Open-access “Quando Mulambo caminhar, é que alguma coisa vai fazer”: encruzilhada, movimentos e acertos

“When Mulambo walks, something is about to happen”: crossroads, movements and deals

Resumo

Este artigo surgiu de uma etnografia que buscou compreender a relação das pombogiras com as pessoas através da noção do acerto, enquanto conceito do próprio campo. Essa etnografia foi possível, a partir do encontro com Dona Padilha, Dona Mulambo, Dona Maria e Dona Sete Saias nas giras. Esta pesquisa é, também, um acerto construído com as pombogiras, em que foi necessário compreender os seus conceitos como expressão de mundos para mudar a perspectiva e ser encontrado pelos movimentos. Nesse processo de conhecer mais o pensamento das pombogiras, foi se estabelecendo um processo de conhecimento da importância da composição de cada espírito encarnado, a partir desse encontro. Para compreender o pensamento das pombogiras foi preciso encontrar e ser encontrado por elas, sendo assim, parte dessa composição.

Palavras-chave:
pombogira; composições; territórios em confluência; povo da rua

Abstract

This article arose from an ethnography that sought to understand the relationship between pombogiras and people through the notion of a deal, as a concept of the field itself. This ethnography was made possible through meetings with Dona Padilha, Dona Mulambo, Dona Maria and Dona Sete Saias at the sessions. This research is also an agreement elaborated with the pombogiras, in which it was necessary to understand their concepts as an expression of worlds in order to change perspective and be reached by the movements. In this process of getting to know more about the pombogiras’ thinking, a process of understanding the importance of the composition of each incarnate spirit was established from this encounter onwards. In order to understand the thoughts of the pombogiras, it was necessary to meet them and be met by them, thus becoming part of this composition.

Keywords:
pombogira; compositions; territories in confluence; street people

Foi Bento de Olívia quem me falou,

assim, de repente, quando o galo cantou:

- Moço, essas mulheres não se enfeitam sem mariwo,

elas te cegam só num olhar.

- O que mais por dizer, Seo Bento?

- Moço, essas mulheres não dançam sem o torso,

elas te queimam é com a ponta dos cabelos.

- O que mais por dizer, Seo Bento?

- Moço, essas mulheres não riem sem que a boca esteja pintada,

elas te fulminam só num abrir de lábios.

- E se tiverem tudo o que enfeitar, dançar e sorrir,

o que há, ainda, por dizer, Seo Bento?

- Aí, meu filho, o universo inteiro, enfeitiçado, gira!

Wesley Correia

Este artigo1 surgiu de uma etnografia que buscou compreender a relação das pombogiras com as pessoas através da noção do acerto,2 enquanto conceito do próprio campo. Através dos acertos foi possível compreender, também, a importância da gira3 para o transmutar das energias, pois energia4 parada pode acarretar sérios problemas. Esta etnografia é, também, um acerto construído com as pombogiras, em que foi necessário compreender os seus conceitos como expressão de mundos para mudar a perspectiva e ser encontrado pelos movimentos. Nesse processo de conhecer mais o pensamento das pombogiras, foi se estabelecendo um processo de conhecimento da importância da composição de cada espírito encarnado, a partir desse encontro. Este artigo busca não só compreender esses movimentos, como também encontrar e ser encontrado na encruzilhada, a partir da perspectiva das pombogiras, sendo parte dessa composição.

Pela perspectiva das pombogiras, o corpo é retirado da referência em favor do deslocamento que torna possível a presença do espírito, pois é o movimento entre o lado espiritual e o encarnado que possibilita que os espíritos encarnem. Nessa troca o movimento próprio dos espíritos se torna referência e as pessoas são espíritos encarnados. É também pelo movimento do lado espiritual para o encarnado que Dona Maria, Dona Padilha, Dona Mulambo e Dona Sete Saias podem vim em terra.

É importante ressaltar que, a ênfase no movimento entre o espiritual e o encarnado acontece, também, devido à etnografia ter sido construída com as pombogiras, exus, e não com os sacerdotes. Por se tratar de um acompanhamento das giras, eram as entidades que estavam presentes reforçando esse movimento do espiritual para o encarnado e do encarnado para o espiritual. É importante deixar essa informação evidente, se faz para não confundirmos o lado espiritual e o encarando como dois pontos estáticos, mas antes como encontros e movimentos. Dessa forma, até a denominação pombogira é utilizada a partir de um encontro com uma que me disse: “Eu não sou pombagira, sou pombogira.” Nesse momento percebi que nos seus pontos elas cantavam “pombogira” e não “pombagira”.

Antes de entrar numa encruzilhada é preciso pedir licença, pois lá tem moradora que pode abrir ou fechar os caminhos. Para realizar esta pesquisa foi preciso pedir licença e respeitar as pombogiras. Essa etnografia foi possível a partir do encontro com Dona Padilha, Dona Mulambo, Dona Maria e Dona Sete Saias nas giras. Dona Padilha e Dona Mulambo são entidades que vêm em terra no Doté5 Ricardo Ajibossu. Dona Maria vem em terra no babalorixá David Moura. Dona Sete Saias vem em terra no corpo da ialorixá Obadeyi Carolina Saraiva. As pombogiras são entidades que vêm para ajudar, trabalhar, uma vez que estão a serviço do orixá dos sacerdotes e da sacerdotisa. É importante ressaltar que todo orixá tem seus exus, e eles são seus mensageiros e a quantidade varia a partir da divindade a que estão ligados (Bastide, 1961).

Este texto é resultado de uma etnografia realizada entre maio de 2018 e março de 2020 entre Distrito Federal e o Rio de Janeiro. Antes de finalizar a tese ainda encontrei com Dona Maria para tirar algumas dúvidas sobre o que havia escrito. Foram nas giras na casa do babalorixá David Moura, antes mesmo de pensar em pesquisar sobre este tema, que conheci Dona Maria, que vem em terra no corpo do babalorixá. O Babá David Moura é filho de santo da ialorixá Fátima de Osonguian, do Ilê de São Bento. Sua casa se localizava na Pavuna, na cidade do Rio de Janeiro. Porém, agora, David Moura é o sacerdote do Ilê Axé Obá Ti Ogum, situado no bairro do Valverde, em Nova Iguaçu. Sobre ele, Dona Maria Mulambo deixava explícito que era o primeiro espírito a ocupar o corpo do babalorixá, mesmo antes dele ser iniciado.

Foi por intermédio de Dona Maria que encontrei Dona Maria Padilha no Centro das Culturas Afro-Brasileiras Ilê Axé Obalúwaiyé Azanssun, que é um terreiro de candomblé que tem o Doté Ricardo Ajibossu como sacerdote e é o local onde acontecem as giras. Doté Ricardo é da nação jeje mahin, filho de Gaiaku6 Vanderlúcia de Oxóssi, neto do finado Pai João D’Ogun, iniciado por Tata7 Fomutinho - Antônio Pinto de Oliveira, por sua vez, foi iniciado por Gaiaku Maria Angorense no hunkpame8 do Kwé Cejá Hundé. Segundo Doté Ricardo, com o passar do tempo alguns foram feitos no vodum9 e outros no orixá, mas ele é da nação jeje nagô, apesar de ter tomado obrigação no hunkpame do Kwé Cejá Hundé, em 2019, com Mãe Alaíde, atual zeladora10 do templo.

Dona Sete Saias vem em terra na ialorixá Obadeyi Carolina Saraiva, filha de Mãe Marlene de Nanã do Ilê Ibiri Omim Asé Airá, que tem como sacerdotisa Mãe Maria de Osun. A família de santo da ialorixá Carolina é do Terreiro Cabocla Jurema. Dona Sete Saias é uma pombogira que mostra sua elegância ao caminhar e dançar, mas que, ao beber seu champanhe, prefere que seja direto da garrafa. Ela apresenta a sensualidade como um cartão de visita. Assim como as demais pombogiras que compõem essa etnografia, Dona Sete Saias se posiciona sempre exaltando a força da mulher. Tem uma leveza ao caminhar e valoriza que as pessoas enxerguem a beleza em cada um. Além de Dona Sete Saias, conheci Pai Joaquim, um preto velho que também vem em terra na ialorixá Carolina.

Dona Padilha é a pombogira que vem em terra no Doté Ricardo Ajibossu. Ela chega sem a necessidade de cantar seus pontos, geralmente em momento em que o doté conversa sentado na sua poltrona, chega de forma bem discreta com um simples movimento de corpo do doté, cuja cabeça balança e já é ela quem está presente. Dona Padilha é uma pombogira muito elegante e assim que chega começa a colocar suas joias enquanto conversa. É só ela chegar para que algum filho da casa pegue sua taça e seu champanhe. O champanhe sempre deve ser aberto com cuidado, pois ela não suporta desperdício. Preenche o antebraço com braceletes, escolhe seus brincos e, a depender do dia, um ou dois colares completam a composição. Acende, então, seus dois cigarros de filtro vermelho, bebe seu champanhe e começa a cantar seus pontos.

No centro,11 igualmente, tive a oportunidade de conhecer Dona Maria Mulambo12 que também vem em terra no Doté Ricardo. Ela também chega de forma discreta, com movimentos mais suaves, começa a se arrumar e logo providenciam sua cerveja. Depois, ela acende um cigarro de filtro branco, pois só fuma um cigarro por vez.

Por mais que tenha o mesmo nome de Dona Maria, não se trata da mesma pombogira. Esta é chamada de Dona Mulambo. Ela também chega sem a necessidade de tocar atabaque e cantar seus pontos. Assim como Dona Maria, ela é bem elegante e extrovertida, mas apresenta algumas diferenças em sua personalidade. Elas mesmas deixam explícito que se trata de pombogiras diferentes. Não se diferenciam somente pelos nomes, mas também por toda uma composição que se evidencia no jeito e nos gestos. Dona Maria é mais agitada, gosta de cantar seus pontos e dançar bastante; além disso, gosta muito de licor e não gosta de cerveja. Dona Mulambo canta seus pontos de forma mais cadenciada, na maioria das vezes sentada, não dança muito e gosta de cerveja. Essas são as composições que permitem que as pombogiras se tornem visíveis para todos nas giras.

Para que a referência fosse deslocada do corpo para o movimento foi construída uma encruzilhada de pensamentos. Dona Padilha afirmava que se existimos é devido ao movimento do lado espiritual para o encarnado, sendo assim para elas: tudo é espiritual. Em suas palavras, “eu sou um espírito encarnado no meu cavalo. Assim como você também é um espírito encarnado. Eu sou do lado espiritual, mas estou aqui desse lado, através do meu cavalo.” O pensamento de Dona Padilha se encontra com a noção de que “espíritos são pontos de vista que encarnam corpos” (Anjos, 2006, p. 119), com a ideia de que somos vibrações de diferentes frequências (Lapoujade, 2017), construindo uma encruzilhada que coloca o movimento na referência.

O próprio corpo é uma encruzilhada em que o lado espiritual e encarnado se encontra, e assim a encruzilhada se apresenta como um meio de pensar da religiosidade afro-brasileira que aceita o diferente sem excluir a diferença (Anjos, 2006), tornando possível essas composições. José Carlos dos Anjos (2006) apresenta na sua etnografia o momento em que estava com os braços cruzados e foi avisado que precisava descruzá-los com o intuito de não obstruir as energias e permitir que elas se movimentassem. Desse modo, o corpo se apresenta enquanto essa comunicação, essa encruzilhada.

Os acertos são construídos na encruzilhada enquanto movimentos que geram movimentos e se criam a partir do encontro. No período em que eu procurava o terreiro para começar o trabalho de campo, encontrava com pombogiras e exus na rua. Sendo a rua território deles, e o bar um dos ambientes em que as pombogiras dizem que sempre estão presentes, percebi que elas já tinham me encontrado e a gira era só o encontro marcado. Como no dia 9 de agosto de 2018, quando encontrei com um vendedor de flores na 410 Norte, em um bar. Ele falou comigo, disse que tinha me encontrado numa gira a qual tinha ido no dia 4 de agosto, em Sobradinho (DF). Ele falava e sorria. Na semana seguinte, o encontrei novamente. Ele não me reconheceu e disse que nunca tinha me visto. Sorriu, mas não da mesma forma como fez no nosso primeiro encontro, e disse: “Você encontrou foi com Seu Zé Pilintra, e não comigo.”

Os acertos são composições criativas em um mundo no qual tudo é feito e, portanto, são criações constantes com tensões que são próprias da relação entre o lado espiritual e o encarnado. Não é somente compreender que tudo é feito, mas, antes, que tudo é criado em composição. Assim como a noção de receita de Stengers (2015), o acerto não deve ser compreendido como algo geral, mas sim específico e construído a partir de uma composição própria.

O acerto é construído a partir de uma relação assimétrica entre o lado encarnado e o espiritual. Uma forma de composição que se constrói em meio às diferenças. Uma composição é uma confluência, em que as coisas se ajuntam, mas não se misturam (Santos, 2015), da ordem de uma construção de uma liga entre heterogêneos e não uma fusão (Stengers, 2015). É um pensamento em encruzilhada que aceita o diferente sem excluir a diferença (Anjos, 2008). A encruzilhada e a confluência seguem o mesmo caminho da liga entre heterogêneos, dado que não se baseiam em um respeito às diferenças, mas na necessidade de honrar as divergências. Honrar deve ser apreendido não no sentido de compreender uma particularidade do outro, mas antes como o que o outro faz ter importância, criando a possibilidade de pensar e sentir, sem sonhar em reduzir ao “mesmo” (Stengers, 2015, p. 139). Segundo Isabelle Stengers, honrar as divergências é uma proposição em que a verdade se deve à sua eficácia, pois são relacionadas à situação e não às pessoas (Stengers, 2015, p. 139). Dessa forma, o acerto se constrói numa confluência, numa encruzilhada enquanto uma liga de heterogêneos que não tolera e nem respeita as diferenças, mas se permite honrar as divergências (Stengers, 2015).

O acerto não se encerra na gira; ele continua e precisa ser renovado para manter o movimento, o vínculo e a confiança. Dona Maria afirmava a importância da confiança para o acerto e sempre lembrava antes de ir embora que o movimento do acerto continuava, e assim entoava seu ponto: “Quando Mulambo caminhar, é que alguma coisa vai fazer, olha que a estrada é longa e o caminho é grande. Ela trabalha pra vencer.”

O acerto era a forma com que as pombogiras e os Exus denominavam os acordos que construíam com fins pragmáticos de movimentação de energias, criando a possibilidade de tirar os obstáculos do caminho. Dona Maria falava: “Vocês querem o milagre, mas não querem fazer a reza. Se não pode cuidar de suas coisas, pelo menos faça acertos com seu patrão.”13 Dona Padilha e Dona Mulambo também usavam essa denominação em momentos como os que Seu-Tranca Rua estava em terra e cantava: “Ô luar, ô luar, ele é dono da rua. Ô luar, ô luar, quem cometeu as suas falhas, peça perdão a Tranca Rua”. Nesses momentos a pombogira que estivesse em terra sinalizava: “Essa é a hora de fazer os acertos com Tranca Rua.”

Os acertos são construídos na encruzilhada, uma vez que ela é movimento, comunicação e pode se apresentar em qualquer lugar, fazendo da gira uma encruzilhada. Nessa encruzilhada foi possível não somente tirar o corpo da referência, como compreender que o corpo e a gira também são encruzilhadas.

A encruzilhada se apresenta também como um território em confluência. Aqui a noção de confluência utilizada é a do pensador Nego Bispo, em que “nem tudo que se ajunta se mistura” (Santos, 2015, p. 89). Ainda segundo Nego Bispo a confluência “rege também os processos provenientes do pensamento plurista dos povos politeístas” (Santos, 2015, p. 89). Dessa forma, os acertos são parte da composição desses territórios em confluência.

“Arreda homem, que aí vem mulher”

Existem algumas etnografias em que as pombogiras são mais presentes, como por exemplo a de Jim Wafer (1991) e de Vânia Cardoso (2004). Jim Wafer (1991) relata as transações das pessoas com os espíritos, como são construídas as representações entre os lugares ocupados por essas entidades e a valorização desses locais e das suas características. A partir dessa etnografia, é possível ter contato com a interação entre os espíritos e as pessoas. As pombogiras vão surgindo na etnografia a partir das pessoas que Wafer vai conhecendo. É através das experiências das pessoas que as pombogiras são apresentadas. Para Wafer, as pombogiras e exus ganham vida a partir dos humanos cujos corpos habitam. Nessa tese a pombogira é apresentada a partir das pessoas, levando em consideração a relação que as pessoas constroem com ela.

Vânia Cardoso (2004) traz a relação com a pombogira como prática de sociabilidade negra e analisa como suas narrativas implicam a ressignificação da memória e experiência. As histórias são contadas pelas pessoas, mas também pelos espíritos, e, assim, Cardoso vai compreendendo e construindo um pouco das narrativas de pombogira. São histórias contadas no cotidiano que vão sendo parte da composição da relação entre as pessoas e os espíritos. Dessa forma, Vania Cardoso (2004) nos apresenta a possibilidade de narrar um mundo marcado pela presença dos espíritos.

Para Wafer (1991), as pombogiras passam a existir a partir das pessoas que ele vai conhecendo no campo e de como aquela pessoa constrói essa relação. Na minha pesquisa, são as pessoas que passam a existir a partir da sua relação com as pombogiras. Não são os corpos que me levam aos espíritos, mas os espíritos que me levam aos corpos. Vânia Cardoso (2004) nos apresenta um pouco desse universo marcado pela presença dos espíritos. Diferente de Vânia Cardoso, compreendo esse universo como o movimento do espírito, o que faz com que os corpos sejam habitados. A partir do pensamento das pombogiras foi possível entender essa relação a partir do espírito e não do corpo. Dessa forma, as pessoas existem a partir de seus próprios espíritos, como parte dessa composição de movimentos entre o espiritual e o encarnado.

A contribuição dessas etnografias foi importante, mas foram os encontros com as próprias pombogiras que garantiram a mudança de perspectiva presente nesta pesquisa, tornando-se parte da encruzilhada. Foi em contato com as pombogiras e refletindo sobre o antropólogo em campo que percebi que para elas não era o antropólogo com quem elas se relacionavam, mas com a minha composição espiritual. Dona Maria me dizia que para que fosse possível compreender o que estava buscando para minha pesquisa, era preciso que entendesse tanto como são as relações com as pessoas quanto o pensamento e os aconselhamentos direcionados para mim. Dona Maria, Dona Mulambo, Dona Padilha e Dona Sete Saias sempre me lembravam que a partir da minha experiência com elas, enquanto composições espirituais que se encontram e se permitem ser encontradas, é que seria a melhor forma de compreender o pensamento delas. Seguindo esse caminho, esta pesquisa foi construída sempre as consultando para saber se esse era o jeito correto e respeitoso de escrever sobre o pensamento delas. A cada passo desta pesquisa, eu conversava com as pombogiras com o intuito de construir nessa etnografia não só o fragmento de uma gira, mas um vínculo, um compromisso com o pensamento das próprias pombogiras.

A gira proporciona um encontro de relações assimétricas entre as pessoas e a pombogira, em que é preciso saber se comunicar para que os caminhos sejam abertos. Desencontro também é encontro na busca de equilíbrio para que os caminhos sejam abertos. O desequilíbrio é parte da composição do equilíbrio, sendo este um momento que no mesmo movimento se desequilibra. O equilíbrio não é conquistado de forma estática, é um constante movimento de equilibrar e desequilibrar. O equilíbrio é construído em movimento, sendo assim, não é estático, mas sim dinâmico.

O equilíbrio é um ponto de encontro em meio a composição de desequilíbrios; assim também é o encontro, um ponto de contato em meio a desencontros que se compõem. O encontro é, antes de tudo, uma composição de desencontros. O que não quer dizer que sejam opostos, mas partes que se complementam nessa composição. Encontro e desencontro devem ser percebidos como ações e, mais ainda, como movimentos. Para que o encontro seja possível é preciso se permitir ser parte dele. Mesmo quando não se permite ser parte do encontro, é pelo desencontro que se entra nessa composição.

Assim sendo, os caminhos para iniciar a pesquisa foram repletos de desencontros. Muitos deles aconteceram por eu não me permitir ser parte da composição. Aconteceram encontros que não foram identificados e somente depois que percebi o que estava acontecendo. A mudança de cidade, juntamente com a ansiedade de encontrar logo um local para realizar o trabalho de campo com o povo da rua, não me deixou perceber que já estava sendo encontrado por eles. Não conseguia identificar os encontros que estavam acontecendo e seguia à procura do campo. Os encontros que permitiram a possibilidade de chegar ao Centro das Culturas Afro-Brasileiras Ilê Axé Obalúwaiyé Azanssun, do Doté Ricardo foram se apresentando como uma composição de muitos desencontros, isso porque foi preciso compreender o que de fato significa dizer que as pombogiras e os exus são o povo da rua. Dona Maria já tinha me avisado que eu precisava ficar atento, porque eles aparecem em vários lugares e os recados são dados de várias formas. É importante ressaltar que o povo da rua é, então, conhecido por aparecer quando e onde deseja, e por ter a capacidade de interferir de maneira inesperada e temida, por isso são chamados para abrir os caminhos, resolvendo problemas difíceis (Cardoso, 2007).

Antes de iniciar a procura do local para realizar o trabalho de campo, em Brasília, aproveitei uma ida ao Rio de Janeiro para participar da gira de Dona Maria. Cheguei cedo, como era de costume. Fizemos a limpeza do quarto de Dona Maria e da área ao ar livre dentro do terreno em que se realiza a gira. Todos os preparativos espirituais para dar início à gira são finalizados e o portão é aberto.

Começamos a tocar e cantar para chamá-la. Dona Maria começou a dar o ar da graça. Era possível sentir uma energia nova, o ambiente começava a esquentar. O babalorixá seguia meio tonto e em alguns momentos colocava as mãos na cintura e começava a sorrir, mas logo ele retomava o sentido do corpo. Era um desequilíbrio de um corpo que procurava equilíbrio entre os lados espiritual e encarnado. Era um jogo de sedução que fazia do contato entre os espíritos a construção de uma linda dança em meio à encruzilhada que se apresentava no corpo do sacerdote. A dança seguia. O sacerdote e a pombogira rodavam, balançavam e ele colocava a mão na cabeça como sinal de que retomava o sentido do corpo. Dona Maria seguiu a irradiar14 o babalorixá. Era possível sentir e ver sua presença quando colocava as mãos na cintura, ensaiava uma gargalhada e começava a dançar, mas em alguns momentos o babalorixá retomava. Era uma espécie de dança acompanhada que se fazia num único corpo físico, mas na qual dois espíritos o ocupavam ao mesmo tempo, num bailar leve, circular e com aparência de passos em falso, como se à procura de equilíbrio. Eram dois espíritos no mesmo corpo e o equilíbrio se apresentava como momentos em que ambos se encontravam na dança.

Enquanto os pontos eram tocados e cantados, Dona Maria aos poucos ia se mostrando. Começava a sorrir e seduzir com seus encantos. Ela colocava as mãos na cintura, balançava o quadril e seguia num sorriso em harmonia com a dança, fazendo do seu gestual um jogo de sedução não somente para quem vê, mas para Dona Maria e o babalorixá que ocupavam o mesmo corpo. Ela dançava, rodava e parava em frente aos atabaques com as mãos na cintura e sorrindo.

Lembro algumas vezes em que ela parava em frente aos atabaques com a mão na cintura, batendo o pé, em um movimento de quem desafiava: sim, vão conseguir ou não me chamar? Mas dessa vez foi diferente, ela parava na frente do atabaque como um convite ao flerte, como forma de jogar seu charme, nos seduzir e nos colocar ainda mais em contato com ela. Se direcionava para os atabaques, colocava as mãos na cintura, balançava os quadris e sorria como um convite de boas-vindas que buscávamos retribuir tocando com mais energia ainda e aumentando a intensidade dos pontos para animar os participantes da gira. Ela seguia rodando, dançando, irradiando o babalorixá e voltava a ficar na frente dos atabaques. Sorria com um sorriso de conquista, como o de quem aceita o convite proposto por um jogo de sedução mútuo. No instante em que as pessoas começaram a cantar com mais força, Dona Maria foi se tornando ainda mais presente, fincou os pés no chão, começou a tremer intensamente, até que caiu de joelhos em frente ao seu assentamento15 dando uma gargalhada. Na sua chegada ela disse: “Meu cavalo16 não quer me chamar, não quer que eu venha, mas eu venho. Vim para trabalhar.”

A dança que acontece para a chegada de Dona Maria é realizada em um único corpo físico e, nesses momentos, o jogo de sedução faz parte da construção dos acertos que já começam a ser construídos. É mais que um balé, é como um samba de gafieira em que dois espíritos dançam ocupando o mesmo território, mas que estão em contato compondo outro corpo. É uma gafieira construída através do contato-improvisação, onde os espíritos vão se tocando e tentando cada um exercer sua força dentro do mesmo corpo. É uma dança que faz do corpo do sacerdote uma encruzilhada entre os lados espiritual e encarnado.

Dona Maria, então, chegou na gira e com a ajuda de uma das pessoas vestiu sua roupa. Começou a cantar os pontos e se direcionar para alguns presentes, já dando início às suas consultas através dos sotaques.17 Dona Maria começou a soltar os sotaques e disse: “A consulta já começa com os sotaques, o ogã18 da Bahia19 sabe do que estou falando.” Direcionou-se para duas pessoas que estavam indo pela primeira vez, uma mulher e um homem, se posicionou com as mãos na cintura, soltou uma gargalhada e disse que esse ponto era para eles: “Juraram de me matar na porta do cabaré. Ando de noite, ando de dia, só não mata quem não quer.” E outro ponto foi cantado na sequência: “Debaixo daquela figueira fizeram um feitiço pra me derrubar. Mas no dia da festa eu vou lá.” Geralmente quando ela canta esses pontos as pessoas presentes estão sendo vítimas de inveja, tendo assim pessoas atrapalhando seu caminho, e podem ter feitiços feitos contra elas. Ao cantar esses pontos, ela afirma que já está fazendo a parte dela e está guerreando por eles. Dona Maria disse que na hora da consulta ela explicaria tudo e eles poderiam fazer os acertos para vencer aquela guerra.

Em seguida disse: “Agora eu sou professora, vocês querem que eu ensine, então vou ensinar.” Ela afirma que a relação entre o orun e o aiyê era diferente do céu e terra, pois não existia em cima e embaixo, mas sim lados ou planos diferentes, que o orun estava à nossa volta, mas nem todos conseguem ver. Explicou que o mundo é uma cabaça e a separação das partes da cabaça é que são o orun e o aiyê. Ela nos contou que nós precisamos aprender pelo corpo, nos deixando permitir para que a comunicação entre as partes da cabaça se estabeleça. Afirmou que devíamos permanecer atentos aos avisos, pois nem sempre o patrão vai deixá-la vim em terra para falar diretamente conosco. Em determinado momento, ela afirmou que já sabíamos o que era aláfia20 e que por isso precisávamos identificar quando o patrão de cada um mandasse essa confirmação. Dona Maria continuou dizendo que é preciso se permitir para que as partes se toquem. É preciso ter fé e acreditar, e cantou: “Se você tem fé, faça um pedido e bata o pé…”, não seguiu cantando até o final, mas foi direto ao recado dizendo: “Se você não acredita, eu nada posso fazer. Se permitam tocar para que possa ser tocado, tenha fé. É igual ao sexo, para ser bom tem que tocar e ser tocado. Tem que querer, pra ser bom.”

Dona Maria, depois de cantar seus pontos e distribuir sotaques, foi para o seu quarto e começou a receber as pessoas para consulta. No momento da minha consulta, entreguei as bebidas que levei de presente por uma conquista alcançada. Dois dias antes da gira, havia sonhado com Dona Maria abrindo um champanhe e comemorando comigo, o que me deixou pensativo, pois ela não gosta de champanhe. Levei o champanhe e entreguei com muito medo de levar uma grande bronca, porque sabia que ela não gostava. Assim, entrei na casa, dei um abraço nela e entreguei o presente. Ela confirmou que eu havia entendido o aviso e disse que era para comemorar as conquistas dos três ogãs da casa. Durante a consulta, pedi autorização a Dona Maria para fazer uma pesquisa em Brasília sobre a relação das pessoas com as pombogiras. Ela me respondeu: “Vai me homenagear? Que formoso! Vai ser formoso.” E continuou: “Pode ir, vou estar com você. O patrão quer que você não desvie o caminho. Siga seu caminho e vai conseguir o que quer. Seus caminhos estão abertos. Você vai saber identificar o lugar certo. Você já conhece como é.”

Além da autorização, pedi proteção para entrar nessa encruzilhada. Após as consultas, ela abriu o champanhe para celebrar e bebeu com todos os presentes. A sua taça ia circulando, cada pessoa bebia um gole e a passava adiante. A taça circulava até voltar para a mão dela. Ela dizia que era para beber, pois ela estava dividindo o axé. Quando alguém demorava um pouco mais com a taça, ela dizia que era para circular, que se fosse para ficar parado tinha de ser na mão dela.

Fui para Brasília com a autorização e proteção de Dona Maria para procurar o terreiro. Segui procurando contatos que não se concretizavam em giras por um bom tempo. Numa noite conheci um homem no Baianinho’s Beer, no Riacho Fundo I, que, ao me ver jogar um pouco de cerveja no chão antes de beber, disse: “Não sei o que é essas coisas, mas minha chefe que gosta.” Perguntei se ela frequentava algum terreiro e pedi que ele falasse com ela e perguntasse se ela o autorizava a me passar seu contato. No mesmo momento ele ligou para ela e me passou o telefone. De imediato Amanda o autorizou para que me passasse o seu contato e me convidou para uma gira de Dona Maria Padilha que acontecia na quinta-feira a cada duas semanas, na região do Guará II. Por mais que eu tivesse conseguido diversos contatos para frequentar giras, foi justamente num bar, território do povo da rua, onde encontrei o meu caminho, em meio a essa encruzilhada.

Depois de algumas tentativas de ir ao centro, mas passando por alguns contratempos, enfim consegui um dia para realizar minha visita. Apenas havia falado com Amanda por telefone e não conhecia mais ninguém que pertencia à casa, também não conhecia a região do Guará II. Dessa maneira, Amanda me passou o endereço do local, me desloquei da 610 Norte para a Quadra Interna (QI) 28, no Guará II. Para chegar ao centro, consegui uma carona com um morador do Guará II que desconhecia aquela quadra, mas que se colocou à disposição para me ajudar. Seguimos perguntando a alguns moradores que encontrávamos na rua, mas ninguém conhecia tal quadra. No caminho, paramos em um bar e perguntamos a um senhor sobre as direções do endereço, ao que me informou que aquela quadra não existia no Guará II, somente no Guará I. Assim que pedi um carro por aplicativo e fui para o Guará I, enquanto tentava contato com Amanda para confirmar o endereço. Quando estava saindo do Guará II, ela me enviou uma mensagem pedindo desculpas por haver enviado o endereço errado e me passou o correto, que era Quadra Externa (QE) 28, no Guará II mesmo. Avisei ao motorista e troquei o endereço para que conseguíssemos chegar no local correto.

“Acende a luz do candeeiro pra receber pessoa amiga”

Cheguei no Centro das Culturas Afro-Brasileiras Ilê Axé Obalúwaiyé Azanssun, informei à Amanda que estava na frente do número indicado. Ela me informou que não havia chegado ainda, mas que já estavam avisados para me receber. Bati palmas e chamei para ter certeza de que estava no lugar certo, devido ao silêncio. Veio uma mulher e me perguntou se era quem Amanda disse que estava chegando. Confirmei e prontamente ela me convidou a entrar. Após diversos desencontros, consegui chegar na gira, o encontro marcado com a pombogira.

Entrei na sala onde acontecem as giras e logo de frente, na parede, avistei um altar com pequenos oratórios. Os oratórios formam uma espécie de losango com maior comprimento na horizontal. Nesse altar, no sentido vertical se avista Oxalufã no topo, logo abaixo e no centro estão Obaluaê e Oxum, já na parte de inferior se encontram pombogira e exu, formando o centro da composição do panteão com as imagens de orixá. Abaixo das prateleiras tem um banco grande de madeira, bem como na lateral esquerda onde já encontrei algumas pessoas sentadas conversando, na expectativa da chegada de Dona Maria Padilha. Do lado direito, ao fundo, se localizava o banheiro, e na porta tinha um tonel com o banho de folhas pronto para os filhos da casa. Sentei-me no banco lateral e logo uma senhora, Alessandra, começou a conversar comigo sobre o quanto Dona Padilha era boa, que ela ia toda semana somente para agradecer e dar-lhe um abraço. Os filhos da casa já se faziam presentes e cuidavam dos preparativos, acendiam as velas dos assentamentos, outros recebiam os consulentes. Amanda passa uma lista de presença com duas colunas, de um lado quem era visitante e do outro quem queria uma consulta particular.

O Doté Ricardo orientava os preparativos para a chegada da Moça.21 Ele passou por cada canto da casa para ver se estava tudo pronto e cumprimentou os presentes. Sentou-se na poltrona coberta com um tecido vermelho e preto, que estava no canto direito de quem olha da porta de entrada. Próximo à poltrona tinha uma janela. Embaixo dela estava uma mesa onde ficava a caixa de joias. Sob a mesa uma sequência de três velas, uma branca, uma vermelha e uma vermelha e preta. Na frente da caixa de joias ficavam as taças das pombogiras.

Doté Ricardo conversou um pouco com os presentes, bem-humorado como de costume, e pediu para que um de seus filhos acendesse as velas que se encontram sob a mesa, pois já estava sentindo a Moça chegando. Pediu para conferir se as velas dos assentamentos estavam acesas. Nesse momento os bancos estavam com seus espaços quase preenchidos. Algumas pessoas conversavam entre si e outras com o doté. Aos poucos os filhos de santo da casa foram se sentando e compondo a sala. Esse cômodo também é composto por uma espécie de mandala com a imagem de Dona Maria Padilha e uma telha com a imagem de Seu Zé Pilintra na lateral da janela. No canto da sala, atrás da poltrona de Dona Padilha tinha um móvel na altura do encosto da poltrona, uma espécie de altar, com uma imagem de Seu Zé Pilintra, Dona Maria Mulambo e Seu João Caveira. É o canto da rua, na sala.

No meio da conversa do doté com os presentes, Dona Maria Padilha chegou e de imediato se vestiu. Deu boa-noite. Uma das filhas da casa pegou a caixa de joias e abriu para que Dona Padilha escolhesse aquelas que queria usar. Enquanto ela escolhia as joias, Carla trouxe duas taças, a cerveja, o champanhe e seus cigarros. Dona Padilha seguiu escolhendo seus braceletes, que pouco a pouco foi preenchendo boa parte do antebraço. Ela escolheu um anel para cada dedo. De repente, ela viu outro anel e decidiu trocar. Começou a procurar seus colares. Escolheu três colares. Pegou os brincos para escolher enquanto as filhas da casa olhavam admiradas para ele; Dona Padilha, percebendo, disse: “Tira o olho, que é meu”, e deu uma gargalhada.

Dona Padilha pediu para que Ana pegasse um sino. Afirmou que precisava do sino, pois sem atabaque não tinha animação, o povo não cantava e nem batia palma. Nessa hora, a ekedi Amanda falou que era melhor pegar o atabaque, pois eu podia tocar. Dona Padilha me perguntou se eu poderia tocar para ela e respondi que estava aprendendo. Ela, então, disse: “Basta tocar samba de roda.” Dona Padilha começou a cantar seus pontos.

No início tive dificuldade para acompanhá-la, pois ela cantava mais devagar e em uma cadência diferente daquela de Dona Maria, a quem eu estava acostumado a acompanhar. Eram intensidades diferentes que podiam ser percebidas nos pontos e, também, na forma de falar e de dançar. No primeiro ponto que ela cantou me encontrei com o tempo dela, mas sem perceber eu acelerava, então parava e voltava a tocar. Assim, percebi que precisava buscar o encontro entre o tempo dela e o meu, pois a forma musical é um processo comunicacional onde o sentido é produzido através da constante interação com os gestos, passos, danças, palavras, objetos, crenças e mitos. Desse modo, entrar no ritmo não é simplesmente alinhar, mas sentir os batimentos do próprio coração (Sodré, 1998). Depois, aos poucos consegui sentir e manter a conexão, mas em alguns momentos ainda atravessava o ritmo e saía do tempo. Além disso, havia alguns pontos que eu conhecia e outros que não.

Aprendi com Dona Maria que: “O tambor toca no coração, então é preciso sentir.” Então era preciso deixar pulsar. Assim como as notas que variam e os acordes que ressoam, comecei a pensar a relação entre os movimentos que possibilitam o encontro entre os lados como vibrações em diferentes frequências. Enquanto Dona Maria tinha a necessidade de um ritmo mais acelerado, Dona Padilha tinha a necessidade de um ritmo mais cadenciado em uma velocidade mais baixa, mesmo nos dois casos a intensidade sendo a regra para se tocar.

A partir da música me conectei ainda mais com a compreensão dos movimentos e estabeleci uma comunicação na busca de compreender essa relação de tocar e ser tocado. Existe uma variação de movimentos entre as pombogiras, cada uma com seu ritmo próprio. É possível perceber a diferença entre Dona Padilha e Dona Mulambo, que ocupam o mesmo corpo, mas que criam diferentes composições. Dona Maria já apresentava um ritmo muito próximo dos sambas de roda da Bahia, com uma batida acelerada, mas também muito cadenciada. Assim como somos sons em tonalidades de diferentes frequências, o lado espiritual também apresenta suas variações; nas palavras de Dona Padilha: “Somos espíritos encarnados de formas diferentes.”

A música não é somente composta por atabaques, mas pelas vozes que cantam, pelos corpos que dançam e também emitem sons, sendo, portanto, variações de notas que compõem o ponto cantado e a comunicação com o lado espiritual. Para o ogã, é preciso saber o movimento correto para tirar o som do atabaque para que a vibração apresente sua duração. Ele tem que saber quando dar o “slap” no atabaque, bem como onde tocar as notas agudas e graves. Dominando a técnica, é possível improvisar e tornar o som ainda mais rico em detalhes, mas não se pode esquecer que a base do ritmo é um fundamento que precisa ser respeitado. Portanto, tocar o atabaque é um movimento que se assemelha com os acertos, uma vez que ele é constantemente criado com suas variações, mas sempre mantendo o fundamento.

O encontro com os atabaques e com as diferentes pombogiras foi uma das ferramentas importantes na reflexão sobre os diferentes movimentos e a construção dos acertos. Cada acerto é uma composição criativa que através do movimento cria a possibilidade de novos movimentos. Por sua vez, cada movimento vai ser construído a partir da pombogira e do espírito encarnado que constroem o acerto. Por essa razão, tocar atabaque e compor a gira é também uma composição criativa, pois são movimentos diferentes que são construídos, levando em consideração com qual pombogira se está compondo a gira.

Foi a partir, também, da experiência de tocar atabaque e perceber a cadência e os ritmos dos toques que comecei a pensar nos movimentos que proporcionam o encontro e a construção dos acertos como composição que varia em cima das mesmas notas. Dessa forma, assim como os atabaques variam em cima das mesmas notas e criam os ritmos que cadenciam a comunicação entre os lados encarnado e espiritual, nós somos como esses sons que duram na vibração. O ato de tocar ao lado de André e Sun22 para Dona Maria era seguido de improvisações e variações, que eram marcadas pelo ogã que tocava o rum. Para produzir novas criações em cima do que é tocado no atabaque, é preciso respeitar a base do ponto. Assim também são as criações de movimentos que geram novos movimentos na composição dos acertos.

As giras apresentam a sua música-tema e em cima dela são construídas improvisações, que geram movimentos singulares. A improvisação é possível quando se domina a técnica, mas também quando se permite ser a composição do ritmo. Segundo Sodré (1998) o ritmo é, antes de tudo, a organização do tempo do som na composição da arte de combinar as durações. Essa maneira de pensar a duração se constitui como uma forma de inteligibilidade do mundo, através do encontro do sentir que constitui o tempo como se constitui a consciência. Miriam Rabelo (2014) aponta que o ritmo apresenta uma natureza dual que possibilita o encontro que responde, ao mesmo tempo, ao impulso vital do corpo e a uma força que de fora o organiza. Essas definições de ritmo seguem ao encontro do que afirmou Dona Maria: “O tambor toca no coração, é preciso sentir.” É preciso ser afetado (Favret-Saada, 2005) para ser parte da composição. É relevante dar ênfase à definição de que toca o coração e à necessidade de sentir, pois elas apontam para a importância de tocar o atabaque e o coração ser tocado, bem como sentir para proporcionar o encontro e os movimentos.

É através do contato de um corpo com outro que resulta o som para acionar o axé (Sodré, 1998). O corpo se encontra com o ritmo, numa composição que constitui o lugar - entre a dança, cantos, imagens - e o lugar que vai sendo constituído através do movimento rítmico como prolongamento da emoção do corpo (Rabelo, 2014). A emoção é o movimento das coisas e dos seres, sendo aquilo que nos faz “vibrar interiormente”, na profundidade (Lapoujade, 2017, p. 27).

A duração das vibrações faz o som existir; do mesmo modo, é o movimento que faz com que o afeto se emocione com a passagem do tempo. Dona Maria explicitou que as pessoas rodantes - aquelas cujo corpo é ocupado pela entidade ou orixá - sentem a presença de forma diferente da de um ogã. Ela utilizou o ogã Sun como exemplo e disse: “Ele não recebe orixá, mas através do ato de tocar e sentir a chegada de Xangô cai no choro. Ele quando faz o tocador com a banda dele consegue em alguns momentos se emocionar e envolver quem está presente.” Lembro de ver Sun sempre arrepiado momentos antes de Xangô chegar, e como as vibrações, os sons se prolongavam a cada “slap” e todo o ambiente se transformava, compondo com os outros atabaques e animando todos que estavam presentes. Colocando a atenção no movimento e não nos seres, podemos ver o encontro entre o lado espiritual e o encarnado como uma composição de vibrações de diferentes tonalidades, e que através da emoção podemos nos conectar com a duração e o ritmo para estabelecer a comunicação.

Na cultura africana, a música é uma composição ao lado de outras como a dança, os objetos, itans, encarregados de acionar o processo de comunicação e interação entre as pessoas e o lado espiritual (Sodré, 1998). Assim, a comunicação com o lado espiritual é possível nas giras como um tema-base em que é preciso variar nas vibrações à procura do ritmo que torne possível a presença do povo da rua.

A gira é uma encruzilhada em que a pombogira vem em terra, dança, canta, solta seus sotaques, os ogãs tocam ou não os atabaques, os convidados cantam e batem palmas, e os lados entram em confluência a tal ponto que a pombogira se faz visível para os participantes. Para a pombogira vim em terra é necessário que todos envolvidos participem e isso faz com que a comunicação entre os lados seja estabelecida. Vale destacar que o som é o condutor do axé (Sodré, 1998). Faz-se necessária uma composição entre ritmo, emoção e alegria para que as vibrações de diferentes tonalidades se tornem comunicação. Em outras palavras, é preciso ser parte da composição que faz da encruzilhada a própria comunicação.

É importante que o lado encarnado sinta a emoção e seja tocado, enquanto toca. O lado espiritual precisa ser sentido para se criar a possibilidade do encontro. Além disso, é valioso saber convidar o lado espiritual para dançar, enquanto se dança. É preciso encontrar e ser encontrado como parte da composição que se emociona. A pombogira precisa entender que a sua presença é realmente importante para as pessoas que compõem a gira.

A rua é uma encruzilhada

As pombogiras e exus são conhecidos como povo da rua, fazendo da rua seu território, e a constituindo enquanto uma encruzilhada. Dona Maria sempre avisava que, se precisar dela, é só chamar, pois ela está na rua, e em qualquer lugar. A encruzilhada é morada mesmo do povo da rua, onde entrecruzam-se as mútiplas limiaridades, assim como a dimensão ritual e ao mesmo tempo o lugar urbano mais que cotidiano (Cardoso, 2007, p. 323). A encruzilhada é a morada das pombogiras e uma encruzilhada física é constituída do encontro de vários caminhos, várias ruas. É nas encruzilhadas físicas que se colocam as oferendas para que a comunicação chegue no lado espiritual. Essas encruzilhadas são o encontro das ruas no plano encarnado, que são partes da composição desse mundo cindido.

Podemos perceber a relação entre a rua e encruzilhada de várias formas. Começamos com os pontos de Seu Tranca Rua: “Ô luar, ô luar, ele é dono da rua”, ou quando Dona Maria cantava: “Quando passar pela encruzilhada, não se esqueça de olhar pra trás. Olha que lá tem morador, a pombogira é quem mora lá.” Seu Tranca Rua é cantado em seus pontos enquanto dono da rua e morador da encruzilhada. Dona Maria certa vez me disse bem feliz: “Que formoso, você já nos reconhece na rua, já sabe que a rua é nossa. Saiba escutar o que a rua te fala.” Em outro momento, Dona Sete Saias me deu um recado para falar com a ialorixá Carolina: “Avisa a minha menina que esse ano minha festa é no samba na rua e quero todos lá. Vocês sabem que estou com vocês na rua, mas dessa vez estou marcando.” Mas foi a partir da definição de Dona Maria e Dona Padilha de que a encruzilhada é esse encontro entre o lado espiritual e o encarnado, juntamente com a noção de que o corpo também é uma encruzilhada (Anjos, 2006), que foi possível a reflexão de que a rua é uma encruzilhada. Foi a rua que me levou aos terreiros e as pombogiras me confirmaram que elas que estavam me chamando. A encruzilhada é a morada do povo da rua, e o encontro de diferentes caminhos. A rua também está presente dentro do terreiro, pois era assim que as pessoas nos terreiros em que fiz a pesquisa se referiam aos assentamentos de pombogiras e exus. Sendo assim, compreendo a rua como uma encruzilhada que permite a comunicação e o encontro com as pombogiras.

Nos últimos dias de trabalho de campo em Brasília, fui a um samba com uns amigos próximo ao bar e restaurante Outro Calaf. Perto do fim do evento, uma mulher sambava e passava o pandeiro para arrecadar a contribuição para a banda. Depois de entregar o pandeiro na roda dos músicos, ela voltou a sambar e todos estavam olhando para ela, admirados. Ela encantava com sua elegância e beleza, fazendo da roda de samba um espetáculo a que seus próprios espectadores assistiam admirados. Os olhos seguiam o balanço e seu requebrado, enquanto seus corpos seguiam o ritmo em acompanhamento à composição entre a roda de samba e a beleza da dança dessa mulher. Em um momento, ela parou olhando na direção em que eu e meus amigos estávamos e sorriu em meio ao rebolado do samba.

O samba terminou, meus amigos Ícaro e Jamir ficaram conversando com Gisele e a mulher que tinha recolhido dinheiro para os músicos da roda. Essa mulher que dançava e encantava todos à sua volta era Carol, que então se apresentou. Gisele nos disse que Carol era a produtora daquele samba. Logo depois, Gisele comentou que elas faziam sessões de umbanda com preto velho e Dona Sete Saias, e me convidaram para ir. Carol então chamou Gisele para ir para casa. Naquele momento nem parecia a mesma Carol que sambava e chamava a atenção de todos à sua volta. Disseram que iam consultar Dona Sete e o Vovô Joaquim para saber se eu podia ir, pois são sessões fechadas para os filhos da casa.

Na semana seguinte me confirmaram que eu podia ir. Era uma sessão com Dona Sete Saias. Naquele dia, infelizmente, não pude ir, e informei para Gisele. Avisaram-me que haveria mais uma sessão, para fechar o ano, com Pai Joaquim. Cheguei lá por volta das 19h. Lá estavam a ialorixá Carol e a Gisele, que me apresentaram a Ludmila, que assim como Gisele era filha da ialorixá Carol. Logo que cheguei a ialorixá Carol me deu boas-vindas e disse que se o Vovô e Dona Sete me queriam ali, seria sempre bem-vindo. Além disso, ela deixou evidente que se tratava de uma sessão ainda mais fechada do que de costume, mas nem precisavam consultar o Vovô Joaquim e a Dona Sete, pois, além de autorizarem, disseram que eu precisava estar lá. A ialorixá Carol explicou, então, que tinha mais de 30 anos de santo, que era iniciada no candomblé, umbanda e ifá, sendo sacerdotisa nas três, mas que se identificava mais com a umbanda. Ademais, explicou que tinha autorização dos orixás e suas entidades para fazer as sessões em sua casa.

Pai Joaquim, então, fumou seu cachimbo, olhou para mim e me pediu para servir o prato de cada um. Enquanto comia, Vovô explicava que na vida, em alguns momentos, temos como escolher o sabor ou o espinho. Enquanto falava, ia roendo o pequi, e disse que devíamos aprender a fazer escolhas, assim só se teria espinhos se eles fossem escolhidos.

Após aquela fala, Vovô olhou para mim e disse: “Tenha calma que a agoniada vai chegar mais tarde. Sei que você quer conhecer ela.” Depois pediu para eu guardar o presente que seria minha proteção e avisou que teria um dia de resguardo. Pediu para que eu lembrasse como foi feito, pois ia ter que refazer quando eu chegasse na cidade do Rio de Janeiro. O presente foi um acerto construído para me proteger para o ano que estava chegando, conseguir finalizar o campo e iniciar a escrita da tese.

Vovô Joaquim foi embora, a ialorixá Carol voltou e Ludmila lhe deu água. Logo, a ialorixá perguntou se eu havia gostado e eu respondi que sim e que Vovô me ajudou a entender até o jogo de búzios que eu tinha feito havia pouco.

Após a pausa, começamos a cantar para Dona Sete Saias que logo veio em terra. Assim que chegou, virou-se para mim e disse: “Olha quem está aqui. Que bom que você veio.” Me abraçou e disse: “Pode me abraçar, não é mais meu cavalo que está aqui. É comigo agora!” Gisele e Ludmila riram e se olharam espantadas. Dona Sete explicou: “Não é com qualquer um que eu posso ficar à vontade. Este homem conhece, admira e respeita as pombogiras. Ele tem nosso respeito também.” E continuou: “Enquanto no samba todos olhavam para a minha menina, ele quando olhou me viu e eu que olhei para ele.” E perguntou: “Gostou de me ver? E hoje, está gostando de me ver aqui?” Eu respondi que sim. Que estava sendo muito bom. Dona Sete disse: “Que decepção! Pensei que era ótimo me ver. E… ainda não trouxe nada para beber? Outra decepção.” Eu disse que não sabia que ela também vinha hoje. Ela riu. Gisele pediu licença para comprar umas bebidas para ela.

Sem demora, Gisele chegou com os champanhes. E, quando Dona Sete estava com um champanhe na mão, bebia na garrafa mesmo e o passava para que nós também bebêssemos.

Continuou bebendo e disse que não ia demorar muito. Ela bebia e se movimentava em círculos pela sala. Cada um estava numa ponta do lugar, formando um triângulo, e, sem nos darmos conta, já éramos uma encruzilhada no meio da sala e, também, no plano espiritual. Ela seguiu circulando, me abraçava e colocava a mão no meu ombro. Então disse: “Não é todo dia que se encontra um homem que respeita pombogira, por isso posso ficar à vontade com ele. Ele respeita e gosta muito de pombagira. Por isso vou lhe dar um presente pelo seu escrevedor grande.” Entregou-me o presente e disse: “Esse é pela sua futura conquista, seu sucesso no escrevedor grande.” E voltou a falar que, quando me viu no samba, já sabia que eu ia conhecer ela de perto. E continuou: “Assim como você me viu, fui eu que olhei e sorri para você.” Dona Sete construiu outra parte do acerto que Pai Joaquim havia começado e reivindicou que eu lembrasse sempre das mulheres.

O presente que Dona Sete Saias me entregou foi um champanhe pedindo para que eu abrisse na defesa da tese, e servisse primeiro as mulheres. Dessa forma, tanto a autorização para começar a pesquisa, como durante todo processo de escrita até a defesa, as pombogiras fizeram questão de se fazerem presentes. Ao me presentear com o champanhe e pedir para servir primeiros as mulheres, Dona Sete confirmava sua presença na minha defesa, juntamente com as outras pombogiras. Foi com um champanhe que a pesquisa foi autorizada a começar e foi com um champanhe que se deveria comemorar a defesa da tese.

Após explicar a importância de não esquecer as mulheres, Dona Sete disse que ia embora. “Vocês vão sair, avisa a minha menina para ela ir assim, que já está pronta. Vocês vão sair, vão beber, comer algo e se alguém passar pedindo cigarro é para dar.” Dona Sete disse: “Vão se arrumar vocês duas que vocês não vão com roupa de macumba para a rua. Ele está pronto e vou ficar aqui com ele um pouco.” Logo depois, Dona Sete pediu para eu dar um recado importante para a ialorixá Carol e disse que era eu quem tinha que dizê-lo. No final, explicou que a saída ao bar ainda era parte do trabalho: “Então bebam a quantidade que eu falei. Amanhã quero vocês juntos no samba, pois será a continuação de minha festa. Lá que será a minha festa deste ano.”

Saímos para dar continuidade ao acerto. Fomos ao bar Pardim, na CLN 405. Bebemos, comemos e conversamos. Assim que chegamos na mesa, servimos o copo de Dona Sete Saias. Bebemos, pedimos a comida e seguimos conversando. Cada vez que pedia uma cerveja, eu conferia a quantidade que tinha. Quando faltava uma, pedimos uma dose de cachaça. Dona Sete disse que era para beber a quantidade certa, não importava se era a mesma bebida ou não. Pedimos a conta quando completamos a quantidade e um homem chegou fazendo truques com cartas, na hora de ir embora ele pediu um cigarro. Gisele e Ludmila deram três cigarros para ele. Nós quatro nos olhamos e todos sorriram.

“Galo cantou é hora, é hora, a pombogira se despede e vai embora”

Na pesquisa, o movimento tornou possível e frequente o encontro com o povo da rua e o encontro marcado seguiu gerando outros movimentos na gira. Diversos movimentos acontecem para que a gira seja possível. Por exemplo, o movimento dos filhos da casa e do doté começam antes mesmo da limpeza do centro. É preciso ter o corpo preparado para tornar-se um ponto de encontro. Compreendendo que o corpo é uma encruzilhada, necessita-se ter os caminhos abertos para estabelecer a comunicação entre o lado espiritual e o lado encarnado. É importante que o cavalo tenha o corpo limpo para a realização das giras, não podendo ter feito sexo e nem consumido bebida alcoólica. Em alguns casos, até um pouco de bebida alcoólica pode ser permitida pela pombogira, como apontou Dona Maria, numa gira.

Assim sendo, existe um movimento de preparação da gira pelos filhos que vai desde a limpeza, passando pela construção dos primeiros acertos para que ocorra tudo bem, até a necessidade de criar a energia necessária para a pombogira vim em terra. São movimentos diferentes de início e fim da gira entre as pombogiras, com algumas semelhanças, mas também com diferenças.

O movimento presente nesta pesquisa aconteceu no lado encarnado entre três cidades, Brasília, Rio de Janeiro e Nova Iguaçu. A minha saída do Rio de Janeiro me fez acreditar que conseguiria fazer todo o meu trabalho de campo em Brasília e, por isso, fui à procura de um terreiro. A pesquisa foi me encontrando em cidades diferentes, em outros terreiros e, também, na rua. Em minha perspectiva, só foi possível perceber o movimento do povo da rua e dessa pesquisa após encontrar o Centro das Culturas Afro-Brasileiras Ilê Axé Obalúwaiyé Azanssun.

A pesquisa é viva e o movimento é constante. Seguir esse movimento não pode ser visto somente como uma simples escolha metodológica. A encruzilhada é comunicação e movimento, por essa razão, o povo da rua é o próprio movimento e a encruzilhada o encontro das ruas. Assim como a encruzilhada física é o elo entre as ruas, a encruzilhada espiritual é um elo entre os lados espiritual e encarnado. Foi o movimento que tornou possível o encontro com o povo da rua em diversos locais, seja nas ruas ou nos terreiros. Dessa forma, por mais que eu tenha feito o movimento para tornar possível o encontro com o povo da rua, foi o movimento do povo da rua que permitiu que eu fosse encontrado.

Para que o encontro com as três pombogiras fosse possível, precisei ser encontrado pelo povo da rua. Conheci o babalorixá David em um bar na Cinelândia, na cidade do Rio de Janeiro. Já o encontro com Doté Ricardo foi possível através de um homem que em um bar no Riacho Fundo I, no Distrito Federal, me passou o contato de uma filha de santo do sacerdote. Também no Distrito Federal, Dona Sete Saias me cumprimentou numa roda de samba, e depois, no fim do evento, conheci a ialorixá Carol, seu cavalo. Desse modo, não fui encontrado pelas pombogiras nos contatos em que procurava, mas enquanto me divertia nos territórios em que o povo da rua sempre estará presente, mesmo que nem sempre seja visto.

A pombogira torna visível o movimento que possibilita o encontro entre o lado espiritual e o encarnado. Ela se movimenta para vim em terra, bem como para voltar ao lado espiritual e segue o seu caminhar para que o movimento exista. O fim da gira não deve ser encarado como fim do movimento, mas como fim de um encontro marcado na encruzilhada, que inicia outros movimentos. A pombogira não está indo embora, mas se movimentando para trabalhar no lado espiritual, e, assim, indo com a promessa de voltar outro dia. O fim do encontro marcado é a continuação dos acertos.

Referências

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  • ANJOS, J. C. G. dos. A filosofia política da religiosidade afro-brasileira como patrimônio cultural africano. Debates do NER, Porto Alegre, ano 9, n. 13, p. 77-96, 2008.
  • BASTIDE, R. O candomblé da Bahia: o rito nagô. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1961.
  • CARDOSO, V. Z. Working with spirits: enigmatic signs of black sociality (Brazil). 2004. Tese (Doutorado em Filosofia) - The University of Texas at Austin, Austin, 2004.
  • CARDOSO, V. Z. Narrar o mundo: estórias do “povo da rua” e a narração do imprevisível. Mana, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 317-345, 2007.
  • FAVRET-SAADA, J. Ser afetado. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 13, p. 155-161, 2005.
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  • LOPES, P. de S. O sotaque dos santos: movimentos de captura e composição no candomblé do interior da Bahia. 2012. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.
  • RABELO, M. Enredos, feituras e modos de cuidado: dimensões da vida e da convivência no candomblé. Salvador: EDUFBA, 2014.
  • SANTOS, A. B. dos. Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília: INCT, 2015.
  • SODRÉ, M. Samba, o dono do corpo Rio de Janeiro: Mauad, 1998.
  • STENGERS, I. No tempo das catástofres: resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
  • WAFER, J. The taste of blood: spirit possession in Brazilian candomblé. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1991.
  • 1
    Este artigo é um desenvolvimento de parte dos argumentos apresentados em minha tese de doutorado defendida na Unicamp em 2021, para qual recebi apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Para a redação deste artigo, contei com o apoio do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais através da Bolsa de Pós-Doutorado Estratégico (PDPG-POSDOC). Aproveito para agradecer a leitura atenta de Gustavo Cantisani e Cristina Giorgi com os seus comentários e contribuições que possibilitaram a melhora do texto. Agradeço à Daniela Tonelli Manica, bem como aos colegas do Labirinto/Unicamp pelas importantes trocas. Agradeço também as contribuições de Marcio Goldman e os demais colegas do Núcleo de Antropologia Simétrica (NAnSi). Por fim, agradeço também aos pareceristas da revista Horizontes Antropológicos pelas recomendações e generosas sugestões que contribuíram para o aperfeiçoamento do artigo.
  • 2
    Os conceitos próprios do campo serão utilizados em itálico.
  • 3
    Cerimônia ritual de chamada das pombogiras onde elas dançam, cantam e fazem consultas. Esse é um momento ritual em que as pombogiras vem em terra para cantar, dar consulta e construir os acertos. Geralmente elas vêm em terra e chamam outros exus e pombogiras para compor a gira.
  • 4
    “Energia” é um termo muito utilizado pelas pombogiras, é uma espécie de força entre o espiritual e que precisa seguir em movimento, circulando. Por exemplo, quando cruzamos braços ou pernas, a pombogira: “Deixa a energia se movimentar. Não crie obstáculos.”
  • 5
    Título de sacerdote na nação de candomblé jeje. Popularmente conhecido como pai de santo, logo, seria Pai Ricardo.
  • 6
    Cargo feminino no candomblé da nação jeje, semelhante à ialorixá no candomblé da nação ketu.
  • 7
    Título de sacerdote no candomblé da nação angola. Em português significa “pai” e é popularmente conhecido como pai de santo.
  • 8
    Templo de culto ao vodum.
  • 9
    Como são chamadas as divindades na nação jeje. Equivalente a orixá.
  • 10
    O termo “zelador(a)” é utilizado para fazer referência aos sacerdotes e sacerdotisas, que zelam pelas divindades e pelo terreiro que pertence a uma divindade.
  • 11
    “Centro” é o termo utilizado durante o trabalho de campo que é análogo a terreiro, roça, ilê.
  • 12
    Para diferenciar as duas Dona Maria Mulambo, utilizarei os nomes com os quais elas se identificam e pelos quais são chamadas. Dessa forma, a pombogira que vem em terra no corpo do Doté Ricardo será identificada como Dona Mulambo e a que vem em terra no corpo do babalorixá David será denominada Dona Maria.
  • 13
    Essa é a forma com que Dona Maria se refere ao orixá.
  • 14
    Aproximação da entidade na pessoa sem estar completamente encarnada.
  • 15
    Grupo de objetos onde a entidade ou orixá são assentados, tornando-se seu corpo. No candomblé os orixás, bem como as pombogiras e exus, são assentados, uma forma de fixá-los em objetos que serão então seus assentamentos. O assentamento se torna uma composição entre o lado espiritual e o encarnado onde é possível ativar a presença da pombogira.
  • 16
    Pessoa cujo a entidade ocupa o corpo, matéria.
  • 17
    “Sotaque” é uma expressão muito comum em Salvador, sendo uma forma de falar uma indireta para alguém presente, que nem todos vão compreender, mas certamente a pessoa para quem é direcionada vai entender. O sotaque é muito utilizado pelas pombogiras. Para melhor compreensão do uso do sotaque, ver Lopes (2012).
  • 18
    Título e cargo masculino atribuído a quem deve proteger e auxiliar o terreiro. Dentre as suas funções está a de tocar atabaque para chamar as entidades.
  • 19
    “Ogã da Bahia” era uma das formas que Dona Maria se referia a mim.
  • 20
    Confirmação.
  • 21
    Uma das formas de se referir a pombogira.
  • 22
    André e Sun são ogãs do Ilê Axé Obá Ti Ogum.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2025
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2025

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2024
  • Aceito
    13 Set 2024
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