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Entre os estudos culturais e os estudos literários: uma breve discussão sobre a crítica literária ecofeminista

Between Cultural Studies and Literary Studies: A Brief Discussion on Ecofeminist Literary Criticism

RESUMO

Este artigo propõe uma breve discussão sobre os desenvolvimentos da crítica literária ecofeminista e os desafios que esta apresenta, tendo em conta a tensão entre estudos culturais e estudos literários. Essa discussão desenvolve-se de uma perspectiva cronológica, abrangendo o período entre o final dos anos 1990 e 2022.

Palavras-chave:
Ecofeminismo; Estudos Culturais; Estudos Literários

ABSTRACT

This article proposes a brief discussion on the developments of ecofeminist literary criticism and the challenges it presents, considering the tension between cultural studies and literary studies. This discussion develops from a chronological perspective, covering the period between the late 90s and 2022.

Keywords:
Ecofeminism; Cultural Studies; Literary Studies

Ecofeminismo em um curso de “literatura”

Em “Deep response: an ecofeminist, dialogical approach to introductory literature classroom”, John Paul Tassoni revela, com entusiasmo, um dos seus objetivos como professor universitário: “I WANT MY LITERATURE STUDENTS to be ecofeminists” (TASSONI, 1998TASSONI, John Paul. Deep Response: An ecofeminist, dialogical approach to introductory literature classroom. In: GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press , 1998. p. 204-223., p. 204, maiúsculas do autor) 2 2 Tradução: Quero que meus estudantes de literatura sejam ecofeministas (Todas as traduções apresentadas neste artigo são de minha autoria). . Como explica,

Ecofeminism offers a better approach to life than the anthropomorphic, androcentric conceptions of nature that dominate Western culture. Because it offers such a better life for our planet, I want students to become active forces in the construction and maintenance of the heterarchical, holistic societies that ecofeminists promote. […] My goal is to be counterhegemonic, not totalitarian. I want to persuade my students to scrutinize their inherited values and those of ecofeminists, and I want them to voluntarily embrace ecofeminism as more conductive to healthy human and nonhuman relations (TASSONI, 1998TASSONI, John Paul. Deep Response: An ecofeminist, dialogical approach to introductory literature classroom. In: GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press , 1998. p. 204-223., p. 204)3 3 Tradução: O ecofeminismo oferece uma abordagem melhor da vida do que as concepções antropomórficas e androcêntricas da natureza que dominam a cultura ocidental. Por oferecer uma vida tão melhor para o nosso planeta, quero que os alunos se tornem forças ativas na construção e na manutenção das sociedades heterárquicas e holísticas que os ecofeministas promovem. […] Meu objetivo é ser contra-hegemônico, não totalitário. Quero persuadir meus alunos a examinar seus valores herdados e os dos ecofeministas, e quero que abracem voluntariamente o ecofeminismo como mais conducente a relações humanas e não-humanas saudáveis. .

Ainda que o tom incisivo e enfático possa parecer contraditório quando se pretende ser contra-hegemônico e não-totalitário, Tassoni esclarece que não concorda com a imposição de valores aos alunos, não somente porque assim os interesses e as preocupações destes últimos estariam subordinados àqueles que, na verdade, são os do professor, mas também por tal postura resultar em uma atitude passiva, ou melhor, a de quem reproduz as ideias do professor em vez de examinar criticamente suas próprias ideias e a dos outros. (TASSONI, 1998TASSONI, John Paul. Deep Response: An ecofeminist, dialogical approach to introductory literature classroom. In: GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press , 1998. p. 204-223.).

Evocando o contexto acadêmico americano do final de 1990, década em que o artigo foi publicado, Tassoni coloca-se desde o início numa posição defensiva, sugerindo que os adeptos do ecofeminismo apresentam uma atitude inflexível, refratária ao debate, sobretudo quando se têm em conta pontos de vista conflituosos; o que, em certa medida, seria contraditório em relação ao que Karen Warren, em “Feminist and ecology: making connections”, acredita ser o principal objetivo do ecofeminismo, ou seja, subverter os princípios ocidentais opressivos (WARREN, 1987, p. 6-8 apudTASSONI, 1998TASSONI, John Paul. Deep Response: An ecofeminist, dialogical approach to introductory literature classroom. In: GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press , 1998. p. 204-223., p. 204). É inevitável perceber como Tassoni, apesar das intenções reveladas logo no início do seu artigo, percebe-se como fora do “grupo dos ecofeministas”, aos quais se refere, não por acaso, como “they”. Há nesse sentido uma tensão - que não fica totalmente clara na passagem abaixo - entre querer ou não ser um ecofeminista, na perspectiva de pertencer a um grupo de professores/investigadores, e (poder) ser ou não reconhecido como tal por esse mesmo grupo. Ao reivindicar o direito ao debate, Tassoni talvez tente justificar, ainda que indiretamente, a sua entrada num terreno que fosse percebido como de alguma forma alheio ao seu trabalho como professor de literatura, como se para tanto fosse esperado um outro tipo de formação:

[...] ecofeminists need to remain open to conflicting viewpoints; They cannot perpetuate the very monologic conceptions of truth and hierarchy they seek to resist. By closing themselves off from alternative viewpoints - even androcentric, anthropomorphic ones - ecofeminists would close themselves off from the kinds of self-critical introspection they need to respond locally - in persuasive, rather than coercive ways - on behalf of feminist and environmental concerns. In other words, by remaining open to opposing viewpoints, ecofeminists can continually examine and re-examine their own goals; at the same time, they can participate in productive debates with those who might oppose and those who might not understand their aims. In my literature classrooms, I promote ecofeminism as an ongoing dialogue, one taking place among its advocates as well as with those who may not affirm its principles (TASSONI, 1998TASSONI, John Paul. Deep Response: An ecofeminist, dialogical approach to introductory literature classroom. In: GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press , 1998. p. 204-223., p. 205)4 4 Tradução: [...] os ecofeministas precisam permanecer abertos a pontos de vista conflitantes. Eles não podem perpetuar as próprias concepções monológicas de verdade e hierarquia às quais procuram resistir. Resistindo a pontos de vista alternativos - mesmo androcêntricos, antropomórficos - os ecofeministas se fecham dos tipos de introspecção autocrítica de que precisam para responder localmente - de maneira persuasiva, em vez de coercitiva - em nome das preocupações feministas e ambientais. Em outras palavras, permanecendo abertos a pontos de vista opostos, os ecofeministas podem continuamente examinar e reexaminar seus próprios objetivos; ao mesmo tempo, podem participar de debates produtivos com aqueles que podem se opor e aqueles que podem não entender seus objetivos. Em minhas aulas de literatura, promovo o ecofeminismo como um diálogo contínuo, ocorrendo entre seus defensores e também com aqueles que podem não afirmar seus princípios. .

Tassoni preocupa-se particularmente com a pedagogia adotada em suas aulas de literatura, que refletem, como observa o autor, os métodos dialógicos de educadores como Patricia Bizzell, Ira Shor, Henry Giroux e Paulo Freire (TASSONI, 1998TASSONI, John Paul. Deep Response: An ecofeminist, dialogical approach to introductory literature classroom. In: GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press , 1998. p. 204-223.). Como explica, suas aulas empregam o que Bizzell chamaria de “pedagogia da persuasão”, de acordo com a qual

teachers are “authorized to attempt to persuade students to try on [what the teachers perceive to be democratic] values, while at the same time the students also exercise persuasion, on [the teacher] and their peers, where they see changes being needed in the cultural awareness” (1994, p. 198 apudTASSONI, 1998TASSONI, John Paul. Deep Response: An ecofeminist, dialogical approach to introductory literature classroom. In: GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press , 1998. p. 204-223., p. 205, colchetes de Tassoni)5 5 Tradução: [...] os professores estão “autorizados a tentar persuadir os alunos a experimentar valores [que aqueles percebem como democráticos], enquanto, ao mesmo tempo, os alunos também exercem persuasão, [no professor e] em seus pares, onde eles veem mudanças sendo necessárias à consciência cultural”. .

A impressão de que se trata de desenvolver um trabalho junto aos alunos fora dos moldes convencionais é reforçada quando o autor compartilha suas responsabilidades como professor e cidadão: “I have a responsibility to expand my students’s areas of concern and sense of heterarchy as much as I possibly can, and no approach to life and literature offers a vision as expansive and as egalitarian as that of ecofeminism” (TASSONI, 1998TASSONI, John Paul. Deep Response: An ecofeminist, dialogical approach to introductory literature classroom. In: GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press , 1998. p. 204-223., p. 205)6 6 Tradução: “Tenho a responsabilidade de expandir as áreas de interesse e o senso de heterarquia de meus alunos tanto quanto possível, e nenhuma abordagem da vida e da literatura oferece uma visão tão expansiva e igualitária quanto a do ecofeminismo”. .

Chama atenção o fato de Tassoni ter tido “autorização” da universidade para introduzir ecofeminismo num curso introdutório de literatura, o que aponta não somente para o relativo conservadorismo da instituição em questão, como também - e sobretudo - para a percepção de que ecofeminismo e literatura não eram tão claramente interdisciplinares: “I introduce ecofeminism to my literature classes because I have been authorized by my university to promote critical thinking and active citizenship” (TASSONI, 1998TASSONI, John Paul. Deep Response: An ecofeminist, dialogical approach to introductory literature classroom. In: GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press , 1998. p. 204-223., p. 205)7 7 Tradução: “Introduzo o ecofeminismo nas minhas aulas de literatura porque fui autorizado pela minha universidade a promover o pensamento crítico e a cidadania ativa”. . Além disso, o autor parece superestimar - ou mesmo romantizar - o ecofeminismo, como se sem este fosse mais difícil ou mesmo impossível promover pensamento crítico ou cidadania ativa; como se o ecofeminismo fosse o que faltasse à literatura, o que não deixa de ser um tipo de cobrança tão “totalitária” quanto a postura que o ecofeminismo deveria supostamente combater.

Ao narrar sua experiência ensinando ecofeminismo em um curso introdutório de literatura numa universidade estadual americana, Tassoni deixa claro que sua tentativa de “help students read and write final discourses vital to their needs as critical citizens” (TASSONI, 1998TASSONI, John Paul. Deep Response: An ecofeminist, dialogical approach to introductory literature classroom. In: GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press , 1998. p. 204-223., p. 206)8 8 Tradução: “[...] ajudar os alunos a ler e escrever discursos finais vitais para suas necessidades como cidadãos críticos”. faria mais sentido quando se considera que a maioria dos alunos a que se refere não se inscreve em cursos mais avançados de literatura. Ao insistir nessa questão, e talvez à revelia de suas intenções, o autor transforma um curso que, independente do caráter elementar, deveria ser primordialmente de literatura em um tipo de curso-serviço-genérico prestado a estudantes de outras áreas de conhecimento, como se o ecofeminismo pudesse ser mais “útil” ou “aplicável” em áreas de estudo exteriores à da própria literatura, como se a literatura ecofeminista ou a crítica literária ecofeminista propriamente dita só fizessem sentido de uma perspectiva essencialmente prática:

[...] it is in the introductory course that ecofeminist teachers have a chance to reach students who will go on to become chemists, accountants, mathematicians, and dropouts - those who may have little chance for the sustained consideration of cultural issues that literature courses offer (TASSONI, 1998TASSONI, John Paul. Deep Response: An ecofeminist, dialogical approach to introductory literature classroom. In: GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press , 1998. p. 204-223., p. 206)9 9 Tradução: [...] é no curso introdutório que os professores ecofeministas têm a chance de atingir alunos que se tornarão químicos, contadores, matemáticos, ou que abandonarão o curso - aqueles que podem ter poucas chances de considerar com seriedade as questões culturais que os cursos de literatura oferecem. .

Considero inevitável, nesse sentido, que Tassoni, apoiado em Patrick D. Murphy, chegasse à conclusão de que seu curso não era propriamente “sobre” literatura (TASSONI, 1998TASSONI, John Paul. Deep Response: An ecofeminist, dialogical approach to introductory literature classroom. In: GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press , 1998. p. 204-223., p. 206); o que, por sua vez, leva a repensar a necessidade de ter tido autorização da instituição e, imagino, do seu departamento, para introduzir o ecofeminismo em suas aulas.

Como penso, as razões que Tassoni apresenta como justificativa para reinventar o seu curso introdutório de “literatura” não resolvem o problema descrito por ele, como reforça a seguinte passagem, de uma forma desnecessariamente dicotômica. Constituem, ao contrário, um tipo de saída pela tangente, ou mesmo fuga de uma discussão (ao menos um pouco) mais séria sobre o que se poderia entender um diálogo entre literatura e ecofeminismo, ainda que se tenha como alunos aqueles “menos avançados”:

This is an important decision to make because in many respects formalist, New Critical doctrines still dominate introductory courses in literature. These doctrines treat texts as self-contained artifacts and promote little, if any, critical consideration of the material conditions surrounding the interpretations, compositions, and receptions of literature. At least two factors contribute to the persistence of such doctrines: many teachers perceive the course as a place in which students learn the “basics” of literature, such as setting, plot, and character; many teachers believe contemporary critical theories, such as post-structuralism and ecofeminism, represent complexities beyond the grasp of freshman and sophomore students. [...] Rather than fixate on textual analyses to the exclusion of sociohistorical factors surrounding compositions, receptions, and interpretations of literary works, introductory literature classrooms can help students examine the various discourses of gender, race, and class that affect them socially, historically, politically, and academically (TASSONI, 1998TASSONI, John Paul. Deep Response: An ecofeminist, dialogical approach to introductory literature classroom. In: GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press , 1998. p. 204-223., p. 206-7)10 10 Tradução: Esta é uma decisão importante a ser tomada porque, em muitos aspectos, as doutrinas formalistas da Nova Crítica ainda dominam os cursos introdutórios de literatura. Essas doutrinas tratam os textos como artefatos independentes e promovem pouca ou nenhuma consideração crítica das condições materiais que cercam as interpretações, composições e recepções da literatura. Pelo menos dois fatores contribuem para a persistência de tais doutrinas: muitos professores percebem o curso como um local em que os alunos aprendem o “básico” de literatura, como cenário, enredo e personagem; muitos professores acreditam que as teorias críticas contemporâneas, como o pós-estruturalismo e o ecofeminismo, representam complexidades além do alcance dos alunos do primeiro e segundo anos. [...] Em vez de se fixar em análises textuais que levam à exclusão de fatores sócio-históricos que cercam composições, recepções e interpretações de obras literárias, as aulas de literatura introdutória podem ajudar os alunos a examinar os vários discursos de gênero, raça e classe que os afetam social, histórica, política e academicamente. .

Tassoni apresenta, então, aqueles que seriam os quatro princípios do pensamento ecofeminista segundo Ynestra King em “Toward an ecological feminism and a feminist ecology”. Entende-se que tais princípios constituiriam os fundamentos para quem pretende “introduzir ecofeminismo” em um curso de literatura, o que, por sua vez, determinaria, de antemão, as questões a serem perseguidas nos textos literários analisados. Sugere-se, com isso, que identificar nos textos elementos que possibilitem uma “discussão ecofeminista” predeterminada seria mais importante que estar aberto para reconhecer como esses mesmos textos “criam”, à sua maneira, um diálogo com questões que podem interessar ao ecofeminismo:

  1. The Building of Western industrial civilization in opposition to nature interacts dialectically with and reinforces the subjugation of women because women are believed to be closer to nature Against nature.

  2. Life on Earth is an interconnected web, not a hierarchy. There is not a natural hierarchy, but a multitiered human hierarchy projected onto nature and then used to justify social domination...

  3. A healthy, balanced ecosystem, including human and nonhuman inhabitants, must maintain diversity... Biological simplification, i.e., wiping out of whole species, corresponds to reducing human diversity into faceless workers, or to the homogenization of taste and culture through mass consumer markets...We need decentralized global movement founded on common interests but celebrating diversity and apposing all forms of domination and violence. Potentially, ecofeminism is such a movement.

  4. The survival of the species necessitates a renewed undertaking of our relationship to nature...; it necessitates a challenging of the nature-culture dualism and a corresponding radical restructuring of human Society according to feminist and ecological principles (KING,1983, p. 119-120 apud TASSONI, 1998, p. 214-215)11 11 Tradução: 1. A construção da civilização industrial ocidental em oposição à natureza interage dialeticamente e reforça a subjugação das mulheres porque se acredita que as mulheres estão mais próximas da natureza Contra a natureza. 2. A vida na Terra é uma teia interconectada, não uma hierarquia. Não há uma hierarquia natural, mas uma hierarquia humana multifacetada projetada na natureza e depois usada para justificar a dominação social... 3. Um ecossistema saudável e equilibrado, incluindo habitantes humanos e não humanos, deve manter a diversidade... A simplificação biológica, ou seja, a eliminação de espécies inteiras, corresponde a reduzir a diversidade humana a trabalhadores sem rosto, ou à homogeneização do gosto e da cultura pelos mercados de consumo de massa... Precisamos de um movimento global descentralizado baseado em interesses comuns, mas celebrando a diversidade e se opondo a todas as formas de dominação e violência. Potencialmente, o ecofeminismo é um desses movimentos. 4. A sobrevivência da espécie requer um compromisso renovado de nossa relação com a natureza...; requer um desafio do dualismo natureza-cultura e uma correspondente reestruturação radical da sociedade humana de acordo com princípios feministas e ecológicos. .

Como discutirei mais à frente, não se trata de discordar de tais princípios, tampouco de considerar secundário o fato de que “In an ecofeminist, dialogical literature class such crises can be addressed, and deep changes in the social fabric can become the course’s principal concern” (TASSONI, 1998TASSONI, John Paul. Deep Response: An ecofeminist, dialogical approach to introductory literature classroom. In: GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press , 1998. p. 204-223., p. 221)12 12 Tradução: Em uma aula de literatura ecofeminista e dialógica tais crises podem ser abordadas, e mudanças profundas no tecido social podem se tornar a principal preocupação do curso. . Como defendo, um bom trabalho de pesquisa ou de ensino em crítica literária, ecofeminista ou não, não depende simplesmente de quanto se vá além do New Criticism, como sugere Tassoni, mas, sim, de uma discussão mais complexa que a preocupação com a pedagogia, no artigo em questão, ainda que válida, encobre. São duas as minhas questões: qual é a noção de literatura que se tem em conta e quais os princípios teórico-metodológicos de que se lança mão ao tomá-la como objeto de estudo?

Diante dessas duas questões, que considero incontornáveis, é preciso investigar o que teria mudado no campo do ecofeminismo desde que Tassoni relata sua experiência, no final da década de 1990. Trata-se de um percurso que seguiremos a partir daqui e que possibilitará uma visão mais orgânica dos desafios impostos pelo ecofeminismo a professores e/ou críticos de literatura nos dias de hoje.

Ecofeminismo, militância e a noção de “transformação”

Em sua introdução a Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy, livro de 1998 em que foi publicado o artigo há pouco discutido, Greta Gaard e Patrick D. Murphy lançam luz sobre a perspectiva pela qual Tassoni aborda o ecofeminismo, ressaltando que o pensamento ecofeminista se forma inicialmente no campo da militância de mulheres por mudanças sociais, constituindo uma pluralidade de vozes articuladas à prática social. Essa postura, por sua vez, contrasta com a posição abertamente defensiva de Tassoni, ainda que Gaard e Murphy considerem a possibilidade de se estar aberto ou não às crenças ecofeministas para que o diálogo aconteça:

Ecofeminism is a practical movement for social change arising out of the struggles of women to sustain themselves, their families, and their communities. These struggles are waged against the “maldevelopment” and environmental degradation caused by patriarchal societies, multinational corporations, and global capitalism. They are waged for environmental balance, heterarchical and matrifocal societies, the continuance of indigenous cultures, and economic values and programs based on subsistence and sustainability. The foundation and ground of the ecofeminism’s existence, then, consists of both resistance and vision, critiques, and heuristics. Ecofeminism is not a single master theory and its practitioners have different articulations of their social practice. For the most part, those who set out to articulate its philosophy and worldview do so in the belief that such theorizing will assist specific movements, actions, and practices. Such theorizing will do so through increasing the self-consciousness of its participants and representing its beliefs to those who are open to it (GAARD; MURPHY, 1998GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press, 1998., p. 2)13 13 Tradução: O ecofeminismo é um movimento prático de mudança social decorrente das lutas das mulheres para sustentar a si mesmas, suas famílias e suas comunidades. Essas lutas são travadas contra o “mau desenvolvimento” e a degradação ambiental causada por sociedades patriarcais, corporações multinacionais e capitalismo global. Elas são travadas em nome do equilíbrio ambiental, das sociedades heterárquicas e matrifocais, da continuidade das culturas indígenas, dos valores econômicos e dos programas baseados na subsistência e sustentabilidade. A fundação e o fundamento da existência do ecofeminismo consistem, assim, tanto em resistência quanto em visão, crítica e heurística. O ecofeminismo não é uma única teoria mestra e seus praticantes possuem diferentes articulações de sua prática social. Na maioria das vezes, aqueles que se propõem articular sua filosofia e visão de mundo o fazem na crença de que tal teorização auxiliará movimentos, ações e práticas específicas. Tal teorização o fará aumentando a autoconsciência de seus participantes e representando suas crenças para aqueles que estão abertos a ela. .

Gaard e Murphy redimensionam, então, sua definição de ecofeminismo por meio das considerações de Irene Diamond e Gloria Feman Orenstein na introdução a Reweaving the world, diante das quais a urgência em extrapolar os limites da literatura expressa por Tassoni toma outras dimensões:

Ecofeminist politics does not stop short at the phase of dismantling the androcentric and anthropocentric biases of Western civilization. Once the critique of such dualities as culture and nature, reason, and emotion, human and animal has been posed, ecofeminism seeks to reweave new stories that acknowledge and value the biological and cultural diversity that sustains life. These new stories honor, rather than fear, women’s biological particularity while simultaneously affirming women as subjects and makers of history. This understanding that biological particularity need not be antithetical to historical agency is crucial to the transformation of feminism (DIAMOND; ORENSTEIN, 1990, p. vii apudGAARD; MURPHY, 1998GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press, 1998., p. 2)14 14 Tradução: A política ecofeminista não se limita a desmantelar os preconceitos androcêntricos e antropocêntricos da civilização ocidental. Uma vez colocada a crítica de dualidades como cultura e natureza, razão e emoção, humano e animal, o ecofeminismo busca refazer novas histórias que reconheçam e valorizem a diversidade biológica e cultural que sustenta a vida. Essas novas histórias honram, em vez de temer, a particularidade biológica das mulheres, ao mesmo tempo em que afirmam as mulheres como sujeitos e fazedoras da história. Esse entendimento de que a particularidade biológica não precisa ser antitética à agência histórica é crucial para a transformação do feminismo. .

Toca-se, assim, em uma questão mais complexa quando se trata de literatura ecofeminista e, no caso da discussão que norteia o presente artigo, de uma crítica literária ecofeminista: o conceito de “transformação”, central para se entender o caráter eminentemente ativista do ecofeminismo, particularmente nos anos de 1990: “Transformation may very well be the single term to which all adherents of ecofeminism would assent” (GAARD; MURPHY, 1998GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press, 1998., p. 2)15 15 Tradução: Transformação pode muito bem ser o único termo com o qual todos os adeptos do ecofeminismo concordariam. . É necessário indagar, nesse sentido, qual seria a pertinência do conceito de “transformação” quando se tem a literatura como objeto de estudo, o que leva a cogitar a possibilidade de que a falta de diálogo a que se refere Tassoni teria mais a ver com elementos de alguma forma percebidos - consciente ou inconscientemente - como incongruências entre o campo da literatura e o da prática ecofeminista, mais que propriamente com uma atitude intransigente ou refratária dos adeptos do ecofeminismo.

Apoiados em “Power, authority, and mystery: ecofeminism and earth-based spirituality”, de Starhawk, Gaard e Murphy observam que, segundo a autora, “ecofeminism challenges all relations of domination. Its goal is not just to change who wields the power, but to transform the structure of power itself” (STARHAWK, 1990, p.77 apudGAARD; MURPHY, 1998GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press, 1998., p. 3)16 16 Tradução: O ecofeminismo desafia todas as relações de dominação. Seu objetivo não é apenas mudar quem detém o poder, mas transformar a própria estrutura do poder. . Para abordar essa tarefa, os ativistas teriam que perceber que “environmental issues cannot be intelligently approached without the perspectives of women, the poor, and those who come from other parts of the globe, as well as those of all races and cultural backgrounds” (STARHAWK, 1990, p. 83 apudGAARD; MURPHY, 1998GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press, 1998., p. 3)17 17 Tradução: as questões ambientais não podem ser abordadas de forma inteligente sem as perspectivas das mulheres, dos pobres e daqueles que vêm de outras partes do globo, bem como de todas as raças e origens culturais. . Nesse sentido, o ecofeminismo seria baseado não somente no reconhecimento das conexões entre a exploração da natureza e a opressão das mulheres em sociedades patriarcais, “It is also based on the recognition that these two forms of domination are bound up with class exploitation, racism, colonialism, and neocolonialism” (GAARD; MURPHY, 1998GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press, 1998., p. 3)18 18 Tradução: Baseia-se também no reconhecimento de que essas duas formas de dominação estão ligadas à exploração de classe, ao racismo, ao colonialismo e ao neocolonialismo. .

Como explicam os autores, pessoas de dentro e de fora dos estudos ecofeministas têm criticado o ecofeminismo “because it refrains from consolidating itself around a single ideological orientation”19 19 Tradução: porque se abstém de se consolidar em torno de uma única orientação ideológica. , sendo Lee Quinby um dos que veriam tal “philosophical plurality and ongoing theoretical dialogue” como um dos pontos fortes do ecofeminismo. (GAARD; MURPHY, 1998GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press, 1998., p. 4)20 20 Tradução: pluralidade filosófica e diáologo teórico permanente. . Como ressaltam Gaard e Murphy, Quinby, em “Ecofeminism and the politics of resistance”, argumenta

Against these calls for coherence, comprehensiveness, and formalized agendas and cite ecofeminism as an example of theory and practice that has combated ecological destruction and patriarchal domination without succumbing to the totalizing impulses of masculinist politics. Ecofeminism as a politics of resistance operates against power understood, as Foucault puts it, as a “multiplicity of forces relations”, decentered and continually “produced from one moment to the next”. Against such power, coherence in theory and centralization of practice make a social movement irrelevant or, worse, vulnerable, or - even more dangerous - participatory with forces of domination (QUINBY, 1990, p. 123 apudGAARD; MURPHY, 1998GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press, 1998., p. 4)21 21 Tradução: Contra esses apelos por coerência, abrangência e agendas formalizadas, cito o ecofeminismo como um exemplo de teoria e prática que combateu a destruição ecológica e a dominação patriarcal sem sucumbir aos impulsos totalizantes da política masculinista. O ecofeminismo como política de resistência opera contra o poder entendido, segundo Foucault, como uma “multiplicidade de relações de forças”, descentradas e continuamente “produzidas de um momento para o outro”. Contra tal poder, a coerência na teoria e a centralização da prática tornam um movimento social irrelevante ou, pior, vulnerável, ou - ainda mais perigoso - participativo com forças de dominação. .

Ainda com Quinby, o ecofeminismo conceberia teoria no modo interrogativo, em oposição a modo prescritivo: “[...] that is, it asks questions that pose dificulties, even, perhaps specially, for one’s own practices. In fact, the we of ecofeminism is most formidable in its opposition to power when it challenges its own assumptions” (QUINBY, 1990, p. 123 apudGAARD; MURPHY, 1998GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press, 1998., p. 4)22 22 Tradução: [...] ou seja, faz perguntas que colocam dificuldades, e talvez, especialmente, para as próprias práticas. Na verdade, o nós do ecofeminismo é mais formidável em sua oposição ao poder quando desafia suas próprias suposições. .

A importância em não sucumbir aos impulsos totalizantes de uma política “masculinista” não significa, como penso, que uma discussão sobre o que é literatura ou sobre qual é a literatura a ser analisada de uma perspectiva ecofeminista significa necessariamente limitar ou então simplificar demais o trabalho do investigador. Não defendo aqui uma noção fechada ou totalizante de literatura ou de cultura, tampouco levanto a bandeira do New Criticism, simplesmente atento para a necessidade de explicitar que noção é essa e quais os instrumentos de análise por ela requeridos, o que procurarei deixar mais claro adiante.

Em relação a essa questão, Gaard e Murphy observam que, ao menos nos Estados Unidos, em termos de discurso acadêmico e de atenção nas universidades, o ecofeminismo era inicialmente discutido - e quase exclusivamente - em departamentos de filosofia e de women’s studies, às margens dos estudos ambientais, área esta em que qualquer incursão feita pelo feminismo era quase sempre aliada à ecologia, como seria o caso dos trabalhos de Sandra Harding, Evelyn Fox Keller e Donna Haraway (GAARD; MURPHY, 1998GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press, 1998., p. 5). Nos anos mais recentes, lembrando aqui que a introdução de que se trata foi publicada no final de 1990, o ecofeminismo teria começado a aparecer em outros departamentos, como, por exemplo,

[...] criminology, in conjunction with environmental justice in terms of both racial and gender oppression; political science, in terms of social movements and community politics; cultural studies, almost exclusively to the degree to which it engages postcolonial considerations; and English departments, in terms of women’s and environmental literatures (GAARD; MURPHY, 1998GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press, 1998., p. 5)23 23 Tradução: [...] criminologia, em conjunto com a justiça ambiental em termos de opressão racial e de gênero; ciência política, em termos de movimentos sociais e políticas comunitárias; estudos culturais, quase exclusivamente na medida em que envolve considerações pós-coloniais; e departamentos de inglês, em termos de literatura feminina e ambiental. .

De acordo com Gaard e Murphy, somente a partir de 1990 é que teria havido uma erupção de análise literária ecofeminista, praticada sobretudo por jovens acadêmicos graduados nesse mesmo período e estudantes de doutorado que aproveitavam a riqueza de materiais novos. Uma tarefa que o ecofeminismo teria cumprido nas três décadas anteriores (referindo-se a 1995-1997) foi, segundo os autores, a revelação da gama e da quantidade de “women’s writing that had been excluded from serious literary study and ignored in canon formation” (GAARD; MURPHY, 1998GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press, 1998., p. 5)24 24 Tradução: escrita de mulheres que havia sido excluída dos estudos literários sérios e ignorada na formação do cânone. . Isso significa que a análise literária ecofeminista, num primeiro momento, preocupou-se diretamente com quem escrevia os textos e com os mecanismos discriminatórios do cânon, mais que propriamente com que tipo de literatura deveria ou poderia ser o escopo de uma suposta crítica literária ecofeminista. Gaard e Murphy sugerem ainda que o tipo de literatura inicialmente percebido como objeto dessa crítica literária ecofeminista era a chamada “literatura ambiental”, não ficando claro se de caráter ficcional ou não:

In the 1990s ecofeminism is finally making itself felt in literary studies. Critics are beginning to make the insights of ecofeminism [as] a component of literary criticism. They also are discovering a wide array of environmental literature by women being written at the same time as ecofeminist philosophy and criticism is being developed (GAARD; MURPHY, 1998GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press, 1998., p. 5)25 25 Tradução: Na década de 1990, o ecofeminismo está finalmente se fazendo sentir nos estudos literários. Os críticos estão começando a fazer dos insights do ecofeminismo um componente da crítica literária. Eles também estão descobrindo uma ampla gama de literatura ambiental escrita por mulheres, escrita ao mesmo tempo em que a filosofia ecofeminista e a crítica estão sendo desenvolvidas. .

Como acreditam Gaard e Murphy, a maior contribuição do ecofeminismo para a crítica literária foi redimensionar o conceito de “outro”, até então definido pela psicanálise e pela crítica feminista, de uma perspectiva que alia Ecologia e Feminismo. Da primeira, viriam a noção de “outro”, repensado pela fundamentação no ser físico, e também o conceito de inter-relação. Quanto ao segundo, exigiria o reconhecimento masculino do “outro” como não apenas diferente, mas também de status ontológico igual:

But the “other” must be rethought through grounding it in physical being. One aspect of such grounding is to reject the notion of absolute difference and the binary construct of inside and outside. The discipline of ecology challenges any such dichotomy. Ecology is not the study of the “external” environment we enter - some big outside that we go to. Ecology is a study of interrelationship, with its bedrock being the recognition of the distinction between things-in-themselves and things-for-us. The latter entities result from intervention, manipulation, and transformation. Any entity that has been rendered as a thing for human use began its existence as an entity-in-itself. And, at least in the case of other sentient beings, as an entity-for-itself, since the impetus of any species is to survive and reproduce. Feminism demands male recognition of the “other” as not only different but also of equal ontological status. Such an ontology would indicate the need to view the self/other distinction as one of relative difference on the basis of heterarchy rather than hierarchy.” (GAARD; MURPHY, 1998GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press, 1998., p. 5-6 - grifo dos autores)26 26 Tradução: Mas o “outro” deve ser repensado através da fundamentação no ser físico. Um aspecto dessa fundamentação é rejeitar a noção de diferença absoluta e a construção binária de dentro e fora. A disciplina da ecologia desafia tal dicotomia. A ecologia não é o estudo do ambiente “externo” em que entramos - um grande exterior para o qual vamos. A ecologia é um estudo de inter-relação, tendo como fundamento o reconhecimento da distinção entre as coisas-em-si e as coisas-para-nós. Essas últimas resultam de intervenção, manipulação e transformação. Qualquer entidade que se tornou uma coisa para uso humano começou sua existência como uma entidade-em-si. E, pelo menos no caso de outros seres sencientes, como uma entidade-para-si, já que o ímpeto de qualquer espécie é sobreviver e se reproduzir. O feminismo exige o reconhecimento masculino do “outro” como não apenas diferente, mas também de status ontológico igual. Tal ontologia indicaria a necessidade de ver a distinção eu/outro como uma diferença relativa com base na heterarquia, ao invés da hierarquia. .

Redimensionar o conceito de other teria sido apenas um primeiro passo, assim como seria igualmente essencial repensar a relação self-other para romper com as categorias estáticas que definem “natureza” e “indivíduos”. Uma análise ecofeminista forneceria uma explicação para o fato de que historicamente women’s writing e environmental writing têm sido marginalizados, além de uma orientação filosófica para o desenvolvimento de uma teoria literária ecofeminista a guiar novas práticas (GAARD; MURPHY, 1998GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press, 1998., p. 6).

Para essa mesma direção apontam, segundo Gaard e Murphy, as considerações de Donna Haraway sobre a noção de mundo como sujeito ativo, que teria aberto espaço para “possibilidades inquietantes”, inquietação essa que se estenderia aos estudos literários, traduzindo-se no questionamento do cânon e na tradição masculina de nature writing, bem como na promoção de uma environmental literature by women (HARAWAY, 1991, p. 199 apudGAARD; MURPHY, 1998GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press, 1998., p. 7)27 27 A expressão nature writing pode ser traduzida como escrita da/sobre a natureza, enquanto environmental literature by women pode ser entendida como literatura ambiental escrita por mulheres. .

Pensando especificamente na interseção entre ecofeminismo e literatura, Gaard e Murphy consideram que há vários limites ainda a serem ultrapassados. Acreditam que a crítica literária ecofeminista não se deve limitar a determinar a porcentagem de conteúdo ecofeminista nos textos, o que seria arrogante e, na maioria dos casos, anacrônico. Colocam-se várias questões, entre as quais se a crítica literária ecofeminista teria algo de vital a oferecer à crítica literária:

Instead, it seemed ecofeminist literary criticism would involve reading literary texts through the lens of ecofeminist theory and practice and asking questions: What previously unnoticed elements of a literary text are made visible, or even foregrounded, when one reads from an ecofeminist perspective? Can this perspective tell literary critics anything new about a text in terms of the traditional elements of style and structure, metaphor and narrative, form and content? How might an ecofeminist perspective enhance explorations of connections and differences among “characters” in a text - between humans and animals, between culture and nature, and across human differences of race, class, gender, and sexual orientation - connections and differences that affect our relationships with nature and with each other? How could this perspective be applied to classroom teaching situations? And finally, Do we really need to do this? That is, could literary criticism - and its newest development, ecocriticism -get along without an ecofeminist perspective, or does ecofeminist literary criticism have something vital to offer? (GAARD; MURPHY, 1998GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press, 1998., p. 7)28 28 Tradução: Em vez disso, parecia que a crítica literária ecofeminista envolveria a leitura de textos literários através das lentes da teoria e prática ecofeministas, trazendo questões: que elementos anteriormente despercebidos de um texto literário se tornam visíveis, ou mesmo colocados em primeiro plano, quando alguém lê de uma perspectiva ecofeminista? Essa perspectiva pode dizer aos críticos literários algo novo sobre um texto em termos dos elementos tradicionais de estilo e estrutura, metáfora e narrativa, forma e conteúdo? Como uma perspectiva ecofeminista pode melhorar as explorações de conexões e diferenças entre “personagens” em um texto - entre humanos e animais, entre cultura e natureza, e através das diferenças humanas de raça, classe, gênero e orientação sexual - conexões e diferenças que afetam nossas relações com a natureza e uns com os outros? Como essa perspectiva poderia ser aplicada a situações de ensino em sala de aula? E, finalmente, realmente precisamos fazer isso? Isto é, poderia a crítica literária - e seu mais novo desenvolvimento, a ecocrítica - passar sem uma perspectiva ecofeminista, ou a crítica literária ecofeminista tem algo vital a oferecer? .

Tais questões suscitam outras, sobretudo quando se tem em conta, como acompanharemos a seguir, o contexto atual dos estudos ecofeministas. Acredito já não ser mais necessário reduzir as questões concernentes à crítica literária ao mais elementar para que se possam vislumbrar as contribuições do ecofeminismo, como acontece nas considerações de Gaard e Murphy, e também no caso de Tassoni. Como penso, explorar as possibilidades da crítica literária de um modo menos conservador e ampliar o debate sobre que materiais podem constituir seu objeto de estudo são atitudes necessárias para reconhecer as contribuições de uma crítica literária ecofeminista aos estudos literários (e vice-versa). Diferentemente de Gaard e Murphy, não acredito que a crítica literária ecofeminista tenha algo “vital” a oferecer aos estudos de literatura, ao menos no sentido universal ou globalizante do termo; da mesma forma que penso não fazer sentido pressupor a existência de algo como “conteúdo ecofeminista” a ser identificado nos textos, ainda que o objetivo vá muito além de simplesmente “calcular a porcentagem” desse conteúdo.

Ecofeminismo e literatura, duas décadas mais tarde

Aproximadamente duas décadas mais tarde, acompanhamos as considerações do mesmo Patrick D. Murphy sobre as relações entre ecofeminismo e literatura, desta vez na introdução a The Routledge handbook of ecofeminism and literature, publicado recentemente, em 2022. É inevitável questionar o que teria mudado (ou não) desde o final dos anos de 1990, contexto que vínhamos acompanhando até então.

Além de reunir os principais tópicos e questões colocados pela crítica literária ecofeminista nos nossos tempos, incluindo aqueles relativos a períodos e gêneros literários, chama a atenção o fato de o Handbook apresentar uma série de perspectivas e exemplos de literatura e crítica ecofeministas em mais de vinte línguas e regiões diferentes. A uma só vez Murphy aponta para o reconhecimento do valor de uma teoria e uma análise ecofeministas no ambiente acadêmico em vários países do mundo, como também para a relutância em reconhecer esse mesmo valor em certos contextos. Suas expectativas, como faz questão de reforçar, são as de um futuro promissor (MURPHY, 2022MURPHY, Patrick D. The Routledge handbook of ecofeminism and literature. Oxfordshire: Routledge, 2022., p. 1).

Acreditando que os capítulos que compõem o Handbook apresentam a discussão até então mais abrangente sobre ecofeminismo e literatura, Murphy sugere que, com o passar dos anos, a discussão teria recaído também no tipo de literatura a ser objeto de uma crítica ecofeminista:

Throughout a sophisticated treatment of ecofeminist and other relevant theories are presented while also providing numerous and diverse literary examples. These examples include praiseworthy ecofeminist texts drawn from fiction, literary nonfiction, and poetry. They also include works the shortcomings of which are exposed through ecofeminist critique (MURPHY, 2022MURPHY, Patrick D. The Routledge handbook of ecofeminism and literature. Oxfordshire: Routledge, 2022., p. 14)29 29 Tradução: Ao longo desse período, um tratamento sofisticado do ecofeminismo e outras teorias relevantes são apresentados, além de fornecer numerosos e diversos exemplos literários. Esses exemplos incluem textos ecofeministas louváveis ​​extraídos da ficção, da não-ficção e da poesia. Eles também incluem obras cujas deficiências são expostas por meio da crítica ecofeminista. .

Como a expressão other relevant theories sugere, a transdisciplinaridade parece ter se tornado um caminho percebido como mais viável ou produtivo para a crítica ecofeminista:

In some cases, the integration of other theoretical orientations will enrich applied ecofeminist criticism. In other cases, bringing ecofeminist analysis into other disciplinary and transdisciplinary areas will provide new insights and explanations (MURPHY, 2022MURPHY, Patrick D. The Routledge handbook of ecofeminism and literature. Oxfordshire: Routledge, 2022., p. 8)30 30 Tradução: Em alguns casos, a integração de outras orientações teóricas enriquecerá a crítica ecofeminista aplicada. Por vezes, trazer a análise ecofeminista para outras áreas disciplinares e transdisciplinares fornecerá novos insights e explicações. .

Entre os artigos publicados no Handbook introduzido por Murphy, merecerá atenção especial “Cultural studies and ecofeminist literature”, de Nicole Anae. São várias as razões para tanto. Em primeiro lugar, Anae concebe a crítica literária ecofeminista como transitando entre os terrenos da literatura e dos estudos culturais, campo este já estabelecido no contexto acadêmico. Mais que isso, como um campo de estudos essencialmente transdisciplinar.

A autora define, assim, “estudos culturais”, “ecofeminismo”, “literatura ecofeminista” e, mais importante para a discussão que se acompanha no presente artigo, o próprio conceito de “literatura”. Não se trata aqui de discutir propriamente o nível de profundidade a que tais definições teriam chegado, mas, sim, de reconhecer a imprescindibilidade de que sejam elaboradas, ainda que como tentativa.

De acordo com Anae, apoiada em Gilbert B. Rodman, “estudos culturais” não constitui propriamente um método de pesquisa, mesmo porque “one of its central characteristics is ‘its relentless self-reflexivity about the nature of its own practice … [and] Done properly, cultural studies tries not to take anything for granted, including its own parameters’” (RODMAN, 2017, p. 1 apudANAE, 2022ANAE, Nicole. Cultural studies and ecofeminist literature. In: VAKOCH, Douglas A. The Routledge handbook of ecofeminism and literature. New York: Routledge, 2022. p. 290-300., p. 290)31 31 Tradução: “uma de suas características centrais é ‘a auto-reflexividade implacável sobre a natureza de sua própria prática … [e], desenvolvido de forma correta, estudos culturais tenta não tomar nada como garantido, incluindo seus próprios parâmetros’”. . A autora observa que, apesar de não se caracterizar como um método de pesquisa em si mesmo, Ziauddin Sardar, em Introducing cultural studies, identifica cinco características dos estudos culturais, “in arguing that certain practices have emerged in the evolution of cultural studies historically” (SARDAR, 2010, p. 9 apud ANAE, 2022, p. 290)32 32 Tradução: “ao argumentar que certas práticas surgiram na evolução dos estudos culturais historicamente” . Tais práticas seriam:

  1. 1. Cultural studies aims to examine its subject matter in terms of cultural practices and their relation to power. Its constant goal is to expose power relationships and examine how these relationships influence and shape cultural practices.

  2. 2. Cultural studies is not simply the study of culture as though it was a discrete entity divorced from its social or political context. Its objective is to understand the culture in all its complex forms and to analyze the social and political context within which it manifests itself.

  3. 3. Culture in cultural studies always performs two functions: it is both the object of study and the location of political criticism and action. Cultural studies aims to be both an intellectual and a pragmatic enterprise.

  4. 4. Cultural studies attempts to expose and reconcile the division of knowledge, to overcome the split between tacit (i.e., intuitive knowledge based on local cultures) and objective (so-called universal) forms of knowledge. It assumes a common identity and common interest between the knower and the known, between the observer and what is being observed.

  5. 5. Cultural studies is committed to a moral evaluation of modern society and a radical line of political action. The tradition of cultural studies is not one of value-free scholarship, but one committed to social reconstruction by critical political involvement. Thus, cultural studies aims to understand and change the structures of dominance everywhere, but in industrial capitalist societies in particular (SARDAR, 2010, p. 9 apud ANAE, 2022, p. 290-1)33 33 Tradução: 1. Estudos culturais visa a examinar seu objeto de estudo em termos de práticas culturais e sua relação com o poder. Seu objetivo constante é expor as relações de poder e examinar como essas relações influenciam e moldam as práticas culturais. 2. Estudos culturais não é simplesmente o estudo da cultura como se fosse uma entidade discreta divorciada de seu contexto social ou político. Seu objetivo é compreender a cultura em todas as suas formas complexas e analisar o contexto social e político em que ela se manifesta. 3. A cultura nos estudos culturais sempre desempenha duas funções: é tanto o objeto de estudo quanto o local da crítica e da ação política. Estudos culturais pretende ser um empreendimento intelectual e pragmático. 4. Estudos culturais tenta expor e reconciliar a divisão do conhecimento para superar a divisão entre formas tácitas (ou seja, conhecimento intuitivo baseado em culturas locais) e objetivas (chamadas universais). Assume uma identidade comum e um interesse comum entre o conhecedor e o conhecido, entre o observador e o que está sendo observado. 5. Estudos culturais compromete-se com uma avaliação moral da sociedade moderna e uma linha radical de ação política. A tradição dos estudos culturais não é de estudos livres de valores, mas comprometida com a reconstrução social por meio do envolvimento político crítico. Assim, estudos culturais visa a entender e mudar as estruturas de dominação em todos os lugares, particularmente nas sociedades capitalistas industriais. .

Como bem atenta Anae, a tipologia apresentada por Sardar claramente identifica uma série de práticas historicamente localizadas bem próximas ao pós-modernismo, seguindo as tendências da era modernista, como também aos movimentos de crítica literária (ANAE, 2022ANAE, Nicole. Cultural studies and ecofeminist literature. In: VAKOCH, Douglas A. The Routledge handbook of ecofeminism and literature. New York: Routledge, 2022. p. 290-300., p. 291). Como explica a autora, apoiada em Ann Gray, à medida que os interesses em teoria literária começaram a desenvolver uma variedade de perspectivas teóricas e filosóficas por meio das quais entender e teorizar sobre cultura “- Poststructuralism, New Historicism, and Postcolonialism, among others -, feminist work in cultural studies sought to understand the ‘structure, culture, biography’ dynamic in relation to the unseen, domestic worlds of women” (GRAY, 2003, p. 43 apudANAE, 2022ANAE, Nicole. Cultural studies and ecofeminist literature. In: VAKOCH, Douglas A. The Routledge handbook of ecofeminism and literature. New York: Routledge, 2022. p. 290-300., p. 291)34 34 Tradução: - Pós-estruturalismo, Novo Historicismo e Pós-colonialismo, entre outros -, o trabalho feminista em estudos culturais procurou entender a dinâmica “estrutura, cultura, biografia” em relação aos mundos domésticos e invisíveis das mulheres. .

Diferentemente de Gaard e Murphy, que reforçam, como se acompanhou, a estreita ligação entre ecofeminismo e ativismo social, Anae volta o olhar para ecofeminismo como “an evolving interdisciplinary paradigm within literary and cultural studies originating from varying critical methodologies” (ANAE, 2022ANAE, Nicole. Cultural studies and ecofeminist literature. In: VAKOCH, Douglas A. The Routledge handbook of ecofeminism and literature. New York: Routledge, 2022. p. 290-300., p. 291)35 35 Tradução: “um paradigma interdisciplinar em evolução dentro dos estudos literários e culturais originário de várias metodologias críticas”. . Tal pluralidade não impediria que se reconhecesse uma temática característica do ecofeminismo, espécie de ponto de união, como acredita Anae, citando Molyneux e Steinberg:

Ecofeminism is thematically characteristic: “a critique of patriarchal science, a concern with the degradation of ‘nature’/the environment and the making of links between these two and the oppression of women” [...]. These themes unite ecofeminists in the conviction that there exist crucial linkages between the oppression, exploitation and subjugation of both women and the natural environment (MOLYNEUX; STEINBERG, 1995 apudANAE, 2022ANAE, Nicole. Cultural studies and ecofeminist literature. In: VAKOCH, Douglas A. The Routledge handbook of ecofeminism and literature. New York: Routledge, 2022. p. 290-300., p. 291)36 36 Tradução: O ecofeminismo é tematicamente característico: “uma crítica à ciência patriarcal, uma preocupação com a degradação da ‘natureza’/meio ambiente e a criação de vínculos entre esses dois e a opressão às mulheres” [...]. Esses temas unem os ecofeministas na convicção de que existem vínculos cruciais entre a opressão, a exploração e a subjugação das mulheres e do ambiente natural. .

De uma perspectiva complementar, Anae acredita que, inerente às perspectivas e convicções do ecofeminismo - e, por extensão da literatura ecofeminista - se encontra uma corrente analítica que questiona os movimentos culturais que exercem influência e dão origem a perspectivas alternativas do mundo, “that is, approaches to viewing methods or epistemologies which emphasize the importance of ‘critique’” (ANAE, 2022ANAE, Nicole. Cultural studies and ecofeminist literature. In: VAKOCH, Douglas A. The Routledge handbook of ecofeminism and literature. New York: Routledge, 2022. p. 290-300., p. 292)37 37 Tradução: “isto é, abordagens para métodos ou epistemologias que enfatizem a importância da ‘crítica’”. - no sentido em que Johnson apreende o termo -, para quem os estudos culturais constituem antes de mais nada um processo para produzir conhecimento útil: “‘From this point of view cultural studies is a process, a kind of alchemy for producing useful knowledge; codify it and you might halt its reactions’” (JOHNSON, 1986-1987, p. 38 apudANAE, 2022ANAE, Nicole. Cultural studies and ecofeminist literature. In: VAKOCH, Douglas A. The Routledge handbook of ecofeminism and literature. New York: Routledge, 2022. p. 290-300., p. 292)38 38 Tradução: “'Desse ponto de vista, estudos culturais é um processo, uma espécie de alquimia para produzir conhecimento útil; codifique-o e você pode interromper suas reações'”. .

Para Anae, interseções entre a literatura ecofeminista e a importância da “critique”, no sentido johnsiano do termo, existiriam fundamentalmente, e não somente porque, na história dos estudos culturais, os primeiros encontros se deram com a crítica literária (ANAE, 2022ANAE, Nicole. Cultural studies and ecofeminist literature. In: VAKOCH, Douglas A. The Routledge handbook of ecofeminism and literature. New York: Routledge, 2022. p. 290-300., p. 291-2); mas também, de acordo com Flanagan, “ecofeminist literature presents rich possibilities ‘to effect social, political, and environmental changes that reach beyond the boundaries of geography, gender, or genre’” (FLANAGAN, 2009, p. 45 apudANAE, 2022ANAE, Nicole. Cultural studies and ecofeminist literature. In: VAKOCH, Douglas A. The Routledge handbook of ecofeminism and literature. New York: Routledge, 2022. p. 290-300., p. 291-2)39 39 Tradução: “A literatura ecofeminista apresenta amplas possibilidades para ‘efetuar mudanças sociais, políticas e ambientais que vão além das fronteiras geográficas, de gênero ou de genre’”. .

Nesse ponto do seu artigo, Anae trata da dimensão “transformadora” que a literatura ecofeminista pode ter, questão essencial quando se tem em conta o ecofeminismo, em particular a crítica literária ecofeminista. Só não fica claro em que medida essa dimensão transformadora poderia ser atribuída a outros tipos de literatura que não a necessariamente reconhecida como ecofeminista; tampouco é evidente se Anae considera esta última o objeto “por excelência” de uma crítica literária ecofeminista.

Tendo definido a literatura ecofeminista em sua relação com a “critique”, Anae parte para a difícil tarefa de definir o próprio conceito de literatura, o que faz de uma maneira que considero um tanto desconcertante. Ciente do fato de que “attempting to define literature invariably raises more questions than it does answers” (ANAE, 2022ANAE, Nicole. Cultural studies and ecofeminist literature. In: VAKOCH, Douglas A. The Routledge handbook of ecofeminism and literature. New York: Routledge, 2022. p. 290-300., p. 292)40 40 Tradução: “tentar definir literatura invariavelmente produz mais questões que respostas”. , a autora apoia-se em Perrine e Bangura para apresentar uma definição por demais simplista, tendo-se em conta os propósitos do artigo em questão e o ano em que foi publicado, o que indiretamente reforça o fosso que existiria entre “literatura” e “literatura ecofeminista”, como se a noção de “critique” não se aplicasse à primeira. Em suas palavras,

In my approach to literature, I will present a discussion of cultural studies and ecofeminist literature in which the term “literature” accords with the basic definition argued by Laurence Perrine as “the principal forms of fiction, poetry, and drama” (PERRINE, 1993, p. v apudANAE, 2022ANAE, Nicole. Cultural studies and ecofeminist literature. In: VAKOCH, Douglas A. The Routledge handbook of ecofeminism and literature. New York: Routledge, 2022. p. 290-300., p. 292)41 41 Tradução: Em minha abordagem de literatura, apresentarei uma discussão sobre estudos culturais e literatura ecofeminista em que o termo “literatura” está de acordo com a definição básica defendida por Laurence Perrine como “as principais formas de ficção, poesia e drama”. .

Anae esclarece ainda que

in terms of genre identification, I approach “literature” from Saidu Bangura’s expansion of Perrine’s basic definition to include further detail. Bangura draws on Perrine’s Literature: Structure, Sound, and Sense (1993) to delineate Perrine’s phrase, ‘the principal forms of fiction,’ as ‘literature in the form of prose, especially short stories and novels, that describes imaginary events and people’; Perrine’s concept of poetry as “literary work in which special intensity is given to the expression of feelings and ideas by the use of distinctive style and rhythm,” and Perrine’s term drama as “a play for theater, radio, or television” (BANGURA, 2021, p. 43 apudANAE, 2022ANAE, Nicole. Cultural studies and ecofeminist literature. In: VAKOCH, Douglas A. The Routledge handbook of ecofeminism and literature. New York: Routledge, 2022. p. 290-300., p. 292)42 42 Tradução: [...] em termos de identificação de gênero, abordo “literatura” a partir da complementação feita por Saidu Bangura à definição básica de Perrine. Baseando-se em Literature, sound, and sense (1993), Bangura delineia (1) a noção defendida por Perrine de que “as principais formas de ficção” seriam “a literatura em forma de prosa, especialmente contos e romances, que descreve eventos e pessoas imaginárias”; (2) o conceito de poesia como “trabalho literário no qual intensidade especial é dada à expressão de sentimentos e ideias pelo uso de estilo e ritmo distintos” e (3) o termo “drama” como “peça para teatro, rádio ou televisão”. .

Anae relativiza sua definição, seguindo o exemplo do próprio Perrine (1993, p.v apudANAE, 2022ANAE, Nicole. Cultural studies and ecofeminist literature. In: VAKOCH, Douglas A. The Routledge handbook of ecofeminism and literature. New York: Routledge, 2022. p. 290-300., p. 292): “But of course, there are many other genres and subgenres of “literature” that reasonably fall under ‘the principal forms of fiction, poetry, and drama’”43 43 Tradução: “Mas é claro que existem muitos outros gêneros e subgêneros de “literatura” que se enquadram razoavelmente nas ‘principais formas de ficção, poesia e drama’”. . Como se nota, a definição proposta por Anae é relativamente simplificadora, contrastando com a concepção de literatura definida por Gregory Castle, à qual a autora em certa medida se apega, como se acompanhará logo adiante. Nas palavras deste último, a natureza da literatura e do literário está relacionada com como se lê, o que, por sua vez, está fundamentalmente ligado com as instituições sociais, culturais e políticas de uma certa época: “That some ways of reading have remained constant is less a function of historical continuity than of institutional memory” (CASTLE, 2007, p. 9 apudANAE, 2022ANAE, Nicole. Cultural studies and ecofeminist literature. In: VAKOCH, Douglas A. The Routledge handbook of ecofeminism and literature. New York: Routledge, 2022. p. 290-300., p. 292)44 44 Tradução: “Que algumas formas de leitura tenham permanecido constantes é menos uma função da continuidade histórica do que da memória institucional”. .

As limitações impostas pela definição de Anae são evidenciadas pelo próprio conteúdo de outros artigos que fazem parte do Handbook, levando-a a reconhecer que se tem tornado cada vez mais aparente “that there exist richly various possibilities within and beyond conventional understandings of ‘the principal forms of fiction, poetry, and drama’ […]. Among these are the nonfictional literary forms” (PERRINE, 1993, p. v apudANAE, 2022ANAE, Nicole. Cultural studies and ecofeminist literature. In: VAKOCH, Douglas A. The Routledge handbook of ecofeminism and literature. New York: Routledge, 2022. p. 290-300., p. 292)45 45 Tradução: “que existem várias possibilidades dentro e além dos entendimentos convencionais das ‘principais formas de ficção, poesia e drama’ [...]. Entre elas estão as formas literárias não ficcionais”. .

Ao se voltar para aquela que seria uma definição de crítica literária ecofeminista, Anae observa que essa não é estritamente análoga à teoria literária ecocrítica, mas, sim, compartilha, especifica e estende várias de suas preocupações centrais (ANAE, 2022ANAE, Nicole. Cultural studies and ecofeminist literature. In: VAKOCH, Douglas A. The Routledge handbook of ecofeminism and literature. New York: Routledge, 2022. p. 290-300., p. 293). Apoiada em Murphy, a autora define ecocrítica como o estudo de obras literárias com atenção especial para a representação das relações “among human beings and the rest of the ‘more-than-human’ world [which] has always been concerned with the agency of human beings and the need for rethinking social behaviors and actions” (MURPHY, 2010, p. 6 apudANAE, 2022ANAE, Nicole. Cultural studies and ecofeminist literature. In: VAKOCH, Douglas A. The Routledge handbook of ecofeminism and literature. New York: Routledge, 2022. p. 290-300., p. 293)46 46 Tradução: “entre os seres humanos e o resto do mundo ‘mais-que-humano’ [que] sempre se preocupou com a agência dos seres humanos e a necessidade de repensar comportamentos e ações sociais”. .

Apoiada em Gersdorf e Mayer, Anae defende que a ecocrítica - e, por extensão, a teoria literária ecocrítica e a crítica literária ecofeminista - está invariavelmente enraizada nos estudos culturais, mesmo porque aquela pode ser encarada como

a methodology that re-examines the history of ideologically, aesthetically, and ethically motivated conceptualizations of nature, of the function of its constructions and metaphorizations in literary and other cultural practices, and of the potential effect these discursive, imaginative constructions have on our bodies as well as our natural and cultural environments (GERSDORF; MAYER, 2006, p. 10 apudANAE, 2022ANAE, Nicole. Cultural studies and ecofeminist literature. In: VAKOCH, Douglas A. The Routledge handbook of ecofeminism and literature. New York: Routledge, 2022. p. 290-300., p. 293)47 47 Tradução: uma metodologia que reexamina a história das conceituações da natureza motivadas ideológica, estética e eticamente, da função de suas construções e metaforizações na literatura e em outras práticas culturais, e do efeito potencial que essas construções discursivas e imaginativas têm sobre nossos corpos, bem como nossos ambientes naturais e culturais. .

Com o propósito de situar literatura ecofeminista dentro e além dos estudos culturais, Anae sugere agora que se adaptem as cinco características dos estudos culturais identificadas por Ziauddin Sardar a abordagens para examinar a literatura de uma perspectiva ecofeminista, como se segue:

  1. 1. Ecofeminist literature explores and exposes “its subject matter in terms of cultural practices and their relation to power” in order to “expose power relationships and examine how these relationships influence and shape” environmental and cultural practices.

  2. 2. Ecofeminist literature seeks not simply to study culture “as though it was a discrete entity divorced from its social or political context” but rather “understand the culture in all its complex forms and to analyse the social and political context” structuring and influencing relations between women and environment.

  3. 3. Ecofeminist literature, like “[c]ulture in cultural studies always performs two functions: it is both the object of study and the location of political criticism and action.” Ecofeminist literature draws together “both an intellectual and a pragmatic enterprise.”

  4. 4. Ecofeminist literature attempts to represent, contest and interrogate “the division of knowledge, to overcome the split between tacit (i.e., intuitive knowledge about women’s experience/conditions and the natural environment based on local cultures) and objective (so-called universal) forms of knowledge.” Some ecofeminist literature assumes “a common identity and common interest between the knower and the known, between the observer and what is being observed.”

  5. 5. Ecofeminist literature often presents a “radical line of political action,” and thus aims to recognize and transform extant and autochthonal structures of authority, both ubiquitously and across industrial capitalist societies specifically. (ANAE, 2022ANAE, Nicole. Cultural studies and ecofeminist literature. In: VAKOCH, Douglas A. The Routledge handbook of ecofeminism and literature. New York: Routledge, 2022. p. 290-300., p. 293)48 48 Tradução: 1. A literatura ecofeminista explora e expõe “seu assunto em termos de práticas culturais e sua relação com o poder” para “expor as relações de poder e examinar como essas relações influenciam e moldam” as práticas ambientais e culturais. 2. A literatura ecofeminista busca não apenas estudar a cultura “como se fosse uma entidade discreta divorciada de seu contexto social ou político”, mas sim “compreender a cultura em todas as suas formas complexas e analisar o contexto social e político” estruturando e influenciando as relações entre a mulher e o ambiente. 3. A literatura ecofeminista, como “[c]ulture nos estudos culturais sempre desempenha duas funções: é tanto o objeto de estudo quanto o local da crítica e ação política”. A literatura ecofeminista reúne “um empreendimento intelectual e pragmático”. 4. A literatura ecofeminista tenta representar, contestar e interrogar “a divisão do conhecimento, para superar a divisão entre tácito (isto é, conhecimento intuitivo sobre a experiência/condições das mulheres e o ambiente natural baseado em culturas locais) e objetivas (chamadas universais) formas de conhecimento”. Alguma literatura ecofeminista assume “uma identidade comum e um interesse comum entre o conhecedor e o conhecido, entre o observador e o que está sendo observado”. 5. A literatura ecofeminista frequentemente apresenta uma “linha radical de ação política” e, portanto, visa a reconhecer e transformar estruturas de autoridade existentes e autóctones, tanto de forma onipresente quanto nas sociedades capitalistas industriais, especificamente. .

A conclusão de tal “adaptação” seria a de que a literatura ecofeminista é, a um só tempo, um modo de ler “akin to a literary theory of interpretation of select literary works in the interests of an ecofeminist critical aim”, como também “a critical creative practice the nature and functions of which appear contextualized against socio-historical backdrops and conditions” (ANAE, 2022ANAE, Nicole. Cultural studies and ecofeminist literature. In: VAKOCH, Douglas A. The Routledge handbook of ecofeminism and literature. New York: Routledge, 2022. p. 290-300., p. 293)49 49 Tradução: “semelhante a uma teoria literária de interpretação de obras literárias selecionadas no interesse de um objetivo crítico ecofeminista”, como também “uma prática criativa crítica cuja natureza e funções aparecem contextualizadas ante cenários e condições sócio-históricos”. . Como se explica, “On the one hand, ecofeminist literary theory relies on nonfiction for its literary examples, whereas ecofeminist literature can reveal itself in fictional, poetic, dramatic and creative nonfictional modes.” (ANAE, 2022ANAE, Nicole. Cultural studies and ecofeminist literature. In: VAKOCH, Douglas A. The Routledge handbook of ecofeminism and literature. New York: Routledge, 2022. p. 290-300., p. 293)50 50 Tradução: “Por um lado, a teoria literária ecofeminista se baseia na não-ficção para seus exemplos literários, enquanto a literatura ecofeminista pode se revelar em modos ficcionais, poéticos, dramáticos, assim como em modos criativos não ficcionais.” .

A partir desse ponto, Anae passa a examinar temas ecofeministas centrais em ecofeminist literary work por meio de metodologias que caracterizam várias teorias alinhadas com os estudos culturais, “specifically cultural materialism, and its intersectional relationships with material feminism, cultural feminism, cultural ecofeminism and postcolonial ecofeminism” (ANAE, 2022ANAE, Nicole. Cultural studies and ecofeminist literature. In: VAKOCH, Douglas A. The Routledge handbook of ecofeminism and literature. New York: Routledge, 2022. p. 290-300., p. 293-294)51 51 Tradução: “especificamente o materialismo cultural e suas relações interseccionais com o feminismo material, o feminismo cultural, o ecofeminismo cultural e o ecofeminismo pós-colonial”. . Ao final do seu artigo, quando apresenta suas conclusões, fica mais clara a razão por que decidira definir “literatura”. Não se trata, como teria sido necessário fazer, de propriamente discorrer sobre as implicações teórico-metodológicas intrínsecas a conceber literatura dentro e/ou fora dos estudos culturais; mas, na verdade, de lidar com a distinção ficção/não ficção no contexto de uma literatura ecofeminista.

Repensando as relações entre ecofeminismo, estudos culturais e estudos literários

No artigo “Estudos culturais e estudos literários”, publicado em 2006, Maria da Glória Bordini permite que se percebam a complexidade e as implicações da discussão - de certa forma inarticulada - proposta por Anae. Em parte, tal complexidade é realçada ao se tratar dos conceitos de “cultura” e “literatura” de uma perspectiva histórica, capturando a ascensão dos estudos culturais na pós-modernidade.

Como explica Bordini, o conceito monolítico de cultura, que abarcava apenas as mais altas realizações do espírito”, e também o de “cultura”, que “só se aplicava às obras de linguagem consagradas pelo tempo e incluídas nos cânones pelos críticos e historiadores literários”, sofreram profundas modificações (BORDINI, 2006BORDINI, Maria da Glória. Estudos culturais e estudos literários. Letras de Hoje, v. 41, n. 3, p. 11-22, 2006. , p. 11). Interessam-me, particularmente, as seguintes implicações desse processo de transformação:

A existência de múltiplas culturas, distribuídas em tribos e facções, regiões, cidades e bairros, ou até na esquina ou no condomínio, cada uma com sua especificidade e necessidades, determina uma alteração radical no campo dos estudos literários. A proliferação de manifestações lingüísticas que aspiram ao estado de arte verbal, lado a lado e rivalizando com formas expressivas não verbais ou semiverbais, também desdobrando-se e espalhando-se numa velocidade eletrônica, põe em causa a delimitação do objeto das teorias literárias, confundido cada vez mais com outros produtos culturais que reivindicam semelhantes poderes de significação estética. […] Tendo isso em mente, a pertinência de uma abordagem dos estudos literários que não se detenha nos recursos formais e sim que acentue as relações que o texto pode estabelecer com a vida social parece hoje muito maior do que os socialistas sonharam. Não é que se deva ignorar a função estética dos procedimentos formais, pois na verdade é deles que a potência emancipatória do texto literário deriva, como ensina Hans Robert Jauss. (BORDINI, 2006BORDINI, Maria da Glória. Estudos culturais e estudos literários. Letras de Hoje, v. 41, n. 3, p. 11-22, 2006. , p. 12, grifo nosso).

Em suas considerações, Bordini lança luz sobre a visão que atravessa a postura crítica de Tassoni, Gaard e Murphy, autores que acompanhamos ao longo do presente artigo, particularmente quando explica que os estudos culturais “nascem de uma insuficiência da teoria literária nos anos 50/60”, que, carregando a herança do Formalismo Russo e do New Criticism, preocupava-se “com a explicação imanente dos textos”, esquecendo “sua inserção sociocultural e a materialidade de seus processos de produção e recepção, em favor de uma essencialização universalista de suas formas e de seus sentidos” (BORDINI, 2006BORDINI, Maria da Glória. Estudos culturais e estudos literários. Letras de Hoje, v. 41, n. 3, p. 11-22, 2006. , p. 14-15). Remetendo aos expoentes da chamada Escola de Birmingham, “que exigiam que se considerasse não apenas a literatura, mas a cultura em que esta se produzia como novo campo de discussão teórica” (BORDINI, 2006BORDINI, Maria da Glória. Estudos culturais e estudos literários. Letras de Hoje, v. 41, n. 3, p. 11-22, 2006. , p. 14-15), a autora considera que se trata, em sentido último, de reconhecer “que a leitura é um saber cuja pertinência quem decide é o leitor, no quadro de sua vida”, para além das “explicações teóricas clássicas como a mímese ou o reflexo estético”, mesmo porque já se reconhece “que o mundo mimetizado ou refletido não é uno mas múltiplo e que nem mesmo o sujeito que produz a obra ou aquele que a lê é homogêneo” (BORDINI, 2006BORDINI, Maria da Glória. Estudos culturais e estudos literários. Letras de Hoje, v. 41, n. 3, p. 11-22, 2006. , p.13):

Na sociedade atual crescentemente se exige o reconhecimento dos direitos das várias culturas à existência autônoma, sem predominâncias ou assimilações que destruam suas especificidades, e se postula uma convivência fraterna entre as diferenças sociais, com respeito mútuo - e essa é a sua melhor faceta, pois significa uma recusa à homogeneização proveniente da hiperadministração. Diante do pluriculturalismo que as organizações populares, tanto quanto as elites intelectuais, têm tentado pôr em prática, um caminho para o estudo da literatura foi proposto nas pesquisas, eminentemente de cunho empírico, da chamada Escola de Birmingham (BORDINI, 2006BORDINI, Maria da Glória. Estudos culturais e estudos literários. Letras de Hoje, v. 41, n. 3, p. 11-22, 2006. , p. 13).

Como explica Bordini, no contexto dos Cultural Studies, representados pela Escola de Birmingham, aportes de outras ciências - como a filosofia, a psicologia, a psicanálise, a sociologia, a antropologia e a semiótica - são convocados de uma perspectiva multidisciplinar “para lançar luz sobre como determinados traços da vida social, dentro de uma cultura específica, aparecem na obra literária, a partir das características poéticas que os manifestam” (BORDINI, 2006BORDINI, Maria da Glória. Estudos culturais e estudos literários. Letras de Hoje, v. 41, n. 3, p. 11-22, 2006. , p. 13).

Um outro ponto que não fica suficientemente claro em Gaard, Murphy, Tassoni e, sobretudo, em Anae, é que, bem observa Bordini, o método de trabalho dos estudos culturais não prevê propriamente uma ruptura com a análise literária num sentido mais tradicional do termo, mesmo porque tal método “partiu da análise literária para a cultural” (BORDINI, 2006BORDINI, Maria da Glória. Estudos culturais e estudos literários. Letras de Hoje, v. 41, n. 3, p. 11-22, 2006. , p. 14). Nesse sentido é que considero o curso de literatura concebido por Tassoni equivocado ao pretender não ser propriamente um curso de literatura para poder dar conta de uma discussão ecofeminista. Nas palavras da autora, o método de trabalho dos estudos culturais

Supõe uma primeira etapa atenta a toda espécie de elementos de linguagem, ênfases, repetições, omissões, imagens, ambigüidades, personagens, incidentes, enredo e tema. Isso é feito não pelo elemento em si, mas tendo em vista sua funcionalidade ao mesmo tempo estética, psicológica e cultural. Essa é determinada como decorrente do intercâmbio de necessidades provenientes da estrutura formal, de necessidades psicológicas oriundas do tipo de indivíduo que escreveu a obra e de necessidades culturais de um certo tipo de sociedade, num certo período. A segunda etapa determina o campo de valores socioculturais que a obra selecionou, refletiu, transformou ou rejeitou. Essa espécie de investigação evidentemente revela também o investigador, porque ele só pode atingir seus fins a partir de decisões sobre esses mesmos valores que o definem em relação a eles. Os pressupostos são de que qualquer sociedade possui valores, que ela constrói visões ordenadas de suas experiências, através de sistemas, rituais e formas artísticas, que essa vivência de seus valores é um processo dialético, sempre incompleto e sujeito à mudança e que nenhum indivíduo se ajusta perfeitamente à ordem dominante desses valores. Dessa forma, evitam-se as ortodoxias e os estreitamentos dos enfoques e se propõe um estudo sempre provisório, capaz de discernir numa cultura as individualidades. (BORDINI, 2006BORDINI, Maria da Glória. Estudos culturais e estudos literários. Letras de Hoje, v. 41, n. 3, p. 11-22, 2006. , p. 14).

As considerações de Bordini permitem-me deixar mais claro o que considero limitante e um tanto desajeitado na definição de literatura apresentada por Anae, ainda que esta a redimensione, num segundo momento do seu artigo, dentro do contexto dos estudos culturais. De acordo com a primeira, o conceito de multiculturalismo decorre dos estudos culturais e, de modo simplificado, poderia ser descrito como o reconhecimento de que cultura não constitui um todo unitário, e sim “um mosaico de manifestações simbólicas autônomas e específicas, geradas no interior dos diversos segmentos que formam as sociedades, mas capazes de ultrapassar fronteiras nacionais ou regionais” (BORDINI, 2006BORDINI, Maria da Glória. Estudos culturais e estudos literários. Letras de Hoje, v. 41, n. 3, p. 11-22, 2006. , p. 15). Esse fenômeno presidiria, assim, “a idéia de diferença e, principalmente, a de que as diferenças podem coexistir pacificamente, sem perder suas características próprias e sem serem dominadas por algum conceito universalista ou humanista que as uniformize” (BORDINI, 2006BORDINI, Maria da Glória. Estudos culturais e estudos literários. Letras de Hoje, v. 41, n. 3, p. 11-22, 2006. , p. 15). Como atenta Bordini, a literatura “sempre esteve nessa mesma situação de diferenciação - de gêneros, de formas, de estilos de escrita, de épocas, de temas, de personagens, de cenários” (BORDINI, 2006BORDINI, Maria da Glória. Estudos culturais e estudos literários. Letras de Hoje, v. 41, n. 3, p. 11-22, 2006. , p. 15). Ainda que ao longo da História os estudiosos de literatura tivessem buscado um conceito unificador que desse identidade a essa “proliferação ilimitada”, “a contínua renovação, impelida, no passado, pela emulação dos melhores e, modernamente, pelo ideal da originalidade, impede que se pense num domínio claramente circunscrito” (BORDINI, 2006BORDINI, Maria da Glória. Estudos culturais e estudos literários. Letras de Hoje, v. 41, n. 3, p. 11-22, 2006. , p. 15):

Seja no interior das obras individuais, seja entre elas, seja no seu contorno imediato ou mais distante, interpenetram-se características, de modo que conceitos como literatura culta/literatura de massa/literatura popular, ou literatura nacional/literatura universal, ficção/não-ficção perdem sua força delimitadora. Hoje se torna impensável a noção de que a literatura só é tal quando produzida por um gênio, por uma espécie de inspiração inexplicável, que não deve nada à tradição ou às instituições ou pessoas que formam o chamado sistema literário. As bandeiras atuais são o hibridismo e a intertextualidade: nada provém do nada. (BORDINI, 2006BORDINI, Maria da Glória. Estudos culturais e estudos literários. Letras de Hoje, v. 41, n. 3, p. 11-22, 2006. , p. 15).

O presente artigo, que constitui uma breve discussão sobre as questões e os desafios colocados pela crítica literária ecofeminista ao longo dos anos, termina lançando luz sobre uma camada menos óbvia que atravessa esse percurso: a tensão nem sempre assumida ou explicitada entre paradigmas no campo dos estudos de literatura, mais precisamente entre estudos literários e estudos culturais. Como penso, motivado pelas considerações de Bordini, não se trata de reforçar o fosso instransponível que supostamente haveria entre crítica literária ecofeminista e estudos literários, tampouco de acreditar que privilegiar a teoria da literatura como epistemologia - e como terreno onde buscar ferramentas analíticas - significa, necessariamente, circunscrever-se no terreno do já ultrapassado New Criticism. Encarar crítica literária ecofeminista e estudos literários como incompatíveis, quando não excludentes, significa correr o risco de a literatura, independentemente de como se a defina, servir como mero pretexto para tratar de questões teóricas caras ao ecofeminismo, estas sim percebidas como verdadeiramente importantes.

Referências

  • ANAE, Nicole. Cultural studies and ecofeminist literature. In: VAKOCH, Douglas A. The Routledge handbook of ecofeminism and literature New York: Routledge, 2022. p. 290-300.
  • BORDINI, Maria da Glória. Estudos culturais e estudos literários. Letras de Hoje, v. 41, n. 3, p. 11-22, 2006.
  • GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press, 1998.
  • MURPHY, Patrick D. The Routledge handbook of ecofeminism and literature Oxfordshire: Routledge, 2022.
  • TASSONI, John Paul. Deep Response: An ecofeminist, dialogical approach to introductory literature classroom. In: GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (org.). Ecofeminist literary criticism: theory, interpretation, pedagogy. Chicago: University of Illinois Press , 1998. p. 204-223.
  • 2
    Tradução: Quero que meus estudantes de literatura sejam ecofeministas (Todas as traduções apresentadas neste artigo são de minha autoria).
  • 3
    Tradução: O ecofeminismo oferece uma abordagem melhor da vida do que as concepções antropomórficas e androcêntricas da natureza que dominam a cultura ocidental. Por oferecer uma vida tão melhor para o nosso planeta, quero que os alunos se tornem forças ativas na construção e na manutenção das sociedades heterárquicas e holísticas que os ecofeministas promovem. […] Meu objetivo é ser contra-hegemônico, não totalitário. Quero persuadir meus alunos a examinar seus valores herdados e os dos ecofeministas, e quero que abracem voluntariamente o ecofeminismo como mais conducente a relações humanas e não-humanas saudáveis.
  • 4
    Tradução: [...] os ecofeministas precisam permanecer abertos a pontos de vista conflitantes. Eles não podem perpetuar as próprias concepções monológicas de verdade e hierarquia às quais procuram resistir. Resistindo a pontos de vista alternativos - mesmo androcêntricos, antropomórficos - os ecofeministas se fecham dos tipos de introspecção autocrítica de que precisam para responder localmente - de maneira persuasiva, em vez de coercitiva - em nome das preocupações feministas e ambientais. Em outras palavras, permanecendo abertos a pontos de vista opostos, os ecofeministas podem continuamente examinar e reexaminar seus próprios objetivos; ao mesmo tempo, podem participar de debates produtivos com aqueles que podem se opor e aqueles que podem não entender seus objetivos. Em minhas aulas de literatura, promovo o ecofeminismo como um diálogo contínuo, ocorrendo entre seus defensores e também com aqueles que podem não afirmar seus princípios.
  • 5
    Tradução: [...] os professores estão “autorizados a tentar persuadir os alunos a experimentar valores [que aqueles percebem como democráticos], enquanto, ao mesmo tempo, os alunos também exercem persuasão, [no professor e] em seus pares, onde eles veem mudanças sendo necessárias à consciência cultural”.
  • 6
    Tradução: “Tenho a responsabilidade de expandir as áreas de interesse e o senso de heterarquia de meus alunos tanto quanto possível, e nenhuma abordagem da vida e da literatura oferece uma visão tão expansiva e igualitária quanto a do ecofeminismo”.
  • 7
    Tradução: “Introduzo o ecofeminismo nas minhas aulas de literatura porque fui autorizado pela minha universidade a promover o pensamento crítico e a cidadania ativa”.
  • 8
    Tradução: “[...] ajudar os alunos a ler e escrever discursos finais vitais para suas necessidades como cidadãos críticos”.
  • 9
    Tradução: [...] é no curso introdutório que os professores ecofeministas têm a chance de atingir alunos que se tornarão químicos, contadores, matemáticos, ou que abandonarão o curso - aqueles que podem ter poucas chances de considerar com seriedade as questões culturais que os cursos de literatura oferecem.
  • 10
    Tradução: Esta é uma decisão importante a ser tomada porque, em muitos aspectos, as doutrinas formalistas da Nova Crítica ainda dominam os cursos introdutórios de literatura. Essas doutrinas tratam os textos como artefatos independentes e promovem pouca ou nenhuma consideração crítica das condições materiais que cercam as interpretações, composições e recepções da literatura. Pelo menos dois fatores contribuem para a persistência de tais doutrinas: muitos professores percebem o curso como um local em que os alunos aprendem o “básico” de literatura, como cenário, enredo e personagem; muitos professores acreditam que as teorias críticas contemporâneas, como o pós-estruturalismo e o ecofeminismo, representam complexidades além do alcance dos alunos do primeiro e segundo anos. [...] Em vez de se fixar em análises textuais que levam à exclusão de fatores sócio-históricos que cercam composições, recepções e interpretações de obras literárias, as aulas de literatura introdutória podem ajudar os alunos a examinar os vários discursos de gênero, raça e classe que os afetam social, histórica, política e academicamente.
  • 11
    Tradução: 1. A construção da civilização industrial ocidental em oposição à natureza interage dialeticamente e reforça a subjugação das mulheres porque se acredita que as mulheres estão mais próximas da natureza Contra a natureza. 2. A vida na Terra é uma teia interconectada, não uma hierarquia. Não há uma hierarquia natural, mas uma hierarquia humana multifacetada projetada na natureza e depois usada para justificar a dominação social... 3. Um ecossistema saudável e equilibrado, incluindo habitantes humanos e não humanos, deve manter a diversidade... A simplificação biológica, ou seja, a eliminação de espécies inteiras, corresponde a reduzir a diversidade humana a trabalhadores sem rosto, ou à homogeneização do gosto e da cultura pelos mercados de consumo de massa... Precisamos de um movimento global descentralizado baseado em interesses comuns, mas celebrando a diversidade e se opondo a todas as formas de dominação e violência. Potencialmente, o ecofeminismo é um desses movimentos. 4. A sobrevivência da espécie requer um compromisso renovado de nossa relação com a natureza...; requer um desafio do dualismo natureza-cultura e uma correspondente reestruturação radical da sociedade humana de acordo com princípios feministas e ecológicos.
  • 12
    Tradução: Em uma aula de literatura ecofeminista e dialógica tais crises podem ser abordadas, e mudanças profundas no tecido social podem se tornar a principal preocupação do curso.
  • 13
    Tradução: O ecofeminismo é um movimento prático de mudança social decorrente das lutas das mulheres para sustentar a si mesmas, suas famílias e suas comunidades. Essas lutas são travadas contra o “mau desenvolvimento” e a degradação ambiental causada por sociedades patriarcais, corporações multinacionais e capitalismo global. Elas são travadas em nome do equilíbrio ambiental, das sociedades heterárquicas e matrifocais, da continuidade das culturas indígenas, dos valores econômicos e dos programas baseados na subsistência e sustentabilidade. A fundação e o fundamento da existência do ecofeminismo consistem, assim, tanto em resistência quanto em visão, crítica e heurística. O ecofeminismo não é uma única teoria mestra e seus praticantes possuem diferentes articulações de sua prática social. Na maioria das vezes, aqueles que se propõem articular sua filosofia e visão de mundo o fazem na crença de que tal teorização auxiliará movimentos, ações e práticas específicas. Tal teorização o fará aumentando a autoconsciência de seus participantes e representando suas crenças para aqueles que estão abertos a ela.
  • 14
    Tradução: A política ecofeminista não se limita a desmantelar os preconceitos androcêntricos e antropocêntricos da civilização ocidental. Uma vez colocada a crítica de dualidades como cultura e natureza, razão e emoção, humano e animal, o ecofeminismo busca refazer novas histórias que reconheçam e valorizem a diversidade biológica e cultural que sustenta a vida. Essas novas histórias honram, em vez de temer, a particularidade biológica das mulheres, ao mesmo tempo em que afirmam as mulheres como sujeitos e fazedoras da história. Esse entendimento de que a particularidade biológica não precisa ser antitética à agência histórica é crucial para a transformação do feminismo.
  • 15
    Tradução: Transformação pode muito bem ser o único termo com o qual todos os adeptos do ecofeminismo concordariam.
  • 16
    Tradução: O ecofeminismo desafia todas as relações de dominação. Seu objetivo não é apenas mudar quem detém o poder, mas transformar a própria estrutura do poder.
  • 17
    Tradução: as questões ambientais não podem ser abordadas de forma inteligente sem as perspectivas das mulheres, dos pobres e daqueles que vêm de outras partes do globo, bem como de todas as raças e origens culturais.
  • 18
    Tradução: Baseia-se também no reconhecimento de que essas duas formas de dominação estão ligadas à exploração de classe, ao racismo, ao colonialismo e ao neocolonialismo.
  • 19
    Tradução: porque se abstém de se consolidar em torno de uma única orientação ideológica.
  • 20
    Tradução: pluralidade filosófica e diáologo teórico permanente.
  • 21
    Tradução: Contra esses apelos por coerência, abrangência e agendas formalizadas, cito o ecofeminismo como um exemplo de teoria e prática que combateu a destruição ecológica e a dominação patriarcal sem sucumbir aos impulsos totalizantes da política masculinista. O ecofeminismo como política de resistência opera contra o poder entendido, segundo Foucault, como uma “multiplicidade de relações de forças”, descentradas e continuamente “produzidas de um momento para o outro”. Contra tal poder, a coerência na teoria e a centralização da prática tornam um movimento social irrelevante ou, pior, vulnerável, ou - ainda mais perigoso - participativo com forças de dominação.
  • 22
    Tradução: [...] ou seja, faz perguntas que colocam dificuldades, e talvez, especialmente, para as próprias práticas. Na verdade, o nós do ecofeminismo é mais formidável em sua oposição ao poder quando desafia suas próprias suposições.
  • 23
    Tradução: [...] criminologia, em conjunto com a justiça ambiental em termos de opressão racial e de gênero; ciência política, em termos de movimentos sociais e políticas comunitárias; estudos culturais, quase exclusivamente na medida em que envolve considerações pós-coloniais; e departamentos de inglês, em termos de literatura feminina e ambiental.
  • 24
    Tradução: escrita de mulheres que havia sido excluída dos estudos literários sérios e ignorada na formação do cânone.
  • 25
    Tradução: Na década de 1990, o ecofeminismo está finalmente se fazendo sentir nos estudos literários. Os críticos estão começando a fazer dos insights do ecofeminismo um componente da crítica literária. Eles também estão descobrindo uma ampla gama de literatura ambiental escrita por mulheres, escrita ao mesmo tempo em que a filosofia ecofeminista e a crítica estão sendo desenvolvidas.
  • 26
    Tradução: Mas o “outro” deve ser repensado através da fundamentação no ser físico. Um aspecto dessa fundamentação é rejeitar a noção de diferença absoluta e a construção binária de dentro e fora. A disciplina da ecologia desafia tal dicotomia. A ecologia não é o estudo do ambiente “externo” em que entramos - um grande exterior para o qual vamos. A ecologia é um estudo de inter-relação, tendo como fundamento o reconhecimento da distinção entre as coisas-em-si e as coisas-para-nós. Essas últimas resultam de intervenção, manipulação e transformação. Qualquer entidade que se tornou uma coisa para uso humano começou sua existência como uma entidade-em-si. E, pelo menos no caso de outros seres sencientes, como uma entidade-para-si, já que o ímpeto de qualquer espécie é sobreviver e se reproduzir. O feminismo exige o reconhecimento masculino do “outro” como não apenas diferente, mas também de status ontológico igual. Tal ontologia indicaria a necessidade de ver a distinção eu/outro como uma diferença relativa com base na heterarquia, ao invés da hierarquia.
  • 27
    A expressão nature writing pode ser traduzida como escrita da/sobre a natureza, enquanto environmental literature by women pode ser entendida como literatura ambiental escrita por mulheres.
  • 28
    Tradução: Em vez disso, parecia que a crítica literária ecofeminista envolveria a leitura de textos literários através das lentes da teoria e prática ecofeministas, trazendo questões: que elementos anteriormente despercebidos de um texto literário se tornam visíveis, ou mesmo colocados em primeiro plano, quando alguém lê de uma perspectiva ecofeminista? Essa perspectiva pode dizer aos críticos literários algo novo sobre um texto em termos dos elementos tradicionais de estilo e estrutura, metáfora e narrativa, forma e conteúdo? Como uma perspectiva ecofeminista pode melhorar as explorações de conexões e diferenças entre “personagens” em um texto - entre humanos e animais, entre cultura e natureza, e através das diferenças humanas de raça, classe, gênero e orientação sexual - conexões e diferenças que afetam nossas relações com a natureza e uns com os outros? Como essa perspectiva poderia ser aplicada a situações de ensino em sala de aula? E, finalmente, realmente precisamos fazer isso? Isto é, poderia a crítica literária - e seu mais novo desenvolvimento, a ecocrítica - passar sem uma perspectiva ecofeminista, ou a crítica literária ecofeminista tem algo vital a oferecer?
  • 29
    Tradução: Ao longo desse período, um tratamento sofisticado do ecofeminismo e outras teorias relevantes são apresentados, além de fornecer numerosos e diversos exemplos literários. Esses exemplos incluem textos ecofeministas louváveis ​​extraídos da ficção, da não-ficção e da poesia. Eles também incluem obras cujas deficiências são expostas por meio da crítica ecofeminista.
  • 30
    Tradução: Em alguns casos, a integração de outras orientações teóricas enriquecerá a crítica ecofeminista aplicada. Por vezes, trazer a análise ecofeminista para outras áreas disciplinares e transdisciplinares fornecerá novos insights e explicações.
  • 31
    Tradução: “uma de suas características centrais é ‘a auto-reflexividade implacável sobre a natureza de sua própria prática … [e], desenvolvido de forma correta, estudos culturais tenta não tomar nada como garantido, incluindo seus próprios parâmetros’”.
  • 32
    Tradução: “ao argumentar que certas práticas surgiram na evolução dos estudos culturais historicamente”
  • 33
    Tradução: 1. Estudos culturais visa a examinar seu objeto de estudo em termos de práticas culturais e sua relação com o poder. Seu objetivo constante é expor as relações de poder e examinar como essas relações influenciam e moldam as práticas culturais. 2. Estudos culturais não é simplesmente o estudo da cultura como se fosse uma entidade discreta divorciada de seu contexto social ou político. Seu objetivo é compreender a cultura em todas as suas formas complexas e analisar o contexto social e político em que ela se manifesta. 3. A cultura nos estudos culturais sempre desempenha duas funções: é tanto o objeto de estudo quanto o local da crítica e da ação política. Estudos culturais pretende ser um empreendimento intelectual e pragmático. 4. Estudos culturais tenta expor e reconciliar a divisão do conhecimento para superar a divisão entre formas tácitas (ou seja, conhecimento intuitivo baseado em culturas locais) e objetivas (chamadas universais). Assume uma identidade comum e um interesse comum entre o conhecedor e o conhecido, entre o observador e o que está sendo observado. 5. Estudos culturais compromete-se com uma avaliação moral da sociedade moderna e uma linha radical de ação política. A tradição dos estudos culturais não é de estudos livres de valores, mas comprometida com a reconstrução social por meio do envolvimento político crítico. Assim, estudos culturais visa a entender e mudar as estruturas de dominação em todos os lugares, particularmente nas sociedades capitalistas industriais.
  • 34
    Tradução: - Pós-estruturalismo, Novo Historicismo e Pós-colonialismo, entre outros -, o trabalho feminista em estudos culturais procurou entender a dinâmica “estrutura, cultura, biografia” em relação aos mundos domésticos e invisíveis das mulheres.
  • 35
    Tradução: “um paradigma interdisciplinar em evolução dentro dos estudos literários e culturais originário de várias metodologias críticas”.
  • 36
    Tradução: O ecofeminismo é tematicamente característico: “uma crítica à ciência patriarcal, uma preocupação com a degradação da ‘natureza’/meio ambiente e a criação de vínculos entre esses dois e a opressão às mulheres” [...]. Esses temas unem os ecofeministas na convicção de que existem vínculos cruciais entre a opressão, a exploração e a subjugação das mulheres e do ambiente natural.
  • 37
    Tradução: “isto é, abordagens para métodos ou epistemologias que enfatizem a importância da ‘crítica’”.
  • 38
    Tradução: “'Desse ponto de vista, estudos culturais é um processo, uma espécie de alquimia para produzir conhecimento útil; codifique-o e você pode interromper suas reações'”.
  • 39
    Tradução: “A literatura ecofeminista apresenta amplas possibilidades para ‘efetuar mudanças sociais, políticas e ambientais que vão além das fronteiras geográficas, de gênero ou de genre’”.
  • 40
    Tradução: “tentar definir literatura invariavelmente produz mais questões que respostas”.
  • 41
    Tradução: Em minha abordagem de literatura, apresentarei uma discussão sobre estudos culturais e literatura ecofeminista em que o termo “literatura” está de acordo com a definição básica defendida por Laurence Perrine como “as principais formas de ficção, poesia e drama”.
  • 42
    Tradução: [...] em termos de identificação de gênero, abordo “literatura” a partir da complementação feita por Saidu Bangura à definição básica de Perrine. Baseando-se em Literature, sound, and sense (1993), Bangura delineia (1) a noção defendida por Perrine de que “as principais formas de ficção” seriam “a literatura em forma de prosa, especialmente contos e romances, que descreve eventos e pessoas imaginárias”; (2) o conceito de poesia como “trabalho literário no qual intensidade especial é dada à expressão de sentimentos e ideias pelo uso de estilo e ritmo distintos” e (3) o termo “drama” como “peça para teatro, rádio ou televisão”.
  • 43
    Tradução: “Mas é claro que existem muitos outros gêneros e subgêneros de “literatura” que se enquadram razoavelmente nas ‘principais formas de ficção, poesia e drama’”.
  • 44
    Tradução: “Que algumas formas de leitura tenham permanecido constantes é menos uma função da continuidade histórica do que da memória institucional”.
  • 45
    Tradução: “que existem várias possibilidades dentro e além dos entendimentos convencionais das ‘principais formas de ficção, poesia e drama’ [...]. Entre elas estão as formas literárias não ficcionais”.
  • 46
    Tradução: “entre os seres humanos e o resto do mundo ‘mais-que-humano’ [que] sempre se preocupou com a agência dos seres humanos e a necessidade de repensar comportamentos e ações sociais”.
  • 47
    Tradução: uma metodologia que reexamina a história das conceituações da natureza motivadas ideológica, estética e eticamente, da função de suas construções e metaforizações na literatura e em outras práticas culturais, e do efeito potencial que essas construções discursivas e imaginativas têm sobre nossos corpos, bem como nossos ambientes naturais e culturais.
  • 48
    Tradução: 1. A literatura ecofeminista explora e expõe “seu assunto em termos de práticas culturais e sua relação com o poder” para “expor as relações de poder e examinar como essas relações influenciam e moldam” as práticas ambientais e culturais. 2. A literatura ecofeminista busca não apenas estudar a cultura “como se fosse uma entidade discreta divorciada de seu contexto social ou político”, mas sim “compreender a cultura em todas as suas formas complexas e analisar o contexto social e político” estruturando e influenciando as relações entre a mulher e o ambiente. 3. A literatura ecofeminista, como “[c]ulture nos estudos culturais sempre desempenha duas funções: é tanto o objeto de estudo quanto o local da crítica e ação política”. A literatura ecofeminista reúne “um empreendimento intelectual e pragmático”. 4. A literatura ecofeminista tenta representar, contestar e interrogar “a divisão do conhecimento, para superar a divisão entre tácito (isto é, conhecimento intuitivo sobre a experiência/condições das mulheres e o ambiente natural baseado em culturas locais) e objetivas (chamadas universais) formas de conhecimento”. Alguma literatura ecofeminista assume “uma identidade comum e um interesse comum entre o conhecedor e o conhecido, entre o observador e o que está sendo observado”. 5. A literatura ecofeminista frequentemente apresenta uma “linha radical de ação política” e, portanto, visa a reconhecer e transformar estruturas de autoridade existentes e autóctones, tanto de forma onipresente quanto nas sociedades capitalistas industriais, especificamente.
  • 49
    Tradução: “semelhante a uma teoria literária de interpretação de obras literárias selecionadas no interesse de um objetivo crítico ecofeminista”, como também “uma prática criativa crítica cuja natureza e funções aparecem contextualizadas ante cenários e condições sócio-históricos”.
  • 50
    Tradução: “Por um lado, a teoria literária ecofeminista se baseia na não-ficção para seus exemplos literários, enquanto a literatura ecofeminista pode se revelar em modos ficcionais, poéticos, dramáticos, assim como em modos criativos não ficcionais.”
  • 51
    Tradução: “especificamente o materialismo cultural e suas relações interseccionais com o feminismo material, o feminismo cultural, o ecofeminismo cultural e o ecofeminismo pós-colonial”.
  • 100
    MARCELO SCHINCARIOL trabalha como Associate Teaching Professor no Departamento de Espanhol e Português na Universidade do Colorado em Boulder, EUA. Nos anos mais recentes, tem se dedicado ao estudo de narrativas policiais em língua portuguesa, particularmente à ficção policial na obra de Fernando Pessoa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Dez 2022
  • Aceito
    09 Dez 2022
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