Resumo
Este artigo parte de uma pesquisa de campo realizada junto aos mbya guarani que vivem nas beiradas da floresta do Parque Nacional Iguazú em Misiones, Argentina. Descrevo como entendimentos e interesses turísticos sobre usos da floresta tentam operar um cercamento e enquadramento dos guarani sobre esse regime, que reagem constituindo um cotidiano de estratégias que tornam a vida nas matas possível. Argumento que o modo guarani de habitar e se relacionar com as florestas toma a multiplicidade como ponto de partida contrastando com concepções ecológicas prístinas de atores da economia turística. Apresento como a retomada realizada nas ruínas de um campo de golfe coaduna entendimentos sobre modos de existir e se relacionar com a paisagem que levam em conta o povo que há em cada local. Explicito como esses contrastes envolvem correlações entre política e natureza que consistem em modos de conceber relações que são também modos de fazer mundos.
Palavras-chave:
paisagens e florestas mbya guarani; espaços de memória; estéticas de invisibilidade; turismo
Abstract
This paper is based on a field research carried out with the Mbya Guarani who live on the edges of the forest of the Iguazú National Park in Misiones, Argentina. I describe how the touristcs understandings and interests on forest uses tries to enclosure and fram the Guarani on the tourism regime, who react by constituting a daily routine of strategies that make life in the woods possible. I argue that the Guarani way of inhabiting and relating to forests takes multiplicity as a starting point, contrasting with pristine ecological conceptions of actors in the tourist economy. I present how the recovery carried out in the ruins of a golf course supports understandings about ways of existing and relating to the landscape that take into account the people in each place. I explain how these contrasts involve correlations between politics and nature that consist of ways of conceiving relationships that are also ways of making worlds.
Keywords:
Mbya Guarani landscapes and forests; memory spaces; aesthetics of invisibility; tourism
Introdução
As 600 hectáreas, local onde fiz trabalho de campo, são uma área de floresta contínua ao Parque Nacional Iguazú - com 67.620 ha onde estão as Cataratas do Iguazú -, costeada pelo rio Iguazú, na cidade de Puerto Iguazú, em Misiones, Argentina.1 1 Ao longo do texto, refiro o local como “as 600”, modo como a área era conhecida na cidade. Nesse local, existem quatro comunidades indígenas - dentre elas Ita Poty, cuja descrição será retomada mais a frente. A área é parte da selva misionera - modo como é chamada a ecorregião selva paranaense que compõe a mata atlântica e que no Brasil chamamos de Floresta Atlântica do Alto Paraná. A selva paranaense é reconhecida como a área de maior biodiversidade argentina, é considerada o ecossistema latino-americano mais importante depois da Amazônia, se prolonga por Brasil e Paraguai integrando o corredor ecológico da Mata Atlântica que alcança o litoral. Até meados do século XX quase toda a província era coberta por floresta, hoje as matas cobrem apenas 35% do território. A devastação dessa parte da floresta nos últimos cem anos, motivada principalmente pela extração de madeira e plantação de soja, deixou a região exposta e ameaçada, toda fragmentada e sem conexão entre as áreas de mata que permaneceram. Nos últimos 20 anos, a Argentina vem investindo em legislações de recuperação ambiental, muitas delas focadas na constituição de corredores biológicos que voltem a integrar as zonas de mata.
Em 2007, foi criada a Ley de Bosques Nativos, pela União, para realizar um censo e classificar zonas de floresta segundo as categorias vermelho, amarelo e verde. As 600 foram consideradas zona de preservação amarela, que significa que não podem ser derrubadas, mas podem ser utilizadas para aproveitamento sustentável, turismo e investigação científica. Anterior à lei de bosques foi a concessão da área da União para a Província, que decidiu investir quando de posse das terras. Em 1994, foi feito um plano de ocupação da área a dividindo em zonas, prevendo espaços para moradia, aldeias, órgãos de Estado e dispondo a maior parte para empresas hoteleiras. A justificativa encontrada para expandir a cidade sobre uma área indígena e florestal com árvores centenárias, abrigo de centenas de espécies, que faz corredor ecológico com o parque das cataratas, foi a de que o Parque Nacional delimitava o espaço de crescimento da cidade; no entanto, a cobertura jornalística noticiava que o zoneamento estava sendo promovido para atrair investidores internacionais e ampliar a capacidade hoteleira e não porque a cidade necessitasse crescer. Os guarani realizaram acampamentos na sede da Província em Posadas contrários à concessão das áreas e instalação dos hotéis, exigindo reconhecimento de seu direito sobre o território, entre outras demandas, no entanto só obtiveram reconhecimento de 265 hectares. Nos 335 hectares restantes, estavam nascentes, rios, animais, áreas de mata com recursos para artesanato O espaço foi de fato dividido e loteado para hotéis e resorts de luxo, a previsão era de que 30 empreendimentos se instalassem na área, desde que fossem construções de baixo impacto ambiental (alguns são construções de mil metros quadrados com piscinas), e atualmente existem 16 hotéis e quatro aldeias guarani nas 600 hectáreas.
A presença dos hotéis na floresta tornou as 600 uma espécie de ponto turístico da cidade, os hotéis promovem um turismo eco-friendly vendendo estadias como imersões na selva misionera, os turistas comentam os passeios na mata e descrevem as relações com os guarani como se fossem da ordem de mais uma “atração turística” do local, o enquadramento os coloca como se fossem figurantes do local onde sempre viveram. Os hotéis tentam produzir um cercamento e enquadramento específico dos guarani sob a chave do turismo, além de uma fragmentação da floresta. Atualmente, as 600 são caracterizadas por placas oficiais como complejo hotelero, ainda que um portal do Instituto Misionero de Biodiversidad (IMiBio) logo na entrada a caracterize como área de proteção ambiental. Com as instalações dos hotéis, acentuaram-se também as diferentes percepções de lideranças e moradores sobre o tipo de relação a se manter com eles, as alianças feitas pelas aldeias são bastante divergentes e não uniformes, algumas buscam “parcerias” com os hotéis que em geral são desvantajosas para as aldeias.
A área coaduna diferentes percepções sobre a paisagem, de um lado os guarani e suas circulações, usos e invenções cocriadas com seres e mata, de outro investidores que veem nos hotéis a possibilidade de vender uma experiência imersiva na floresta para turistas internacionais, além do marketing ecossustentável. Apesar do impacto sobre o território, e de oferecerem contrapartidas mínimas aos guarani - como liberar a rede wi-fi, ou a construção de um viveiro em uma aldeia em troca de dobrar a capacidade do hotel -, os hotéis usam nomes fazendo referência às comunidades: aldea lodge, tierra guarani, yvy; alguns até mesmo decoram seus recintos com imagens romantizadas dos guarani: fotos em preto e branco de situações e pessoas isoladas que fazem parecer tratar-se de imagens antigas.2 2 Para uma descrição mais detalhada sobre usos de referências indígenas por redes hoteleiras, cf. Carvalho (2021). Pode-se dizer que os hotéis situam os guarani como um atrativo para os turistas, já que, na maior parte das vezes, é a partir de agências e hotéis que pessoas chegam nas aldeias e não de um trato direto entre turistas e comunidades (o que reconfiguraria a situação), é quase como se as aldeias fossem espécies de museus vivos dentro desse território - de tal forma que havia um projeto, que não saiu do papel, de construir um parque temático indígena na área.
Quando comentam sobre o processo de loteamento da floresta e sobre a presença dos hotéis, há uma indignação e uma dor que não costumam estar muito presentes nas falas de lideranças guarani. Jachuka,3 3 Jachuka e Kuaray são o casal de cacica e cacique da comunidade guarani Ita Poty. Jachuka é uma das principais interlocutoras da etnografia resultante neste artigo. liderança de Ita Poty, tentava me explicar que não é só que a floresta fosse dos guarani há séculos, que a utilizassem, que vivessem nela, mas ali é um lugar central no território guarani, e é pelos sonhos dos mais velhos e pelas conversas com os xamãs que ela afirma que nunca vão desistir de lutar por aquele lugar.
Das florestas guarani, modos de se relacionar e territorialidade
As características das áreas tradicionalmente ocupadas pelos guarani são bastante específicas e bem relacionadas na literatura que trata sobre território (Ladeira, 2007LADEIRA, M. O caminhar sob a luz: território mbya à beira do oceano. São Paulo: Ed. Unesp, 2007.; Melià, 1990MELIÀ, B. A terra sem mal dos Guarani: economia e profecia. Revista de Antropologia, São Paulo, n. 33, p. 33-46, 1990.; entre outros). Há um entendimento de que as aldeias mbya guarani localizam-se preferencialmente nas áreas de mata atlântica; ainda que essa relação seja evidente, algumas nuances merecem ser consideradas. A escolha por áreas de mata não necessariamente implica uma relação apriorística, como se os guarani “naturalmente” vivessem em áreas correspondentes à mata atlântica. Ao longo desse texto, procuro evidenciar o quanto esse fazer território tem mais a ver com relação do que com correspondências autoevidentes. Na literatura guarani, a correlação com a mata (ka’aguy) é recorrentemente evidenciada naquilo que Melià (1990)MELIÀ, B. A terra sem mal dos Guarani: economia e profecia. Revista de Antropologia, São Paulo, n. 33, p. 33-46, 1990. chamou de “sobreposição” entre o mapa cultural guarani e um mapa ecológico específico (aquele da mata atlântica). Ainda que a sobreposição das áreas de mata corresponda às aldeias indígenas em grande parte do território mbya, cabe o questionamento feito por Souza (1998SOUZA, J. Aos “fantasmas das brenhas”: etnografia, invisibilidade e etnicidade de alteridades originárias no sul do Brasil (Rio Grande do Sul). 1998. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1998., p. 315): “A equivalência é surpreendente, levando a considerar que onde tem mato tem índio, ainda que minha etnografia tenha me levado a pensar que onde tem índio tem mato, em decorrência de toda uma concepção cosmológica da natureza a regrar a maneira de como tiram proveitos dela.” O cruzamento do debate ecológico e indígena será desenvolvido em outro tópico, por ora cabe fixar aqui que por mais que o paralelo entre “preservação ambiental” e aldeias indígenas seja evidente e por mais que lideranças indígenas cada vez mais assumam a posição de guardiões de florestas, existem particularidades nas concepções indígenas de relação com a mata que não se resumem à objetificação do espaço como matéria inerte.
Em Misiones, as caminhadas na mata junto a meus interlocutores eram constantemente permeadas por um falar sobre as coisas no mundo, das relações e dos cuidados a se ter com elas.4 4 Neste artigo, Misiones refere à província argentina que recebe este nome por integrar o circuito das missões jesuíticas do lado argentino, contudo toda a região das chamadas “Missões” (que inclui também Brasil e Paraguai) possui um rendimento em etnografias guarani que enfatizam aspectos mítico-religiosos relacionados à territorialidade e ao parentesco. Sobre o tema, ver Clastres (1978), Basini (2004), Jesus (2015), Litaiff (2004, 2009), Moraes (2010). O ecológico na noção das florestas indígenas remete a uma história espacializada em que importa a composição com os seres que ali estão mais do que o espaço em si, há todo um entrelaçamento de existências onde quer que se possa definir uma paisagem. Tais aspectos foram bastante descritos em etnografias que apontam a noção ontológica de multinaturalismo observando como os mundos ameríndios são marcados por uma diferenciação intensiva:
Todo existente pode ser pensado como pensante (“isto existe, logo isto pensa”), isto é, como “ativado” ou “agenciado” por um ponto de vista -; do outro lado, uma radical diversidade real ou objetiva. O perspectivismo é um multinaturalismo, pois uma perspectiva não é uma representação. (Viveiros de Castro, 2015VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015., p. 65).
O que existe na multinatureza ameríndia, portanto, são multiplicidades relacionais.
Pereira (2015)PEREIRA, L. A Reserva Indígena de Dourados: a atuação do Estado brasileiro e o surgimento de figurações indígenas multiétnicas. In: CHAMORRO, G.; COMBÈS, I. (org.). Povos indígenas em Mato Grosso do Sul: história, cultura e transformações sociais. Dourados: UFGD, 2015. p. 781-794. fala sobre os seres que habitam o mundo e a especificidade daqueles que vivem nas matas (os teko jara), para os guarani a destruição das florestas pelos brancos ocorre porque estes não sentem medo dos teko jara; no entanto, acreditando os brancos ou não, a vingança dos teko jara é como um dado com o qual trabalham. Nesse sentido, a posição relacional assumida com a paisagem envolve determinados tipos de seres com os quais os guarani sabem, ou preferem, se relacionar. Para além de uma relação substancialista com a paisagem, portanto, são as relações ativadas com os seres que a habitam que informam sobre condições adequadas ou não para a existência mbya.
Uma descrição que costuma estar associada a territorialidade tem a ver com a oposição entre campo e floresta. Souza (1998)SOUZA, J. Aos “fantasmas das brenhas”: etnografia, invisibilidade e etnicidade de alteridades originárias no sul do Brasil (Rio Grande do Sul). 1998. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1998. descreve tal oposição em sua tese como derivando de um “equívoco” do demiurgo. Ao criar o mundo todo como floresta, Nhanderu (divindade guarani) criou também o gafanhoto que devorou florestas e fez surgir campos, local de onde se origina o jurua (homem branco). Em Garlet e Assis (2009GARLET, I.; ASSIS, V. Desterritorialização e reterritorialização: a compreensão do território e da mobilidade mbyá guarani através das fontes históricas. Fronteiras, Dourados, v. 11, n. 19, p. 15-46, jan./jun. 2009., p. 42), a oposição entre campo e floresta aparece como intencionalmente feita por Nhanderu, que distribui
a mata aos Mbyá e o campo aos brancos, ordenando que cada um vivesse nos seus limites. Mas os brancos logo transgrediram o pacto, invadindo as selvas e, tal qual o gafanhoto, “o’upa kaaguy”, comeram toda a mata, ou seja, removeram-na para dar lugar aos campos e pastos para suas vacas.
Cabe notar o aspecto grotesco e totalizador associado aos jurua - que tudo comem, tudo estragam, tudo falam, contudo é importante destacar que o horizonte habitativo mbya não consiste em totalizar as matas, já que concebem os campos como lugar compartilhado de seres específicos que também dividem o mesmo yvy rupa (leito terrestre).
Misiones é reconhecida pela integridade de suas matas onde até mesmo onças ainda vivem, lá é possível viver de maneira assemelhada aos antigos guarani. É recorrente a comparação entre um presente devastado e cercado com um passado de mata abundante por onde se podia caminhar. Em toda América Latina, a província argentina é aquela onde mais restaram áreas remanescentes do espaço original da mata atlântica. Li, em um sítio argentino, que considerando a cobertura de floresta original era possível a um macaco percorrer toda Misiones e chegar ao estado de Santa Catarina sem em nenhum momento descer de uma árvore. Apesar de óbvia, essa imagem me espantou. De certa forma, ela deu materialidade ao que dizem os guarani quando falam da dificuldade que os mais velhos têm em compreender por que não podem mais circular livremente, por que não encontram os animais e por que precisam ficar restritos a locais específicos onde ainda existem florestas quando antes não havia limites, temas associados ao problema das cercas e da destruição de ambientes.
Quando comentei com meu amigo Werá5 5 Werá vive no Rio Grande do Sul, mas costuma comentar comigo suas impressões sobre a região de Misiones, onde vivem muitos de seus parentes e para onde viaja em busca de sabedoria. sobre o quão impressionada havia ficado com as matas em Misiones, ele concordou mencionando que realmente era uma mata incrível, pois nela viviam até mesmo as onças. Ainda leiga no entendimento da floresta, imaginei que o que a tornava admirável eram suas árvores centenárias, os remédios e as plantas tradicionais presentes por toda parte. Alguns meses depois, em um congresso onde participavam biólogos e antropólogos presenciei uma apresentação sobre projetos de reintrodução de fauna em áreas da mata atlântica que comentava a dificuldade em encontrar lugares viáveis para a onça pintada, espécie mais atingida pela devastação. Compreendi que a onça faz convergir preocupações dos mbya e de biólogos, sendo um tipo de índice da integridade de um ecossistema, por ser uma espécie em risco que precisa de densas áreas de floresta para viver e com a qual os guarani não desejam encontrar e evitam até mencionar, mas comemoram por estarem nos locais onde elas ainda possam viver. Misiones é essa região onde as onças ainda estão e isso resume bem a importância da mata. Caminhar na chamada selva misionera, portanto, era ir conhecendo aos poucos coisas da vida guarani: uma formiga que encontrávamos e que falava sobre aquela época única do ano em que ela nasce e como ela é cozida e como costumavam comê-la e sair para coletá-la, as artimanhas das onças e os modos de desviar delas, lembranças de coisas que faziam quando crianças, saberes sobre remédios, frutas e relações, todos esses eram temas das caminhadas e da atenção que se prestava aos arredores de onde quer que estivéssemos.
A territorialidade mbya, portanto, é relacional, não se resume ao espaço geográfico nem tampouco às materialidades visíveis em condições “normais”, trata-se de um espaço aberto às alteridades, sempre considerando o “povo que há” em cada lugar e com o qual se tem que negociar. Hierro e Surrallés (2004)HIERRO, P.; SURRALLÉS, A. Introducción. In: SURRALLÉS, A.; HIERRO, P. (ed.). Tierra adentro: territorio indígena y percepción del entorno. Lima: IWGIA, 2004. p. 9-22. mencionam a noção de território como “espaço de relação” quando listam “recursos” como água, montes, cataratas, animais, pessoas, espíritos, insetos que consolidam vínculos sociais entre diferentes seres. Soares (2012SOARES, M. Caminhos para viver o Mbya reko: estudo antropológico do contato interétnico e de políticas públicas de etnodesenvolvimento a partir de pesquisa etnográfica junto a coletivos guarani no Rio Grande do Sul. 2012. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012., p. 36) descreve a complexidade do habitar guarani que envolve uma constante negociação sobre presenças e compartilhamento de espaços: “Nesse local [cachoeira], especificamente, habitava um povo das pedras, que havia lhe dado permissão para que pudessem coabitar. Cabia aos Guarani estabelecer relações de respeito e reciprocidade com esses seres, para que não desencadeasse alguma reação por parte de itaja [dono da pedra].” A dimensão animada da floresta aparece na relação dos guarani com seres e divindades tanto nos distanciamentos e cuidados necessários ao percorrer as áreas chamadas ka’aguy (mata) quanto nas relações estabelecidas a partir dos espaços mais familiarizados (Erikson, 1987ERIKSON, P. De l’apprivoisiment a l’ approvisionnnement: chasse, alliance et familiarization en Amazonie amérindienne. Theorie et Culture, [s. l.], n. 9, p. 105-140, 1987.), como os pátios e as roças. As relações com aspectos da paisagem, portanto, são da ordem da jurisprudência (Viveiros de Castro, 2015VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015.), já que é caso a caso que se negocia a possibilidade ou não de pactuar um uso compartilhado com os demais seres que ali vivem; de modo que a territorialidade é também subjetiva, ela é para cada um.
O modo de relação mbya com a paisagem não seria, portanto, da ordem de uma realidade objetiva a ser “apreendida”, e sim da ordem de uma realidade subjetiva que tem a ver com as relações que se dão entre cada sujeito e o conjunto de seres no mundo. Gell (2018)GELL, A. Arte e agência. São Paulo: Ubu Editora, 2018. descreve a paisagem composta por índices que orientam sobre as relações possíveis ali presentes. Para os guarani, onde há pedra, há itaja (dono da pedra), paisagens são multiplicidades e circular é fazer negociações. Assim, a noção de territorialidade tem a ver com relações que são feitas (ou não) com aqueles que habitam o mundo. O mundo é algo para alguém, assim como território é espaço vivido.
Apreender a paisagem, portanto, não se trata de um mero comportamento “ecológico” desvinculado do social. Para os guarani, habitar o mundo é deparar-se constantemente com a questão, sugerida por Latour (2019)LATOUR, B. Políticas da natureza: como associar as ciências à democracia. São Paulo: Ed. Unesp, 2019., sobre quantos somos nós e como viver conjuntamente. Essa noção animada da paisagem concebe inclusive a possibilidade de vingança contra as ações humanas. Um dos modos de proceder dessa vingança é a sedução pela via das relações, outro é o “contágio” via objetos, além de perturbações diversas. O risco de irritar os donos e os cuidados nas relações com eles é onipresente no cotidiano mbya, como por exemplo na sugestão recorrente para que criem plantas ou animais em locais específicos das aldeias. Testa (2014)TESTA, A. Caminhos de saberes guarani mbya: modos de criar, crescer e comunicar. 2014. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2014. menciona uma situação quando seus interlocutores insistiram que seria errado construir um viveiro de plantas medicinais porque a potência e eficácia das plantas tem relação com o dono e ele pode se embravecer por ter sua planta removida: “Não pode cortar pra plantar em outro lugar, se não, não vai servir também. É lá no lugar onde está o dono que ela cresce, é lá que ela vai ganhar poder. Se você cria em outro lugar, não vai ter o dono naquele lugar. Pode até crescer a planta, mas não vai servir, não vai ter poder” (Testa, 2014TESTA, A. Caminhos de saberes guarani mbya: modos de criar, crescer e comunicar. 2014. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2014., p. 118). Menos do que uma substância com propriedades específicas, a planta fala sobre uma relação com determinado ente, a definição sobre a potência da planta depende menos do uso específico que é feito dela e mais da relação que o envolve.
Corpos e pessoas são feitos em composições com o espaço, as possibilidades corporais ativadas em cada espaço dependem das relações e estão sempre sujeitas a transformações. Cabe lembrar que entre os ameríndios o corpo “não é uma fisiologia distintiva ou uma anatomia característica; é um conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um habitus, um ethos, um etograma” (Viveiros de Castro, 2015VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015., p. 66). As multiplicidades relacionais que compõem o mundo aparecem na comparação feita pelos guarani da relação entre campos e gafanhotos que diz desse agenciamento entre pessoa e lugar; os gafanhotos são aqueles que podem se reproduzir desmedidamente e se colocam como avassaladores de um espaço (jurua e gafanhotos constituem ambos habitantes dos campos que se proliferam desmensuradamente). Viver com o espaço é estar em relação, Guimarães (2010GUIMARÃES, S. Caminhos e territórios Guaraní-Mbyá. In: CABRAL, A. (org.). Línguas e culturas Tupi. Brasília: LALI/UnB, 2010. p. 149-159., p. 153) conta que alguns de seus interlocutores receavam viver próximos a cidades, pois a tomavam como um vetor de enfermidades trazidas pelos ventos que causavam alterações nos corpos dos guarani. Assim, a noção de territorialidade vincula-se a processos corporificados (Descola, 2004DESCOLA, P. Las cosmologías indígenas de la Amazonía. In: SURRALLÉS, A.; HIERRO, P. (ed.). Tierra adentro: territorio indígena y percepción del entorno. Lima: IWGIA, 2004. p. 25-35.; Hierro; Surrallés, 2004HIERRO, P.; SURRALLÉS, A. Introducción. In: SURRALLÉS, A.; HIERRO, P. (ed.). Tierra adentro: territorio indígena y percepción del entorno. Lima: IWGIA, 2004. p. 9-22.). Ao percorrer caminhos e correr riscos, as dúvidas pairam sobre que tipos de corpos são aqueles com os quais se entra em relação, o risco de ser afetado, as transformações envolvem as corporalidades, é no corpo que se alojam as agressões sofridas, é ele que vetoriza as outras socialidades que o atravessam, principalmente entre aqueles que circulam por lugares povoados de outros mais que humanos. Tal como observa Viveiros de Castro (2000VIVEIROS DE CASTRO, E. Atualização e contra-efetuação do virtual na socialidade amazônica: o processo de parentesco. Ilha, Florianópolis, n. 1, p. 5-46, dez. 2000., p. 45): “Nos mundos relacionais indígenas, o socius é efetivamente algo ‘orgânico’, isto é, corporal.” Esse mundo que se apresenta sempre a partir, ou desde uma relação.
Corpo e lugar, entre os guarani, se encontram na própria palavra tekoa (que costuma ser traduzida como aldeia).6 6 Sandra Benites (2018) desenvolve o conceito de “corpo-território” para falar dos cruzamentos na constituição de corpo e espaço. Para maiores rendimentos das implicações entre lugar e modo de ser, cf. Ciccarone (2004), Jesus (2015), Ladeira (2007), Litaiff (2009), Melià (1990), Pissolato (2007). A palavra (t-eko-a) é formada pela raiz eko (flexão xer), que costuma ser usada para falar do jeito, do sistema, do conjunto de hábitos (que aparece na palavra teko), com o prefixo t usado na forma sem posse dos verbos da flexão xer, e o a final dá à palavra teko uma ideia de assentamento espacial, local onde a coisa acontece. Tekoa, portanto, em uma tradução quase literal é o lugar dos hábitos. Sabendo que a palavra -reko, da qual tekoa é variante, também pode ter o sentido de convivência e cuidado, a palavra comumente traduzida por aldeia pode funcionar com o sentido de lugar da convivialidade. Sendo, portanto, uma palavra importante a ser considerada quando se fala em territorialidade. As tekoa são espaços de morada que fixam pontos na grande rede de movimentações que constitui a territorialidade mbya. Nesse mundo cheio de moradas outras que humanas, as tekoa podem ser entendidas como espaços de familiarização (Erikson, 1987ERIKSON, P. De l’apprivoisiment a l’ approvisionnnement: chasse, alliance et familiarization en Amazonie amérindienne. Theorie et Culture, [s. l.], n. 9, p. 105-140, 1987.). Há um cuidado grande com o que se permite ou não “entrar” nelas, ainda que não se possa ter controle sobre a circulação dos outros seres, ela cria uma espécie de zona de relações prioritárias que são aquelas da ordem das familiarizadas (sejam pessoas, plantas ou animais). Testa (2014)TESTA, A. Caminhos de saberes guarani mbya: modos de criar, crescer e comunicar. 2014. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2014. observa a transformação como característica central da constituição das tekoa, já que é a partir de afazeres cotidianos que espaços são transformados em habitáveis, o que denotaria uma ideia de fabricação para a constituição das mesmas.
O problema enfrentado pelos guarani nessa concepção de uma macroterritorialidade que incorpora a alternância na constituição das moradas terrestres é o cercamento dos espaços e a impossibilidade de retornar para antigos locais de referência cercados e ocupados durante o intervalo inabitado por humanos. Essa também é a principal dificuldade encontrada pelos guarani para “comprovar” a ancestralidade de sua ocupação em áreas de floresta. A noção de continuidade territorial presente na noção de yvy rupa (a terra é uma só) é parte fundamental para a concepção da territorialidade. O uso da cerca entre os guarani tem a ver com relações de distanciamento, como aparece em Soares (2012SOARES, M. Caminhos para viver o Mbya reko: estudo antropológico do contato interétnico e de políticas públicas de etnodesenvolvimento a partir de pesquisa etnográfica junto a coletivos guarani no Rio Grande do Sul. 2012. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012., p. 245) quando descreve o cercamento feito em torno de uma opy (casa de reza): “‘A cerca ataca qualquer coisa, aquilo que vive de noite, a gente não sabe o que tem de noite, se traz alguma doença, se traz ali dentro uma gripe. Então daí a gente faz a cerca, e tá tudo afastado pra nós dentro da opy’.” Cercar um espaço para impedir a circulação de pessoas é concebido como algo de extrema violência, pois a cerca é um modo de estar em relação que fala sobre evitação. Também por isso não são bem-vindas as criações de animais domésticos em cercados, as cercas são de difícil compreensão principalmente para os mais velhos, e aparecem como uma enfermidade tal como registra Souza: “Hoje tem muita cerca, muita divisão! … Prá nós, Mbyá, isso tudo é doença, enfermidade. Prá nós, nada tem fronteira. Prá nós não é dois ou três mundos, é um só Mundo” (Felipe Brissuela apudSouza, 1998SOUZA, J. Aos “fantasmas das brenhas”: etnografia, invisibilidade e etnicidade de alteridades originárias no sul do Brasil (Rio Grande do Sul). 1998. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1998., p. 36).
Caminhares que articulam esquivas e invisibilidades
Quando comecei a circular pelas 600 a primeira chave de inteligibilidade para minha presença era como turista. Crianças vinham perguntar se eu queria comprar orquídeas, pediam caramelos y monedas. Mulheres desviavam de mim pelas inúmeras trilhas existentes (cheguei a contar 42 trilhas em 2,5 km), evitavam olhar quando cruzavam comigo e caso eu perguntasse algo me davam orientações equivocadas ou apenas riam sem responder. Quando entrava em alguma aldeia para conversar com alguém, percebia os olhares desconfiados que desviavam e fingiam não me ver. No início do campo, eu evitava ficar por onde circulavam os turistas para tentar me desvencilhar dessa imagem. Caminhando pela área ainda sem ter muito para onde ir, me chamava atenção a capacidade dos guarani de evitar olhares e encontros e de produzir invisibilidades: olhares desencontrados que fingem não ver, conversas que fingem não entender, e mesmo os sinuosos caminhos na mata que permitem a alguém simplesmente desaparecer. A própria paisagem serve para produzir invisibilidades, isso aparece nas trilhas e nos caminhos contraintuitivos que costuram o espaço, nas moitas mantidas em pé que permitem desviar de olhares em lugares fixos, nos próprios senderos (passeios turísticos dentro das aldeias) que quase não cruzam com os demais caminhos das aldeias - o que faz deles algo engraçado quando se tem conhecimento da verdadeira malha de trilhas existente no território -, também os estandes situados em lugares que jogam com o tempo da visibilidade, e mesmo nos pátios de algumas casas com seus fundos não visíveis.
Essa malha de caminhos não fala somente sobre a disposição de trajetos percorríveis, mas de um modo de relacionar-se com as coisas e seres da paisagem. Cabe referir aqui a noção de malha de Ingold (2012INGOLD, T. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n. 37, p. 25-44, jan./jun. 2012., 2019INGOLD, T. Quando a formiga se encontra com a aranha: teoria social para artrópodes. In: INGOLD, T. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2019. p. 144-152.) como um campo de forças que permite que as coisas fiquem vivas, “linhas ao longo das quais as coisas são continuamente formadas” (Ingold, 2012INGOLD, T. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n. 37, p. 25-44, jan./jun. 2012., p. 27, grifo do autor). A malha destaca uma espécie de continuidade entre coisas que são postas em relação conforme caminhos são feitos, apontando principalmente para o que o autor chama de “linhas de fluxo” enfatizando o movimento e o ritmo inscritos no espaço vivido. Essa ideia de malha como modo de estar em relação será recuperada mais adiante neste artigo.
A movimentação nas 600 era permeada pela possibilidade de escapar de cruzamentos indesejados: desde os olhares, as confirmações evasivas, até os caminhos que são feitos para além das áreas pavimentadas, por trilhas ou picadas interconectadas e bastante sinuosas. Por todo o caminho, despontam pequenas trilhas no mato que indicam diferentes usos do território por aqueles que sabem percorrê-lo, que magicamente despontam do mato ou nele desaparecem. Depois de um tempo em campo, passei a ser incluída pelos guarani nos roteiros não turísticos e a transitar por espaços que nunca sequer tinha visto, foi assim que percebi a existência dessa malha de caminhos e refúgios no mato, invisíveis aos turistas, caminhos contraintuitivos que fazem curvas e contornos conectando aldeias, casas e espaços importantes. Trilhas que se interseccionam, onde alguém facilmente se perderia caso entrasse sem as conhecer, árvores e plantas resguardadas e que resguardam recantos, locais de moradia acessíveis somente por uma longa caminhada, casas com janelas na frente e porta nos fundos, etc.
Também os estandes com artesanatos à venda, em geral, estão posicionados em lugares onde os guarani conseguem ver alguém se aproximando muito antes de serem vistos. Essa característica de “ver antes de ser visto” foi algo que percebi ser recorrente nos circuitos do turismo não delimitado, ou seja, quando há a possibilidade de um turista aparecer no meio da aldeia onde as pessoas vivem. Ao mesmo tempo, um turista potencial é um estranho que se aproxima e que nem sempre recebe atenção. Na verdade, é até mais provável que ele seja ignorado do que atendido. A algumas pessoas nas aldeias cabe receber os desconhecidos e não há pressa em fazê-lo, um turista que não tenha paciência simplesmente vai embora, o que faz da espera uma espécie de seleção de turistas com quem interagir. A possibilidade de desviar dos turistas desdobra-se de várias formas. Pará,7 7 Pará é filha do cacique da tekoa Tupa Mba’e (também nas 600) e, embora apareça pouco neste artigo, foi uma interlocutora central durante meu trabalho de campo. uma de minhas interlocutoras, contava sobre a visita de um grupo de estudantes na aldeia que coube a ela receber. Ela dava risada falando das perguntas que eles fizeram e de como ela havia combinado com seu pai (então cacique) que diria sim para tudo, repetia as coisas que eles haviam perguntado e ria me contando sobre como ficaram chocados com ela dizer que sim, também ria contando que enquanto ela os recebia, de longe, seus parentes olhavam e davam risadas já sabendo do plano, ela contou que a única coisa que quis desmentir foi sobre ser verdade que os caciques tiravam a virgindade das mulheres mais novas, porque isso ela já sabia que era coisa que dizia quem não gostava de povos indígenas.
A invisibilidade se mostrou uma importante estratégia nas relações com atores como os turistas, por exemplo. As pessoas são capazes de ficar horas sem sair de suas casas caso percebam um estranho inconveniente com quem não querem conversar circulando pela aldeia, além da parte de dentro das casas, existem vários outros pequenos refúgios por onde os guarani desaparecem. A sensação é quase como se repentinamente tivessem se tornado invisíveis, mas os sinais da presença recente estão ali: o tererê ou o chimarrão, a brasa com uma panela em cima, cascas recentes de artesanato, televisões ou rádios ligados, cadeirinhas dispostas em roda, mas nada das pessoas. Essa situação dura até o momento em que é enviado um xondaro para perguntar o que a pessoa procura e conduzi-la para locais distantes do pátio das aldeias; xondaro é o modo como chamam nas aldeias homens jovens que ajudam as lideranças ou os mais velhos.
Em sua tese Souza (1998)SOUZA, J. Aos “fantasmas das brenhas”: etnografia, invisibilidade e etnicidade de alteridades originárias no sul do Brasil (Rio Grande do Sul). 1998. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1998. faz uma análise da invisibilidade indígena no sul do Brasil e como ela estava vinculada à violência dos ciclos colonizadores da região que progressivamente desmataram e ocuparam espaços de terra para onde anteriormente populações indígenas conseguiam se refugiar, o “aparecimento” guarani no Estado, segundo o autor, decorreria da impossibilidade de seguir em seus refúgios. Em Misiones, sem poder controlar completamente o fluxo de turistas nas aldeias e nos caminhos, os guarani adotam posições comuns no modo de se relacionar com esses outros em seu território. O não enfrentamento é uma estratégia dos guarani que, em geral, preferem contornar e desviar das situações hostis antes de iniciar um confronto. Em uma situação com vários guarani reunidos, uma xejaryi (anciã) comentava sobre um jurua que recentemente havia se tornado aliado dizendo que ela sabia que o coração dele iria amolecer, que era assim que ela preferia agir, esperando sem brigar. Essa posição, que escutei repetidas vezes de maneiras e sobre situações distintas, fala sobre uma estratégia de luta política que não se dá via enfrentamento direto, mas pelo contorno, pela captura sedutora do desafeto.
Essa estratégia também aparece na noção de esquiva, que constitui um movimento na dança do xondaro de incorporação do exterior e que também é um modo de agir politicamente (Santos, 2021SANTOS, L. K. A esquiva do xondaro: movimento e ação política guarani mbya. São Paulo: Elefante, 2021.). A esquiva é dita pelos guarani como o movimento de “fazer errar” (Santos, 2021SANTOS, L. K. A esquiva do xondaro: movimento e ação política guarani mbya. São Paulo: Elefante, 2021.). Sugiro que essa invisibilidade provocada pelas trilhas e seus caminhares povoados de desaparecimentos são modos de esquiva. Assim como as conversas desentendidas com desconhecidos, modos de fazer desviar olhares e falas sem recusar a relação com o exterior, mas não se deixando capturar por ela. Talvez não por acaso caiba aos jovens ou jovens adultos, xondaro, a recepção desses agentes externos dentro das aldeias e que sejam eles que conduzam os turistas nos senderos. Essa esquiva combinada ao direcionamento do estrangeiro para locais específicos envolve uma relação entre abertura e fechamento dos espaços em que há uma preservação do cotidiano. O turista tem sua intrusão controlada e para aqueles que escapam há o não entendimento como modo de esquiva. Os guarani reagem ao impulso totalizante do turismo criando estratégias para manter a relação com esses atores de maneira moderada. Em diálogo com o trabalho de Stengers (2018)STENGERS, I. La brujería capitalista. Buenos Aires: Hekht Libros, 2018., penso tratar-se de estratégias que envolvem uma pragmática dos encontros, que são pensadas a partir do repertório de ações que é autônomo mas também coletivizado.
A relação com a paisagem é algo forte para os guarani em Iguazú, é a partir das relações com a mata que traçam suas esquivas, que aproximam turistas e que tecem comparações e avaliações sobre as condições de vida nas aldeias vizinhas. É no mínimo curioso que os senderos por onde os turistas passam estejam cheios de armadilhas tradicionais (mondé, mondepi, ñua) que são mostradas como “atração”. É de sutilezas assim que são feitas as estratégias para escapar de uma relação que se pretende totalizante, como é o turismo na economia local. Como uma espécie de alternância entre algo que é ocultado e algo que é mostrado, fabricada de maneira cotidiana que possibilita a existência de espaços seguros invisíveis e inacessíveis aos turistas.
Retomar ruínas, a multiplicidade na habitabilidade
Os hotéis produziram um cercamento por dentro da floresta que se assemelha ao operado pela soja no lado brasileiro e paraguaio. A soja liquida as florestas por fora, cercando as aldeias, que restam como ilhas verdes em seus contornos; no caso dos hotéis, ainda que a mata seja mantida, o cercamento atua por dentro das próprias aldeias, a partir de uma tentativa de enquadramento da vida cotidiana sob o regime do turismo. Kuaray e Jachuka articulavam-se com os caciques das outras três comunidades nas 600 para pressionar o poder público por melhores condições de vida; uma vez escutei Kuaray dizer que se eram seus costumes que deveriam oferecer aos turistas, sua cultura, como iriam oferecer sem o lugar para praticar, sem estar vivendo em harmonia, de acordo com sua cultura em uma terra adequada, que seus costumes dependiam dos territórios.
Nesse processo, uma grande conquista dos guarani foi a retomada de uma área, dentro da reserva ambiental, que estava sendo transformada em campo de golfe, onde fundaram a aldeia Ita Poty - da qual Kuaray e Jachuka são caciques. Em 2005, a Hilton8 8 Multinacional do setor hoteleiro. iniciou o processo de construção de um resort com campo de golfe e espelho d’água em uma área de cerca de 13 hectares na floresta. Para fazer as transformações necessárias na paisagem, uma parte do monte foi dinamitada e árvores derrubadas, um curso d’água foi desviado para construção de uma barragem que alagou uma parte da floresta e criou uma laguna artificial onde seria o espelho d’água do campo de golfe. Todas essas transformações foram realizadas dentro dessa floresta onde supostamente são liberadas apenas construções de baixo impacto ambiental. Apesar das denúncias e protestos dos guarani e de grupos ambientalistas sobre a destruição da floresta, o que se noticiava na época eram as inversiones (investimentos) de milhões de dólares que iriam para a cidade por causa do empreendimento. Contudo, em 2008, as obras pararam e nunca mais foram retomadas, os jornais noticiavam a parada em decorrência da crise e da falta de dinheiro. Jachuka conta que nunca um hotel daquele porte pararia uma obra por falta de dinheiro, que, por mais que digam, ela sabe que não foi isso, o hotel parou a obra por causa da luta indígena. Os guarani ganharam essa briga e jornal nenhum noticiaria isso. Jachuka conta que sempre sonhou com aquela área e mesmo com a destruição em curso sabia que aquele espaço voltaria a ser terra guarani.9 9 Os sonhos são importante ferramenta para condução da vida no cotidiano mbya, a partir dos sonhos pode-se mudar a data de uma viagem, prosseguir ou desistir de uma mudança, receber avisos e presságios. Sonhar é saber sobre, ainda que nem todos saibam reconhecer as mensagens dos sonhos, os mais velhos costumam decifrá-las. Em geral, as conversas sobre os sonhos ocorrem durante as manhãs enquanto as pessoas que vivem em um mesmo núcleo familiar compartilham o mate à beira de uma fogueira.
Jachuka costuma lembrar do que havia no espaço cedido à Hilton antes da destruição, menciona o taquaral muito antigo, do tempo dos avós, de onde tiravam materiais para fazer suas cestarias, o palmeiral de pindó, árvore sagrada que estrutura e mantêm o mundo em pé, árvores muito antigas como o palo rosa, além de uma grande variedade de animais que por ali circulavam livremente. A laguna artificial feita pelo hotel divide-se em duas partes: uma fica escondida dentro da aldeia em meio ao mato que cresceu de volta, a outra fica na margem de uma estrada pavimentada dentro da área por onde circulam veículos e por isso acaba tendo um uso mais coletivo tanto por turistas que passam e param quanto pelas pessoas de outras aldeias que nadam, lavam roupas, buscam água, etc. Além daquilo que se tornou uma laguna, há uma outra parte da floresta que também foi alagada pelo hotel e virou uma espécie de banhado raso onde a água não aumenta, mas também não seca. Nesse espaço, todas as árvores morreram, mas permaneceram estaqueadas na terra. Nessa área devastada, onde morreram árvores, palmeiras, taquaras, plantas e virou uma espécie de ruína, os guarani transformaram destruição em paisagem e fizeram um observatório de aves para onde levam os turistas, lá eles mostram a devastação e contam o histórico da área.
Quando comecei o trabalho de campo em Ita Poty, escutei inúmeras menções ao mangrullo, modo como chamam o observatório de aves, Jachuka e Kuaray insistiam para que eu fosse com eles até lá. Depois de dias consecutivos de chuva, na véspera de um dia ensolarado, Jachuka me escreveu dizendo que estivesse na aldeia no dia seguinte de manhã cedo que finalmente conseguiríamos ir ao mangrullo. Confesso que eu não ansiava por ir ao local, pois já havia conhecido mirantes e senderos em outras aldeias, quase todos bastante parecidos: caminhos em meio à mata fechada onde estão grandes árvores identificadas, armadilhas tradicionais, cruzando por plantas, frutíferas e animais, que culminam em um belo mirante, assim eu imaginava o observatório. Então fui com Jachuka caminhando pela aldeia, passando pelas casas e seus pátios, canchas de futebol, até chegar nesse descampado com árvores mortas onde iniciava uma estreita trilha assentada sobre uma área alagadiça. Me impressionei com o tamanho do clarão dentro da floresta, e Jachuka me situou mostrando, desde onde estávamos, a direção dos locais que eu era capaz de identificar, a laguna que eu conhecia ficava atrás de uma parede de árvores recentes conectada com a área alagadiça onde estávamos, ela me fez enxergar a dimensão da área alagada que eu até então conhecia apenas desde um pequeno vislumbre. O local onde estávamos não formava uma lagoa ou açude, era um descampado alagado com capins crescidos onde todas as árvores estavam mortas e nelas os pássaros pousavam. A trilha por esse banhado conduzia até uma estrutura de madeira e bambu construída cerca de dois metros distante do solo onde subíamos para avistar as aves, era o mangrullo. Até então desconhecia o que significava um mangrullo, depois fui saber que se tratava de estruturas comuns no pampa argentino durante o período colonial, eram chamadas de fortificações pampeanas e consistiam em mirantes, postos de observação de estancieiros e militares em guerras e na defesa de propriedades contra ataques em geral, mas também contra ataques indígenas. O posto de observação construído alguns metros acima do solo permitia que o observador visualizasse uma aproximação estranha muito antes de ela chegar perto.
A guerra e as missões compõem a memória indígena e não indígena naquela região.10 10 Litaiff (2009) descreve conexões entre os guarani e as missões a partir de desdobramentos entre territorialidade e mitologia. Termos como kurepi - como os soldados argentinos eram chamados pelos paraguaios durante a guerra do Paraguai - são usados de maneira cotidiana;11 11 Em geral as menções ao termo eram feitas pelos guarani que vivem no lado argentino; como quando um cacique me disse que ele era “kurepi, guarani missioneiro puro”. a aldeia guarani nomeada Fortin Mbororé que faz referência à batalha de M’bororé (travada em 1641 quando os guarani derrotaram invasores bandeirantes);12 12 Na região missioneira como um todo (Argentina, Brasil e Paraguai) conta-se a história de Mbororé, liderança indígena que teria permanecido guardião de uma casa durante as guerras e cujo espírito até hoje se mantém como guardião de espaços sagrados. o próprio mangrullo são como que pistas que permitem perceber uma história contada por memórias espacializadas. A construção de observatórios de aves é comum em áreas de parques naturais na Argentina, dialoga com a crescente preocupação em promover o chamado ecoturismo, e alguns desses são referidos como mangrullos. Também no Paraguai existem observatórios de aves em aldeias, em geral eles ficam próximos a grandes lagunas ou áreas descampadas, por serem locais privilegiados para o avistamento de aves.
O que surpreende em Ita Poty, portanto, não é a existência de um observatório de aves, ou que ele seja referido por mangrullo, mas a série de coincidências que agregam camadas ao entendimento daquele espaço. Na retomada da área destruída pelo hotel, justo onde suas ruínas são mais gritantes, os guarani fizeram um mangrullo - e assim o sinalizam em placas pela extensão da aldeia -, para essa estrutura são levados os turistas do ecoturismo e lá em cima é contada toda a história das 600, a ofensiva hoteleira e a resistência indígena. O mangrullo funciona quase como uma armadilha - outra estrutura que os guarani costumam colocar nos locais de passagens de turistas - em que convidam aqueles preocupados com o espaço a olhar a vida na destruição. Se por um lado o mangrullo (ruína de guerra) pode ser pensado como uma estrutura de “campo de batalha”, os guarani parecem usá-lo como ferramenta de captura, ou melhor, de sedução. Sabendo que coincidências não existem, me impressionei com a força desse gesto, usar uma fortificação para que os turistas (jurua) subam e observem a destruição feita por seus pares também jurua, o que propõe ao turista uma quase inversão de perspectiva. Se o mangrullo é feito para antecipar ataques, na retomada ele vira um espaço de memória, quase como se ele estivesse ali para que se olhasse para trás, para um ataque anterior e seus rastros, quase a memória de um campo de batalha sobre o qual o turista é convidado a testemunhar, é um posto que permite, desde a devastação jurua, olhar a vida emergir das ruínas segundo seus próprios fluxos e seres, como guardiões.
No entanto, não são as árvores mortas que os guarani querem que sejam vistas, são os pássaros. Em guarani a palavra utilizada para olhar (-ma’e) também costuma ser aplicada em contextos que envolvem noções de cuidado, como por exemplo quando se pede para alguém observar/cuidar das crianças por um tempo, ou mesmo nas canções direcionadas a Nhanderu (divindade) que pedem para que ele olhe/cuide (-ma’e) dos mbya. Jachuka me disse uma vez que para ela aquela era uma paisagem horrível, não havia beleza naquilo, mas era um lugar meditativo, ali ela gostava de ir para ficar sozinha, pensar, se acalmar e tomar decisões. Ela dizia que apesar da tristeza queriam deixar aquele lugar assim, não pretendiam aterrar, recuperar, tampouco reflorestar. O modo como concebem aquele lugar faz pensar em um “santuário”, um local para onde vão meditar, pensar em suas vidas. Essa possível aproximação entre santuário e campo de batalha lembra a homenagem a Sepé Tiaraju existente no interior do Rio Grande do Sul, onde uma cruz de concreto foi erguida no local da batalha de Caiboaté,13 13 Situado na cidade de São Gabriel, no distrito chamado Tiarajú em homenagem à liderança, o local compõe a chamada região missioneira. Além da cruz, há um monumento feito de pedras. onde Sepé teria caído morto durante as Guerras Guaraníticas. Nesse local todos os anos acontece uma grande assembleia guarani onde se reúnem lideranças, xamãs, rezadoras(es) e famílias de todo o continente.
As ruínas constituem um lugar importante nas histórias dos guarani, que dão sentidos específicos às grandes construções de pedra encontradas no meio das matas; “as ruínas são memórias materializadas, monumentos que contam a história dos Guarani, demarcam seu território” (Litaiff, 2009LITAIFF, A. O “kesuíta” guaranii: mitologia e territorialidade. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 142-160, jul./dez. 2009., p. 145).14 14 As tava, como são chamadas pelos guarani as ruínas de pedras, foram descritas por: Moraes (2010); Litaiff (2009); Souza et al. (2007). As edificações em pedras, comuns na região missioneira, são descritas pelos guarani como espaços de memória de transformações corporais vividas por antigos xamãs que teriam conseguido alcançar o aguyje (ascensão corporal sem perecimento do corpo), nesse processo as opy (casas de reza) onde rezavam tornaram-se ruínas de pedra. Ver também o belo registro feito no filme Tava, a casa de pedra (2012). Algumas delas servem como memória ou testemunho de encontros e lutas e dialogam com a história dos guarani e os antigos locais das missões jesuíticas, com elas os guarani reinventam modos de habitar a paisagem, ocupando e fazendo memórias de processos destrutivos.
Em Ita Poty, nas ruínas de uma devastação enfatiza-se a nova ocupação com as aves que fizeram dos (des)trozos sua morada. Kuaray contava entusiasmado que ali naquele espaço as aves vinham, comiam, assentavam-se nos trozos (pedaços) que sobraram dos pindó (palmeiras), “elas habitam esse espaço”, me disse. Cada estação tem suas aves que vêm e vão, algumas chegam no inverno, outras no verão, comem e se banham na laguna escondida pelo que sobrou de floresta, seus fluxos são indicadores do trânsito que fazem entre diferentes moradas cosmológicas. Conversando sobre o observatório de aves, Kuaray me disse que no mundo guarani todas as coisas estavam conectadas, não eram que nem nós, jurua, que separávamos tudo em caixinhas. A fala de Kuaray ressoa com Lévi-Strauss (2013LÉVI-STRAUSS, C. A gesta de Asdiwal. In: LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural dois. São Paulo: Cosac Naify, 2013., p. 180) quando comenta como a mitologia indígena articula ao mesmo tempo aspectos geográficos, sociológicos, cosmológicos e tecnoeconômicos que estão presentes em uma narrativa que embaralha temporalidades e espacialidades. O que é enfatizado pelos guarani, portanto, são movimentos de retomada que lidam com a multiplicidade e tudo que ela agencia. Retomada aqui pode ser compreendida de maneira polissêmica no sentido de retomar/reativar (Stengers, 2017STENGERS, I. Reativar o animismo. Belo Horizonte: Chão da Feira, 2017. (Caderno de Leituras n. 62).), já que não se trata apenas da recuperação de um território, mas da reinvenção de uma vida possível no que resta de um antigo espaço. As associações entre território e práticas de conhecimento são mencionadas por Sztutman (2018)SZTUTMAN, R. Reativas a feitiçaria e outras receitas de resistência - pensando com Isabelle Stengers. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 69, p. 338-360, abr. 2018. como comuns tanto às experiências dos cercamentos e das bruxas (que inspiram a formulação do conceito de Stengers) quanto às práticas de resistência dos povos indígenas. Alarcon (2013)ALARCON, D. A forma retomada: contribuições para o estudo das retomadas de terras, a partir do caso Tupinambá da Serra do Padeiro. Ruris, [s. l.], v. 7, n. 1, p. 99-126, mar. 2013. refere à “forma retomada” para pensar as dimensões envolvidas nos processos de retomada de terra entre povos indígenas, a partir do caso de uma aldeia tupinambá da Serra do Padeiro. Quando comentam sobre as retomadas, os guarani insistem na dimensão mais-que-humana dessa decisão: nos sonhos ou nas inspirações buscadas junto a xamãs que orientam sobre as possibilidades da movimentação.
Microencontro, a sustentabilidade do turismo
Acompanhei a visita a Ita Poty de uma delegação europeia (formada por alemães, franceses, portugueses e espanhóis) que procurava uma comunidade para tornar-se parceira de uma iniciativa de turismo sustentável, o grupo fez uma visita a partir da qual produziriam um relatório sobre as condições do local. Kuaray me ligou um dia antes para dizer que os “gringos” iriam à aldeia e me pedir que acompanhasse a visita fazendo fotos. Fizemos uma caminhada de quase duas horas por toda a área, passando pelo observatório de aves, Kuaray nos conduziu contando toda a relação dos guarani com a floresta, com os seres e falando do histórico daquele local.
Depois da caminhada, enquanto Kuaray, Jachuka e as crianças faziam uma apresentação de canto coral para encerrar o encontro, um francês da comitiva começou a conversar comigo. Disse que havia ficado impressionado com a área, com a mata e o observatório de aves, estavam bastante interessados em desenvolver o projeto ali, mas que poderiam escolher um local em qualquer um dos três países (Argentina, Paraguai ou Uruguai) e que ainda iriam fazer viagens para conhecer outras regiões e comunidades tradicionais. Por fim um adendo, ele disse que ali teriam o problema do lixo. Fiquei um pouco surpresa com esse diagnóstico, imaginando que talvez houvesse algum problema que eu desconhecesse na região e perguntei de que lixo ele falava. Então ele apontou para o entorno das casas e mostrou como, para ele, tudo estava com muito lixo. O que ele chamava de lixo eram as panelas tingidas de preto pela fumaça das fogueiras, as roupas que secando eventualmente caíam dos varais improvisados, copos e pratos recém-utilizados, brinquedos, e outros objetos de uso cotidiano dos guarani que poderiam eventualmente estar em desuso, ou não, mas que para ele eram lidos como lixo. Então ele concluiu, buscando ser amigável, dizendo que tudo bem, que não seria por isso que eliminariam a comunidade, já que poderiam resolver muito facilmente ministrando classes de educação ambiental aos moradores.
Os investidores falam, sem constrangimentos, sobre uma necessidade de adequação das comunidades para que caibam em seus projetos. Nessa direção, uma das mais constantes violências a que assisti em campo foram as tentativas de enquadramento dos guarani operadas por turistas e por agências de desenvolvimento: calados demais, civilizados demais, aculturados, quietos, desinteressados, e uma infinidade de adjetivações coladas pelos turistas. Como se a régua definidora de um dever ser fosse dada pelas relações com o turismo. Butler (2019)BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019. utiliza a noção de enquadramento para pensar sobre o modo como determinados regimes delimitam a esfera de aparição de grupos sociais e menciona a ambiguidade existente na expressão “ser enquadrado”, que funciona tanto como emolduração, que de certa forma direciona a interpretação do que se vê, quanto com a ideia de enquadrar no sentido de incriminação/armação: “Se alguém é incriminado, enquadrado, em torno de sua ação é construído um ‘enquadramento’, de modo que seu estatuto de culpado torna-se a conclusão inevitável do espectador” (Butler, 2019BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019., p. 23). Dessa forma, podemos pensar como o regime de visibilidade operado pelo turismo sobre os guarani procura condicionar as interpretações sobre a vida mesmo da população, que se torna algo passível de avaliação nesse mercado no qual se veem enredados.
Esse microencontro condensa alguns acontecimentos descritos por Latour (2019)LATOUR, B. Políticas da natureza: como associar as ciências à democracia. São Paulo: Ed. Unesp, 2019. quando fala dos problemas da ecologia política mostrando que o apelo à natureza em oposição à política não é uma novidade no modo de organização social dos modernos. A ideia de que “ninguém sabe do que é capaz um meio ambiente” (Latour, 2019LATOUR, B. Políticas da natureza: como associar as ciências à democracia. São Paulo: Ed. Unesp, 2019., p. 274) pode ser aproximada do modo mbya de relacionar-se com a mata que pressupõe incerteza, perplexidade e consulta como modos de proceder constantemente ativados a cada encontro que se tem nos tantos caminhos possíveis. Figura que se assemelha ao diplomata que o autor menciona: “Ele se indigna e se desespera por não saber descobrir para cada situação o que devemos conservar e o que devemos rejeitar na elaboração do mundo comum, na triagem do melhor dos mundos possíveis” (Latour, 2019LATOUR, B. Políticas da natureza: como associar as ciências à democracia. São Paulo: Ed. Unesp, 2019., p. 296). O que contrasta com o modo de proceder dos europeus que pressupõem a existência de um mundo concreto uno e métodos únicos de acessá-lo. Latour (2019)LATOUR, B. Políticas da natureza: como associar as ciências à democracia. São Paulo: Ed. Unesp, 2019. situa essa espécie de desencontro como sendo um problema político de saída, já que mistura concepções situadas sobre o mundo natural com o tipo de conhecimento que é produzido sobre ele, sem espaço para que outros modos de conhecimento tenham existência.
Para os turistas, não importa o que os guarani concebam daquele espaço retomado e tornado memória, importa que seja sustentável nos termos que eles próprios concebem. Para os guarani, a relação com a floresta não passa pela ideia prístina do intocável, preocupam-se antes com as relações feitas e desfeitas com os modos de viver e coexistir com seres humanos e não humanos que compartilham um espaço sem cercamentos e com os riscos e as complexidades envolvidas em um mundo concebido desde a multiplicidade, onde as coisas sempre são em relação a. Que essas duas concepções se encontrem não é o problema, mas sim que uma seja sempre condicionada ao entendimento da outra sobre o que tem primazia quando se fala em sustentabilidade. O modo de proceder dos investidores aproxima-se daquilo que Tsing (2019TSING, A. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019., p. 178) caracteriza como escalabilidade - “projetos escaláveis são aqueles que podem se expandir sem mudar” -, uma exigência comumente feita para que projetos sejam financiados de modo que possam ser reproduzidos em diferentes escalas mesmo que isso elimine as especificidades locais e que pode ser pensada em associação à noção de plantation: “A plantation mostra como é preciso criar terra nullius, a natureza sem reivindicações emaranhadas. Os emaranhamentos nativos, humanos e não humanos, devem ser extintos; refazer a paisagem é uma maneira de se livrar deles” (Tsing, 2019TSING, A. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019., p. 186). Ainda segundo a autora a figura da plantation serve para pensar o Antropoceno, já que sua lógica consiste em simplificações ecológicas em que seres vivos são transformados em recursos. O projeto da escalabilidade têm as ruínas como espécies de dejetos que são deixados para trás conforme essa expansão exclui diversidades biológicas e culturais (Tsing, 2019TSING, A. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019., p. 178). Nesse sentido, as retomadas organizadas pelos guarani nos arruinamentos resistem à soja e aos hotéis apontando para o emaranhamento complexo das existências consideradas em cada local que, exatamente como menciona Tsing (2019), fazem a vida emergir nas ruínas dos projetos de escalabilidade sugerindo outras formas de habitabilidade.
A plantation de Tsing (2019)TSING, A. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019. também pode ser aproximada do mundo sem coisas descrito por Ingold (2012)INGOLD, T. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n. 37, p. 25-44, jan./jun. 2012., o autor refere a coisas e não objetos como modo de enfatizar as relações em um mundo marcado pela troca contínua de materiais e substâncias e compara um mundo sem coisas com uma espécie de grande deserto. O deserto e as plantations interrompem o fluxo das relações, não por acaso grandes plantações de eucalipto são chamadas de “desertos verdes”, já que a biodiversidade torna-se empobrecida devido ao baixo fluxo de seres que sobrevivem nesses espaços. As coisas dos guarani que causaram incômodo nos turistas sinalizam fluxos no espaço, indicam que pessoas ali estão ou estiveram, que refeições foram feitas e roupas lavadas, o que perturba a ideia que os investidores têm sobre espaço. Ingold (2012INGOLD, T. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n. 37, p. 25-44, jan./jun. 2012., p. 36-37) fala que
a sociedade moderna […] tem aversão ao caos. Mas por mais que ela tenha tentado, através da engenharia, construir um mundo material à altura das suas expectativas - ou seja, um mundo de objetos discretos e bem ordenados -, suas aspirações são constantemente frustradas pela recusa da vida em ser contida.
Essa disposição das coisas no mundo, emaranhadas, se assemelha ao habitar um mundo em malha, considerando a malha como um campo de forças que permite que as coisas fiquem vivas (Ingold, 2019INGOLD, T. Quando a formiga se encontra com a aranha: teoria social para artrópodes. In: INGOLD, T. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2019. p. 144-152.), como “o terreno sobre o qual a possibilidade de interação está baseada” (Ingold, 2019INGOLD, T. Quando a formiga se encontra com a aranha: teoria social para artrópodes. In: INGOLD, T. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2019. p. 144-152., p. 150). Podemos pensar como a própria malha (de caminhos, de coisas, de relações) com a qual os guarani enredam turistas em seus espaços funciona como um modo de fazer esquivar totalizações de diversas ordens, como a dessa comitiva europeia é exemplo.
A escalabilidade dos projetos de turismo contrasta com a não escalabilidade da vida cotidiana, com a insistência em trazer mais atores para o centro, ao invés de eliminá-los. Os guarani insistem em povoar com outrem qualquer projeto que se apresente nos moldes de uma terra nullius (Tsing, 2019TSING, A. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019.). O próprio gesto de mostrar os pássaros onde alguns podem ver somente terra arrasada aponta para a persistência da relação como modo guarani de estar no espaço. Tal como menciona Tsing (2019TSING, A. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019., p. 188), “a escalabilidade está sempre incompleta. Os elementos do projeto nunca estão totalmente sob controle”. Onde turistas esperam encontrar grandes árvores e matas adensadas, os guarani preferem mostrar pássaros habitando ruínas.
Considerações finais
A região mencionada neste artigo condensa contextos de conflitos marcados não apenas por diferentes concepções sobre usos do espaço, mas sobre modos de resistir. O movimentar-se dos guarani em meio a tantos espólios invoca a retomada como modo de proceder. Mais do que recuperação de um espaço físico, a retomada aparece como uma constante nos processos de transformar ruínas em espaços de vida e memória. De modo que os movimentos dos guarani se aproximam da ideia de reativar de Stengers (2017STENGERS, I. Reativar o animismo. Belo Horizonte: Chão da Feira, 2017. (Caderno de Leituras n. 62)., p. 7) no sentido de recuperar, regenerar: “Recuperar significa recuperar a partir da própria separação, regenerando o que a separação em si envenenou. Assim, a necessidade de lutar e a necessidade de curar, de modo a evitar que nos assemelhemos àqueles contra os quais temos de lutar, tornam-se irremediavelmente aliadas.” Contra as tentativas de cercamento e enquadramento que reservam um único lugar possível para os povos indígenas - em geral associado a uma ideia de natureza prístina -, os guarani respondem com a multiplicação dos atores envolvidos. Seus objetos, suas palavras e relações observam sempre o povo que há em cada lugar e levam em consideração as relações e as multiplicidades existentes, já que sempre se pode desconfiar da forma corpo visível de alguém. A noção de jurisprudência evocada por Viveiros de Castro (2015)VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015. como modo de proceder ameríndio é ativada pelos guarani, que passam fazendo esse cálculo “além de nós quantos mais somos”, movimentam-se e relacionam-se com aspectos da paisagem levando em consideração a multiplicidade. Preocupação que ressoa com a discussão sobre composição de mundo comum presente em Latour (2019)LATOUR, B. Políticas da natureza: como associar as ciências à democracia. São Paulo: Ed. Unesp, 2019. que consiste no movimento de considerar afinal quais são os seres e interesses envolvidos em cada situação.
É essa relação profundamente emaranhada com os seres da mata que é de difícil compreensão para aqueles que sugerem aos guarani que se tornem parte da economia turística. Para eles indicadores sociais são tabelas; índices de sustentabilidade são mensuráveis em relatórios e quase todas as estratégias conciliatórias que buscam passam por um certo apagamento da presença humana presente nos espaços. A ideia de alguns turistas de que as populações indígenas ali presentes seriam formadas por figurantes não soa tão distante do ideal turístico de transformações no espaço tal como aquela que de fato pretendia implementar um parque temático indígena no local, para tornar a figuração enfim real.
Há uma demanda por “proximidade com o natural” por parte dessa economia do turismo ao mesmo tempo que a narrativa desses atores promove o apagamento da intrusão e dos conflitos que travaram com os guarani pelos usos naquela região. É possível perceber o quanto tomam natureza e política como apartadas, no entanto, cabe retomar Latour (2019LATOUR, B. Políticas da natureza: como associar as ciências à democracia. São Paulo: Ed. Unesp, 2019., p. 11) quando fala que “toda política é definida por sua relação com a natureza”. Se pensarmos que as questões de natureza e de política são uma só questão para todos os entes que habitam o cosmos, a perspectiva dos agentes do turismo na relação com os guarani muda de figura.
Os guarani mantêm as florestas em pé não pelo seu potencial em alguma espécie de mercado, mas porque florestas são o mundo possível onde cabem outros mundos, são as florestas que multiplicam agenciamentos e tornam a existência terrena possível, já que, como vimos, os campos são espaços de totalização, que é sempre destruidora. O que está em jogo são alternativas sobre modos de existência, são resistências que envolvem defender o múltiplo. Aquilo que Latour (2019LATOUR, B. Políticas da natureza: como associar as ciências à democracia. São Paulo: Ed. Unesp, 2019.) menciona como estratégias de ação da ecologia política cabe para pensar as ações mbya que consideram a composição de mundo comum a cada passo dado. No caso de Iguazú, isso aparece: na luta pela terra, na relação com o espaço que virou observatório de aves, por exemplo. Questões que têm a ver com o avanço de um mercado sobre um espaço sagrado e que é encarado pelos guarani por uma luta política colada à uma concepção de existências que não se resumem a ideia de natureza (já que nela cabem inúmeros outros atores). Não se fala no mundo natural como algo inerte, mas com agência que tem que ver com a existência, não é só um lugar onde se está. Aos ouvidos surdos a isso, os guarani tentam desenhar, levando as pessoas a um lugar em ruínas, e dizendo desde lá sobre o quanto um lugar nunca é apenas um lugar.
Os guarani fazem funcionar um enredamento entre natureza e política como sendo uma coisa só. Na luta indígena em Iguazú, as conexões ganham mais centralidade do que os particionamentos. É o alagamento para o campo de golfe que produz uma laguna que passa a ser habitada pela cobra-grande, onde se banha e se brinca, mas que deixa um deserto por onde passa que se torna uma ruína reabitada como observatório de aves e cuja destruição de um local sagrado motiva a ocupação do território que foi sonhado antes de realizado. Os guarani colocam em movimento diferentes camadas de processos políticos que compõem um agir que leva uma série de interesses não humanos em consideração, que recusa a ver o mundo como paisagem inerte e que recusa o esquecimento das alteridades que compõem o cosmos.
Referências
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Ao longo do texto, refiro o local como “as 600”, modo como a área era conhecida na cidade.
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Para uma descrição mais detalhada sobre usos de referências indígenas por redes hoteleiras, cf. Carvalho (2021)CARVALHO, S. Mercantilização da linguagem na promoção do turismo de luxo na Selva Iryapú (Misiones, Argentina): autenticidade, deslocamentos e resistência. Trabalhos em Linguística Aplicada, [s. l.], v. 60, n. 2, p. 347-363, maio/ago. 2021..
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Jachuka e Kuaray são o casal de cacica e cacique da comunidade guarani Ita Poty. Jachuka é uma das principais interlocutoras da etnografia resultante neste artigo.
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Neste artigo, Misiones refere à província argentina que recebe este nome por integrar o circuito das missões jesuíticas do lado argentino, contudo toda a região das chamadas “Missões” (que inclui também Brasil e Paraguai) possui um rendimento em etnografias guarani que enfatizam aspectos mítico-religiosos relacionados à territorialidade e ao parentesco. Sobre o tema, ver Clastres (1978)CLASTRES, H. Terra sem mal: o profetismo tupi-guarani. São Paulo: Brasiliense, 1978., Basini (2004)BASINI, J. Práxis-mito e o projeto civilizatório na narrativa dos Mbya Guarani atuais. Tellus, Campo Grande, ano 4, n. 6, p. 31-50, abr. 2004., Jesus (2015)JESUS, S. Pessoas na medida: processos de circulação de saberes sobre o Nhande Reko Guarani na região das Missões. 2015. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015., Litaiff (2004LITAIFF, A. Os filhos do sol: mitos e práticas dos índios Mbya-Guarani do litoral brasileiro. Tellus, Campo Grande, ano 4, n. 6, p. 15-30, abr. 2004., 2009LITAIFF, A. O “kesuíta” guaranii: mitologia e territorialidade. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 142-160, jul./dez. 2009.), Moraes (2010)MORAES, C. A refiguração da Tava Miri São Miguel na memória coletiva dos Mbyá-Guarani nas Missões/RS, Brasil. 2010. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010..
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Werá vive no Rio Grande do Sul, mas costuma comentar comigo suas impressões sobre a região de Misiones, onde vivem muitos de seus parentes e para onde viaja em busca de sabedoria.
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Sandra Benites (2018)BENITES, S. Viver na língua guarani nhandewa (mulher falando). 2018. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018. desenvolve o conceito de “corpo-território” para falar dos cruzamentos na constituição de corpo e espaço. Para maiores rendimentos das implicações entre lugar e modo de ser, cf. Ciccarone (2004)CICCARONE, C. Drama e sensibilidade: migração, xamanismo e mulheres mbya. Revista de Indias, [s. l.], v. 64, n. 230, p. 81-96, 2004., Jesus (2015)JESUS, S. Pessoas na medida: processos de circulação de saberes sobre o Nhande Reko Guarani na região das Missões. 2015. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015., Ladeira (2007)LADEIRA, M. O caminhar sob a luz: território mbya à beira do oceano. São Paulo: Ed. Unesp, 2007., Litaiff (2009)LITAIFF, A. O “kesuíta” guaranii: mitologia e territorialidade. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 142-160, jul./dez. 2009., Melià (1990)MELIÀ, B. A terra sem mal dos Guarani: economia e profecia. Revista de Antropologia, São Paulo, n. 33, p. 33-46, 1990., Pissolato (2007)PISSOLATO, E. A duração da pessoa: mobilidade, parentesco e xamanismo mbya (guarani). São Paulo: Ed. Unesp, 2007..
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Pará é filha do cacique da tekoa Tupa Mba’e (também nas 600) e, embora apareça pouco neste artigo, foi uma interlocutora central durante meu trabalho de campo.
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Multinacional do setor hoteleiro.
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Os sonhos são importante ferramenta para condução da vida no cotidiano mbya, a partir dos sonhos pode-se mudar a data de uma viagem, prosseguir ou desistir de uma mudança, receber avisos e presságios. Sonhar é saber sobre, ainda que nem todos saibam reconhecer as mensagens dos sonhos, os mais velhos costumam decifrá-las. Em geral, as conversas sobre os sonhos ocorrem durante as manhãs enquanto as pessoas que vivem em um mesmo núcleo familiar compartilham o mate à beira de uma fogueira.
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Litaiff (2009)LITAIFF, A. O “kesuíta” guaranii: mitologia e territorialidade. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 142-160, jul./dez. 2009. descreve conexões entre os guarani e as missões a partir de desdobramentos entre territorialidade e mitologia.
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Em geral as menções ao termo eram feitas pelos guarani que vivem no lado argentino; como quando um cacique me disse que ele era “kurepi, guarani missioneiro puro”.
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Na região missioneira como um todo (Argentina, Brasil e Paraguai) conta-se a história de Mbororé, liderança indígena que teria permanecido guardião de uma casa durante as guerras e cujo espírito até hoje se mantém como guardião de espaços sagrados.
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Situado na cidade de São Gabriel, no distrito chamado Tiarajú em homenagem à liderança, o local compõe a chamada região missioneira. Além da cruz, há um monumento feito de pedras.
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As tava, como são chamadas pelos guarani as ruínas de pedras, foram descritas por: Moraes (2010)MORAES, C. A refiguração da Tava Miri São Miguel na memória coletiva dos Mbyá-Guarani nas Missões/RS, Brasil. 2010. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.; Litaiff (2009)LITAIFF, A. O “kesuíta” guaranii: mitologia e territorialidade. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 142-160, jul./dez. 2009.; Souza et al. (2007)SOUZA, J. et al. Tava Miri São Miguel Arcanjo, sagrada aldeia de pedra: os Mbya Guarani nas Missões. Porto Alegre: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/RS, 2007.. As edificações em pedras, comuns na região missioneira, são descritas pelos guarani como espaços de memória de transformações corporais vividas por antigos xamãs que teriam conseguido alcançar o aguyje (ascensão corporal sem perecimento do corpo), nesse processo as opy (casas de reza) onde rezavam tornaram-se ruínas de pedra. Ver também o belo registro feito no filme Tava, a casa de pedra (2012)TAVA, a casa de pedra. Direção e fotografia: Ariel Duarte Ortega, Ernesto Ignacio de Carvalho, Vincent Carelli, Patricia Ferreira (Keretxu). [S. l.]: Vídeo nas Aldeias, 2012. 1 filme (78 min) color., 16 mm..
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
09 Jun 2023 -
Data do Fascículo
May-Aug 2023
Histórico
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Recebido
29 Ago 2022 -
Aceito
14 Mar 2023