RESENHAS
Patricia Birman
Universidade Estadual do Rio de Janeiro - Brasil
AGIER, Michel. Gérer les indésirables: des camps de réfugiés au gouvernement humanitaire. Paris: Flammarion, 2008. 350 p.
Nas imagens cotidianas de violência e de sofrimento provocadas por guerras e catástrofes, há sempre um personagem emblemático: o "agente humanitário", associado às políticas mundiais estabelecidas pela ONU através do Alto Comissariado das Nações Unidas, a partir de 1951. Este é a garantia de que nos momentos mais dramáticos há dispositivos em escala mundial para oferecer os primeiros cuidados e o respeito aos direitos humanos das populações vitimadas. O objetivo primeiro do livro de Michel Agier é compreender a evolução contemporânea do tratamento oferecido às vítimas que se transformaram em "populações deslocadas", que vivem em campos de refugiados. Visa discutir a formação de territórios que, ao tratar de vítimas, não reconhece a essas o estatuto de cidadãos. A relação entre território, Estado-Nação e cidadania encontra-se no centro dessa obra, bem como a análise das biopolíticas que se desenvolvem no governo de um mundo cujos processos econômicos, sociais e políticos não cessam de fabricar indesejáveis. Em suma, é olhando as margens do mundo, onde se encontra alocada uma parcela cada vez maior dos seus "restos" e "párias", que Michel Agier nos oferece uma obra densa e extremamente perturbadora sobre os processos de desenvolvimento da ordem mundial contemporânea.
Sim porque, ao terem suas aldeias destruídas, ao serem objeto de ameaças de morte em seu país natal, ao se verem vítimas de guerras, perseguições e de catástrofes naturais, os indivíduos, a princípio demandantes de asilo, deparam-se com fronteiras cada vez mais solidamente fechadas e se veem à mercê de organismos internacionais, doravante responsáveis pelos seus futuros extraterritoriais.
O livro trata desses territórios (campos de refugiados, de detenção, de triagem e outros) para explorar os modos de existência das populações que se encontram ali retidas. Analisa a emergência desses territórios como dispositivos de uma biopolítica que envolve tanto os senhores das guerras e do mundo quanto as agências humanitárias em escala mundial.
São eles, os agentes humanitários, os primeiros a entrar quando as fronteiras se abrem para ambulâncias e atendimentos de urgência, depois das bombas e morticínios. São eles também que executam a triagem e decidem sobre a alocação das pessoas, que fornecem os critérios para classificá-las e identificá-las no interior dos campos. Administram a vida, garantindo o fornecimento de rações e cobertores, de plásticos para tendas e sabonetes. Como sugere o autor, de um dispositivo que nasceu do exercício da solidariedade emerge outro que dá lugar ao exercício de um poder sobre a vida e também sobre a morte. Sabem os senhores da guerra e os fóruns internacionais que a hora do socorro de urgência vai chegar, que os mortos serão contados e os vivos atendidos, dando lugar a uma nova ordem política para aqueles que tudo perderam. Onde alocá-los, como defendê-los de seus inimigos, como protegêlos e mantê-los em vida? Essas perguntas, que decorrem do imperativo da solidariedade, transformaram-se em dispositivos institucionalizados de uma nova forma de governar a vida nua, na concepção de Agamben, atuando para manter as vítimas "em vida", mas "fora" dos mundos socialmente organizados no interior dos Estados-Nações. Estes que "sobram" das catástrofes e aos quais se recusa a entrada como cidadãos em países europeus e em outros países desenvolvidos, demonstra Agier, encontram-se, hoje e cada vez mais, em campos de refugiados. De Dafour, Iraque, Serra Leoa, Gaza, Afeganistão, Libéria, Guiné e de muitos outros lugares ainda são milhões de pessoas que partiram para os campos.
Administrar cuidados humanitários transformou-se em um dispositivo biopolítico de governo, conforme a formulação de Foucault, cujo modelo de ação é dado pelo atendimento de urgência, uma "urgência sem fim". Através da "urgência" é preciso instaurar campos em lugar de cidades, silêncio e controle sob cuidados humanitários e autoridade administrativa em lugar de espaços públicos heterogêneos. As relações entre a ação humanitária e os campos de refugiados estão, pois, no centro desse livro. Um dos objetivos do livro é refletir sobre as novas divisões do mundo que revelam os dispositivos de governo que dividem as populações entre aquelas "com direitos" e aquelas "sem Estado", quer dizer "sem direito a ter direitos", que vivem nas novas margens do mundo. Como compreender esses territórios que correspondem sob muitos aspectos a territórios de exceção? O que dizer dos sentidos que essa excepcionalidade assume, quando o provisório de um deslocamento se transforma em lugar de permanência? No mundo do exílio, as identificações atribuídas aos indivíduos provêm de uma rejeição. As redes de campos de refugiados, de deslocados, as zonas de espera, de retenção, de triagem existentes no mundo atual transformaram o exílio e o exilado numa questão de polícia. Olhar as margens, afirma Michel Agier, coloca-se hoje como um imperativo para se compreender as consequências de uma política homogeneizante, multilocalizada e mundial em que os recalcitrantes de toda espécie são redefinidos como restos e detidos "no exterior", isto é, em territórios sem pertencimento a Estados-Nações.
Oferecer uma descrição dos campos, dos deslocamentos das pessoas e das instituições que se ocupam desses procedimentos implicou certas escolhas analíticas. Em primeiro lugar, uma perspectiva antropológica que atribui ao "contexto" um sentido estruturante e, em certa medida, prévio à sua análise situacional. Em outras palavras, Michel Agier não se filia inteiramente à linhagem pós-moderna da antropologia cuja abordagem enfatiza a intersubjetividade fundante da relação da pesquisa antropológica. Reconhece a sua importância, no entanto, discute os seus limites: o campo de refugiados não poderia ser compreendido somente "do interior" de seu perímetro, deixando fora de sua abordagem tudo aquilo que estabelece as suas condições de existência. Essa perspectiva, segundo Agier, manteria o pesquisador subordinado à naturalização desse "objeto". Em segundo lugar, Michel Agier critica a tendência que forjou historicamente o trabalho antropológico, cuja ênfase recai principalmente sobre os compromissos da vida social com o seu passado - um olhar centrado nas tradições -, que minimiza o que as situações do presente apontam em termos das transformações em curso. Através dessa dupla postura que orientou o seu trabalho, o autor termina o seu livro problematizando os diferentes movimentos e tendências que as ambivalências, tensões sociais e políticas existentes nos campos e em dinâmicas territoriais variadas podem nos sugerir.
Será que podemos olhar o futuro principalmente como expressão do crescimento de cidades e de cidadanias, ou como de espaços estruturados e divididos através da reclusão crescente de indivíduos sem palavra e sem direitos? Será que estamos assistindo aos momentos iniciais de uma política que progressivamente se encaminha no sentido de estabelecer uma nova forma de governo do mundo, com a junção de redes que englobam outras redes em torno do controle das populações? Será que podemos esperar que haja uma renovação da Política, tal como esta é compreendida por Hannah Arendt, em que a palavra possa circular e produzir sujeitos que habitem verdadeiros espaços públicos? Como compreender a tensão contemporânea entre os dispositivos de criação da "vida nua" e seus mecanismos de silenciamento e exclusão e as formas de resistência e de renovação da ação política? A cidade e a sua heterogeneidade multiplicam a vida e, simultaneamente, engendram mecanismos de segregação e de exclusão. Os refugiados, por sua vez, resistem, transformando, na medida do possível, os campos e seus estatutos, estabelecendo, no interior desses, novas formas de sociabilidade, de reagrupamentos e de exercício da política que não escapam, necessariamente, de formas autoritárias e de exploração entre grupos. Entre os múltiplos dispositivos e resistências que intervêm na constituição desses lugares e de suas ordenações, Michel Agier convida-nos a analisar as tensões multilocalizadas e recorrentes entre a biopolítica e o exercício da cidadania nos governos e territórios do mundo.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
21 Dez 2009 -
Data do Fascículo
Dez 2009