequadas ao contexto de coleta, não conseguindo determinar quais sentenças negativas haviam sido coletadas em um contexto no futuro e quais haviam sido coletadas no passado, teríamos um indício de que a interpretação temporal é dependente do contexto e que não há outro mecanismo gramatical que auxilie na determinação da interpretação temporal nas negativas.

O domínio do português do nosso segundo consultor ou um lapso de atenção poderia prejudicar na qualidade dos dados. O fato de o consultor não diferenciar futuro de passado poderia não ser motivado pela ausência de um mecanismo gramatical secundário que realiza essa marcação em Karitiana, mas sim pelo fato do nosso consultor não dominar a morfologia do português de modo a fornecer traduções no tempo adequado ou mesmo por responder o questionário de forma rápida não prestando atenção em mecanismos secundários que poderiam marcar a interpretação temporal.

Para evitar esse tipo de ruído nos dados, reunimos as afirmativas no passado e no futuro e solicitamos que o nosso consultor as traduzisse. Se o consultor fornecesse traduções adequadas ao contexto de coleta das afirmativas, isso mostraria que ele é um consultor atento aos indícios que marcam tempo e que domina a morfologia do português para transpor isso em sua tradução. Sendo assim, esse procedimento garante a qualidade dos dados, permitindo afirmar com maior grau de certeza que, caso ele traduza as negativas de forma que não correspondam com o tempo do contexto de coleta, que a ausência de morfologia e de mecanismos secundários de marcação de tempo são os responsáveis por isso e não o lapso de atenção ou falta de domínio da língua de contato.

Resultados

Como descrito na seção anterior, a primeira etapa da coleta consistiu em cinco passos. Primeiramente, narramos a história para o nosso consultor em português para que ele pudesse se familiarizar com ela. Em seguida, solicitamos que o consultor transcrevesse a história para o Karitiana e gravasse um áudio descrevendo-a história. A transcrição fornecida pelo consultor está disponível nos Quadros 5 e 6.

Quadro 5 -
Primeira parte da história no futuro
Quadro 6 -
Segunda parte da história no passado

Como mencionado na seção anterior, a nossa intenção é usarmos tanto a transcrição da história quanto seu áudio como recursos pedagógicos para a prática de leitura e interpretação textual. O terceiro passo consistiu em dois questionários que eram condições controle para verificar o entendimento do consultor sobre a história. Havia vinte e sete perguntas controle sobre a história, treze sobre a primeira parte e quatorze sobre a segunda parte. Dessas, o consultor respondeu vinte e três de forma correta, três de forma parcialmente correta e uma de forma incorreta (ver Tabela 1).

Tabela 1 -
Percentual de acertos da primeira condição controle

Como pode ser observado na tabela 1, em nossa primeira condição controle, o nosso consultor teve uma alta taxa de acerto uma vez que foi capaz de acertar a maior parte das questões sem consultar o texto da história original. Em (13) temos exemplos de respostas corretas. As parcialmente incorretas ocorreram em perguntas mais difíceis nas quais alguns detalhes foram esquecidos. Por exemplo, pediu-se que o falante listasse todas as pessoas envolvidas na história e ele lembrou de sete pessoas, mas esqueceu de uma, o que contou como parcialmente correto, como ilustrado em (14). Houve apenas uma pergunta respondida de forma incorreta que está reproduzida em (15).

(13) a. Onde será a festa?

Consultor: ‘Byjyty osop aky.’ (correto)7 7 A expectativa da resposta era em português. Neste caso, o nosso consultor emprega o Karitiana por se tratar de um nome próprio.

b. O que aconteceu depois que acenderam a fogueira?

Consultor: ‘vem a cobra.’ (correto)

c. Quem ficou com medo da cobra?

Consultor: ‘Mari.’ (correto)

(14) a. Quem são os Karitiana que vão ajudar na festa?

Consultor: ‘Cizino, Marcelo, Inácio, Milaine, Elivar, Vivaldo, Edilene, Arnaldo, Maria de Fátima, Marlúcia.’ (Parcialmente correto, pois Inácio não estava na primeira parte da história)

b. Quem são os Karitiana que vieram na festa?

Consultor: ‘Cizino, Luiz Carlos, Cledson, Inácio, Mari, João, Orlando.’ (parcialmente correto. Faltou citar Julenilsa.)

c. O que o Luiz comeu?

Consultor: ‘peixe carne.’ (parcialmente correto. A história menciona apenas que ele comeu peixe)

(15) Qual bebida vai ser servida na festa?

Consultor: ‘Não tem.’ (incorreto. Na festa seria servido chicha.)

Desse modo, considerando a taxa de 3,7% de respostas erradas, consideramos que o consultor teve uma absorção alta dos detalhes da história. Acreditamos que o fato de termos solicitado que o consultor realizasse a tradução para a sua língua e gravação da história tenha auxiliado a memorizar os detalhes da história, que não seriam memorizados caso ele tivesse apenas lido/escutado a história em português.

O quarto passo consistiu em um jogo no qual foram fornecidos pedaços de papel com os nomes dos personagens e as funções que eles tinham no planejamento da festa (no futuro) ou os fatos que tinham acontecido (no passado) e o nosso consultor que teve que organizá-los em pares de acordo com o que lembrava da história, sem consultar o texto ou o áudio. O consultor acertou 100%, tanto com a parte do futuro como ilustrado na Figura 1, quanto com a parte da história do passado como ilustrado na Figura 2.

Figura 1 -
Jogo de cards (controle da primeira parte da história)

Figura 2 -
Jogo de cards (controle da segunda parte da história)

O quinto e último passo da primeira etapa consistiu na coleta das orações afirmativas e negativas. Foram coletados trinta e quatro dados tanto escritos quanto em áudio. Desses dados, dezesseis eram sentenças no futuro contextualizadas a partir da primeira história. Dessas dezesseis, oito eram afirmativas, como ilustrado em (16), e oito eram sentenças negativas, como ilustrado em (17).

(16) a. Com base na história que você ouviu, vai ter uma festa na Aldeia Central depois

de amanhã? ( X ) SIM ( ) NÃO

Nessa situação, como você diria “Vai ter uma festa na Aldeia Central.” em Karitiana?

Pyr-aka

dak-i

Aldeia Central

pip

terek terek

ASS-COP

ASP-FUT

Aldeia Central

POS

festa

‘Vai ter uma festa na Aldeia Central.’ QN.MFK.18072023

b. Com base na história, é o Marcelo que vai na floresta para tentar conseguir

carne? ( X ) SIM ( ) NÃO

Nessa situação, como você diria “Marcelo vai caçar um porco do mato” em Karitiana?

Marcelo

Ø-na-oky-j

soixa

gopip

Marcelo

3-DECL-matar-FUT

porco

mato

‘Marcelo vai caçar um porco do mato.’ QN.MFK.18072023

c. Com base na história, é o Arnaldo que vai pegar o peixe? ( X ) SIM ( ) NÃO

Nessa situação, como você diria “Arnaldo vai pescar o peixe” em Karitiana?

Arnaldo

Ø-na-aka-j

i-ohit

ip-i-ty

Arnaldo

3-DECL-COP-FUT

3-pescar

peixe-VE-OBL

‘Arnaldo vai pescar o peixe.’ QN.MFK.18072023

(17) a. Com base na história que você ouviu, vai ter uma festa em Candeias depois de

amanhã? ( ) SIM ( X ) NÃO

Nessa situação, como você diria “Não vai ter uma festa em Candeias.” em Karitiana?

Ibodn-i

padni

terek terek

Candeias

pip

existir-VE

NEG

festa

Candeias

POS

‘Não vai ter uma festa em Candeias.’ QN.MFK.18072023

b. Com base na história que você ouviu, é a Maria de Fátima que vai limpar a casa amanhã? ( ) SIM ( X ) NÃO

Nessa situação, como você diria “Maria de Fátima não vai limpar a casa” em Karitiana?

Maria de Fátima

imhõron

padni

abi

Maria de Fátima

limpar

NEG

casa

‘Maria de Fátima não vai limpar a casa.’ QN.MFK.18072023

c. Com base na história, é a Marlúcia que vai colher mandioca?

( ) SIM ( X ) NÃO

Nessa situação, como você diria “Marlúcia não vai colher a mandioca” em Karitiana?

Marlúcia

i-m-’a

Padni

gok

Marlúcia

3-CAUS-fazer

NEG

mandioca

‘Marlúcia não vai colher a mandioca.’ QN.MFK.18072023

O restante dos dados foram dezoito sentenças no passado contextualizadas a partir da segunda história. Dessas dezoito, nove eram afirmativas, como ilustrado em (18), e nove eram sentenças negativas, como ilustrado em (19).

(18) a. Com base na história que você ouviu, teve uma festa na Aldeia Central ontem?

( X ) SIM ( ) NÃO

Nessa situação, como você diria “Teve uma festa na Aldeia Central.” em Karitiana?

I-akat

terek tereko

Aldeia Central

pip

3-COP-NFUT

festa

Aldeia Central

POS

‘Teve uma festa na Aldeia Central.’ QN.MFK.19072023

b. Com base na história que você ouviu, o Cledson ascendeu uma fogueira?

( X ) SIM ( ) NÃO

Nessa situação, como você diria “O Cledson ascendeu uma fogueira.” em Karitiana?

Cledson

byjagng-ãn

myhint

fogueira

Cledson

ascendeu-NFUT

Uma

fogueira

‘O Cledson ascendeu uma fogueira’. QN.MFK.19072023

c. Com base na história que você ouviu, o Inácio matou a cobra?

( X ) SIM ( ) NÃO

Nessa situação, como você diria “O Inácio matou a cobra.” em Karitiana?

Inácio

Ø-na-oky-t

boroja

Inácio

3-DECL-matar-NFUT

cobra

‘O Inácio matou a cobra.’ QN.MFK.19072023

(19) a. Com base na história que você ouviu, teve uma festa em Candeias ontem?

( ) SIM ( X ) NÃO

Nessa situação, como você diria “Não teve uma festa em Candeias.” em Karitiana?

I-bodn-i

padni

terek terek

Candeias

pip

3-haver-VE

NEG

festa

Candeias

POS

‘Não teve uma festa em Candeias.’ QN.MFK.19072023

b. Com base na história que você ouviu, uma onça apareceu na festa?

( ) SIM ( X ) NÃO

Nessa situação, como você diria “Uma onça não apareceu na festa.” em Karitiana?

theren-i

padni

obaky

terek teregypa

pip

aparecer-VE

NEG

onça

Festa

POS

‘Uma onça não apareceu na festa.’ QN.MFK.19072023

c. Com base na história que você ouviu, o Inácio ficou com medo da cobra?

( ) SIM ( X ) NÃO

Nessa situação, como você diria “O Inácio não ficou com medo da cobra.” em Karitiana?

I-pi

padni

Inácio

boroja-ty

3-medo

NEG

Inácio

cobra-OBL

‘O Inácio não ficou com medo da cobra.’ QN.MFK.19072023

Desse modo, finalizamos a primeira parte do nosso estudo com dezessete sentenças negativas coletadas em áudio - oito coletadas em um contexto de futuro e nove coletadas em um contexto de passado. Essas sentenças seriam a nossa condição alvo na próxima etapa, pois elas seriam apresentadas de forma aleatória para outro falante de modo a verificar se é possível para um falante nativo distinguir se uma negativa foi proferida em um contexto com uma leitura de futuro em um contexto com uma leitura de não-futuro. Também tínhamos dezessete sentenças afirmativas em áudio - oito coletadas em um contexto de futuro e nove coletadas em um contexto de passado. Essas seriam usadas como nossa condição controle na próxima etapa.

A segunda etapa consistiu em apresentar o áudio das sentenças negativas descontextualizadas para outro falante nativo. Elas foram apresentadas de forma aleatória, misturando aquelas que foram coletadas em contexto do futuro com aquelas que foram coletadas em contexto de passado e solicitou-se que ele fornecesse a tradução para elas. Todas as sentenças negativas foram traduzidas no não-futuro, ou seja, no presente ou no passado, como ilustrado no Quadro 7.

Quadro 7 -
Interpretação temporal de sentenças negativas descontextualizadas

Os dados corroboram a hipótese de que as sentenças negativas não possuem um elemento secundário que auxilie o falante a determinar se ela deve ser interpretada no futuro ou no não-futuro. Desse modo, na ausência de um contexto ou de elementos lexicais que codificam o tempo, a interpretação default é o não-futuro. Enquanto estados parecem ter uma interpretação preferencial de presente, como ilustrado pelas traduções dadas em (20), (22) e (25), os outros tipos de evento parecem ter uma interpretação preferencial de passado como ilustrado nos pelas traduções dadas em (21), (23) e (24).

Como mencionado na seção anterior, outros fatores poderiam causar ruído nos dados da Quadro 7. Por exemplo, a tradução de todas as negativas no não-futuro poderia ser ocasionada por um consultor desatento que não prestou atenção aos indícios de tempo presentes nas sentenças negativas ou mesmo ser ocasionada por um consultor que não sabe bem o português e acabou traduzindo tudo no passado por não dominar nosso padrão morfológico de conjugação.

Então, seguimos o mesmo procedimento com os áudios das sentenças afirmativas. Eles foram apresentados de forma aleatória, misturando aqueles que foram coletadas em contexto do futuro com aqueles que foram coletadas em contexto de passado e solicitou-se que o consultor fornecesse a tradução para eles. Nessa segunda apresentação, o consultor foi capaz de diferenciar, em sua tradução, quais sentenças estavam orientadas para o futuro e quais estavam orientadas no passado, como pode ser observado no Quadro 8.

Quadro 8 -
Interpretação temporal de sentenças afirmativas descontextualizadas a 3

As traduções dadas pelo nosso consultor diferenciaram as sentenças no futuro, como (26), (27) e (30), das sentenças no não-futuro, como (28), (29) e (31), ou seja, isso mostra que ele está atento a indícios de tempo presentes nas orações que está ouvindo e que domina a morfologia do português de forma suficientemente para, em sua tradução, indicar se ele interpreta o dado com interpretação no futuro ou no não-futuro.8 8 Em (26), o consultor deixou claro para nós no momento da coleta que havia entendido que a festa ainda iria ocorrer (leitura de futuro), no entanto, usou o presente em sua tradução ‘faz-se’. Acreditamos que isso ocorreu por ter sido o primeiro dado visto que nos demais ele empregou ‘vai’ na tradução quando havia morfologia de futuro em Karitiana como pode ser observado em (27) e (30). Como o presente no português pode ter um uso de futuro em alguns contextos, optamos por especificar em (26) que a interpretação do consultor foi de futuro, apesar de ter usado o presente ne tradução. Desse modo, esse controle nos permite afirmar que, para esse mesmo consultor não ter diferenciado as negativas em futuro e passado de acordo com os contextos de coleta, é pelo fato desse tipo de oração não dispor de nenhum recurso gramatical que indique a interpretação temporal. Houve algumas disparidades na interpretação que o consultor teve de orações no não-futuro, pois para algumas, ele interpretou como sendo no presente, como ilustrado em (28). No entanto, isso é esperado uma vez que o morfema de não-futuro não distingue presente de passado. Nesses casos, a interpretação default dos estados parece ser de presente também quando o verbo é marcado no não-futuro.

Os resultados deste estudo corroboram a hipótese de que não há mecanismos secundários que operem determinando a interpretação temporal de sentenças negativas. Então, a interpretação temporal deve ser feita por itens lexicais que determinam o tempo do tópico como os advérbios de tempo ou determinada contextualmente. Na ausência desses, a interpretação temporal default de uma sentença negativa é no não-futuro, sendo interpretado como passado caso se trate de um evento ou no presente caso se trate de um estado.

Considerações finais

Apresentamos um estudo sobre a interpretação temporal de orações negativas em Karitiana verificando se a interpretação temporal é determinada contextualmente ou se havia outros fatores secundários através dos quais ela seria determinada. Foram coletados dados em áudio de negativas no futuro e no passado com um falante nativo que foram apresentados de forma descontextualizada e aleatória para que outro falante nativo fizesse uma tradução. Mostramos que não há mecanismos gramaticais secundários que permitam identificar a interpretação temporal nas orações negativas. Além disso, mostramos que a interpretação default de sentenças negativas descontextualizadas é não-futuro, sendo passado para eventos e presente para estados. Mostramos também que a tradução descontextualizada de áudios pode ser uma ferramenta importante para a análise semântica quando o objetivo é detectar a existência de mecanismos gramaticais não salientes ao linguista que operam determinando a interpretação. Conforme mencionado, um dos encaminhamentos será a elaboração de material didático a partir das histórias coletadas na modalidade escrita e em áudio. Essas histórias podem ser usadas na interpretação de texto focando na interpretação temporal de estruturas afirmativas e positivas mostrando ao aluno como a sua língua codifica gramaticalmente tempo no primeiro tipo de oração, mas não no segundo, evidenciando, assim, a importância do contexto e/ou itens lexicais que deixem o tempo do tópico explícito para a interpretação temporal de orações negativas. Tais recursos pedagógicos seriam relevantes para o entendimento do funcionamento da própria língua e seria uma forma de este estudo não ter apenas um retorno acadêmico, mas ter um retorno também para a comunidade cuja língua está sendo descrita.

Agradecimentos

Agradeço à comunidade Karitiana, em especial, aos dois consultores Karitiana que participaram da tarefa fornecendo os dados empregados na análise deste artigo. Agradeço também ao Centre National de Recherche Scientifique (CNRS-França) pelo financiamento do projeto IEA-International Emerging Actions 2022: Temps, Variation et Acquisition: Nouvelles approches à létude du TAME à travers les langues/ Tense, Variation and Language Acquisition: New approaches to the study of TA ME across languages (TAME-INTER) que subsidiou o campo para a coleta dos dados com os Karitiana.

Referências

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  • 1
    Em inglês essas noções recebem nomes diferente uma vez que concepção semântica é chamada de ‘time’ e a concepção morfológica é chamada de ‘tense’ (Klein, 2013KLEIN, Wolfgang.Time in language. Routledge, 2013., p. 2).
  • 2
    Do inglês topic time (tradução do autor).
  • 3
    Do inglês utterance time. Agradecemos ao parecerista anônimo que sugeriu a tradução tempo de proferimento para esse conceito.
  • 4
    Este artigo usa dados coletados pelo próprio autor e alguns dados provenientes de outros trabalhos. Os dados provenientes de outros trabalhos trazem a referência logo após o dado.
  • 5
    Este artigo usa o sistema de glossa de Leipzig.
  • 6
    O Karitiana é uma língua sem artigos e conjunções. No entanto, por influência da versão do texto em português, nosso consultor escreveu o texto em Karitiana em alguns momentos com os artigos ‘a’ e ‘o’ e a conjunção ‘e’. Esse fato não tem impacto nos nossos testes, mas, é indício de que o texto precisa passar por uma revisão de modo a deixá-lo mais fidedigno com a gramática da língua Karitiana caso seja implementado em um material escolar.
  • 7
    A expectativa da resposta era em português. Neste caso, o nosso consultor emprega o Karitiana por se tratar de um nome próprio.
  • 8
    Em (26), o consultor deixou claro para nós no momento da coleta que havia entendido que a festa ainda iria ocorrer (leitura de futuro), no entanto, usou o presente em sua tradução ‘faz-se’. Acreditamos que isso ocorreu por ter sido o primeiro dado visto que nos demais ele empregou ‘vai’ na tradução quando havia morfologia de futuro em Karitiana como pode ser observado em (27) e (30). Como o presente no português pode ter um uso de futuro em alguns contextos, optamos por especificar em (26) que a interpretação do consultor foi de futuro, apesar de ter usado o presente ne tradução.

Editado por

Editora-chefe dos Estudos de Linguagem:

Bethania Mariani

Editores convidados:

Brenda Laca e Luciana Sanchez-Mendes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2023
  • Aceito
    05 Fev 2024
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