Acessibilidade / Reportar erro

Apresentação

APRESENTAÇÃO

Denominar relações sociais como relações interétnicas impõe um diálogo com estudos produzidos a partir de processos emancipatórios e a criação de novos Estados Nacionais. Comumente estamos em contato com a temática através da perplexidade frente a conflitos étnicos e nacionais ou, de outra parte, como um assunto doméstico sobre uma origem nacional que costuma ser revisitada e celebrada. Entretanto a temática transborda os limites desses debates, remetendo os pesquisadores a analisar o idioma étnico nas várias situações em que ele se impõe como uma referência fundamental nas relações sociais.

A difusão disso que podemos chamar de lógica relacional com vistas à interpretação das diferenças e desigualdades, possibilitou releituras e reinterpretações dos processos culturais e políticos desencadeados pela imigração (desde as levas do final do século XIX até as atuais, ditas novas migrações), pela atualização dos estudos sobre populações afro-descendentes nas Américas e no Caribe e pelo crescimento das possibilidades de negociação política, em especial, nos conflitos por demarcação de terras de sociedades indígenas americanas do sul e do norte, o que em si já significou a criação de campo específico de estudos. Uma vez mais, estamos diante de processos de recriação de diferenças internas, revivescência de antigas tradições, ou de reinvenções feitas através do idioma da etnicidade.

A referência clássica à "Introdução" de Fredrik Barth a Ethnic Groups and Boundaries, demonstrando a persistência de fronteiras simbólicas como a própria lógica da constituição dos grupos sociais, forneceu os instrumentos necessários para pensar outras questões. Essa literatura influenciou as tendências analítico-interpretativas existentes e forneceu um instrumental para entender e dar sentido a fenômenos contemporâneos que exibem novas distinções ou aquelas até então encobertas por unidades políticas impostas, agora lidas também a partir do conceito de etnicidade. A busca por romper com noções essencialistas sobre as diferenças culturais permitiu focalizar os elementos negociados nas relações entre grupos a partir da língua, da religião ou da memória de emigração, bem como das formas de estruturação internas aos grupos. O instrumental permitiu ainda verificar a articulação entre os grupos e o modo como estes jogos identitários estão encompassados por outras estruturas, disputas de territórios, auto-classificações, auto-determinações que remetem ao diálogo sobre os Estados-nacionais.

A seleção de artigos para este número obedeceu a um critério flexível, visando trazer ao debate temas clássicos e possibilitando abertura para refletir sobre novos modos de atualização de identidades que tomam características culturais para delinear fronteiras e comunicar seu lugar, direitos e pertença social. Seja nas grandes cidades, locus cuja dinâmica possibilita amplo campo para a diversidade, seja no meio rural ou em fronteiras internacionais, a etnia tem sido observada mediante a afirmação de atributos identitários que atuam como código de demarcação de unidades sócio culturais e de produção de agentes sociais. Observa-se a produção de fronteiras - cujos limites são móveis, negociados - no bojo de conjunturas políticas e econômicas em nada neutras, configurando relações entre os grupos, seus arranjos internos e, para os atores envolvidos, uma realidade tida como essencial.

As relações entre grupos percebidos e que se proclamam distintos etnicamente pode ser iluminado a partir de três artigos. Deidre Meintel analisa a situação de filhos de migrantes de diversas origens em Montreal no Canadá. Problematiza a etnia como elemento que ao mesmo tempo distingue e propicia a aproximação de jovens no meio urbano. Denise F. Jardim, estudando palestinos no extremos sul do Brasil, interpreta os relatos das viagens de filhos de imigrantes palestinos para a terra natal dos pais como importante mecanismo de revitalização de uma identidade étnica. Em outras palavras, problematiza o lugar conferido à tradição e a singularidade de sua origem na sociedade em que se inserem.

Tomke Laske, estudando brasileiros no Japão e os processos de socialização dos seus filhos, enfoca o esforço destes em desenvolver a competência em dois idiomas, o japonês e o português como meio de preservação da identidade brasileira.

A partir de distintas realidades nacionais, José Maurício Arruti discorre sobre a coexistência difícil de negros e indígenas que, usufruindo de posições equivalentes na sociedade colombiana, tecem alianças, novas perspectivas e atuam como agentes políticos para viabilizar o acesso legal a terra. A comparação desses fenômenos com o caso brasileiro permite demonstrar a vitalidade dos estudos sobre relações interétnicas. João Pacheco de Oliveira aborda o impacto de novos agentes e agências financiadoras sobre sociedades indígenas e o lugar da auto-classificação e da auto-determinação nesses projetos.

Em tempos e espaços diversos, dois trabalhos situam as questões relativas à construção da nação perante a pluralidade cultural. O trabalho de Giralda Seyferth salienta de que modo os cânones assimilacionistas, contidos no ideal de formação da nação no caso brasileiro, colidem com os sentimentos primordiais, baseados no jus sanguinis, que fundamentam algumas identidades étnicas formalizadas por grupos de imigrantes. José Carlos dos Anjos mostra o lugar da cultura na constituição da nacionalidade em Cabo Verde a partir da construção de uma ideologia nacional por parte de intelectuais que tomam a raça e a miscigenação como motivo.

Ellen Woortmann analisa dimensões da memória de camponeses teuto-brasileiros descendentes de imigrantes aportados ao sul do Brasil entre 1824 /32. Relaciona esses fatos à constituição de suas identidades. Já Arlene Renk mostra, a partir de ervateiros do oeste de Santa Catarina, de que modo o valor do "trabalho" se atualiza como sinal diacrítico, delineando fronteiras sociais e identitárias entre ervateiros "caboclos" e "de origem".

No Espaço Aberto publicamos a transcrição de um debate produzido especialmente para este número. Nele, fala-se sobre a interpretação na Antropologia, na Literatura e no Cinema, através do trabalho de autores desses campos que tomaram como foco o evento dos Mucker, ocorrido entre 1869 e 1874 no extremo sul do Brasil. Fala-se ainda da produção do texto, da fidelidade ao registro histórico, do nosso imaginário sobre o alemão, dos estereótipos construídos e sua relação paradoxal com os fatos que caracterizaram este conflito de caráter sócio-religioso. A partir das leituras realizadas por Luiz Antônio de Assis Brasil,1 1 Videiras de cristal. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1991 Maria Amélia Dickie2 2 Afetos e circunstâncias: um estudo sobre os Mucker e seu tempo. Tese (Doutorado em Antropologia Social)–Programa de Pós Graduação em Antropologia Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996 e Fábio Barreto,3 3 O filme está sendo projetado com base em roteiro que tomou como base a obra de Luiz Antônio de Assis Brasil, Videiras de Cristal realizou-se uma reflexão sobre os universais desvendados por este fato. Participaram deste debate, além dos entrevistados, os professores Carlos Steil, Ana Luiza Carvalho Rocha, Cornélia Eckert, Daisy Macedo de Barcellos, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social e Isabel Cristina de Moura Carvalho doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS.

A capa deste número exibe uma obra de Danúbio Gonçalves, artista plástico, que nos autorizou a utilização da reprodução de seu "Casablanca", fruto de um estudo pictórico que realizou em Marrocos. A escolha se justifica por "Casa Blanca" nos permitir o estranhamento através da linguagem universal da arte. Vai aqui nosso agradecimento e nossa sincera homenagem.

Daisy Macedo de Barcellos

Denise Fagundes Jardim

Oscar Agüero não participou da organização deste número de Horizontes Antropológicos como havia sido anunciado nos números anteriores.

  • 1
    Videiras de cristal. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1991
  • 2
    Afetos e circunstâncias: um estudo sobre os Mucker e seu tempo. Tese (Doutorado em Antropologia Social)–Programa de Pós Graduação em Antropologia Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996
  • 3
    O filme está sendo projetado com base em roteiro que tomou como base a obra de Luiz Antônio de Assis Brasil, Videiras de Cristal
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Nov 2010
    • Data do Fascículo
      Nov 2000
    Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH-UFRGS UFRGS - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43321, sala 205-B, 91509-900 - Porto Alegre - RS - Brasil, Telefone (51) 3308-7165, Fax: +55 51 3308-6638 - Porto Alegre - RS - Brazil
    E-mail: horizontes@ufrgs.br