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ECKERT, Cornelia; Equipe do Navisual-PPGAS/UFRGS. A saudade em festa: comemorar a saudade é também comemorar o luto. 1996. 25 min. Documentário em VHS sobre memória dos mineiros do carvão de uma mina desativado em Arroios dos Ratos (RS)

ECKERT, Cornelia. . A saudade em festa: comemorar a saudade é também comemorar o luto. 1996. 25 min. Documentário em VHS sobre memória dos mineiros do carvão de uma mina desativado em Arroios dos Ratos (RS).

“Lágrima viva. Olhar sonhador. Pisar o chão do passado, voltar a ser criança”. Trechos fora de ordem do hino dos mineiros em festa da saudade, que embala os últimos momentos do documentário. “Arroios dos Ratos (RS) comemora o VI Encontro da Saudade Mineira, em 17 de novembro de 1996. Quem bebe desta água retoma”, diz um cartaz na festa convescote.

Acima do cartaz uma propaganda do Doril. Tomou, a dor sumiu, parece dizer mudamente a informação captada de modo não intencional pela câmara e permitida pela montagem.

A Prefeitura de Arroios dos Ratos saúda o convescote. Ex-mineiros, mulheres, filhos, noras, genros, amigos comemoram o passado. Dançam, confraternizam. Participam de missa campestre nas ruínas da antiga mina sob um coro de crianças (netos? Filhos de amigos?) que cantam um “[…] pois se passa muito tempo sem podermos conversar […] vem, eu quero te abraçar […]”, e a câmara registra o momento dos abraços, do aconchego do retornar a se encontrar, da alegria da partilha do passado e também do presente, em forma de mostrar os parentes uns aos outros e do mostrar aos parentes a vida agora revivida que se esvaneceu qual bruma no passado presente em ruínas, local da festa.

Museu do Carvão. Ponto de reunião de memória fotográfica e documental sobre a mina, o trabalho nas minas, as condições de vida dos mineiros. Registros buscados em festa para rememorar, mas sobretudo para demonstrar aos seus as participações de cada um. A câmara percorre esse terreno exuberante, instigante, opressivo, fundamental das fotografias registrantes permanentes do passado presente hoje na rememoração. Ajuda a mostrar, ajuda a identificar, ajuda a contar o duro trabalho, adocicado pela memória, ajuda a reviver as tragédias, como enchentes, como desabamentos. Ajuda a recuperar as mortes de cada tragédia, o luto calado, a solidariedade muda de cada momento trágico. Museu do Carvão.

A volta aos registros. A cena do livro desgastado pelo tempo, fragmentado, sendo composto por mãos anônimas e depois aberto e apreciado por todos mineiros e parentes e amigos e a câmara que repassa o repassar satisfeito de encontrar a si ou aos seus no passado preso hoje em documentos museológicos.

Arroios dos Ratos em festa. Festa da Saudade. A câmara percorre o salão onde homens e mulheres dançam, onde mulheres com mulheres dançam, onde crianças dançam, onde filhos e pais dançam. Onde se dança a saudade, embalada pela “Dança da saudade”, que se completa com a “[…] tristeza, por favor vá embora […] quero de novo voltar […]”, em ritmo alegre de marcha rancho que é sempre um alegria triste.

Alegria triste dos momentos que a câmara registra um diálogo entre ex-mineiros, e a montagem decompõe este diálogo em ritmos próprios de uma decupagem que se às vezes parece cansar pela repetição do mesmo, se lança como um argumento eficiente da rememoração individual no meio ela festa e no meio da memória fotográfica que permeia o coletivo mineiro.

No diálogo se recaptura os momentos ele solidão de cada memória, os lapsos, os registros individuais, ao mesmo tempo em que os encontros, as composições de visões, as informações que se completam, as que não se completam e se informam sem que nenhum abra mão dos seus registros, experiências, imagens. No diálogo se captura, também, o morrer: quem morreu, quem está vivo, quem está sem notícia. Recapitulando vidas do passado que também são passado no presente da festa, são saudade. Vidas do passado hoje mortas, também rememoradas como vida presente da saudade, na saudade.

Festa da Saudade como reciclagem. Como reintrodução de trabalho e vida. Através do reconhecimento da saudade do que aconteceu depois, e não só no momento da saudade do antes, do fechamento, do aniquilamento da vida mineira. A vida continua, apesar da saudade. A saudade dança na vida como porta do passado sempre aberta, como presente delicado de comemoração do fim profissional que teima em viver na rememoração, na ansiosa presença de preservação da dignidade mineira entre os seus, parentes, amigos e companheiros que restam… e, nos companheiros que se foram.

A câmara volta a dançar com os festeiros a saudade e a vida. Retornando ao diálogo como rememoração e as fotos, sempre as fotos. De túneis. De trilhos e vagões solitários em sua fixidez. De homens no trabalho olhando com altivez as lentes que os registram. De galerias. Da labuta diária. Que a montagem lança como spots aos espectadores, recheando a cada momento com imagens de, agora, mineiros olhando o antigamente e falando de suas significações e ressignificações à câmara, aos seus.

Repetição em cada momento da saudade, que é sempre uma situação de uniformidade do grupo. De uma temporalidade como exercício de vida passada, presente e futura. Memória coletiva confrontada e preenchida por memórias individuais. Visões que se aproximam, se tocam, se agrupam mas, também se fragmentam em pedaços de cada um que, se é sempre um todo, nunca é esse todo de consenso e sim uma rede de composições que mostram possibilidades aproximativas de homens que caminharam profissionalmente juntos e que hoje buscam caminhar também juntos na confecção da saudade de uma dignidade que resta inteira em cada um. Que se chama saudade, que se elabora como coletividade.

O orgulho de ter sido trabalhador mineiro, que esteve ali, nos documentos e fotos. De provar a amigos e parentes a presença passada é um comemorar o tempo passado no presente, é uma esperança de futuro nas lembranças das novas gerações. Comemorar a saudade é também comemorar o luto, a introjeção daquilo que se perdeu. Um dia de finados, cujo ritual é não deixar a saudade ir embora. É querer de novo voltar… nem que seja no ano seguinte, na nova Saudade em Festa.

Belo documentário. Sensível, competente. A Festa da Saudade da equipe do Navisual do PPGAS/UFRGS em convênio com o Curso de Pós-Graduação em Ecologia/UFRGS, é um exemplo de etnografia que une de forma inteligente e poética a vida e a memória de mineiros do carvão. É um documentário para ser visto não como um mero registro do real, mas com o coração e mente, como saudade recomposta na fragmentação cotidiana a que estão submetidos grupos urbanos em espaços industrializados. Como vida fundamentalmente como dignidade profissional refeita a cada momento do encontro dos mineiros com os demais de diversos espaços geracionais: filhos, netos, bisnetos e amigos… sempre.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Out 1997
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