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Nomadismo intelectual e geopoética3 3 Perguntas formuladas por Régis Poulet e Susana L. M. Antunes.

Kenneth White é o criador da geopoética. Para quem tiver interesse em entender a geopoética e suas imensas implicações, recomenda-se um mergulho emocionante na obra de White, que consiste em ensaios, narrativas em prosa e poemas e vem se desdobrando, já há mais de meio século, como um enorme sistema hídrico. Como objetivo geral, a geopoética pretende oferecer ao mundo um novo arcabouço baseado numa relação radicalmente renovada com aquilo que é chamado de “natureza”. Para isso, procura compreender as poéticas do mundo natural, ou seja, as maneiras incontáveis como as estruturas se criam, espontaneamente, em todas as escalas e em todas as partes da natureza, incluindo a humana. Além disso, procura pensar uma nova cultura em sintonia com a Terra.

Paralelamente à produção escrita, desde cedo Kenneth White já organizava colóquios geopoéticos, cujos textos foram reunidos nas Cahiers de géopoétiqueAAVV. Cahiers de géopoétique. Disponível em : https://www.institut-geopoetique.org/fr/cahiers-degeopoetique.
https://www.institut-geopoetique.org/fr/...
. Em 1989, fundou o Instituto Internacional de Geopoética. Desde então, o instituto vem acompanhando a criação de grupos de geopoética ao redor do mundo e já publicou várias revistas, sendo a mais recente L’Océanite (The Storm Petrel).4 4 Informações sobre a revista e outras matérias se encontram em vários idiomas no site do instituto: https://www.institut-geopoetique.org/pt

Régis POULET (RP): Em diversos segmentos da sociedade, as preocupações sobre as mudanças climáticas e a perda de diversidade dos seres vivos vêm estimulando muitas mentes a formular perguntas a respeito das nossas formas de pensar e viver. No entanto, muitas vezes descobrimos que as perguntas (e as soluções propostas) se dirigem apenas a uma parte do problema. Que pergunta fundamental o senhor acha que deveria ser feita?

Kenneth WHITE (KW): Talvez a pergunta fundamental seja: o que é, de fato, fundamental? É uma pergunta que é difícil de verbalizar numa sociedade superprodutiva que demanda atenção a toda hora, que nos urge a fazer isso ou aquilo, comprar isso ou aquilo, participar de debates sobre isso ou aquilo. Só poderemos elaborá-la, de forma persuasiva, depois de alguma experiência existencial, uma boa dose de ponderação intelectual e uma limpeza geral do espaço-tempo. É por isso que eu invisto na escrita de livros. E livros de determinado tipo, como livros de ensaios analíticos que levam, ou assim espero, à compreensão. Sendo a compreensão, além de um prazer intelectual que libera a mente, a base necessária para qualquer mudança de valor. Lembre-se que vivemos na era terminal da modernidade, o que, de acordo com a concepção mais radical (e não simplesmente como uma passagem rápida de modos) na mente de René Descartes, significava a separação do sujeito (res cogitans, o self) do objeto (res extensa, a Terra), além de compreender o projeto de dominar a natureza. No século XVII, o domínio era mecânico; agora, como sabemos, a humanidade já dispõe de outros meios. O indivíduo pode tentar ignorar isso, tomar drogas, cair na farra e esperar a chegada do apocalipse, mas isso não é muito interessante. A questão agora é como dar ensejo a um novo contexto. Se eu exponho esse contexto nos meus ensaios, eu ponho em ação nos livros que chamo de waybooks [livros-caminho], os quais buscam uma saída do labirinto cada vez mais codificado. E elaborei um tipo de poema que, em grande medida, ultrapassa aquilo que nós, da sociedade contemporânea, costumamos entender como “poesia”.

Susana L. M. ANTUNES (SLMA): Muita gente, ao escutar suas palavras, diria: “mas já temos isso”, ou “já estamos nesse rumo”, pois temos a ecologia.

KW: Não sou inimigo da ecologia. Tenho uma consciência ecológica desde os 14 anos de idade, quando li Ernst Haeckel, o biólogo que inventou o termo em torno de 1850. Trata-se da relação entre os organismos entre si e com o ambiente. Transitei de lá para a ecologia social de H. G. Wells (1942WELLS, Herbert George. The Outlook for Homo Sapiens. Londres: Readers Unionand Secker & Warburg, 1942.), em The Outlook for Homo Sapiens [Panorama para o futuro do Homo sapiens]. A partir daí, passei à ecologia intelectual e estética de Gregory Bateson, que, em livros como Mind and Nature [Mente e natureza] (1979BATESON, Gregory. Mind and Nature: A necessary unity. Nova York: Dutton, 1979.), propôs a ideia de que as conquistas mais excepcionais da mente humana emergiram de insights e experiências profundas do contexto biocósmico. Eu estava sintonizado com grande parte disso. Contudo, mais para o final da vida, Bateson já dizia que havia passado tempo demais numa tautologia cibernética, que seria a repetição de uma ideia numérica incompleta, mas que, com sorte, ele poderia ainda chegar até o voo do albatroz. Outro ecólogo de renome, Aldo Leopold, em Sand County AlmanacLEOPOLD, Aldo. A Sand County Almanac: And Sketches Here and There. Oxford: Oxford Press, 1949. [Almanaque do Condado de Areia], se indagava se “ecologia” era a melhor palavra para se referir a tudo que o termo engloba. A palavra que proponho, por vários motivos, é “geopoética”. A ecologia, quando bem entendida e elaborada, dá ensejo à geopoética.

SLMA: Como tudo começou para o senhor?

KW: Tudo começou dentro de um território de quarenta milhas quadradas [aproximadamente 100 km2] no litoral oeste da Escócia. Um vilarejo de mil habitantes, ou seja, eu conhecia todo mundo, ainda mais porque eu fazia biscates, tanto na terra como no mar. Um pequeno vilarejo, parte litorânea e parte interiorana. A parte litorânea seguia o ritmo das marés, os gritos das aves marinhas e os movimentos elegantes das focas e dos peixes. A parte interiorana começava com as terras agrícolas, que eu conhecia bem (trabalhava com pá, foice e enxada). Onde começava o estranhamento era na floresta, no contato com os bichos noturnos (gatos selvagens, raposas) e aves (principalmente corujas). Depois, tinha o campo aberto: uma impressão de espaço e vazio, que gerava em mim, conforme eu caminhava, hora após hora, a sensação de estar cada vez mais fora de mim mesmo. No ponto culminante, na montanha, do alto da qual dava para avistar o vilarejo, a enseada, as ilhas e, mais além, o oceano Atlântico. O que eu sabia, em termos globais, era que me faltava uma linguagem para tudo isso. Eu apreciava a linguagem das ruas do vilarejo, mas ficava com a impressão de que as pessoas não se compreendiam. Também havia a linguagem da igreja. Eu admirava a retórica da Bíblia, mas achava aquilo muito espiritual. Daí eu comecei a aprender as línguas do mundo. Não para pedir um cafezinho em trinta idiomas, mas para entender como funcionavam, como era sua lógica, seu campo de referência. Guardo principalmente duas frases como resultado dessa pesquisa linguística. Uma em sânscrito: Tat tvam asi (“Você é aquilo”), ou seja, você não se fecha na própria identidade herdada; existe uma exterioridade à qual, fundamentalmente, se pertence. A outra em nórdico antigo: Ut vil ek (“Quero sair”), palavras proferidas por um poeta islandês ao rei da Noruega, que queria mantê-lo como oficial da corte. Uma vez, falei (para mim mesmo) em “sandscript” (de “sanskrit”) para me referir às fileiras de ondulações deixadas na areia (sand) pela maré e à “escrita” (script) de ervas marinhas jogadas na praia. A isso podemos acrescentar como “poéticas do planeta” a poética do caos, presente nas formações rochosas, a poética dos fluxos, evidente nas marés e nos rios, e a poética da meteorologia (vento, chuva, relâmpagos).

RP: Em Incandescent LimboWHITE, Kenneth. Incandescent Limbo. In: The Collected Works of Kenneth White: Underground to Otherground. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2021c. v. 1. p. X-X.[Limbo incandescente], o senhor escreveu: “Sou sobrevivente de uma grande catástrofe e estou buscando reestabelecer as conexões”. Pode explicar o que quer dizer com isso?

KW: Incandescent LimboWHITE, Kenneth. Incandescent Limbo. In: The Collected Works of Kenneth White: Underground to Otherground. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2021c. v. 1. p. X-X.- um livro estranho, bem estranho. Limbo - um estado indefinido, fugaz. Incandescente - a energia branca e ardente no ar. Muito diferentes do interior rural que acabei de descrever, cujos traços eu retomaria mais tarde, num contexto maior. Com o Limbo, eu estava no meio da civilização e em uma das suas cidadelas, Paris. Talvez a civilização seja a grande catástrofe: o abandono de um espaço sutil e mutável em prol da aglomeração e da construção. O que eu senti na superfície, depois do primeiro momento de atração, foi uma recusa, uma negação, até de grande parte da literatura produzida. Eu escrevia, sim, mas sem nenhuma pretensão de construção literária, conforme ela costuma ser entendida. Eu procedia em fragmentos e faíscas, pedaços de conversas ouvidas na rua, encontros casuais, vestígios de sonhos, muitas leituras de textos obscuros e esquecidos. Evitando todo tipo de união falsa, como, por exemplo, a primeira e mais escancarada, a integração, por vias traiçoeiras, da Escócia como parte da Grã-Bretanha, do chamado Reino Unido. O que temos no início do livro é um escocês que refaz contato com a Europa, aquele continente mutável e incansável. E a partir daí, faz contato num nível mais profundo, para além de todos os impérios e colonialismos, entre a Europa e a Ásia. Em termos ainda mais gerais, um movimento para fora da história (conflito, conquista, “progresso”) e para dentro da geografia: cosmos-caos. E com um sentido de alargamento, expansão, como aquele indicado no subtítulo, The Book of the Seven Rooms [O livro dos sete quartos]. São, além dos sete quartos que ocupei em Paris, os estágios do caminho.

RP: Quando fala em “caminho”, o senhor quer dizer tanto o geográfico quanto o mental, certo? Antes de falar das suas viagens, o senhor poderia explicar qual é o significado e a perspectiva do nomadismo intelectual que criou e que desenvolve?

KW: Escrevi dois livros grandes sobre o assunto: L’Esprit nômadeWHITE, Kenneth. L’Esprit nomade. Paris: B. Grasset, 1987.[O Espírito nômade] e Au large de l’HistoireWHITE, Kenneth. Au large de l’Histoire. Marselha: Le Mot et le Reste, 2015.[Fora da História]. Quando eu chegar a traduzir esses livros, que foram escritos em francês, para o inglês (me desagrada a ideia de vê-los num inglês diferente do meu), o primeiro será, provavelmente, The Nomad Mind [A mente nômade]. Isto é, “uma mente que não está louca”. Ou seja, na essência, o nomadismo intelectual procura abrir caminhos para fora da patologia. Que patologia? A patologia da civilização sobre a qual acabamos de conversar. Nenhuma das outras “culturas alternativas” foi muito além do pitoresco. Nenhum dos vários “forasteiros”, por mais simpáticos que sejam, tem o alcance e as paisagens do nômade intelectual.

SLMA: Parece-me que antes mesmo de elaborar a teoria do nomadismo intelectual, o senhor já trilhava esses caminhos. Penso no seu livro Letters from GourgounelWHITE, Kenneth. Letters from Gourgounel. In: The Collected Works of Kenneth White: Underground to Otherground. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2021a. v. 1. p. 99-174. [Cartas de Gourgounel], que é ambientado numa região intocada do sudeste da França, Ardèche.

KW: Tem razão. Naquela época, no início da década de 1960, Ardèche fazia parte daquilo que os sociólogos chamavam do “deserto francês”: regiões afastadas que vinham se esvaziando com a saída das populações locais rumo à cidade grande. Era o tipo de abandono que eu queria, mas no sentido contrário. Por um preço muito baixo, pude comprar uma fazenda velha, que parecia uma fortaleza, localizada na vertente do vale do rio Beaume, de frente para o maciço de Tanargue (tanargue - da palavra celta para “trovão”). Batizei o lugar de “Gourgounel”, uma palavra que encontrei num antigo mapa cadastral. A palavra borbulhava como água, falava de fontes. Um lugar para encontrar recursos! E sim, havia muitos caminhos, a maior parte cobertos de mato. Uma das trilhas que precisei recuperar seguia da margem do rio até a casa. Tive que a abrir à força com uma enxada. Ainda guardo na memória o som metálico da enxada ao tocar no leito rochoso. Uma coisa que eu queria fazer naquele lugar era descobrir como seria a sensação de uma cultura de verdade. No Sul, a cultura era provençal, agora chamada de occitan, sendo que nenhum dos termos é muito satisfatório. Então, ao longo dos anos mergulhei no que restava da cultura provençal antes do seu aniquilamento com a chegada das Grandes Potências e de seus valentões. Outra coisa que queria fazer era explorar outras formas de escrita. Para isso, me aprofundei na poesia taoista chinesa e no haiku japonês, o que, na época, era bastante incomum. Hoje em dia, são uma referência comum, porém rasa, porque falta o chão, a terra. Se eu chamei o livro que contém tudo isso (trabalhos braçais, experiências sensoriais, estudos intensivos) de Letters from GourgounelWHITE, Kenneth. Letters from Gourgounel. In: The Collected Works of Kenneth White: Underground to Otherground. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2021a. v. 1. p. 99-174., “letters” [cartas] no plural, foi no sentido de colocar em prática uma dinâmica rápida e enérgica de pensamento e expressão, se esquivando da grande massa de “literatura” acumulada em todo canto com uma temática que ia do patológico ao corriqueiro por via da banalidade sentimental. No final do livro, escrevi que eu poderia ter ficado para sempre em Gourgounel, mas que sentia que tinha outras coisas a fazer. Por isso que o epílogo do livro é intitulado “O caminho pela floresta” e, no parágrafo final, lê-se: “Estou trilhando o caminho de volta a Gourgounel, que eu agora entendo como a primeira base, a base-fonte, de um itinerário que me levará, sem dúvida, para outros espaços, talvez rumo a uma terra nova”.

RP: Isso forma uma transição legal para aquele que passou a chamar de waybook [livro-caminho]. O que é um waybook e para que serve?

KW: O waybook faz muita coisa. Resumidamente, não é nem romance, nem narrativa de viagem. Sem entrar nas variações do gênero romanesco, o romance se baseia numa trama e desenvolve essa trama. Lá no século XIX, Mark Twain, autor de Huckleberry Finn [As aventuras de Huckleberry Finn], um livro ribeirinho (a vida no Mississipi), falou que, em matéria de escrita de verdade, quem fala de trama deveria ser fuzilado. Como jovem escritor, logo me identifiquei com essa ideia. Mais recentemente, alguns escritores e pensadores, considerando que o romance já deu o que tinha que dar, recomendaram e promoveram a literatura de viagem, que mal passa de um turismo literário. O waybook não tem nada a ver com isso. De certa forma, remete às caminhadas que eu fazia rumo ao interior do vilarejo na costa oeste da Escócia: passar da paisagem da sociedade fechada para um vazio incerto, mas também de uma plenitude em potencial. Há uma lógica latente que percorre toda minha vida e meu trabalho, mas o itinerário vai ganhando em extensão e expansão e acaba sendo exprimido com mais celeridade e acuidade com o passar do tempo, do espaço-tempo. Já que são as megalópoles que predominam em nossa civilização, o waybook começa nelas e aí se dirige para fora e para longe: vai da cidade ao vácuo. O caminho não é predeterminado (não há um modelo de pauta nas entrelinhas); ele evolui com o movimento do espaço-tempo. Tem, por exemplo, Guido’s Map [O mapa de Guido], que, entre outros temas e ideias, pretende revisitar, revitalizar, não só a imagem da Europa, mas a sensação que ela dá, que estava começando a sumir por baixo de pilhas de relatórios econômicos. Vou de Bruxelas à Escandinávia. Em The Blue RoadWHITE, Kenneth. The Blue Road. Londres: Trafalgar Square, 1990. [A estrada azul] e The Winds of VancouverWHITE, Kenneth. The Winds of Vancouver: A Nomadic Report from the North Pacific Edge. Aberdeen: AHRC Centre for Irish and Scottish Studies, 2015.[Os ventos de Vancouver] exploro, com todos os sentidos ligados e atentos aos menores detalhes, o nordeste (Labrador) e o noroeste (Alaska) com o intuito de redescobrir uma América que não tenha sido demolida e assolada por um tipo de Estados Unidos. Em The Face of the East WindWHITE, Kenneth. The Face of the East Wind. In: The Collected Works of Kenneth White: Mappings: Landscape, Mindscape, Wordscape. Edimburgo: Edinburgh University Press , 2021b. v. 2. p. x-x.[A face do vento leste] e The Wild SwansWHITE, Kenneth. The Wild Swans. Toronto: Tundra Books, 2003. [Os cisnes selvagens], procuro ressuscitar, com breves indícios, todo o imenso passado de pensamentos e meditações que é a Ásia. E assim por diante, no oceano Índico, com The Sea of Lights [O mar de luzes]; na região das Antilhas (não gosto do termo em inglês West Indies), com The Hidden Archipelago [O arquipélago escondido], e outros lugares também.

SLMA: Tenho uma pergunta a remoer na mente, que normalmente se faz no início de uma entrevista, ou no final, mas que quero inserir agora que estamos no meio de um processo bastante complexo, porém coerente. Kenneth White, o senhor parece ser tão inteiro como pessoa, tão calmo e distante, tão sereno e imperturbável. Por que escreve e por que escreve tanto? Por que sentiu a necessidade de desenvolver a dupla teórica do nomadismo intelectual e da geopoética?

KW: Por que escrevo? Não por nenhum motivo patológico, como se eu não tivesse alternativa, o que, como sabem os psicanalistas, é muitas vezes o caso. Não para ter sucesso. A palavra “sucesso” evoca em mim a imagem de um bebê mamando no seio maternal (da sociedade). Pode dar certo, por um tempo. Mas, se não parar de mamar, sua evolução será interrompida. Em francês, até recentemente, se fazia uma distinção entre “sucesso” e “glória”, sendo que a primeira era considerada vulgar. Gosto dessa distinção. Mas, ao mesmo tempo, não me atrai a glória. Muito brilho. Atrai-me muito mais a luz dourada-esbranquiçada-prateada desse dia de outubro com as folhas multicoloridas. Em relação à teoria, serve para abrir um espaço, como na geometria projetiva, para evitar que aquilo que se escreve não se empacote e se perca na grande massa da produção literária. E dentro desse espaço, dá para traçar a evolução de uma escrita diferente, uma linguagem diferente. Agora, em relação ao “tanto”, o alemão periférico Nietzsche disse que sabemos que tem um mundo novo por aí, mas quem tem a energia? Já o ultra-português Pessoa colocou de forma mais direta: na falta de uma literatura verdadeira, você tem de fazer uma por conta própria. É esse o tipo de contexto em que trabalho. O processo pode ser bem cansativo. Mas, ao mesmo tempo, você se livra de muito material mental tóxico, o que dá uma espécie de serenidade.

RP: Obrigado por tocar nesse ponto central, Susana, sobre o foco energético. E obrigado, Kenneth, pelas respostas tão precisas. Eu agora gostaria de voltar ao processo. Primeiro, quero retomar a necessidade que Susana sentiu ao perguntar sobre a natureza do livro Letters from GourgounelWHITE, Kenneth. Letters from Gourgounel. In: The Collected Works of Kenneth White: Underground to Otherground. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2021a. v. 1. p. 99-174., onde se vê menos o nômade intelectual a atravessar os territórios e mais o geopoeta experimentando a habitação profunda de um lugar. O senhor mesmo fez uma distinção fonética lúdica entre waybooks e staybooks [livros de ficar]. O livro companheiro de Letters from GourgounelWHITE, Kenneth. Letters from Gourgounel. In: The Collected Works of Kenneth White: Underground to Otherground. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2021a. v. 1. p. 99-174.seria House of TidesWHITE, Kenneth. House of Tides. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2001.[Casa das marés], com a Gourgounel interiorana, tendo como paralelo a casa em que o senhor mora já há anos no litoral norte de Bretanha.

KW: House of TidesWHITE, Kenneth. House of Tides. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2001.: já no título há uma fusão de estabilidade e movimento (residência e errância). Batizei a casa de “Gwenved” (“mundo branco”), porque era o nome dado ao lugar de maior concentração da mente na antiga língua celta britônica (bretão, galês) - no gaélico era finn mag. A casa fica nessa costa rochosa, pertinho de algo que a geologia chama de um complexo centrado, o que, na minha geografia mental, é especialmente apropriado. Foi aqui que consegui juntar todos os elementos oriundos de tantos anos de viagens e trabalhos e continuar a trabalhar com eles. A gente estava falando de “glória”. Em tempos difíceis, os monges antigos das Ilhas Ocidentais da costa atlântica escocesa se dedicavam aos manuscritos, muitos com ilustrações belíssimas, em nome da chamada “glória de Deus”. Sinto muita afinidade com essas pessoas, com a exceção, é claro, das crenças. Até em relação à criação de livros ilustrados. Na parte da minha casa que eu chamo da oficina atlântica, já fiz mais de cem “livros de artista”, como são chamados, em colaboração com artistas do mundo todo. Crenças, não tenho nenhuma. Já falei incansavelmente e já escrevi vários ensaios sobre o tema. Andei procurando elaborar um espaço de pensamento para além dos pilares tradicionais da sociedade: mito, religião e metafísica. Continuo a trabalhar nisso tudo.

SLMA: A partir disso que o senhor por vezes chama do seu “posto avançado”, como pensa e como vê o mundo contemporâneo em que vivemos?

KW: É raro que haja muita coisa interessante na situação contemporânea; tem que encontrar na história esses curtos períodos de tempo. Hegel se referia ao que chamava de “espaços brancos”. Já fiz essa busca; está nas obras. Em relação à situação atual, não percamos nosso tempo com aquilo que passa em todos os jornais: os chamados desastres “naturais”; a política falida ou enlouquecida; a cultura que não passa de uma pseudocultura; a educação muitas vezes bagunçada, com intervenções seguidas umas das outras, cerrando as perspectivas e colocando em risco, quase ao ponto de destruição, a arte de ensinar. O primeiro capítulo do meu livro Au large de l’HistoireWHITE, Kenneth. Au large de l’Histoire. Marselha: Le Mot et le Reste, 2015.[Fora da História] (que ainda não tem tradução em inglês) se chama “O império da mediocracia”. Não é um apelo contra a mediocridade; não sou um intelectual esnobe. É um apelo contra a mediocridade elevada a uma potência sociopolítica: a demagogia no lugar da democracia. É claro que, felizmente, há alguns núcleos de resistência: nas escolas e universidades, no mundo editorial, nas críticas e no jornalismo. Já trabalhei e continuo a trabalhar com eles. Para eles é complicado, mas ainda têm força: uma rede de indivíduos astutos e visionários. No meu caso, o foco principal de interesse e a pretensão é uma obra completa. Por quê? Porque, vendo as coisas pela perspectiva longa, ampla e distante, acho que é graças à existência e à presença (muita coisa já se perdeu em função de descaso, fanatismo, vandalismo) de obras completas dessa natureza (talvez cinco por século no mundo todo) que a humanidade consegue evitar a insignificância. Talvez eu consiga realizar uma.

References

  • AAVV. Cahiers de géopoétique. Disponível em : https://www.institut-geopoetique.org/fr/cahiers-degeopoetique
    » https://www.institut-geopoetique.org/fr/cahiers-degeopoetique
  • BATESON, Gregory. Mind and Nature: A necessary unity. Nova York: Dutton, 1979.
  • LEOPOLD, Aldo. A Sand County Almanac: And Sketches Here and There. Oxford: Oxford Press, 1949.
  • WELLS, Herbert George. The Outlook for Homo Sapiens Londres: Readers Unionand Secker & Warburg, 1942.
  • WHITE, Kenneth. L’Esprit nomade Paris: B. Grasset, 1987.
  • WHITE, Kenneth. The Blue Road Londres: Trafalgar Square, 1990.
  • WHITE, Kenneth. House of Tides Edimburgo: Edinburgh University Press, 2001.
  • WHITE, Kenneth. The Wild Swans Toronto: Tundra Books, 2003.
  • WHITE, Kenneth. Au large de l’Histoire Marselha: Le Mot et le Reste, 2015.
  • WHITE, Kenneth. The Winds of Vancouver: A Nomadic Report from the North Pacific Edge. Aberdeen: AHRC Centre for Irish and Scottish Studies, 2015.
  • WHITE, Kenneth. La Mer des Lumières Marselha: Le Mot et le Reste , 2016.
  • WHITE, Kenneth. Letters from Gourgounel. In: The Collected Works of Kenneth White: Underground to Otherground. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2021a. v. 1. p. 99-174.
  • WHITE, Kenneth. The Face of the East Wind. In: The Collected Works of Kenneth White: Mappings: Landscape, Mindscape, Wordscape. Edimburgo: Edinburgh University Press , 2021b. v. 2. p. x-x.
  • WHITE, Kenneth. Incandescent Limbo. In: The Collected Works of Kenneth White: Underground to Otherground. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2021c. v. 1. p. X-X.
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    Rebecca Atkinson é Doutoranda da Faculdade de Letras da UFRJ, tradutora e intérprete de conferências na Albion Idiomas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    08 Nov 2022
  • Aceito
    09 Dez 2022
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