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Viver da Arena: casas, práticas econômicas e temporalidades pós-pandêmicas

“Viver da Arena”: houses, economic practices and post-pandemic temporalities

Resumo

Neste artigo, analiso um conjunto de relações que entrelaçam casas, práticas econômicas e temporalidades, nos entornos da Arena do Grêmio, estádio de futebol em Porto Alegre. A imbricação entre espaços residenciais e espaços comerciais é um aspecto central no contexto de estudo, evidenciada pela ativação de um circuito comercial em casas nas adjacências dessa arena multiúso. Apresentar a forma pela qual as pessoas analisam diferentes marcadores temporais se traduziu em um caminho para identificar fluxos, práticas comerciais e os modos pelos quais temporalidades pandêmicas foram vivenciadas. Situarei a análise em casos que permitem refletir sobre como as consequências, econômicas e sanitárias, da pandemia de Covid-19 foram vividas indissociavelmente. A partir da etnografia, demonstro como diferentes temporalidades fomentaram mudanças nas casas, atravessaram experiências familiares e modularam expectativas à superação de crises, representando o advento de um período pós-pandêmico.

Palavras-chave:
casas; práticas econômicas; temporalidades; pandemia de Covid-19

Abstract

In this article, I analyze relations between houses, economic practices, and temporalities, in the surroundings of the Arena do Grêmio (Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense’s stadium), in Porto Alegre, RS, Brazil. The imbrication between residential and commercial spaces is a central aspect in the study context, evidenced by the activation of a commercial circuit in houses adjacent to this multi-purpose arena. Present the form in which people analyze different temporal markers enable a way to identify flows, commercial practices and the ways in which pandemic temporalities were experienced. I will situate the analysis in cases that allow us to reflect on how the economic and health consequences of the COVID-19 pandemic were experienced inseparably. Based on ethnography, I demonstrate how different temporalities fostered changes in houses, crossed family experiences and modulated expectations for overcoming crisis, representing the advent of a post-pandemic period.

Keywords:
houses; economic practices; temporalities; COVID-19 pandemic

Introdução

A elaboração deste texto ocorreu a partir de uma pesquisa etnográfica, concretizada durante os anos de 2021 e 2022, a qual fundamentou a minha dissertação de mestrado (Fernandes, 2023FERNANDES, B. G. Entre casas, comércios e temporalidades: uma etnografia de práticas econômicas nos entornos da Arena do Grêmio. 2023. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2023. Disponível em: Disponível em: http://objdig.ufrj.br/72/teses/935621.pdf . Acesso em: 25 jun. 2024.
http://objdig.ufrj.br/72/teses/935621.pd...
).1 1 O trabalho Entre casas, comércios e temporalidades: uma etnografia de práticas econômicas nos entornos da Arena do Grêmio (Fernandes, 2023) foi defendido em março de 2023, pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ. A dissertação foi orientada pelo professor Federico Neiburg e contou com o financiamento da Capes e da Faperj, em seu primeiro e segundo ano, respectivamente. Ademais, se insere no âmbito de trabalhos do Núcleo de Pesquisas em Cultura e Economia (NuCEC/MN/UFRJ). Nela, analisei um conjunto de relações que entrelaçam práticas econômicas, casas e temporalidades, nos entornos da Arena Porto-Alegrense, ou simplesmente Arena do Grêmio (estádio do clube Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense), situada no bairro Farrapos, zona norte de Porto Alegre.2 2 Segundo o site do equipamento, representa o maior e mais moderno complexo multiúso da América Latina (Sobre, [2024]).

O foco nos espaços urbanos adjacentes ao estádio constituiu-se como recorte empírico de investigação por concentrar um conjunto de casas com comércio, que reportam às relações diárias de sustento de moradores e comerciantes. A imbricação de atividades domésticas com atividades comerciais é um dos temas centrais da pesquisa, possibilitada, dentre outros motivos, por uma série de transformações urbanas e pelo funcionamento da arena multiúso.

Através do ponto de vista de comerciantes locais, examinei como se modulam práticas econômicas por meio de modificações nas casas, as quais estão articuladas a diferentes temporalidades que incidem naquele contexto. Em outras palavras, existem horizontes temporais que, ao serem produzidos e percebidos, possibilitam diferentes estratégias para se ganhar dinheiro.

Nesse sentido, o tempo é um aspecto central na organização dos negócios, no bairro pesquisado. Não como algo uniforme, abstrato, ou necessariamente contínuo. A potencialidade da etnografia, ao tratar das temporalidades, revela como existem diferentes formas de ver e abordar o tempo (Bear, 2016BEAR, L. Time as technique. Annual Review of Anthropology, [s. l.], v. 45, n. 1, p. 487-502, 2016.). E, como aponta Fabian (2013)FABIAN, J. O tempo e o outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Petrópolis: Vozes, 2013., lidamos também com temporalidades constitutivas da pesquisa, que modulam e influenciam o trabalho de campo etnográfico, atravessado por encontros antropológicos que produzem a coetaneidade. Ao tecermos relações com nossos interlocutores, partilhamos noções de tempo e espaço que incidem sobre o estudo.

Com efeito, embora me apoie em uma abordagem sobre as práticas econômicas, o eixo descritivo principal do artigo é a análise de como a percepção, articulação e interseção de diferentes temporalidades incidem sobre os comércios nas casas. Nessa direção, enfatizar a forma como os interlocutores analisam e experenciam diferentes marcadores temporais se traduziu em um caminho para analisar aspectos que caracterizam as práticas econômicas estudadas. Várias camadas de tempo vão moldando as atividades econômicas pesquisadas, entrelaçadas às experiências de vida e do habitar dos comerciantes nos entornos da Arena do Grêmio. Como sugere Laura Bear (2016)BEAR, L. Time as technique. Annual Review of Anthropology, [s. l.], v. 45, n. 1, p. 487-502, 2016., ao prestarmos atenção ao tempo, não apenas em sua representação dominante como técnica, podemos identificar a produção de diferentes desigualdades e mapear tecnologias de imaginação que revelam formas criativas de agência humana.

Este artigo trata como, no cenário da pandemia de Covid-19, a suspensão da presença do público na Arena foi uma forma de evitar possíveis aglomerações humanas e a proliferação do novo coronavírus, mas não apenas alcançou esse resultado.3 3 O último jogo, antes da interdição do estádio, foi no dia 12 de março de 2020. Estive presente na ocasião, marcada por um clássico entre Grêmio e Internacional, que reuniu mais de 50 mil pessoas pela Copa Libertadores da América. O torcedor retornou ao estádio apenas no dia 3 de outubro de 2021 com a obrigatoriedade de vacinação e público limitado a 30% de sua ocupação. Em 2022, os protocolos foram flexibilizados e o público total foi liberado (ver Arena […], 2021). Para fins etnográficos, objetivo trabalhar na elaboração de como esse momento de restrições foi vivenciado em comércios locais, alterando práticas econômicas familiares, gerando incertezas em suas projeções temporais, modificando as suas expectativas e motivando outras estratégias ocupacionais e mudanças nas suas casas.

No âmbito da pandemia de Covid-19, horizontes temporais contingentes e difusos, revestidos de incertezas, alteraram dinâmicas sociais e se associaram a finalidades postas em determinado momento pelas pessoas. Uma delas era a busca pela combinação de diferentes maneiras de se ganhar dinheiro, diante das restrições impostas pelo período. Algumas situações foram identificadas na etnografia, permitindo questionamentos: diante da impossibilidade de público nos estádios e de mudanças nos ganhos econômicos de famílias comerciantes, quais as alternativas agenciadas pelas pessoas e suas “jogadas” para enfrentar as adversidades? O que o momento pandêmico revela sobre as dimensões temporais que atravessaram as casas estudadas? Quais são as experiências e as expectativas que traduzem a passagem de um período com pandemia ao de pós-pandemia?

Situarei a análise em dois casos que permitem refletir sobre como as consequências econômicas e sanitárias da pandemia foram vividas indissociavelmente, assim como ilustram diferenças e semelhanças. Em um contexto estruturado em múltiplas escalas temporais e espaciais, demonstro como diferentes temporalidades fomentaram mudanças nas casas, atravessando experiências familiares e modulando expectativas à superação de crises (marcando o advento de um período pós-pandêmico).

Mobilizo perspectivas de interlocutores situados em duas configurações familiares distintas e que contribuíram ativamente para a investigação, compartilhando percepções e dando acesso, gentilmente, aos espaços de suas residências e de seus comércios. Ambos avaliam os eventos na Arena como produtores de fluxos sazonais de pessoas no bairro, repercutindo na abertura de um campo de possibilidades econômicas e vitais. Assim sendo, como um deles me descreveu, recorrem ao “viver da Arena”, isto é, constituem negócios a partir da realização de eventos programados nesse megaempreendimento.

A análises de dois casos particulares revela como temporalidades distintas atravessaram cotidianos e negócios, como as relacionadas ao futebol, ao clima, à pandemia, à casa e à política. Também, enuncia como o retorno dos fluxos de torcedores na Arena, em 2021 e 2022, foi experimentado como momento de superação gradual da pandemia e, notadamente, expectado.

Além desta introdução, o artigo está dividido em seis partes: em um primeiro momento, indico como a Arena, como megaempreendimento, promoveu uma série de mudanças no bairro, permitindo que se articulem as temporalidades dos eventos às das transformações nas casas, fomentando práticas e expectativas econômicas; após, partindo do caso do comerciante Oti,4 4 Para preservar a identidade dos interlocutores da pesquisa, os seus nomes verídicos foram alterados para nomes fictícios. apresento como o “viver da Arena” se associa à modulação de um circuito comercial localizado, que relaciona configurações familiares e casas; em seguida, descrevo mudanças e incertezas na vida de Oti, durante o período pandêmico; também, abordo o caso de Pedro e Amélia, que aproveitaram a pandemia para reformar a casa, ampliando os seus espaços comerciais e informando horizontes de expectativas temporalizados; na sequência, estabeleço um olhar comparativo a partir dos dois casos informados. Ao final, apresento considerações.

Do ponto de vista metodológico, a investigação esteve sustentada na etnografia, amparada pela observação participante durante toda a temporada de jogos do Grêmio em 2022, em dez entrevistas semiestruturadas, pela pesquisa documental e bibliográfica e na produção de um survey com comerciantes.5 5 O survey, em formato de questionário, foi aplicado em 51 casas com comércio nos entornos da Arena, no período de 3 de outubro a 3 de novembro de 2022. Significa que o instrumento abarcou aproximadamente 70% do universo das casas pesquisadas, como mostrarei. Ao realizá-lo, identifiquei quem são os(as) proprietários(as), os perfis dos comércios e como os ganhos circulam pelas redes familiares e modificam casas.

Os comércios nos entornos da Arena

Alguns trabalhos antropológicos sugerem que megaempreendimentos atraem novas infraestruturas que reúnem uma combinação de objetos, espaços, pessoas e práticas que produzem e reproduzem a vida urbana (Campos, 2022CAMPOS, M. Sobre o corre da arte: uma etnografia dos futuros vividos e do ganhar a vida na cidade do Rio de Janeiro. 2022. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022.; Gupta, 2018GUPTA, A. The future in ruins. Thoughts on the temporality of infrastructure. In: ANAND, N.; GUPTA, A.; APPEL, H. (ed.). The promise of infrastructure. Durham: Duke University Press, 2018. p. 62-79.; Simone, 2004SIMONE, A. People as infrastructure: intersecting fragments in Johannesburg. Public Culture, [s. l.], v. 16, n. 3, p. 407-429, 2004.). Uma aparência de solidez, durabilidade e rigidez nos remete à ideia de que essas infraestruturas seriam materialidades que conformariam um ideal de cidade, planejado por técnicos e urbanistas. Por outro lado, existem processos sociais de apropriação não planejada dessas estruturas por populações que fazem a vida nesses contextos.

A Arena do Grêmio começou a ser construída em 2010 e foi inaugurada em 8 dezembro de 2012, no contexto prévio de preparação à Copa do Mundo FIFA 2014. Mesmo não estando entre os estádios que sediaram o evento global - e sim o estádio do Sport Club Internacional, rival singular do time gremista -, a Arena foi uma obra aguarda por torcedores, gestores, políticos, tecnocratas e por diversos veículos de comunicação (Scherer, 2017SCHERER, M. I. Construção e reforma: viva a copa e adeus ao torcedor! Modernização dos estádios em Porto Alegre em tempos de políticas neoliberais, 1989-2011. 2017. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017.). Em dois anos, milhares de trabalhadores da construção civil, em sua maioria oriunda do Nordeste brasileiro, mobilizaram forças e recursos técnicos para viabilizar a edificação do novo empreendimento - além de torres residenciais, viadutos e uma rodovia nova (a BR-448), nos anos seguintes.

Comércios foram ampliados e outros surgiram na localidade, para atender as demandas dos que trabalhavam nas obras, principalmente. Após a inauguração da Arena, novas clientelas foram consolidadas. Na atualidade, as casas com comércio servem, além de trabalhadores, diretamente torcedores e moradores, usuários ou não do estádio: bares, lancherias, restaurantes, mercearias, espaços para coletivos organizados (como consulados e entidades clubistas), dentre outros, compõem um circuito comercial localizado. Como destacou Daiane Martins (2019)MARTINS, D. Manifestações torcedoras e território: inter-relações das imediações de um estádio de futebol. 2019. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Escola superior de Educação Física, Universidade Federal de Pelotas, 2019., em muitos locais os estabelecimentos foram abertos nos quintais, ou nas garagens das casas, produzindo uma configuração peculiar do espaço para fins socioeconômicos.6 6 Existem outras atividades econômicas fora das casas: ambulantes variados, guardadores de carro, cambistas, seguranças e profissionais ligados à organização dos eventos. Lugares assim costumam ter um apelo estético definido pelas cores gremistas (preto, branco e sobretudo o azul celeste), além de placas de identificação com marcas de bebida e comida.

Figura 1
Bar na rua Luiz Carlos Pinheiro Cabral, aberto em março de 2022.

Após a concretização da Arena, para quem “é de fora da vila” e não reside no bairro, como é o meu caso, a aproximação territorial passou a ser, também, mediada por definições temporais associadas aos eventos. É a partir de certo pertencimento clubístico e em manifestações torcedoras variadas que, em geral, os “de fora” adentram o bairro, conhecem e se apropriam de um conjunto de atividades que dão sentidos cognitivos e emocionais ao torcer (Damo, 2021DAMO, A. Dos grounds às arenas - as quatro gerações de estádios brasileiros em perspectiva antropológica. Museologia e Patrimônio, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 212-246, 2021.; Martins, 2019MARTINS, D. Manifestações torcedoras e território: inter-relações das imediações de um estádio de futebol. 2019. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Escola superior de Educação Física, Universidade Federal de Pelotas, 2019.). Convém dizer que esses sentidos, também, são mediados pelas trocas econômicas, atividades de consumo e pelas temporalidades do território.

Em diferentes incursões em dias de jogos do Grêmio, iniciei uma contagem do número de casas com comércio, em ruas determinadas. Em média, cerca de 75 estabelecimentos funcionando foram contabilizados durante os jogos de futebol, no ano de 2021 e 2022, não sendo contabilizados os demais comerciantes nômades, ou ambulantes.8 8 Essa contabilidade, ainda que limitada, foi realizada durante uma vez em 2021 (no último jogo do Campeonato Brasileiro da série A) e três vezes em 2022 (na primeira contagem, na final do campeonato gaúcho, foram 81 casas; na segunda, no primeiro turno da série B, foram 72 casas; no último jogo do mesmo campeonato, 75 casas). O número total de comércios, no entanto, representa uma estimativa volátil, já que existem aqueles que fecharam ao longo do ano mencionado - para alguns, “quebrar”, fechar, “mudar de ramo” era um efeito direto da crise econômica atrelada à pandemia. Porém, acompanhando praticamente todas as partidas da série B de 2022, indico que novos locais também foram abertos, mantendo a média estimada. As casas com comércio estão situadas, sobretudo, em quatro vias basilares que dão acesso ao estádio: nas avenidas Padre Leopoldo Brentano e A. J. Renner; nas ruas Voluntários da Pátria e na Frederico Mentz. Ademais, outras estavam distribuídas em vias paralelas às referidas, compondo um dinâmico circuito comercial.

Em texto acerca das relações entre casas e economia em favelas, Eugênia Motta (2014)MOTTA, E. Houses and economy in the favela. Vibrant, Brasília, v. 11, n. 1, p. 118-158, 2014. demonstra como os espaços domésticos podem ser tomados como um arranjo complexo de pessoas, objetos e lugares construídos, inseridos em relação a outros espaços edificados. Em suas interlocuções, descreve como a transformação de determinadas áreas da casa em espaços comerciais foi fundamental para que novas atividades pudessem ser viabilizadas por residentes dessas localidades. Ao evocar o conceito de mutabilidade, Motta (2014MOTTA, E. Houses and economy in the favela. Vibrant, Brasília, v. 11, n. 1, p. 118-158, 2014., p. 144) sugere como as construções podem, a partir de investimentos variados, ser alteradas de modo a possibilitar a combinação simultânea, ou sucessiva, de atividades para se ganhar dinheiro.

A autora salienta, de modo complementar, que a mutabilidade dos espaços da casa em espaços de negócio não significa uma simples mistura, ou separação de infraestruturas. Trata-se da observação de que as casas são lugares mutáveis, por definição, e podem ter alguns de seus espaços cedidos a atividades que não são as de cuidado, ou de manutenção da vida cotidiana. Com efeito, as possibilidades de transformação das construções estão conjugadas com diferentes atividades para se ganhar dinheiro, seja de modo sincrônico, ou ao longo do ciclo de vida familiar. Ou seja, aparecem como estratégicas ao cotidiano e entrelaçadas a aspectos territoriais e temporais.

O trabalho referido parece-me particularmente valioso, pois possibilita o questionamento: como noções e percepções de tempo (que podem ser variadas, objetivas e subjetivas) se conectam a essas mudanças? Motta sugere que a mutabilidade das casas se remete a transformações passadas, imaginadas e realizadas, que traduzem um repertório sobre o qual se fala sobre o passado, o presente e o futuro. Por meio dele, se avaliam os bons e maus negócios e se constroem reputações nas configurações familiares examinadas. As narrativas sobre as construções revelam um tipo de temporalidade que escapa das divisões lineares do calendário. Os eventos familiares (tais como nascimentos e mortes) se somam às percepções sobre a mutabilidade da casa.

Nas localidades estudadas no bairro Farrapos, os eventos que se associam às casas extrapolam a sua natureza familiar interna, já que elas são convertidas em espaços comerciais e de práticas econômicas vitais a partir de vetores externos. Assim, as memórias dos eventos e da mutabilidade das residências se associam aos jogos e programações da Arena e, como demonstrarei, aos horizontes temporais difusos mais amplos da pandemia.

Nesse contexto, as mudanças estão conectadas a diferentes escalas temporais. Desse modo, de modo complementar ao que Mariana Cavalcanti (2009CAVALCANTI, M. “Do barraco à casa”: tempo, espaço e valor(es) em uma favela consolidada. Revista Brasileira de Ciências Sociais, [s. l.], v. 24, n. 69, p. 69-80, 2009., p. 77) expõe, não apenas múltiplas espacialidades podem coabitar um mesmo espaço, que pode ser casa, comércio ou área de lazer - revestindo a casa de investimentos materiais e subjetivos ao longo do tempo e alterando as suas disposições e sentidos -, mas também variadas temporalidades incidem sobre os seus espaços.

Diante dessas reflexões, situo a análise etnográfica em horizontes temporais que não são contínuos nem permanentes, e que podem ser ou não incorporados ao cotidiano, conforme as estratégias de reprodução social dos agentes: as temporalidades dos jogos e eventos na Arena do Grêmio; o tempo de organização dos negócios e de mudanças nas casas; o tempo da política (partidária e clubista); e as temporalidades pandêmicas e de superação das crises (que representam uma volta à “normalidade”, ou uma reorganização social pós-pandêmica). Esses marcadores temporais, como argumento, atravessam as casas e as percepções dos interlocutores, gerando inflexões em suas práticas econômicas nas casas.

A preparação e organização dos comércios estudados não se resumem a poucas horas de dedicação antes, durante e após os eventos, diante da concorrência na vizinhança. Representa um investimento cotidiano, gerador de práticas engendradas conforme o calendário de eventos na Arena e, sobretudo, em conformidade com a “temporada de futebol gremista”. Norbert Elias (1998ELIAS, N. Sobre o tempo. Editado por Michael Schröter. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998., p. 10) já chamou a atenção para a forma como a racionalização do tempo no mundo ocidental implicou um longo processo de aprendizagem, sendo o calendário uma espécie de quadro de referências, que proporciona sentidos a uma sequência ordenada de acontecimentos. De fato, o calendário de eventos é valorizado diante de expectativas e planejamentos financeiros das famílias com comércios nas imediações da Arena.9 9 Além das temporalidades pandêmicas, coexistiram temporalidades outras, marcadas também por processos sociais específicos: 2022 foi ano eleitoral no Brasil e de eleição do novo Conselho de Gestão e Presidência gremista. Complementarmente, foi um ano de Copa do Mundo, agendada para novembro e dezembro. Essa mudança condensou o calendário de jogos do Grêmio em poucos meses e antecipou términos de campeonatos nacionais, alterando a rotina e os ganhos de dinheiro das famílias envolvidas.

Podemos considerar que os eventos na Arena do Grêmio, sendo programados e divulgados antecipadamente, estão rotinizados dentro da organização e funcionamento desses espaços comerciais e, ainda, da cidade de Porto Alegre (Martins; Knuth, 2020MARTINS, D.; KNUTH, A. Manifestações torcedoras e território: configurações das imediações da Arena do Grêmio. Movimento. Porto Alegre, v. 26, p. 1-15, 2020.). Contudo, a etnografia visibilizou como apenas alguns eventos esportivos e culturais ultrapassam a assimilação ordinária e são projetados a partir de expectativas ritualizadas e econômicas. Eventos como Grenal,10 10 “Grenal” é a palavra derivada da junção dos nomes de dois clubes de futebol que protagonizam esse duelo: Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense e Sport Club Internacional, ambos de Porto Alegre. É considerado um dos maiores clássicos do futebol brasileiro. jogos eliminatórios de competições internacionais e nacionais (sobretudo, Libertadores da América e Copa do Brasil), decisões e comemorações de títulos esportivos e a realização de festivais de música costumam ser expectados e experenciados por suscitarem a movimentação de volumes consideráveis de dinheiro, no âmbito espacial e temporal das casas e de suas zonas de intimidade.

Nas palavras de um comerciante: “a gente ganha bem em jogos grandes, eliminatórios, quando a Arena enche”. Esses eventos costumam ser categorizados como “bons” (atribuindo reputação aos negócios e às casas), ou “jogos grandes”, por isso possuem um caráter extraordinário e exigem maior preparação nas atividades comerciais. As famílias esperam e prospectam obter ganhos acima da média - diante da maior presença de público e do aumento da circulação monetária no bairro. Assim, “se o Grêmio vai bem nos campeonatos, nós também vamos bem”, narrou um comerciante ao contar com empolgação sobre a quantidade de vendas que realizou, em uma final de campeonato.

Como é possível depreender, as temporalidades dos eventos e as do futebol estão revestidas de expectativas econômicas. No entanto, o que ocorre quando uma pandemia atravessa o cotidiano e modifica horizontes temporais e econômicos no interior de casas com comércio? Como lidar com as restrições e incertezas? E quais marcadores de tempo são modulados e expectados? Na sequência, tento percorrer essas questões a partir da exposição de dois casos etnográficos, imersos em relações comerciais, territoriais e temporais.

Casas e práticas econômicas familiares

“Ter um bar e funcionar nos dias de jogo não é uma tarefa fácil”,11 11 Entrevista concedida no dia 21 de março de 2022, na residência e comércio do interlocutor. afirmava Oti, 52 anos, dono de um dos comércios mais procurados nos entornos da Arena em dias de jogos do Grêmio. Antes da construção do estádio, cerca de 400 metros de sua casa, ele trabalhava como gerente de uma empresa no ramo alimentício e, além disso, por 21 anos, havia sido bancário. Durante toda a sua trajetória de vida residiu no bairro Farrapos, sendo profundo conhecedor de suas modificações e localidades.

Ao realizar trabalho de campo no comércio de Oti, em diferentes ocasiões, pude fazer questionamentos direcionados a respeito de sua trajetória, da construção de sua casa e do seu próprio negócio. Após casar-se com Lourdes, em 1997, ele construiu e reformou a sua moradia. Com a ajuda do sogro, edificou uma casa ampla, concentrando quartos, sala, cozinha e banheiro no primeiro pavimento, naquela época. Mas a construção de uma escada, que dava acesso a um segundo pavimento a ser construído, foi central em modificações que ocorreram a partir de 2012. Suas palavras são explicativas: “Eu sempre tive minha casa aqui embaixo, antes de 2012 era minha residência e não um bar. Fui aumentando peça, quebrando, hoje temos os dois pisos.” Em 2023, os cômodos da residência estavam concentrados no segundo pavimento. O bar, o banheiro e cozinha comerciais, no primeiro.

Juntamente com Lourdes, Oti criou as duas filhas naquela residência. Ao conhecer a história dessa família, me atento aos processos de constituição e de coprodução entre pessoas, casas e seus universos sociais (Carsten; Hugh-Jones, 1995CARSTEN, J.; HUGH-JONES, S. Introduction. In: CARSTEN, J.; HUGH-JONES, S. (ed.). About the house: Levi-Strauss and beyond. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. p. 1-46.). A vinculação íntima entre a qualidade corpórea das casas e os corpos que nelas habitam se relaciona com circunstâncias mutáveis: hoje, já adultas e casadas, as filhas referidas residem com os respectivos maridos em outra casa adquirida pelos pais (cada família em um andar), no mesmo bairro.

A escada, ou a visão de futuro do sogro, também possibilitou a ampliação arquitetônica da casa, dos negócios e da família. As entradas e a circulação de dinheiro a partir da inauguração da arena vizinha foram determinantes - reformas foram feitas com os ganhos trabalhistas de Oti e do lucro obtido em seu comércio. Há um elemento extra fundamental nessa biografia familiar, atribuído a uma escala futebolística: o desempenho esportivo exitoso do Grêmio nos primeiros anos de Arena atraía a frequência do público naquele comércio, recheado de manifestações torcedoras em dias de jogos (Martins, 2019MARTINS, D. Manifestações torcedoras e território: inter-relações das imediações de um estádio de futebol. 2019. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Escola superior de Educação Física, Universidade Federal de Pelotas, 2019.).

Mudanças gigantescas ocorreram na vida de Oti e de sua família nos anos seguintes à inauguração do estádio. O que era um meio de complementar a renda familiar converteu-se em principal objeto de trabalho e de ganho econômico do casal: “Na época, em 2012, tinha um emprego razoável. Mas fiquei pilhado em abrir o bar e tentar um extra.” Prosseguiu: “Não imaginava que daria esse ‘up’ e eu poderia viver só dele. Hoje, eu e minha esposa, a gente consegue viver do bar.” A mudança foi experimentada com otimismo, mas com cautela. A abertura do bar foi em uma peça de garagem, inicialmente. Após, o negócio tomou proporções inesperadas. Isso porque, por uma demanda de um grupo de gremistas, esse comércio passou a ser constantemente procurado por torcidas organizadas e suas aliadas.

A partir de relações com alguns amigos e conhecidos, o bar de Oti ficou sendo visto como uma referência vital para torcedores vinculados a determinados coletivos gremistas. Passou a ser usado para a concentração no pré-jogo e no pós-jogo, bem como a comemoração de títulos. Ao longo do tempo, a relação com membros de torcidas organizadas se tornou central em seu negócio: “O bar é meu e não tem nada a ver com a torcida. Nós temos uma parceria, que ficou boa. Eu vendo minha cerveja e eles têm um local, uma referência.” Na casa de Oti e na vizinhança, é possível identificar atividades variadas de comercialização e de consumo de bens e serviços, vinculados à multifuncionalidade econômica dos territórios urbanos (Martins, 2019MARTINS, D. Manifestações torcedoras e território: inter-relações das imediações de um estádio de futebol. 2019. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Escola superior de Educação Física, Universidade Federal de Pelotas, 2019.).12 12 A configuração de um mercado de venda e consumo de bebidas alcóolicas é estratégica nos diferentes negócios aqui estudados. Objetivamente, a proibição da venda de bebidas alcóolicas no interior dos estádios de futebol, prevista pela lei estadual 12.916 de 2008 (Rio Grande do Sul, 2008), influencia diretamente nas movimentações econômicas e consumo no lado externo dos estádios.

Evidentemente, as reciprocidades entre torcedores e o comerciante não são apenas materializadas nas trocas econômicas. Trabalho e festividade estão imbricados em múltiplos locais nos entornos da Arena, tal como nesse caso. Esteticamente, sua casa e o seu bar estão coloridos com símbolos e cores gremistas (azul, preto e branco). Arquitetonicamente, é notável como o espaço interno comercial foi alterado para tal finalidade (com freezers, banheiros, churrasqueiras e balcões) e o espaço externo de calçamento público, em frente, é apropriado pelos grupos de torcedores em dia de jogo.

Figura 2
Torcedores e ambulantes na avenida A. J. Renner. Horas antes do jogo Grêmio e Chapecoense pela série B do Campeonato Brasileiro, no dia 15/04/2022.

“Viver da Arena”, como sugerido pelo interlocutor, constitui-se como reflexo de um campo de ações que conecta casas, comércios e trocas entre familiares, amigos, vizinhos, torcedores de um clube de futebol, além do público de outros eventos (como shows), realizados naquele megaempreendimento. Nesse campo, além de observar espaços da casa como locais de mercado, evidenciei princípios de troca não apenas de caráter mercadológico que materializa a precificação de bens e serviços. Valores, moralidades, emocionalidades e percepções sobre tempos e espaços estão em jogo na composição de um circuito comercial singular.

Do ponto de vista etnográfico, uma dualidade constitutiva foi, com frequência, comunicada pelos interlocutores de pesquisa. Reporta, basicamente, a dois modelos de negócio que dependem de dinâmicas e organizações familiares. Um primeiro, no qual o comércio passou a ser a principal fonte de renda de uma família (sendo aberto rotineiramente, ou apenas em dias de eventos); um segundo, no qual o comércio opera como fonte de renda suplementar, ou de “renda extra” (funcionando apenas em dias de jogos e shows). Essa dualidade foi capturada em uma das questões do survey:

Finalidade de negócio Casos Obter principal fonte de renda 15 (30%) Obter renda extra 36 (70%)

Assim, ao menos em 36 comércios, seus representantes possuem outras ocupações profissionais, distintas formas de ganhar a vida. Mas, convém apontar, em alguns casos nos quais o comércio é visto como principal fonte de renda, outras atividades também podem ser realizadas pelos comerciantes, fora daquele âmbito e resultando em combinações ocupacionais. Nas observações etnográficas, fica evidente como esse número pode variar também de acordo com o “momento” do clube gremista (que pode ou não disputar várias competições e aumentar as probabilidades de gerar fluxos de dinheiro nas casas). A disputa de uma competição internacional, por exemplo, pode render ganhos consideráveis e, com isso, desmotivar a dedicação de comerciantes a outras atividades econômicas (a sazonalidade dos ganhos está articulada com temporalidades futebolísticas e as programações dos eventos, mas não apenas).

Em 2022, o “momento” do Grêmio na série B do Campeonato Brasileiro foi de instabilidade nos resultados esportivos, diminuindo o fluxo de torcedores nos jogos e acarretando uma redução de ganhos dos comerciantes em relação a anos prévios à pandemia de Covid-19 (que fez sucumbir a rentabilidade dos estabelecimentos). Nesse cenário, muitos combinaram outras atividades com a função comercial e recorreram a outros modos de obtenção de dinheiro, como através de aposentadorias, ajudas, vendas de bens, dentre outros.13 13 Através do survey realizado evidenciei que, durante o período sem a presença de torcida na Arena (março de 2020 até outubro de 2021), muitos comerciantes exerceram outras ocupações. Ao questionar “O que você fez durante a pandemia para sustentar a sua família?”, pude analisar como diferentes estratégias ocupacionais foram engendradas, sobretudo em trabalhos autônomos e flexíveis, algo que exponho no capítulo três da dissertação (Fernandes, 2023).

Além de Oti, mais três pessoas costumam trabalhar (“fazendo um extra”) no seu bar em dia de jogo: a sua filha mais nova, o genro e um amigo - todos com emprego fixo em outros locais. A sua esposa, Lourdes, contribui com atividades de limpeza e logística, mas não quando o comércio está aberto. Em uma das minhas incursões pelo bairro, observei Lourdes recebendo produtos e negociando com fornecedores de bebida, em um dia no qual o bar estava fechado e Oti havia saído para auxiliar a sogra. Obrigações familiares e econômicas estão continuamente imbricadas.

Não apenas no caso de Oti, a imagem da casa como local de moradia e de comércio está atrelada ao parentesco e às relações de intimidade. Não há uma separação hostil e estanque das atividades econômicas com as atividades familiares. Efetivamente, uma parte considerável dos negócios envolve redes familiares e laços de parentesco, sobretudo os que residem na mesma casa - diminuindo custos com encargos trabalhistas e facilitando as relações de cooperação.

Quem são as pessoas que trabalham em seu comércio? Grupo Nº de casos Apenas familiares 34 Familiares, amigos e vizinhos 10 Funcionários contratados14 1 Apenas o proprietário 6

No conjunto, os comércios aqui representados encontram-se altamente inseridos em configurações familiares, tendo relação com o fato de muitos residirem na mesma casa em que se formou o espaço comercial. Isso faz com que outro aspecto seja salientado: a relação entre dinheiro e intimidade. À luz de Viviana Zelizer (2011)ZELIZER, V. A negociação da intimidade. Petrópolis: Vozes, 2011. (Coleção Sociologia)., a intimidade está fundamentada em uma relação duradoura de confiança. Diante dessa perspectiva é possível analisar como a intimidade fomenta a conectividade entre habitantes da mesma casa. A circulação de dinheiro não necessariamente deteriora esses laços, ao contrário, pode coabitar o espaço da casa regularmente com a intimidade e até mesmo sustentá-la. Por outro lado, os sujeitos empreendem esforços para separar zonas de intimidades e relações comerciais, a partir da natureza de suas relações morais e pessoais e para prevenir ou gerir conflitos nos laços produzidos (que podem ser alterados ao longo do tempo).

As zonas de intimidade das casas permitem que relações familiares sejam tecidas, efetivamente, em conjunto com a circulação de dinheiro e de transações de outras materialidades, que entrecruzam moralidades, afetividades e práticas de cuidado, além de outras dimensões - evidenciando que as diversas esferas da vida humana não estão separadas em “mundos hostis” (Zelizer, 2011ZELIZER, V. A negociação da intimidade. Petrópolis: Vozes, 2011. (Coleção Sociologia).).

No contexto deste estudo, em diferentes casas, identifiquei comerciantes que optavam por remunerar parentes, vistos como “pessoas de confiança”. Escolher pessoas afins que podem trabalhar sem gerar problemas laborais é uma estratégia em muitos negócios, diante do caráter informal das atividades e acordos. Em muitos locais, famílias inteiras estão envolvidas, sobretudo casais, filhos, pais e mães dos(as) proprietários(as). Também se revelam a presença de irmãos, irmãs, cunhados e cunhadas, além de primos e afilhados, sendo identificadas várias nomenclaturas nativas de parentesco (“meu guri”, “minha enteada”, “meu velho”, “mano”, ou até mesmo a noção de “primo” para se referir a um amigo próximo). Em muitos casos, a circulação de dinheiro entre familiares nutre relações de proximidade que se complementam, sustentam e criam movimentos de manutenção dos negócios e de diferentes projetos de vida (pagar a faculdade da filha, adquirir um carro para alguém trabalhar como motorista, ou custear o financiamento de uma moradia ao filho que casa, dentre outros exemplos).

A seguir, analiso como o período pandêmico foi vivenciado por Oti e sua família e, após, por um vizinho seu, em outro caso. Apresento, principalmente, a perspectiva de homens sobre temporalidades, casas e negócios, em contextos marcados por hierarquias sociais, como as de gênero, raça e geração.

As temporalidades da pandemia

Segundo Oti, a aglomeração de torcedores e de suas manifestações, junto ao consumo de bebida alcóolica, nem sempre favoreceu a uma convivência lúdica e harmônica entre os envolvidos: “Isso aqui dá grana, mas dá uma incomodação, que vou te dizer… Função de torcida, sempre tem estresse.”

A seguinte analogia, empregada pelo comerciante em meados de março de 2022, é ilustrativa sobre como o inesperado pode irromper durante os eventos: “Eu digo que isso aqui é uma granada sem pino. Pode explodir a qualquer hora. Tem jogo que passa sereno. Tem jogo que explode, dá briga, aparece a polícia.” O policiamento ostensivo, em dias de jogo, nem sempre garante a prevenção e contenção de brigas, desavenças e conflitos, que podem respingar nos que estão próximos, nos próprios comerciantes e em seus familiares, os quais procuram apaziguar possíveis desavenças. Essas são situações extraordinárias, dentro de um funcionamento já rotinizado dos comércios.15 15 O horário de funcionamento do bar do Oti é diretamente atrelado ao dia e horário de jogo do Grêmio. Em geral, o comerciante abre algumas horas antes de cada jogo e não possui um horário fixo para fechar, dependendo da demanda dos consumidores e da disponibilidade de estoque de bebidas. Os horários dependem de uma avaliação estratégica dos fluxos no bar. Veena Das (2020)DAS, V. Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp, 2020. já havia formulado, em outro contexto distinto, como o cotidiano é tecido e invadido pelos fluxos extraordinários dos eventos, mas também como eventos são incorporados às tessituras do cotidiano. Nesse caso também, notamos como as situações de violência irrompem nas rotinas dos bares, por vezes, gerando acontecimentos inesperados aos eventos rotinizados.

Durante o período sem a presença de público, por conta da pandemia de Covid-19, Oti observou seu estabelecimento fechado durante quase dois anos (de março de 2020 até novembro de 2021). O tempo passou a ser um objeto de racionalização constante em suas estratégias econômicas. Com a interdição temporária de sua principal fonte de renda, dívidas no banco e contas fixas foram acumuladas. Me relatou que estava sem sua “galinha dos ovos de ouro”, em consideração à necessidade de isolamento social e à crise sanitária que se instalava. Porém, ainda com um emprego de entregador, em março de 2020.

Curiosamente, ainda no final de 2019, havia iniciado em um trabalho com carteira assinada, no qual realizava entregas no ramo da construção civil (uma forma de “ganhar um extra” em dias sem jogos). Ele tinha uma caminhonete, que lhe servia para trabalhar fora e, também, na logística de produtos ao seu bar.

Menos de 30 dias após a diminuição de seu horário de trabalho, a empresa lhe chamou para assinar a demissão, juntamente com outros colegas. O mundo desabou em sua cabeça: “Dispensaram todas as caminhonetes. Eu fiquei sem o bar e sem meu emprego fixo.” Como lidar com as incertezas e as instabilidades nas entradas de dinheiro? Quais estratégias eram possíveis para ter algum proveito econômico durante as impossibilidades que se produziram no período? Como conduzir a vida e imaginar soluções, nesse momento de crise?

Desdobrando uma análise historiográfica, Reinhardt Koselleck e Michaela Richter (2006)KOSELLECK, R.; RICHTER, M. W. Crisis. Journal of the History of Ideas, [s. l.], v. 67, n. 2, p. 357-400, 2006. situaram que o conceito de crise, ao longo do tempo, tem notabilizado uma flexibilidade metafórica e adentrado o cotidiano, envolvendo decisões em várias áreas da vida. Crise, refletem os autores, pode se referir a um estado de maior ou menor permanência, ou indicar uma transição para algo melhor, pior, ou totalmente diferente do que aquilo que é vivenciado. Por outro lado, em diferentes usos (na medicina e na economia, por exemplo), a identificação de uma crise implica a elaboração de diagnósticos e prognósticos (identificar problemas e propor soluções).

Durante os meses de maio, junho e julho de 2020, Oti passou um período conturbado, sem ter trabalho e uma fonte de renda fixa. Era um cenário nebuloso, as dúvidas eram maiores do que sua capacidade de planejar o futuro: “O problema é ficar desempregado e não ter onde procurar emprego.” Era necessário esperar e imaginar soluções para esse período crítico. Sua frase é um resumo de um estado crítico partilhado por muitas pessoas naqueles primeiros meses de pandemia no Brasil. Evidentemente, boa parte da população brasileira passava por um período análogo ao de uma “emergência econômica”, configurada pelos horizontes incertos que articulam, primordialmente, vidas e economias (Neiburg, 2022NEIBURG, F. Buscando a vida na economia e na etnografia. Mana, Rio de Janeiro, v. 28, n. 2, e282900, 2022.).

Nesse período extraordinário, a aposentadoria de sua esposa e a de sua sogra foram cruciais para garantir o pagamento de despesas de alimentação e outras contas básicas. Ao que pude notar, diante das instabilidades emocionais e subjetivas geradas nesse interlocutor, os momentos críticos também fomentaram rearranjos em dinâmicas relacionais específicas, alterando ou refazendo conexões entre familiares, situados em uma rede de casas. Dessa forma, na crise, Oti ajudou e, também, foi ajudado por familiares.

Em agosto de 2020, ele conseguiu um novo trabalho. Como tinha uma caminhonete com espaço para frete, a solução encontrada passava pela capacidade de transporte do veículo. A partir do apoio de um amigo, começou a fretar produtos para uma madeireira, ganhando por hora trabalhada. Em suas palavras: “Foi o que me segurou quase um ano, enquanto não tinha jogo.” Já na metade de 2021, a empresa lhe dispensa novamente e os eventos na Arena seguiam sem receber público. Com algumas contas atrasadas e um financiamento bancário a pagar, o comerciante optou por vender a sua caminhonete para comprar um carro popular usado, ganhando dinheiro na diferença entre ambos. O objetivo era, até o retorno dos jogos e o avanço da vacinação, ter uma forma provisória de sustento: trabalhar como motorista de aplicativos de corrida.

A ideia funcionou, principalmente entre agosto e novembro de 2021: “Com aplicativo não ganhava muito, mas conseguia pagar as contas. Mas quando liberaram de novo para começar os jogos com torcida, aliviou.” Com o retorno do funcionamento de seu bar, em dezembro de 2021 e, sobretudo, em janeiro de 2022, o trabalho nos aplicativos ficou sendo realizado paralelamente. Com o Grêmio disputando a série B do Campeonato Brasileiro de Futebol, em 2022, restavam dúvidas sobre os fluxos e movimentações de torcedores diante da situação do time (que retornou à primeira divisão com dificuldades técnicas e restrições econômicas). Em minhas interações em trabalho de campo, notei que a presença de clientes foi constante no bar após a liberação da presença de torcedores no estádio, já no término de 2021.

A vida de Oti foi atravessada por temporalidades extraordinárias marcadas por indefinições, compressão e aceleração do tempo: ter o comércio fechado, perder o emprego, endividamento bancário, ter que contar com ganhos da sogra e da esposa, virar motorista de aplicativos de corrida, lidar com as agruras da pandemia - tudo em aproximadamente dois anos. Nesse caso, olhar para como as pessoas navegam nas crises se traduz como meio pertinente para entender as suas estratégias e modos de significar horizontes temporais. Mas o que é exemplar no caso descrito é como as temporalidades dos eventos e dos ganhos econômicos foram sentidas e alteradas diante das temporalidades pandêmicas, percebidas como um momento extraordinário que demandou soluções impensadas para ganhar a vida e não apenas gerir incertezas.

Em texto sobre a noção de incerteza, Benoît de L’Estoile (2020)L’ESTOILE, B. de. Dinheiro é bom, mas um amigo é melhor: incerteza, orientação para o futuro e a “economia”. Revista RURIS, Campinas, v. 12, n. 2, p. 227-264, 2020. demonstra como existem áreas da vida de seus interlocutores, trabalhadores na zona rural de Pernambuco, que possuem possibilidades de controle bastante distintas, sendo diferenciadas em incerteza relativa e outra radical. A relativa se inscreve no contexto das relações interpessoais e no mundo social de uma pessoa, promovendo expectativas baseadas em visões de mundo e valores compartilhados. No âmbito familiar, se uma pessoa ajuda a outra, poderá contar com sua ajuda posteriormente, tal como no caso de Oti. Ele mobilizou ajudas distintas durante a pandemia (em uma rede que envolvia a sua esposa, sogra, filhas, genros e outras relações). Assim, existiram expectativas em relação ao leque de ações que cada parente poderia executar e às retribuições possíveis.

A noção de incerteza radical traduz como a imprevisibilidade das situações pode estar atrelada a diferentes áreas, que parecem estar complemente fora de nosso controle (L’Estoile, 2020L’ESTOILE, B. de. Dinheiro é bom, mas um amigo é melhor: incerteza, orientação para o futuro e a “economia”. Revista RURIS, Campinas, v. 12, n. 2, p. 227-264, 2020.). Assim, Oti conviveu com o fechamento do bar, demissões e dificuldades para conseguir trabalho, lidando com outros riscos (adoecer e endividar-se, principalmente). Em seu caso, manejar incertezas relativas e identificar as radicais foi uma forma de estruturar estratégias e expectativas diárias, temporalizadas por um quadro de orientação ao futuro pós-pandêmico - expectado pela possibilidade de reabertura do seu comércio.

Como Narotzky e Besnier (2020NAROTZKY, S.; BESNIER, N. Crisis, valor y esperanza: repensar la economía. Cuadernos de Antropología Social, Buenos Aires, n. 51, p. 23-48, 2020., p. 16) aludem, em muitos contextos, a habilidade prática para construir o futuro - a capacidade de imaginá-lo no presente, também a partir de experiências pretéritas - depende da existência cotidiana da incerteza e de sua regulação por um habitus que permite novos horizontes de expectativas. No entanto, a incerteza absoluta inibe a capacidade de produzir expectativas cotidianas seguras, afetando as práticas de reprodução material e emocional dos agentes. O caso, descrito a seguir, ilustra como o período de incertezas pandêmico foi vivenciado de modo distinto e produzindo efeitos desiguais entre vizinhos com disposições ocupacionais semelhantes.

As temporalidades nas reformas da casa

Pedro, 60 anos, é casado com Amélia, 61 anos. Conheci ambos em uma manhã fria de julho de 2022. Em 2018, decidiram alugar uma casa na avenida Padre Leopoldo Brentano, em frente à Arena do Grêmio. O intuito, na ocasião, era a reforma do local e a abertura de um novo negócio, principalmente em dias de jogos. Pedro avaliou a sua trajetória na casa: “Do lado mora minha cunhada e do outro é minha enteada. Eu estou nessa casa há quatro anos. Desses quatro anos, não trabalhei nem dois, por conta da pandemia.” Antes de abrir seu próprio bar e restaurante, ele trabalhou no comércio da enteada, no lado esquerdo ao seu. Em 2022, havia outro bar inaugurado por sua cunhada, no lado direito. As reciprocidades entre familiares sugerem laços de vizinhança, que envolvem casas e a circulação de pessoas (Motta, 2014MOTTA, E. Houses and economy in the favela. Vibrant, Brasília, v. 11, n. 1, p. 118-158, 2014.).

Notadamente, Pedro dizia-se dono do comércio e se incomodava com as proximidades familiares (“sempre tem alguém olhando”, relatou). Entretanto, Amélia demonstrava gerir as relações familiares envolvendo a filha e a irmã, não apenas motivando o envolvimento de Pedro no controle das entradas e saídas de dinheiro no comércio, como também nos investimentos materiais que eram feitos na casa. Era notável o protagonismo feminino na gestão da casa e nas relações familiares e de vizinhança.

A situação de não ser um imóvel próprio dos atuais ocupantes foi avaliada e considerada por Pedro, mas as reformas são, também, um modo de garantir a permanência da família naquele espaço: “Estou investindo num imóvel que não é meu, mas eu tenho tudo que fiz aqui documentado. Pergunta para ele [proprietário], quanto vai voltar a valer essa casa?” Pedro falava sobre o assunto demonstrando fotos de quando haviam se mudado para aquela residência, na época, com condições precárias de habitação. Porém, não deixava de cogitar uma saída do local, já que os fluxos comerciais não apenas se resumiam ao dia de jogo e tomavam muito tempo da família. De fato, as preparações e a organização do negócio não se resumem a poucas horas de dedicação.

Objetivamente, as aspirações de futuro do casal implicavam uma maneira cautelosa de gerir o próprio negócio. Pedro afirmou não cogitar tentar adquirir o imóvel definitivamente, tendo em vista a sua idade, e que busca ter uma “vida mais sossegada” e “cuidar da saúde da esposa”. Temporalidades, noções de saúde e ideais de cuidado demarcavam expectativas.

Por outro lado, o planejamento de cada jogo e demais eventos, por si só, não determinam como serão as previsões de entrada e de circulação de dinheiro. Existem aspectos variados atrelados à sazonalidade dos ganhos, conforme destacou Pedro: “O Grêmio jogando na final ou semifinal de Libertadores, isso aqui enche, 50 mil pessoas. Diferente de um jogo de série B, que tem 8, 9 mil pessoas.” Para ele, além do desempenho esportivo, os negócios são afetados pelos fatores climáticos (“se chover é um público; se não, é outro”), pela fidelização do público frequentador, pela situação econômica mais ampla e pelos efeitos da pandemia - perspectivando a sobreposição de diferentes marcadores temporais que afetam os comércios e os seus ganhos monetários.

Outro aspecto focado são os custos com bilheterias do estádio, que promovem ou bloqueiam acessos de diferentes grupos. A visão crítica de Pedro é contundente em relação a um efeito significativo da arenização no futebol brasileiro: “O público que sustenta o futebol aqui é o que tem dinheiro. O povão está louco para vir, mas não vem, e por qual motivo? Certamente porque não tem 150 pila para pagar em cada jogo.” Suas palavras, ditas em julho de 2022, não deixam dúvidas do que está sendo tratado: “O futebol ficou elitizado. O povo não deixou de gostar.” A propósito, a percepção sobre a elitização do acesso ao espaço arenizado, como irei expor, voltará como fonte a um modelo de negócio ensejado pelo próprio interlocutor.

A historicidade da presença de Pedro e Amélia na casa alugada, aliás, merece uma descrição atenciosa. A narrativa do interlocutor ressaltou parte de seus esforços pessoais e familiares para fazer da casa um espaço comercial e de moradia, conjuntamente: “Estamos em obra até hoje. Eu sou o pedreiro, pinto, boto a cerâmica, atendo aqui.” A casa possui dois pavimentos. Na parte de baixo, uma garagem convertida em área comercial, reunindo balcões, freezers, mesas, banheiro e uma cozinha com fogão industrial. Na parte de cima, uma área coberta com churrasqueira separada (por uma parede e uma porta) de dois quartos, uma sala e uma área de fundos. Uma única cozinha era usada na casa.

Após me falar de várias mudanças feitas no interior da edificação (pinturas, reformas, acabamentos, manutenção da fiação elétrica, dentre outras), Pedro me convidou para ir ao segundo andar e conhecer o que ele designou de “área para clientes VIPs”16 16 Expressão oriunda do inglês “very important person”, para se referir a pessoa muito importante e ilustre. (naquele mesmo momento, me perguntava quem eles eram). Fiquei impressionado com a infraestrutura disponibilizada: mesas de madeira, churrasqueira, banheiro, fogão a lenha, utensílios para festas e encontros variados. Era, realmente, uma área que demandava um investimento temporal e financeiro considerável - nem mesmo o telhado era o original, trocado por um de alumínio. Contudo, o ambiente ainda estava em obras, com azulejos sendo colocados e paredes sendo pintadas. Em julho, a reforma estava em andamento e a expectativa era de que até o mês seguinte tudo estivesse pronto. Em agosto, visitei o local e o espaço já estava sendo alugado por Pedro.

Figura 3
Reformas no segundo piso e vista à Arena do Grêmio em 05/07/2022.

O interlocutor justificou: “Isso aqui, se não fosse a pandemia, já estava tudo pronto e eu diria: agora vamos colher.” As temporalidades da pandemia demarcavam uma série de mudanças e rearranjos na vida familiar, com repercussões consideráveis para o seu negócio: é a partir da restrição de fluxos de frequentadores que o casal investe em reformas do segundo piso da casa. Porém, isso não explica tudo.

Não pude deixar de aventar como o tempo da política também adentra as casas e, como já classicamente outros antropólogos inferiram, reatualiza hierarquias e distinções sociais (Palmeira; Heredia, 2010PALMEIRA, M.; HEREDIA, B. M. A. de. Política ambígua. Rio de Janeiro: Relume-Dumará: Núcleo de Antropologia da Política (NuAP), 2010.). 2022 foi um ano eleitoral no Brasil, mas não apenas na política partidária. Novas eleições ocorreram para o Conselho Deliberativo e, após, para a Presidência do Grêmio (em setembro e novembro, respectivamente). Diante das temporalidades das eleições gremistas, marcante a um grupo de torcedores, Pedro faz questão de ressaltar a quem se destinava o espaço em reforma: “Aqui é pro pessoal chique, médico, enfermeiro, advogado; tem um que é candidato a presidente do Grêmio.”

Desse modo, reporta-se a uma maneira de operar o seu modelo de negócio, que busca trabalhar, em suas palavras, “com quem tem grana para gastar”. Os citados figuram na narrativa como homens, desdobram a sua hegemonia em espaços masculinizados no interior de um clube de futebol e compartilham valores e visões de mundo androcêntricos, atrelados ao gênero (Damo, 2021DAMO, A. Dos grounds às arenas - as quatro gerações de estádios brasileiros em perspectiva antropológica. Museologia e Patrimônio, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 212-246, 2021.). Assim sendo, reservar o espaço do segundo piso para um grupo político gremista revela como a circulação monetária ocorre a partir de critérios sociais e não apenas econômicos e, também, a partir de hierarquias atualizadas pelo período eleitoral (o tempo da política) e pelas construções sociais de gênero.

Os ganhos iniciam desde antes do dia do jogo, na confirmação do número de clientes que irão usufruir do espaço reservado e na cobrança de um valor simbólico de entrada. Durante os eventos, outros ganhos são obtidos com o consumo de bebidas, que acompanham os churrascos.

A estratégia de fidelização se dá com base em um julgamento de status e valor atribuídos aos frequentadores: “Eles têm uma turma de caras endinheirados. São uns caras diferenciados.” Em sua visão, mecanismos de distinção se coadunam com acordos de priorização. Rememoro Frederic Bailey (1971)BAILEY, F. Gifts and poison. In: BAILEY, F. (ed.). Gift and poison: the politics of reputation. New York: Schocken Books, 1971. p. 1-25., que, em outro contexto etnográfico, utilizou a noção de “status” para traduzir o prestígio social de uma pessoa, conectado à reputação, a qual necessita de uma avaliação pública e de valores partilhados por um coletivo.

Pedro mantém relações com lideranças de um movimento político constituído por torcedores gremistas, de modo a associar o seu espaço com a fidelização de um público consumidor avaliado moralmente. A seletividade é operada pelo comerciante, que taticamente joga com os meios de manutenção e criação de reputação dos candidatos da política gremista: “É isso que eu digo: se eu tenho um comércio, eu escolho quem eu quero aqui. Não estou competindo com os outros bares da volta.” A atribuição de valores monetários e sociais ao seu comércio se coaduna com as avaliações morais das reputações.

Dessa forma, dois objetivos são alcançados pelo comerciante: a lucratividade e a garantia de que um espaço valorizado da casa seja ocupado por um público economicamente específico. Trata-se de uma estratégia de afirmação e manutenção do negócio que fideliza um grupo de torcedores consumidores a partir da reforma de um dos espaços da casa. Em outro encontro que tive com Pedro, ele detalhou como utiliza parte dos ganhos para distribuir mensalmente quentinhas para moradores de rua na cidade, como modo de praticar a sua religiosidade: “Eu sei que fazer o bem me retorna em proteção espiritual depois.” Notamos como esferas sociais distintas estão entrelaçadas pelos dinheiros e pelas moralidades. Visualizamos, ainda, como a multifuncionalidade dos espaços da casa está imbricada com as temporalidades dos eventos, da política, da pandemia e do cotidiano.

A mutabilidade da casa, materializada nas sucessivas reformas feitas por Pedro e Amélia, foram, também, fomentadas pelos frequentadores do local. Após acertos com um dos integrantes do grupo político gremista, o comerciante obteve apoio financeiro para concluir as melhorias no segundo pavimento da casa. A ocasião faz o bom comerciante. Por precisar de uma referência espacial aos encontros coletivos, uma das lideranças financiou parte das obras e assumiu a sua “palavra de honra” com Pedro sobre a frequência do grupo no local.

Antes do ano eleitoral, durante 2020 e 2021, com a interdição de seu comércio no quadro da pandemia de Covid-19, Pedro optou por utilizar seu carro para trabalhar como motorista de aplicativo (algo semelhante ocorreu com Oti, como descrevi). Seus ganhos foram cruciais ao sustento familiar e de manutenção do seu negócio, bem como a aposentadoria de Amélia (aposentada por problemas de saúde). Esse momento foi vivido como um tempo de espera e de investimento na casa, sem que a família passasse por consideráveis restrições financeiras.

Em 2022, o bar e restaurante ganhou novos contornos e passou a ser aberto diariamente. Durante os dias sem jogos, o local ofertava comidas e bebidas em geral, desdobrando diferentes estratégias de precificação e fidelização, principalmente, à vizinhança e aos trabalhadores da Arena - destoando do perfil socioeconômico do público frequentador em dias de jogos.

Um olhar comparativo às experiências e expectativas

Ao longo do trabalho etnográfico, Pedro e Amélia revelaram expectativas relacionadas ao calendário de jogos do Grêmio, sobretudo a partir do segundo semestre de 2022. A ideia de Pedro, em setembro, era a de aproveitar a melhora no clima gaúcho (“vai começar a esquentar”), os jogos do final do Campeonato Brasileiro na série B (“a torcida vem para ver o Grêmio subir”), além de maior controle biopolítico da pandemia (“agora tá todo mundo se vacinando”) e o cenário de eleições clubistas (o tempo da política).

Por sinal, Pedro empregou a mesma metáfora que Oti para se referir ao seu negócio e classificar a sua importância: “Aqui é minha galinha dos ovos de ouro.” Ambos não se conhecem, apesar de morarem no mesmo bairro e de terem idades semelhantes. Em comum, realizaram outras atividades para ganhar dinheiro durante o período de restrições sanitárias. No que segue, retomo semelhanças e diferenças entre casos de Oti e do casal Pedro e Amélia, exaltando relações entre experiências e expectativas, bem como identificando como a pandemia não foi vivenciada de forma homogênea.

Para demonstrar como o tempo histórico está constantemente em mutação e como é possível reconstruir fatos a serem comunicados, Koselleck (2006)KOSELLECK, R. ‘Espaço de experiência’ e ‘horizonte de expectativa’: duas categorias históricas. In: KOSELLECK, R. Futuro passado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. p. 305-327. emprega duas categorias analíticas que entrelaçam passado, presente e futuro. São elas: espaço de experiência e horizonte de expectativa. Ambas fundamentam a possibilidade de uma narrativa histórica, que também remete a experiências vividas e constituídas pelas expectativas das pessoas. Dessa forma, “não há expectativa sem experiência, não há experiência sem expectativa” (Koselleck, 2006KOSELLECK, R. ‘Espaço de experiência’ e ‘horizonte de expectativa’: duas categorias históricas. In: KOSELLECK, R. Futuro passado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. p. 305-327., p. 307).

Para o autor, a experiência traduz um passado atual, no qual acontecimentos foram assimilados e podem ser recordados. É a partir da experiência que se fundem formas de comportamento e de conhecimento. Já a expectativa se traduz como “futuro presente”, está ligada ao ato de expectar, voltada ao “ainda não”, ao “não experimentado”, ao que “pode ser previsto”, sendo decomposta em uma infinidade de acontecimentos (Koselleck, 2006KOSELLECK, R. ‘Espaço de experiência’ e ‘horizonte de expectativa’: duas categorias históricas. In: KOSELLECK, R. Futuro passado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. p. 305-327.).

Desdobrando a categoria de espaço de experiência, notamos como o aglomerado de tempos vividos forma uma noção espacial de experiência, a partir da elaboração de acontecimentos passados. Vemos, também, como experiências passadas informam expectativas, que ainda não se converteram em algo vivido. No desdobrar da categoria de horizonte de expectativa temos uma forma de enxergar, expectar e imaginar futuros que produzem novos espaços de experiência, os quais ainda não podem ser contemplados - diante do devir, esperado como acontecimento distinto do que foi o passado. Em outros termos, as expectativas não podem ser adquiridas sem as experiências.

Ao olhar para as trajetórias de Oti, Pedro e Amélia, pessoas com faixa de idade semelhante e com espaços de experiências raciais, de gênero, familiares e econômicas distintos, vislumbramos como eles organizaram seus negócios a partir da inauguração e funcionamento da Arena do Grêmio. Para Oti, as iniciativas para a obtenção de ganhos com a abertura de um bar, em 2012, imbricado com a sua residência, se transformaram em experiências elaboradas e incorporadas às práticas econômicas familiares - algo também visto nas histórias de Pedro e Amélia, mas de outro modo, a partir de 2018. Nos dois casos, os comércios se converteram na principal atividade econômica familiar.

Outros espaços de experiência informaram a abertura do bar e restaurante de Pedro e Amélia. Antes de investir no imóvel alugado, ambos trabalharam auxiliando familiares, atualmente vizinhos, em comércio na mesma localidade. Além disso, o espaço de experiência remontado traduz como, ao abrir o próprio estabelecimento, eles utilizaram saberes adquiridos no passado, mobilizados para informar um modelo de negócio. Pedro declarou que “sabe lidar com gente rica”, apesar de ser originário de “família humilde”. As experiências de convívio entre classes e suas hierarquias sociais são espelhadas em escolhas no presente e traduzem horizontes de expectativas.

Nesse contexto, a escolha do casal de reservar uma área do segundo piso da casa para lideranças de um grupo político gremista tornou-se estratégica para a obtenção de recursos e de inserção em uma rede de relações que desdobraram novos investimentos materiais na casa.

No bar do Oti, o modelo de negócio abarca outros grupos de torcedores. O olhar para a concorrência na vizinhança é inevitável: “Se o litrão de cerveja for um real mais barato no bar do lado, eles vão lá”, se referindo a como deve equiparar preços com bares vizinhos. Nesse caso, a venda de produtos valoriza a quantidade consumida, não necessariamente o perfil econômico de quem consome. A busca pela excitabilidade e externalização de emoções é central ao consumo, conectando festa e trabalho (Elias; Dunning, 1992ELIAS, N.; DUNNING, E. A busca da excitação: desporto e lazer no processo civilizacional. Lisboa: Difel, 1992.).

A comparação dos casos evidencia como a heterogeneidade das torcidas e de grupos econômicos é algo que não se deve perder de vista pela etnografia, tampouco as diferenciações internas ao circuito comercial estudado. Complementarmente, entre os dois exemplos de negócios, chama a atenção como os principais e mais constantes públicos frequentadores são fidelizados. Os comerciantes, nos dois casos, articularam comunicações e acordos tácitos com representantes de grupos organizados. No bar do Oti, membros de torcidas organizadas buscaram uma referência espacial aos dias de jogo; no bar de Pedro, isso ocorreu com participantes de um grupo político clubista, que buscavam descontração e articulações para fins eleitorais.

A pandemia de Covid-19, por sua vez, produziu novos arranjos e modificações nos comércios analisados, não apenas restrições. Evidentemente, tal como alude Koselleck (2006)KOSELLECK, R. ‘Espaço de experiência’ e ‘horizonte de expectativa’: duas categorias históricas. In: KOSELLECK, R. Futuro passado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. p. 305-327., expectativas econômicas foram modificadas pelos espaços de experiências pandêmicas e vice-versa. Chama a atenção como Oti, Pedro e Amélia estabeleceram estratégias econômicas para lidar com as incertezas no decorrer das temporalidades pandêmicas - percebidas de formas específicas em cada caso.

Oti, buscando empregos com renda fixa, mas tendo dificuldades. Pedro, utilizando aplicativos para ser motorista e obter ganhos diários sem garantias formais - estratégia usada por Oti, também, já na metade de 2021. Ambos com carro próprio. Um deles, porém, com dívidas e com dificuldades de manter as despesas básicas da casa (situação vivida como “crise”). Outro, por sua vez, conseguiu realizar reformas e mudanças no seu espaço comercial e residencial, o qual é alugado. Os dois, contando com os ganhos financeiros das aposentadorias das esposas, que foram articuladas como dinheiro da casa - como sugere Motta (2023)MOTTA, E. O que faz o dinheiro da casa. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 29, n. 66, e660602, maio/ago. 2023. 17 17 O conceito de dinheiro da casa (Motta, 2023) permite identificar os significados do dinheiro e das práticas monetárias do ponto de vista dos espaços domésticos. Designa um nexo “prático-valorativo” no qual pessoas, dinheiros e casas se constituem mutuamente, evocando despesas de natureza obrigatória e regular, como aluguel, serviços e alimentação (Motta, 2023). - em tempos de crise.

Foi necessário, em ambos os casos, identificar as temporalidades que atravessaram as suas casas e negócios, marcadas pelas incertezas, tanto relativas quanto radicais, enquanto aspecto básico do período pandêmico. O ato de esperar, buscar outras ocupações e expectar um retorno de torcedores na Arena, consolidado já no final de 2021, fez parte de estratégias de organização e planejamento econômicos nos casos descritos.

O olhar comparativo revela como a pandemia de Covid-19 tornou-se um evento crítico que transcende um único entendimento, mediante o emprego de categorias epidemiológicas, ou análise macroeconômicas. Como Segata et al. (2021)SEGATA, J. et al. A Covid-19 e suas múltiplas pandemias. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 27, n. 59, p. 7-25, jan./abr. 2021. analisaram, a sua escala global não significa universalidade e homogeneização, repercutindo em um evento múltiplo e desigualmente vivenciado. Faz-se necessário olhar para a pandemia refletindo sobre os seus múltiplos sentidos e as suas memórias, os quais reportam às variadas experiências individuais e coletivas. A Covid-19 ocasionou a existência de múltiplas experiências pandêmicas, repercutindo em múltiplas temporalidades, marcadas pela incerteza e por expectativas de superação das crises.

Considerações

Ao longo do tempo, a pesquisa etnográfica evidenciou que o “viver da Arena” não é experenciado de forma homogênea no bairro Farrapos. A situação se complexifica quando temporalidades variadas atravessam as rotinas e exprimem diferenças econômicas entre as casas. Essas diferenças comunicam que os comércios são abertos em ritmos variados, em continuidade e descontinuidade com a duração dos eventos na Arena, a partir das disposições das casas, disponibilidade de recursos e composições familiares, dentre outros fatores influentes.

Com o material deste artigo, é possível notar que as casas não são simplesmente espaços investidos de estabilidade, tampouco devem ser vistos como autocontidos e impermeáveis. São, como explica Janet Carsten (2004)CARSTEN, J. Houses of memory and kinship. In: CARSTEN, J. After kinship. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. p. 31-56., carregados de significados e materialidades mutáveis, enredados em processos históricos, políticos e econômicos mais amplos.

Assim, busquei reconstituir narrativas de comerciantes sobre o período pandêmico, considerando experiências, expectativas e seus horizontes temporais. A declaração de interlocutores de que seus comércios são, em termos metafóricos, “galinhas que dão ovos de ouro”, se associa aos espaços de experiências pretéritos à pandemia e, também, às expectativas de superação das crises, diante de perspectivas temporais pós-pandêmicas.

Analisando cenários de crises, Neiburg (2022)NEIBURG, F. Buscando a vida na economia e na etnografia. Mana, Rio de Janeiro, v. 28, n. 2, e282900, 2022. chamou a atenção para o fato de que “emergências econômicas” desenham experiências coletivas marcadas por horizontes temporais embaralhados e difusos. Trata-se de experiências heterogêneas, distribuídas desigualmente e que colocam em evidência o caráter desigual das vidas (algumas necessitando maior volume de recursos do que outras, por consequência). Em outras palavras, os contornos temporais difusos e de difícil precisão das crises afetam as pessoas de forma discrepante e aprofundam as múltiplas desigualdades sociais.

Nesse sentido, compreender as formas desiguais de se viver as temporalidades pandêmicas - como exposto nos casos de Oti, Pedro e Amélia - amplia a percepção sobre as estratégias pelas quais as pessoas lidam com as crises no cotidiano, dimensionam incertezas e buscam soluções.

Além das temporalidades pandêmicas, vivenciadas de formas distintas e desiguais pelos interlocutores, apresentei outros marcadores cronológicos que incidem sobre os espaços residenciais e comerciais. Os seus horizontes de expectativa ressaltaram como a espera e o retorno dos jogos e de outros eventos (como shows), com fluxos humanos e de dinheiro volumosos na Arena do Grêmio, representam a retomada de um campo estratégico de possibilidades econômicas para a superação de restrições sanitárias e de crises financeiras, causadas pela Covid-19. Isso ocorre a partir de percepções sobre um período pós-pandêmico, moduladas pela reativação de um circuito comercial nas casas.

Com efeito, no contexto de estudo no bairro Farrapos, foi possível analisar conexões entre temporalidades distintas, incompatíveis em suas finalidades, e os processos que produzem as vidas nas casas e seu caráter mutável - a partir de uma perspectiva parcial, temporalizada e coetânea de investigação.

O retorno dos jogos e dos eventos com público na Arena do Grêmio representou a reativação de um circuito comercial local (impulsionado pelas experiências pretéritas e por escalas variadas, como pelo avanço da vacinação no Brasil). Sobretudo em 2022, a reabertura gradual dos comércios borrou - de forma imprecisa, difusa e expectada - as fronteiras temporais entre um período de pandemia e de pós-pandemia, repercutindo na inalação de temporalidades pandêmicas e na sucessiva absorção, produzida desigualmente, de efeitos das crises no cotidiano das casas com comércio estudadas. Ganhar a vida em tempos de pandemia passa, notadamente, pela prospecção de um período pós-pandemia.

Referências

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  • ZELIZER, V. A negociação da intimidade Petrópolis: Vozes, 2011. (Coleção Sociologia).
  • 1
    O trabalho Entre casas, comércios e temporalidades: uma etnografia de práticas econômicas nos entornos da Arena do Grêmio (Fernandes, 2023FERNANDES, B. G. Entre casas, comércios e temporalidades: uma etnografia de práticas econômicas nos entornos da Arena do Grêmio. 2023. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2023. Disponível em: Disponível em: http://objdig.ufrj.br/72/teses/935621.pdf . Acesso em: 25 jun. 2024.
    http://objdig.ufrj.br/72/teses/935621.pd...
    ) foi defendido em março de 2023, pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ. A dissertação foi orientada pelo professor Federico Neiburg e contou com o financiamento da Capes e da Faperj, em seu primeiro e segundo ano, respectivamente. Ademais, se insere no âmbito de trabalhos do Núcleo de Pesquisas em Cultura e Economia (NuCEC/MN/UFRJ).
  • 2
    Segundo o site do equipamento, representa o maior e mais moderno complexo multiúso da América Latina (Sobre, [2024]SOBRE. Arena, Porto Alegre, [2024]. Disponível em: Disponível em: https://arenapoa.com.br/sobre/ . Acesso em: 25 jun. 2024.
    https://arenapoa.com.br/sobre/...
    ).
  • 3
    O último jogo, antes da interdição do estádio, foi no dia 12 de março de 2020. Estive presente na ocasião, marcada por um clássico entre Grêmio e Internacional, que reuniu mais de 50 mil pessoas pela Copa Libertadores da América. O torcedor retornou ao estádio apenas no dia 3 de outubro de 2021 com a obrigatoriedade de vacinação e público limitado a 30% de sua ocupação. Em 2022, os protocolos foram flexibilizados e o público total foi liberado (ver Arena […], 2021ARENA do Grêmio anuncia volta do público para a partida entre Grêmio x Sport. Arena, Porto Alegre, 30 set. 2021. Disponível em: Disponível em: https://arenapoa.com.br/arena-do-gremio-anuncia-volta-do-publico-para-a-partida-entre-gremio-x-sport/ . Acesso em: 25 jun. 2024.
    https://arenapoa.com.br/arena-do-gremio-...
    ).
  • 4
    Para preservar a identidade dos interlocutores da pesquisa, os seus nomes verídicos foram alterados para nomes fictícios.
  • 5
    O survey, em formato de questionário, foi aplicado em 51 casas com comércio nos entornos da Arena, no período de 3 de outubro a 3 de novembro de 2022. Significa que o instrumento abarcou aproximadamente 70% do universo das casas pesquisadas, como mostrarei. Ao realizá-lo, identifiquei quem são os(as) proprietários(as), os perfis dos comércios e como os ganhos circulam pelas redes familiares e modificam casas.
  • 6
    Existem outras atividades econômicas fora das casas: ambulantes variados, guardadores de carro, cambistas, seguranças e profissionais ligados à organização dos eventos.
  • 7
    As imagens são mobilizadas como parte da própria descrição etnográfica e como modo singular de observação. Elas destacam como existem disposições estéticas e estruturais vinculadas ao clubismo nas edificações.
  • 8
    Essa contabilidade, ainda que limitada, foi realizada durante uma vez em 2021 (no último jogo do Campeonato Brasileiro da série A) e três vezes em 2022 (na primeira contagem, na final do campeonato gaúcho, foram 81 casas; na segunda, no primeiro turno da série B, foram 72 casas; no último jogo do mesmo campeonato, 75 casas). O número total de comércios, no entanto, representa uma estimativa volátil, já que existem aqueles que fecharam ao longo do ano mencionado - para alguns, “quebrar”, fechar, “mudar de ramo” era um efeito direto da crise econômica atrelada à pandemia. Porém, acompanhando praticamente todas as partidas da série B de 2022, indico que novos locais também foram abertos, mantendo a média estimada.
  • 9
    Além das temporalidades pandêmicas, coexistiram temporalidades outras, marcadas também por processos sociais específicos: 2022 foi ano eleitoral no Brasil e de eleição do novo Conselho de Gestão e Presidência gremista. Complementarmente, foi um ano de Copa do Mundo, agendada para novembro e dezembro. Essa mudança condensou o calendário de jogos do Grêmio em poucos meses e antecipou términos de campeonatos nacionais, alterando a rotina e os ganhos de dinheiro das famílias envolvidas.
  • 10
    “Grenal” é a palavra derivada da junção dos nomes de dois clubes de futebol que protagonizam esse duelo: Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense e Sport Club Internacional, ambos de Porto Alegre. É considerado um dos maiores clássicos do futebol brasileiro.
  • 11
    Entrevista concedida no dia 21 de março de 2022, na residência e comércio do interlocutor.
  • 12
    A configuração de um mercado de venda e consumo de bebidas alcóolicas é estratégica nos diferentes negócios aqui estudados. Objetivamente, a proibição da venda de bebidas alcóolicas no interior dos estádios de futebol, prevista pela lei estadual 12.916 de 2008 (Rio Grande do Sul, 2008RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 12.916, de 1º de abril de 2008. Proíbe a comercialização e o consumo de bebidas alcoólicas nos estádios de futebol e nos ginásios de esportes do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Assembléia Legislativa, 2008. Disponível em: Disponível em: http://www.al.rs.gov.br/filerepository/repLegis/arquivos/12.916.pdf/ . Acesso em: 25 jun. 2024.
    http://www.al.rs.gov.br/filerepository/r...
    ), influencia diretamente nas movimentações econômicas e consumo no lado externo dos estádios.
  • 13
    Através do survey realizado evidenciei que, durante o período sem a presença de torcida na Arena (março de 2020 até outubro de 2021), muitos comerciantes exerceram outras ocupações. Ao questionar “O que você fez durante a pandemia para sustentar a sua família?”, pude analisar como diferentes estratégias ocupacionais foram engendradas, sobretudo em trabalhos autônomos e flexíveis, algo que exponho no capítulo três da dissertação (Fernandes, 2023FERNANDES, B. G. Entre casas, comércios e temporalidades: uma etnografia de práticas econômicas nos entornos da Arena do Grêmio. 2023. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2023. Disponível em: Disponível em: http://objdig.ufrj.br/72/teses/935621.pdf . Acesso em: 25 jun. 2024.
    http://objdig.ufrj.br/72/teses/935621.pd...
    ).
  • 14
    Apenas no caso de uma cervejaria se identificou a contratação formal de funcionários, que já fazem parte da rotina da empresa e de sua sede principal, localizada fora do bairro.
  • 15
    O horário de funcionamento do bar do Oti é diretamente atrelado ao dia e horário de jogo do Grêmio. Em geral, o comerciante abre algumas horas antes de cada jogo e não possui um horário fixo para fechar, dependendo da demanda dos consumidores e da disponibilidade de estoque de bebidas. Os horários dependem de uma avaliação estratégica dos fluxos no bar.
  • 16
    Expressão oriunda do inglês “very important person”, para se referir a pessoa muito importante e ilustre.
  • 17
    O conceito de dinheiro da casa (Motta, 2023MOTTA, E. O que faz o dinheiro da casa. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 29, n. 66, e660602, maio/ago. 2023.) permite identificar os significados do dinheiro e das práticas monetárias do ponto de vista dos espaços domésticos. Designa um nexo “prático-valorativo” no qual pessoas, dinheiros e casas se constituem mutuamente, evocando despesas de natureza obrigatória e regular, como aluguel, serviços e alimentação (Motta, 2023MOTTA, E. O que faz o dinheiro da casa. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 29, n. 66, e660602, maio/ago. 2023.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2023
  • Aceito
    31 Maio 2024
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