RESENHAS
José Luiz Bica de Mélo
Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Brasil
CORTEN, André (Dir.). La violence dans l'imaginaire latino-américain. avec la collaboration de Anne-Élizabeth Cote. Paris: Karthala; Montréal: Presses de l'Université du Québec, 2008. 421 p.
Nas últimas décadas, com o fim das ditaduras militares e civis (no caso do Haiti, a derrubada do ditador Baby Doc em 1986), o fortalecimento de instituições de pesquisa e, mais recentemente, a formulação de políticas de segurança de diferentes matizes, que vão desde o modelo intolerante do "tolerância zero" às experiências de seguridade comunitária e cidadã, pertinentes e importantes análises têm sido realizadas sobre a violência nos diferentes países da América Latina e Caribe, mas que, por variados motivos, ficam restritas às fronteiras dos Estados Nacionais. As consequências, no plano do conhecimento acadêmico, estão relacionadas a um grande desconhecimento por parte de pesquisadores de outros países do que está sendo produzido além das fronteiras nacionais ou então à circulação restrita das publicações, dificultando processos de troca de informações que possibilitem uma compreensão mais ampla dos fenômenos sociais de forma comparada.
La violence dans l'imaginaire latino-américain distancia-se desse padrão de produção e circulação acadêmica que tem sido dominante. Poucas investigações como essa, organizada por André Corten,1 diretor do Group de Recherche sur les Imaginaires Politiques en Amerique Latine (GRIPAL), e com sua participação ativa, contemplam ampla pesquisa utilizando uma matriz teórico-metodológica comum sobre o tema da violência ou, mais exatamente, sobre os "effets de violence" (efeitos de violência), incorporando as vozes muitas vezes silenciadas das populações pobres das periferias, as vozes autorizadas objetivadas pelo discurso presidencial e as vozes da ficção, mediante a análise de dois recentes romances latino-americanos.
Com subvenções do Conseil de Recherches en Sciences Humaines du Canada (CHRS) e com projeto elaborado a partir de encontros mensais de discussão no GRIPAL, foram realizadas 420 entrevistas, por meio de um instrumento comum para toda a equipe (Anexos, p. 385-399) que pudesse suscitar "récites libres" (relatos livres) por parte dos entrevistados. As pesquisas de campo desenvolveram-se em 2005 - período de investigações exploratórias no Brasil e na Bolívia (p. 35) - e 2006, em bairros pobres das capitais e, por vezes, de grandes cidades e zonas rurais próximas a estas, em 11 países: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, El Salvador, Guatemala, Haiti, México, Peru e Venezuela. Os pesquisadores envolvidos conformaram um grupo de 19 membros do GRIPAL, constituído por professores-pesquisadores, doutorandos, mestrandos e também auxiliares de pesquisa dos locais em estudo. Foram realizadas pelo menos 30 entrevistas em cada um dos países acima citados, nos idiomas português, espanhol ou créole (idioma dos grupos populares haitianos), que foram posteriormente transcritas e analisadas.
O resultado foi um poderoso instrumento de reflexão, objetivado em 22 capítulos, que compõem as cinco partes da obra. Na Introdução, escrita por André Cortén, são apresentados os conceitos orientadores da pesquisa que serviram de guia para as interpretações dos dados levantados. Embora se possam observar com a leitura as diferenças e a liberdade com que cada um e cada uma redigiu o capítulo sob seu encargo, percebe-se que os conceitos de violência, imaginário, imaginário político, efeitos de violência foram referenciados a autores como Walter Benjamim, Cornelius Castoriadis, Michel Foucault, Hanna Arendt, André Corten, William Labov, Gilbert Durand, Manuel Castels, Alain Touraine, Pierre Bourdieu e tantos outros que analisaram os processos de violência, ação coletiva, movimentos sociais, relações sociedade civil e Estado, o campo do poder e imaginário político, social e religioso. Esses referenciais constituem as outras vozes (faço aqui livre referência a Octavio Paz quando afirmava que a poesia é a outra voz da política) que conformam o horizonte pelo qual os autores investigam e refletem sobre o mundo e o imaginário da violência. Importante dizer que a leitura de cada texto permite verificar que nenhum autor está preso às categorias analíticas que servem de referencial teórico, mas que com elas dialogam, as criticam e por vezes as reinventam.
A Parte 1 (p. 51-75), La violence de l'ordre, composta por dois capítulos, apresenta uma análise do binômio ordem-desordem, discutindo como essa concepção acaba, de certa forma, orientando o pensamento e a própria concepção de violência (cap. 1) e como o "sagrado" está presente no imaginário religioso e político das sociedades contemporâneas e seus efeitos sobre o próprio imaginário emancipatório (cap. 2). Na Parte 2 (p. 77-142), composta pelos cinco capítulos subsequentes, tem-se as reflexões sobre moralidade e criminalidade no discurso das pessoas comuns ("le parler ordinaire"), as formas de terrorismo e violência de Estado no México, do racismo e da exclusão social na Bolívia, a violência sobre as mulheres maya (México), bem como os processos pelos quais a mídia (nesse caso, estudo realizado no Peru) produz as formas de interpretação da violência e os grupos estigmatizados, portanto, violência midiática e simbólica. A Parte 3 (p. 143-285), sob o título Effets de violence dans le parler ordinaire, contempla dez estudos (cada um gerando um capítulo do livro), que abarcam investigações realizadas em diversos países, tratando objetivamente do tema que dá título a essa seção da obra. Chamo atenção para o Capítulo 9, que discute a imagem do excluído no Brasil, e para o Capítulo 17, onde são analisadas em profundidade, de forma quantitativa e qualitativa, as falas de vítimas de pandillas, ou gangues (no Brasil e no Peru), e apresentadas nos Anexos (p. 282-285) as "categorias para codificação das entrevistas", construídas a partir da formulação de quatro tipos de significados de violência: violência estrutural, violência institucional, violência privada e repulsas e medos impalpáveis. As partes 4 e 5 (p. 287-372), Violences collectives dans les discours presidentiels e Universe romanasque et la fascination de la violence, respectivamente, compostas pelos capítulos 18 a 22, tratam da violência no discurso e de como a ficção apresenta os personagens que em sombras e claridades compõem as cenas urbanas da cidade vista pelas palavras dos miseráveis.
Por meio das falas dos sujeitos entrevistados, por vezes interrompidas pelo sofrimento evidente nos corpos e na memória, que traz ao presente uma situação de violência à qual foram submetidos, rememorando o medo e a dor decorrente de abusos vividos ou presenciados, as análises tornam possível descrever e buscar compreender os "imaginaires de la violence" (imaginários da violência). Possibilitam, ainda, entender a forma como, por meio desses imaginários, as pessoas comuns ("gens ordinaires") fazem, no viver cotidiano, também o imaginário político e, em última instância, a sua forma de fazer política, mesmo que incluídas no campo político formal mas, em grande medida, excluídas do campo político real.
Além de depoimentos, foram realizadas reflexões sobre o imaginário instituído da violência, ou seja, a forma como os efeitos de violência se apresentam e são representados também no discurso político institucionalizado, mais especificamente, no discurso autorizado daquele que evoca o poder de autoridade como garantia do poder de enunciação, portanto, de reivindicação da legitimidade de falar em nome do povo ou da nação: o discurso presidencial na Venezuela e no Chile (cap. 18 e 19). Também no Capítulo 14, onde o foco de análise é a fala das pessoas comuns ("le parler ordinaire") e os efeitos de violência naqueles países de virada à esquerda ("le virage à gauche"), tem-se importantes elementos de compreensão da forma como a violência é discursivamente representada por Evo Morales (Bolívia), Hugo Chávez (Venezuela) e Lula da Silva (Brasil). É por meio da análise desses discursos que os pesquisadores vão verificar em que medida estão presentes no discurso oficial os traços relacionados aos efeitos de violência ("effets de violence"), tais como "anulação ou suspensão de sentido", "violência do imaginário", "efeito de instauração de uma outra ordem" ("violence fondatrice"), "defesa de interesses, de direitos adquiridos, da ordem estabelecida" ("violence conservatrice") e efeito de violência decorrente de "ameaça à ordem" (Quadro 1, p. 222).
Outra importante fonte para a compreensão dos imaginários da violência na América Latina é a produção ficcional. Sabe-se que, desde as obras de Juan Rulfo, passando por Augusto Roa Bastos e Manuel Scorza, o tema da violência está presente na ficção latino-americana, ora compondo um tipo muito comum de violência - a violência de Estado -, ora compondo outro tipo, aquela de atuação das forças repressivas da esfera privada, em decorrência da ausência do Estado ou da arbitrariedade deste, ou ainda do cruzamento da violência de Estado com a violência privada, em que pouco ou quase nada resta àqueles desprovidos dos capitais materiais ou simbólicos, ou dos meios de atuar junto ao aparato institucional na defesa de direitos, a não ser o recurso a outras formas de violência. Se evoco aqui escritores que, por meio de romances e contos, narraram violências, lutas e arbítrio em diferentes tempos e lugares da América Latina, é para destacar também a outra importante fonte na qual os pesquisadores vão buscar leituras do imaginário da violência: as novelas Siglo de O(g)RO, do salvadorenho Manlio Argueta (cap. 21, p. 337-351), e La villa, do escritor argentino César Aira (cap. 22, p. 353-372). No primeiro caso, o personagem, ao evocar outros personagens e lembranças de infância, constrói pela ficção um mundo de privações e violências onde se misturam o real e o fantástico. Já La villa, que numa tradução aproximada poderíamos dizer "a favela", nos conta, também pelos olhos do escritor, o mundo dos pobres de hoje (os cartoneros de Buenos Aires), mas que poderiam ser também, guardadas as devidas especificidades culturais, os papeleiros de São Paulo ou Porto Alegre dos tempos em que vivemos.
"Un imaginaire n'est pas seulement un découpage momentané à partir d'un magma de significations sociales. Dans chaque culture il y a des associations récurrentes dans lesquelles la population se retrouve." (p. 379).2 Essa passagem das conclusões gerais do livro nos remete para o Prefácio (p. 7-13) escrito por Sérgio Adorno, da Universidade de São Paulo, onde este pesquisador, juntamente com o conjunto de textos que compõem esse livro, nos ensina que na América Latina a violência, em suas diferentes formas, não significa a suspensão do político ou do sentido político, mas sim que é por meio dos discursos, dizendo de outra forma, dos imaginários plurais sobre as formas pelas quais são percebidos os fenômenos reais, tais como criminalidade, violência de Estado, privações, medos, terror, narcotráfico, gangues, roubos, fome, miséria, negação de direitos, torturas, solidão, dentre outras, que se torna possível perceber também as formas plurais dos imaginários políticos. Fatalistas ou emancipatórios, os imaginários políticos subjacentes nos discursos que falam da violência são a expressão de que, mediante as falas surgidas do cotidiano das pessoas comuns, está presente por vezes o fatalismo, por vezes a revolta e por vezes a esperança. E essas são expressões plurais do imaginário político latino-americano, como demonstram os estudos que compõem o livro.
Já mencionei que La violence dans l'imaginaire latino-américain é uma obra de grande importância. Acrescento dois motivos mais para fortalecer o convite à leitura. Em primeiro lugar, podemos dizer que é importante porque, como destacado anteriormente, estuda o imaginário da violência a partir de um instrumento comum de pesquisas em 11 países e o faz de forma equilibrada, sem aproximar comparações apressadas ou tirar conclusões gerais que não consideram os elementos próprios da cultura de cada país. Ao contrário, nos mostra que o fenômeno da violência e seus imaginários transitam na sua complexidade pelas falas das pessoas comuns, daquelas vozes não autorizadas, pelas falas autorizadas dos mandatários, fazendo-se presentes também na imaginação ficcional, que cria e recria outra realidade, na qual está contida a violência, e que, por meio dos personagens imaginados, faz falar homens e mulheres de carne e osso no seu fazer cotidiano e no seu andar no mundo.
Em segundo lugar, é um livro de grande importância porque nele os autores expressam generosidade. Apresentam e nos dão de presente o referencial teórico orientador do olhar investigativo, os instrumentos de coleta de dados, as grades de análise dos dados coletados e as reflexões realizadas. Tudo oferecido como importante dádiva pedagógica, que está na antítese da maioria das publicações, que nos mostram o prato sobre a mesa, mas não nos possibilitam vislumbrar o trabalho de cozinha nem a proximidade para sentirmos o cheiro dos ingredientes que geraram a alquimia da criação. Esse livro não é assim. Trata de um tema que tem ocupado o pensamento e a imaginação, as relações com os mundos vividos e imaginados, as dimensões do sagrado e da política, e o faz com as cores e os cheiros do humano.
Referências bibliográficas
- CORTEN, A.; DOZON, J.-P.; ORO, A. P. (Org.). Igreja Universal do Reino de Deus: os novos conquistadores da fé. São Paulo: Paulinas, 2003.
- CORTEN, A.; MOLINA, V.; CHIASSON-LEBEL, T. Imaginaires religieux et politiques en Amérique Latine: les contours des renvois de signification. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 13, n. 27, p. 253-280, jan./jun. 2007.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
19 Ago 2010 -
Data do Fascículo
Jun 2010