Resumos
Neste artigo tomo como ponto de partida a possibilidade de pensar os "patrimônios culturais" em termos etnográficos, analisando-os enquanto "fatos sociais totais", seguindo a rica noção elaborada por Marcel Mauss. A proposta é explorar o potencial descritivo e analítico da categoria patrimônio, apontando as suas múltiplas dimensões sociais e simbólicas, e discutindo os contornos semânticos que ela pode assumir no contexto da modernidade. Esse procedimento permite iluminar alguns dos seus aspectos definidores, expressos pelas categorias "ressonância", "materialidade" e "subjetividade", trazendo possivelmente uma contribuição para os debates teóricos e políticos sobre os usos do conceito antropológico de cultura.
autenticidade; memória; modernidade; patrimônios culturais
In this article I take as a starting point the very possibility of thinking the so called cultural heritages in ethnographic terms, analyzing them as a "fait social total", following this rich concept elaborated by Marcel Mauss. I propose to explore the descriptive and analytical power of the category "patrimony" (heritage), showing its multiple social and symbolic dimensions, and discussing its modern semantic features. By means of this procedure I hope to focus on some of its defining aspects which are expressed by such categories as "resonance", "materiality", and "subjectivity", thus possibly bringing a possible contribution to the theoretical and political debates about the uses of the anthropological concept of culture.
authenticity; cultural heritages; memory; modernity
ARTIGOS
Ressonância, materialidade e subjetividade: as culturas como patrimônios*
José Reginaldo Santos Gonçalves
Universidade Federal do Rio de Janeiro Brasil
RESUMO
Neste artigo tomo como ponto de partida a possibilidade de pensar os "patrimônios culturais" em termos etnográficos, analisando-os enquanto "fatos sociais totais", seguindo a rica noção elaborada por Marcel Mauss. A proposta é explorar o potencial descritivo e analítico da categoria patrimônio, apontando as suas múltiplas dimensões sociais e simbólicas, e discutindo os contornos semânticos que ela pode assumir no contexto da modernidade. Esse procedimento permite iluminar alguns dos seus aspectos definidores, expressos pelas categorias "ressonância", "materialidade" e "subjetividade", trazendo possivelmente uma contribuição para os debates teóricos e políticos sobre os usos do conceito antropológico de cultura.
Palavras-chave: autenticidade, memória, modernidade, patrimônios culturais.
ABSTRACT
In this article I take as a starting point the very possibility of thinking the so called cultural heritages in ethnographic terms, analyzing them as a "fait social total", following this rich concept elaborated by Marcel Mauss. I propose to explore the descriptive and analytical power of the category "patrimony" (heritage), showing its multiple social and symbolic dimensions, and discussing its modern semantic features. By means of this procedure I hope to focus on some of its defining aspects which are expressed by such categories as "resonance", "materiality", and "subjectivity", thus possibly bringing a possible contribution to the theoretical and political debates about the uses of the anthropological concept of culture.
Keywords: authenticity, cultural heritages, memory, modernity.
Nous avons beaucoup trop tendence à croire que nos divisions sont des fatalités de l'ésprit humain; les catégories de l'ésprit humain changeront encore et ce qui semble bien établi dans les ésprits sera un jour complètement abandonné.
Marcel Mauss, Manuel d'Etnographie
Patrimônios. m. [ ] 1. herança familiar 2. conjunto dos bens familiares 3. fig. Grande abundância; riqueza; profusão (p. artístico) 4. bem ou conjunto de bens naturais ou culturais de importância reconhecida num determinado lugar, região, país, ou mesmo para a humanidade, que passa(m) por um processo de tombamento para que seja(m) protegido(s) e preservado(s) [ ] 5. JUR. Conjunto dos bens, direitos e obrigações economicamente apreciáveis, pertencentes a uma pessoa ou a uma empresa [ ].
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa
Neste artigo exploro alguns limites da categoria "patrimônio" ou, mais precisamente, o seu potencial analítico para o entendimento da vida social e cultural. Em outras palavras, proponho responder a seguinte questão: o que podemos aprender sobre a noção de "cultura", ao usarmos a noção de "patrimônio"? Referimo-nos usualmente ao "patrimônio cultural", ou seja, às dimensões "culturais" do patrimônio. Mas não teríamos algo a aprender com o esforço de focalizar o que poderíamos nomear como "as dimensões patrimoniais da cultura"? Que aspectos da cultura a exploração analítica da noção de patrimônio poderia iluminar, e que estariam supostamente inibidos nas teorias antropológicas? Sugiro que esses aspectos sejam expressos por algumas categorias específicas, dentre as quais selecionei três: 1) ressonância; 2) materialidade; e 3) subjetividade.
Nos últimos anos venho estudando sistematicamente a categoria "patrimônio", distinguindo os diversos significados que ela pode assumir em suas variações no tempo e no espaço. Focalizando seus usos sociais e simbólicos, tenho problematizado as noções modernas de "patrimônio cultural", mostrando situações que se caracterizam pela inserção do patrimônio em totalidades cósmicas e morais, onde suas fronteiras são bem pouco delimitadas. Tenho sublinhado ainda que os "patrimônios culturais" seriam entendidos mais adequadamente se situados como elementos mediadores entre diversos domínios social e simbolicamente construídos, estabelecendo pontes e cercas entre categorias cruciais, tais como passado e presente, deuses e homens, mortos e vivos, nacionais e estrangeiros, ricos e pobres, etc. Nesse sentido, tenho sugerido a possibilidade de pensar o patrimônio em termos etnográficos, analisando-o como um "fato social total", seguindo a rica noção de Marcel Mauss (2003, p. 185-318), e desnaturalizando seus usos nos modernos "discursos do patrimônio cultural" (Gonçalves, 1999, 2000, 2001, 2002, 2003a, 2003b, 2004).1
A palavra "patrimônio" está entre as que usamos com mais freqüência no cotidiano. Falamos dos patrimônios econômicos, dos patrimônios imobiliários; referimo-nos ao patrimônio econômico e financeiro de uma empresa, de um país, de uma família, de um indivíduo; usamos também a noção de patrimônios culturais, arquitetônicos, históricos, artísticos, etnográficos, ecológicos, genéticos; sem falar nos chamados patrimônios intangíveis, de recente formulação. Não parece haver limite para o processo de qualificação dessa palavra.
São muitos os estudos que afirmam que essa categoria constitui-se em fins do século XVIII, juntamente com os processos de formação dos Estados nacionais. O que não é incorreto. Omite-se no entanto o seu caráter milenar e sua ampla distribuição geográfica. Ela não é simplesmente uma invenção estritamente moderna. Está presente no mundo clássico, na Idade Média e a modernidade ocidental apenas impõe os contornos semânticos específicos que ela veio a assumir (Fumaroli, 1997, p. 101-116). Podemos dizer que, enquanto uma categoria de pensamento, ela se faz presente mesmo nas chamadas "culturas primitivas". Estamos provavelmente diante de uma categoria extremamente importante para a vida social e mental de qualquer coletividade humana.
Evidentemente, nem todas as sociedades ou culturas humanas constituem, de forma dominante, patrimônios acumulados e retidos com finalidades de troca mercantil. Muitas são aquelas cujo processo de acumulação de bens tem como propósito a sua redistribuição ou mesmo a sua ostensiva destruição, como nos casos clássicos do kula trobriandês e do potlatch no Noroeste americano (Malinowski, 1976; Mauss, 2003, p. 185-318). Nesses contextos, cabe assinalar, existem também os chamados "bens inalienáveis", cuja natureza é definida pela impossibilidade social e simbólica de circularem amplamente, desenhando assim hierarquias fundamentais (Weiner, 1992).
O que é preciso colocar em foco nessa discussão, penso, é a possibilidade de se transitar analiticamente com essa categoria entre diversos mundos sociais e culturais, iluminando-se as diversas formas que pode assumir. Em outras palavras: como é possível usar a noção de patrimônio em termos comparativos? Em que medida pode nos ser útil para também entender experiências estranhas à modernidade?
Ressonância
A noção de patrimônio confunde-se com a de propriedade. Mais precisamente com uma propriedade que é herdada, em oposição àquela que é adquirida. A literatura etnográfica está repleta de exemplos de culturas nas quais os bens materiais não são classificados como objetos separados dos seus proprietários. Esses bens, por sua vez, nem sempre possuem atributos estritamente utilitários. Em muitos casos, servem evidentemente a propósitos práticos, mas possuem, ao mesmo tempo, significados mágico-religiosos e sociais, constituindo-se em verdadeiras entidades, dotadas de espírito, personalidade, vontade, etc. Não são desse modo meros objetos. Se por um lado são classificados como partes inseparáveis de totalidades cósmicas e sociais, por outro lado afirmam-se como extensões morais e simbólicas de seus proprietários, são extensões destes, sejam indivíduos ou coletividades, estabelecendo mediações cruciais entre eles e o universo cósmico, natural e social. Marcel Mauss (2003, p. 136-137) assinalou certa vez que "[ ] se a noção de espírito nos pareceu ligada à de propriedade, inversamente esta liga-se àquela. Propriedade e força são dois termos inseparáveis; propriedade e espírito se confundem [ ]". Essa categoria de objetos não apresenta assim fronteiras classificatórias muito definidas, sendo ao mesmo tempo objetos e sujeitos, materiais e imateriais, naturais e culturais, sagrados e profanos, divinos e humanos, masculinos e femininos, etc.2
Nas análises dos modernos discursos do patrimônio cultural, a ênfase tem sido posta no seu caráter "construído" ou "inventado". Cada nação, grupo, família, enfim cada instituição construiria no presente o seu patrimônio, com o propósito de articular e expressar sua identidade e sua memória. Esse ponto tem estado e seguramente deve continuar presente nos debates sobre o patrimônio. Ele é decisivo para um entendimento sociológico dessa categoria. Um fato, no entanto, parece ficar numa área de sombra dessa perspectiva analítica. Trata-se daquelas situações em que determinados bens culturais, classificados por uma determinada agência do Estado como patrimônio, não chegam a encontrar respaldo ou reconhecimento junto a setores da população. O que essa experiência de rejeição parece colocar em foco é menos a relatividade das concepções de patrimônio nas sociedades modernas (aspecto já excessivamente sublinhado) e mais o fato de que um patrimônio não depende apenas da vontade e decisão políticas de uma agência de Estado. Nem depende exclusivamente de uma atividade consciente e deliberada de indivíduos ou grupos. Os objetos que compõem um patrimônio precisam encontrar "ressonância" junto a seu público.
Aqui faço uso dessa noção, tal como a utiliza o historiador Stephen Greenblatt. Diz ele:
Por ressonância eu quero me referir ao poder de um objeto exposto atingir um universo mais amplo, para além de suas fronteiras formais, o poder de evocar no expectador as forças culturais complexas e dinâmicas das quais ele emergiu e das quais ele é, para o expectador, o representante. (Greenblatt, 1991, p. 42-56, grifo do autor, tradução minha).3
No processo de construção dessas instituições situadas entre a memória e a história (tais como o patrimônio, as coleções, os museus, os monumentos, os arquivos), opera-se um trabalho cuidadoso de eliminação das ambigüidades. Substituem-se categorias sensíveis, ambíguas e precárias (por exemplo, cheiro, paladar, tato, audição) por categorias abstratas e com fronteiras nitidamente delimitadas com a função de representar memórias e identidades. Essa eliminação da ambigüidade e da precariedade dos patrimônios culturais pode colocar em risco o seu poder de ressonância, seu poder de "evocar no expectador as forças culturais complexas e dinâmicas de onde eles emergiram" (Greenblatt, 1991, p. 42-56, tradução minha).
O que pretendo colocar em foco é precisamente a ambigüidade presente na categoria patrimônio, aspecto definidor de sua própria natureza, uma vez que liminarmente situada entre o passado e o presente, entre o cosmos e a sociedade, entre a cultura e os indivíduos, entre a história e a memória. Nesse sentido, algumas modalidades de patrimônio podem servir como formas de comunicação criativa entre essas dimensões, comunicação realizada existencialmente no corpo e na alma dos seus proprietários.
Mais precisamente, quero chamar a atenção para o fato de que o acesso que o patrimônio possibilita, por exemplo, ao passado não depende inteiramente de um trabalho consciente de construção no presente, mas, em parte, do acaso. Se por um lado construímos intencionalmente o passado, este, por sua vez, incontrolavelmente se insinua, à nossa inteira revelia, em nossas práticas e representações. Desse modo, o trabalho de construção de identidades e memórias coletivas não está evidentemente condenado ao sucesso. Ele poderá, de vários modos, não se realizar. Um texto de Marcel Proust (1998, p. 48) pode talvez iluminar esse ponto:
É assim com nosso passado. Trabalho perdido procurar evocá-lo, todos os esforços de nossa inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto, fora de seu domínio e de seu alcance, em algum objeto material (na sensação que nos daria esse objeto material) que nós nem suspeitamos. Esse objeto, só do acaso depende que o encontremos antes de morrer, ou que não o encontremos nunca.
Proust se referia certamente à memória individual, mas talvez possamos estender suas reflexões às memórias coletivas, sofisticando assim o entendimento do seu processo de produção.
Materialidade
Outro ponto importante a ser considerado é o fato de que o patrimônio sempre foi e é "material". Tanto é assim que foi necessário, nos discursos contemporâneos, criar a categoria do "imaterial" ou do "intangível" para designar aquelas modalidades de patrimônio que escapariam de uma definição convencional limitada a monumentos, prédios, espaços urbanos, objetos, etc. É curioso, no entanto, o uso dessa noção para classificar bens tão tangíveis e materiais quanto lugares, festas, espetáculos e alimentos.
De certo modo, essa noção expressa a moderna concepção antropológica de cultura, na qual a ênfase está nas relações sociais, ou nas relações simbólicas, mas não especificamente nos objetos materiais e nas técnicas. A categoria "intangibilidade" talvez esteja relacionada a esse caráter desmaterializado que assumiu a moderna noção antropológica de "cultura". Ou, mais precisamente, ao afastamento dessa disciplina, ao longo do século XX, em relação ao estudo de objetos materiais e técnicas (Schlanger, 1998).
Um dos possíveis corretivos proporcionados pelo uso analítico da categoria "patrimônio" em relação às teorias antropológicas seja talvez o colocar em primeiro plano a materialidade da cultura. Não há como falar em patrimônio sem falar de sua dimensão material.4
Mas o que é importante considerar é que se trata de uma categoria ambígua e que na verdade transita entre o material e o imaterial, reunindo em si as duas dimensões. O material e o imaterial aparecem de modo indistinto nos limites dessa categoria. A noção de patrimônio cultural desse modo, enquanto categoria do entendimento humano, na verdade rematerializa a noção de "cultura" que, no século XX, em suas formulações antropológicas, foi desmaterializada em favor de noções mais abstratas, tais como estrutura, estrutura social, sistema simbólico, etc.5
Um autor brasileiro, que elabora em sua obra uma concepção peculiar do patrimônio cultural, assinala a importância do que ele chama "elementos humildes e de uso cotidiano". Em seu livro Rede-de-Dormir: um Estudo Etnográfico, publicado na década de 1950, Luis da Câmara Cascudo (1983, p. 17) assinala a inexistência de estudos sobre esse objeto, e comenta:
Certos temas dão prestígio ao pesquisador, e outros exigem uma prodigiosa retórica para valorizá-los. Um livro sobre educação, finanças, economia, assistência social, higiene, nutricionismo, empresta ao autor um ar de competência severa, de idealismo prático, de atenção aos "altos problemas". Quem vai se convencer da necessidade de uma pesquisa etnográfica sobre a rede-de-dormir, a rede que nunca mereceu as honras de atenção maior e é olhada de raspão pelos mestres de todas as línguas sábias?6
Muitos desses objetos podem ser certamente entendidos como "patrimônios", na medida em que, pela sua ressonância junto a grande parte da população brasileira, realizam mediações importantes entre o passado e o presente, entre o imaterial e o material, entre a alma e o corpo, entre outras.
Evidentemente as monografias clássicas da antropologia estão repletas de dados sobre objetos materiais e seus usos. Seu entendimento, entretanto, a partir das categorias teóricas dessa disciplina, tende a ser concebido a partir de suas funções sociais ou de suas funções simbólicas, deixando em segundo plano a especificidade, a forma e a materialidade desses objetos e de seus usos por meio de técnicas corporais. O fato importante a considerar é que, se nos colocarmos do ponto de vista nativo, a vida social não seria possível sem esses objetos materiais e sem as técnicas corporais que eles supõem. O que seria o kula sem os colares, braceletes, sem as canoas e todo o conjunto de técnicas necessárias à sua construção e ao seu uso?
É possível que a categoria do patrimônio, tal como a estamos explorando, sublinhe, entre outras, essa dimensão material da vida social e cultural. E, ao lado dessa dimensão material, é preciso assinalar a dimensão fisiológica, ou mais precisamente, o uso de técnicas corporais. Objetos sempre implicam usos determinados do corpo. Afinal, pergunta Marcel Mauss: o que é um objeto se ele não é manuseado?7 Objetos materiais e técnicas corporais, por sua vez, não precisam ser necessariamente entendidos como simples "suportes" da vida social e cultural (como tendem a ser concebidos em boa parte da produção antropológica). Mas podem ser pensados, em sua forma e materialidade, como a própria substância dessa vida social e cultural. Muitos estudos enfatizam corretamente o fato de que os objetos fazem parte de um sistema de pensamento, de um sistema simbólico, mas deixam em segundo plano o fato de que eles existem na medida em que são usados por meio de determinadas "técnicas corporais" em situações sociais e existenciais (e não apenas em termos conceituais e abstratos). Eles não são apenas "bons para pensar", mas igualmente fundamentais para se viver a vida cotidiana. Desse modo, é necessário pesquisar como, por exemplo, as roupas são produzidas, como são adquiridas, e sobretudo como são usadas, por meio de quais técnicas corporais, como se desfazem das roupas, como elas deixam de ser usadas, como saem de moda, sendo reclassificadas, etc. Mais especificamente: é preciso descrever como cada um desses processos é mediado pelas "técnicas corporais" (Mauss, 2003, p. 401-408) que integram esses sistemas.
A fim de tornar esse ponto mais preciso, talvez seja útil trazer aqui a análise que Luis da Câmara Cascudo desenvolve sobre o objeto desse seu já citado estudo etnográfico: a "rede-de-dormir". Enquanto um objeto material, a rede é indissociável de relações sociais, morais, mágico-religiosas, existindo portanto enquanto parte indissociável de totalidades cósmicas e sociais. Mais precisamente, ela desempenha um papel fundamental no processo de mediação sensível entre as diversas oposições que compõem essas totalidades.
Em seu livro, Cascudo afirma que, adotada no século XVI pelos colonizadores europeus, a rede-de-dormir passa a integrar a vida cotidiana da colônia, de forma bastante extensiva, até meados do século XIX, quando vem a ser progressivamente substituída pela "cama" (considerada então como um objeto "civilizado", por oposição à rede, que será associada à "barbárie", ao "atraso").
No período colonial, no entanto, afirma esse autor:
Dentro e fora do âmbito das vilas e povoações, engenhos de açúcar e primeiros currais de gado, a rede foi uma constante. Adotaram-na como solução prática e natural. Evitava-se o transporte dos pesados leitos de madeira que vinham de Portugal e só posteriormente começaram a ser carpinteirados no Brasil. (Cascudo, 1983, p. 23).
Ao longo do período colonial, a rede-de-dormir é usada com várias funções no ciclo de atividades diárias:
Estando constantemente armada (como no sertão nordestino as redes acolhedoras viviam nos alpendres e latadas) servia de cadeira, escabelo, mocho para o descanso. Nela o visitante participava da refeição e dormia seu sono. Era uma tentativa de acomodação raramente infrutífera. Nela conversava, mercadejava, fazia planos, concertava alianças, discutia, propunha, ajustava.(Cascudo, 1983, p. 24).
Além, evidentemente, de seu uso para o sono noturno ou para a sesta.
As redes podiam servir ainda como meio de transporte. Durante o período colonial, em Salvador, em Recife, como no Rio de Janeiro, "[ ] a rede coberta com um dossel bordado [chamada de serpentina], levada por dois africanos [era] o meio regular de transporte urbano da sociedade mais alta" (Cascudo, 1983, p. 26). "A rede para descansar, amar, dormir, tornou-se também indispensável como viatura. Carregava a gente de prol nas ruas e mesmo para o interior das igrejas" (Cascudo, 1983, p. 27-28).
A rede podia e pode ainda ser usada como meio de transporte e enterro de defuntos. Faz-se, desse modo, presente no ponto derradeiro do ciclo de vida dos indivíduos, atualizando também nesse momento a sua íntima vinculação com o corpo dos seus usuários.
Sendo seu uso comum às diversas categorias sociais, dos níveis mais inferiores aos mais altos, dos escravos aos senhores, dos pobres aos ricos, a rede não poderia deixar de expressar, em suas cores e formas, as marcas da distinção social:
Quando as redes eram feitas, unidade por unidade, e não em séries, mecanicamente, estavam todas dentro de moldes fiéis às conveniências tradicionais. Os tipos tinham seus destinos, previstos, antecipados, sabidos. Eram quase sempre " redes de encomenda" e obedeciam aos modelos inalteráveis nas dimensões e cores. Azul, encarnado, amarelo, verde, eram as tonalidades preferidas, evitando-se as que sugerissem tristeza, viuvez, luto, morte, o lilás, o roxo, o negro, para os lavores e bordados ornamentais. As redes em branco-e-negro tiveram mercado depois de 1889. O comum, antigamente no Nordeste, era a rede branca como a mais vistosa e digna dos ricos pelo aspecto imaculado, exigindo cuidados e desvelos na conservação. As redes de cor não eram as mais caras e nem as melhores, prendas de coronéis e fazendeiros, senhores de engenho e vigários colados da freguesia, ou qualquer autoridade mandona. Ficavam nas residências medíocres e menos prestigiosas. O estilo era uma só cor, com nuanças e gradações. Redes com enfeites de mais de uma cor, apapagaiada, não merecia aceitamento de gente ilustre. As redes brancas eram as tradicionais da aristocracia rural, com varandas, varrendo o chão [ ]" (Cascudo, 1983, p. 119, grifo do autor).
As "varandas" eram as franjas que ornavam certos tipos de rede e tinham um significado social:
O tamanho das varandas, com as fímbrias orladas de bolinhas, [ ], figurava como honraria. As redes de escravos, as redes pobres, não tinham varandas. As redes comuns, compradas nas feiras, fabricadas comumente, tinham varandas curtas. Uma alta distinção, sinal de poderio, era ver-se alguém em rede branca, com as varandas quase arrastando no solo. Como as redes eram feitas sob encomenda unicamente para as pessoas graduadas vinham varandas compridas. (Cascudo, 1983, p. 122, grifo do autor).
As redes eram também, segundo Cascudo, alvo de uma série de atitudes rituais:
A soberania dos fazendeiros compreendia a rede como expressão legítima da própria grandeza. Botar a mão no punho da rede onde estivesse deitado um desses chefes onipotentes era sinal de privança, initimidade, confiança. Falar segurando o punho da rede era o mesmo que acobertar-se debaixo do manto ducal. O protocolo era a fala de pé, diante da rede, respeitando a distância cautelosa. (Cascudo, 1983, p. 122, grifo do autor).
E continua:
Coerentemente, cortar os punhos da rede senhorial era um desafio supremo, equivalente a cortar a cauda do cavalo de estimação. Nas guerrilhas políticas, até quase finais do século XIX, surpreendendo um bando inimigo à Casa Grande indefesa, nunca esquecia o chefe de deixar o sinal do atrevimento inapagável: o punho da rede cortado a facão. Era pior do que incendiar a casa inteira. Cortei-lhe o punho da rede, orgulhava-se o vencedor ocasional até a inevitável represália. (Cascudo, 1983, p. 123, grifo do autor).
Na medida em que é pensada como uma extensão do corpo do seu proprietário, ela o acompanha em seus diversos deslocamentos sociais e simbólicos. A rede pode estar no interior da casa, no alpendre, nas ruas e estradas. Ela o acompanha não apenas fisicamente, mas moralmente. Ela torna-se uma espécie de extensão material e estética de sua condição social e moral:
A rede representa o mobiliário, o possuído, a parte essencial, estática, indivisível do seu dono. [ ] Ainda hoje o sertanejo nordestino obedece ao secular padrão. A rede faz parte do seu corpo. É a derradeira coisa de que se despoja diante da miséria absoluta. (Cascudo, 1983, p. 25).
O eixo de toda sua descrição e análise da rede-de-dormir está, me parece, na relação fundamental entre o corpo e a cultura. O que os usos desse objeto evidenciam é o seu significado como extensão do corpo e do self. O vínculo percebido por Cascudo entre a rede e o corpo vai ser enfatizado quando ele opõe o uso da rede ao uso da cama. Trata-se de uma oposição que é, ao mesmo tempo, material, histórica, social, cultural, moral, estética, econômica; mas uma oposição cuja dimensão fisiológica parece desempenhar um papel fundamental na sua concepção de cultura. Comparando as relações entre o corpo, a rede e a cama, ele afirma:
O leito obriga-nos a tomar seu costume, ajeitando-nos nele, numa sucessão de posições. A rede toma o nosso feitio, contamina-se com os nossos hábitos, repete, dócil e macia, a forma de nosso corpo. A cama é hirta, parada, definitiva. A rede é acolhedora, compreensiva, coleante, acompanhando tépida e brandamente, todos os caprichos de nossa fadiga. Desloca-se, incessantemente renovada, à solicitação física do cansaço. Entre ela e a cama há a distância da solidariedade à resignação. (Cascudo, 1983, p. 13).
É possível surpreender nessa descrição simultaneamente o objeto em sua materialidade, sua forma e em seus usos sociais e simbólicos. Mais que a expressão emblemática de uma sociedade ou uma camada social determinada, esse objeto e seus usos parecem na verdade colocar essa sociedade em movimento.8 E mais precisamente, no caso específico da rede de dormir, num movimento pendular, definido pela adaptabilidade ao cosmos. A rede faz mediações sensíveis entre várias oposições, entre a fixidez e o deslocamento, entre o interior e exterior, o privado e o público, entre o céu e a terra, entre o self e o mundo. O uso desse objeto articula material e simbolicamente uma forte valorização de uma subjetividade que se define precisamente não pela ação disciplinada e voluntariosa por meio da qual se impõe sobre o mundo, o que caracterizaria a chamada moderna subjetividade ocidental, mas, ao invés, pela sua plasticidade e adaptação a esse mundo.9
Subjetividade
O que pretendi ressaltar nessa exposição foi a possível utilidade analítica da noção de "patrimônio" para iluminar determinados aspectos da vida social e cultural, especificamente sua "ressonância", sua "materialidade" e, concomitantemente, a presença incontornável do corpo e suas técnicas. Volto-me agora para o papel fundamental que desempenha a categoria do patrimônio no processo de formação de subjetividades individuais e coletivas. Em outras palavras, não há patrimônio que não seja ao mesmo tempo condição e efeito de determinadas modalidades de autoconsciência individual ou coletiva.10 Quero dizer que entre o patrimônio e as formas de autoconsciência individual ou coletiva existe uma relação orgânica e interna e não apenas uma relação externa e emblemática. Em outras palavras, não há subjetividade sem alguma forma de patrimônio.
A fim de desenvolver nosso raciocínio, cabe distinguir inicialmente dois significados que assumiram historicamente as concepções de cultura. De um lado uma concepção clássica, na qual a cultura é pensada como processo de auto-aperfeiçoamento humano. De outro, uma concepção moderna, vigente sobretudo a partir do século XVIII, fundada no pensamento do filósofo alemão Johann Gottfried Herder (1744 -1803) e segundo a qual as culturas seriam expressões orgânicas da identidade dos diversos grupamentos humanos. No primeiro caso, a noção de cultura está associada à idéia de trabalho, de esforço constante e consciente no sentido de formar e aperfeiçoar os seres humanos. No segundo, ela é pensada fundamentalmente como expressão da alma coletiva, assumindo o sentido relativista que veio marcar a história da antropologia ao longo do século XX.
O ponto importante a ser considerado no entanto é a repercussão desses dois entendimentos da cultura nos usos da categoria patrimônio. Se, por um lado, este pode ser entendido como a expressão de uma nação ou de um grupo social, algo portanto herdado, por outro, ele pode ser reconhecido como um trabalho consciente, deliberado e constante de reconstrução. Se os dois lados estão presentes na categoria patrimônio, este parece funcionar como uma espécie de mediador sensível entre essas duas importantes dimensões da noção de cultura. Os patrimônios podem assim exercer uma mediação entre os aspectos da cultura classificados como "herdados" por uma determinada coletividade humana e aqueles considerados como "adquiridos" ou "reconstruídos", resultantes do permanente esforço no sentido do auto-aperfeiçoamento individual e coletivo.
Uma outra oposição parece existir ainda de modo tenso nos limites dessa categoria: o universal e o singular. Ernst Cassirer (2001, p. 28-29) chama nossa atenção para um dilema importante:
Se nos ativermos à exigência da unidade lógica, a individualidade de cada campo e a característica do seu princípio correm o risco de dissolver-se na universalidade da forma lógica; se, em contrapartida, mergulhamos nesta mesma individualidade e nos limitarmos à sua análise, há o perigo de nos perdermos nela e de não encontrarmos mais o caminho de volta para o universal.11
É possível que o patrimônio ou mais precisamente, o patrimônio segundo o modo como o estamos articulando, enquanto uma categoria de pensamento nos possibilite uma mediação entre esses extremos. Ela talvez permita surpreender de modo tenso e simultâneo aspectos da cultura que são apenas parcimoniosamente iluminados por teorias classificadas como universalistas (das quais seria um exemplo notável a obra de Claude Lévi-Strauss), ou por teorias classificadas como relativistas (entre as quais merece destaque a obra de Clifford Geertz). Afinal, os patrimônios são sempre concretos e específicos, embora não irredutivelmente singulares, e universais, embora essa universalidade seja sempre de natureza concreta e contingente.
É possível que aí possamos reconhecer a presença do que Marcel Mauss chamou de "arbitrário cultural":
Todo fenômeno social possui efetivamente um atributo essencial: seja ele um símbolo, uma palavra, um instrumento, uma instituição, seja ele a língua ou a ciência mais bem feita, seja ele o instrumento que melhor se adapte aos melhores e mais numerosos fins, seja ele o mais racional possível, o mais humano, ainda assim ele é arbitrário. (Mauss, 1979, p. 192-193, grifo do autor).
Na medida em que "arbitrários", os patrimônios não estão centrados na sociedade, na história ou na natureza; eles próprios é que, na verdade, constituem um centro que é histórica e culturalmente constituído, podendo assumir múltiplas formas no tempo e no espaço formas institucionais, rituais, textuais. Nesse sentido poderíamos dizer que uma instituição como o potlatch do noroeste americano estudado por Marcel Mauss (2003, p. 185-318); a cerimônia trobriandesa do kula, objeto de uma monografia clássica escrita por Bronislaw Malinowski (1976); a feitiçaria zande interpretada por E. E. Evans-Pritchard (1978); as diversas modalidades de totemismos analisados por Claude Lévi-Strauss (1962); as brigas de galo em Bali analisadas por Clifford Geertz (1978); a figura do "narrador" em sua forma tradicional, analisado em um belíssimo texto por Walter Benjamin (1986b); os "antagonismos em equilíbrio" que iluminam a análise do sistema patriarcal brasileiro por Gilberto Freyre (Araújo 1995); objetos materiais como a rede-de-dormir estudada por Luis da Câmara Cascudo (1983); as alegorias do carnaval carioca analisadas por Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (1994); alguns dos padrões culinários brasileiros em estudos como os de Eunice Maciel (2004); ou ainda a música popular e suas relações com a música erudita no contexto do modernismo brasileiro, em brilhante estudo de Santuza Naves (1998); esses exemplos, ao lado de tantas outras instituições, práticas, ritos, objetos materiais, e suas respectivas representações textuais, podem ser pensados como "patrimônios".
Mas, cabe perguntar: afinal, em que essas instituições, cerimônias e objetos materiais se tornam diferentes quando pensados enquanto "patrimônios" o patrimônio aqui entendido enquanto categoria de pensamento e reconhecido seu potencial analítico? Qual a vantagem enfim de entendê-los como "patrimônios"?
Eu arriscaria dizer que, à luz dessa categoria, aquelas instituições, ritos e objetos podem ser percebidos simultaneamente em sua universalidade e em sua especificidade; reconhecidos ao mesmo tempo como necessários e contingentes; adquiridos (ou construídas e reproduzidas no tempo presente) e ao mesmo tempo herdados (recebidos dos antepassados, de divindades, etc.); simultaneamente materiais e imateriais; objetivos e subjetivos; reunindo corpo e alma; ligados ao passado, ao presente e ao futuro; próximos, ao mesmo tempo em que distantes; assumindo tanto formas sociais quanto formas textuais (por exemplo, nas etnografias e nos ensaios em que foram representados).12 O sentido fundamental dos "patrimônios" consiste talvez em sua natureza total e em sua função eminentemente mediadora.
Aproximamo-nos aqui da noção de "cultura autêntica" (em oposição à "cultura espúria" ou "enlatada") tal como formulada num artigo clássico de Edward Sapir (1985). "A cultura autêntica", afirma, "não é necessariamente alta ou baixa; é apenas inerentemente harmoniosa, equilibrada e auto-satisfatória. Ela é a expressão de uma atitude ricamente diversificada diante da vida e ainda assim consistente, uma atitude que vê a significação de qualquer elemento da civilização em sua relação com todos os outros" (Sapir, 1985, p. 315, tradução minha). Uma forma autêntica de cultura não pode portanto jamais ser entendida como "[ ] uma soma de finalidades abstratamente desejáveis, como um mecanismo" (Sapir, 1985, p. 316, tradução minha), dentro do qual o indivíduo seja apenas uma peça (Sapir, 1985, p. 315). Para esse autor, a "cultura autêntica" não está baseada numa oposição verdadeira entre o "indivíduo culturalizado" e o "grupo cultural" (Sapir, 1985, p. 321-322). Para ele, o indivíduo não preexiste às formas culturais, mas é, até certo ponto, um efeito dessas formas culturais. No entanto, e aí está a diferença, para Sapir essas formas não são entidades objetificadas esperando para serem descritas e analisadas. Quando são autênticas, essas formas não se dissociam dos indivíduos, e estes as sentem como parte deles, como sua criação e não com algo estranho. A cultura, segundo Sapir, quando autêntica, é vivida pelos indivíduos como uma experiência de criação, de transformação. Nela o indivíduo é pensado "[ ] como um núcleo de valores cultuais vivos" (Sapir, 1985, p. 318, tradução minha). Em resumo, a cultura, quando autêntica, não se impõe de fora sobre os indivíduos, mas de dentro para fora, sendo uma expressão da criatividade destes.
Outro aspecto igualmente importante na sua compreensão das "culturas autênticas" é "[ ] a atitude adotada em relação ao passado, suas instituições, seus tesouros de arte e pensamento" (Sapir, 1985, p. 325, tradução minha). Esse passado, no contexto dessas culturas, não existem na forma como determinados objetos são apreciados através das vitrines dos museus. Na verdade, afirma Sapir, "[ ] o passado é de interesse cultural apenas quanto ele está ainda presente e pode tornar-se o futuro" (Sapir, 1985, p. 325, tradução minha). Esse aspecto, cabe sublinhar, mantém uma ostensiva afinidade com a categoria "patrimônio", tal como a estamos explorando nestas reflexões. Ele articula-se intimamente com a dimensão da subjetividade, uma vez que esta pressupõe sempre alguma forma específica de continuidade entre passado, presente e futuro.
O que desejo ressaltar ao trazer essa concepção de "cultura autêntica", tal como é formulada por Sapir, não é evidentemente legitimar as estratégias intelectuais correntes que condenam certas formas culturais à "inautenticidade" enquanto congelam outras na condição de "autênticas". Nem era tampouco o objetivo daquele autor, embora estivesse então motivado por uma atitude de crítica da cultura moderna, e particularmente da cultura norte-americana. Já tive oportunidade de num artigo chamar a atenção para a necessária discussão da autenticidade enquanto categoria de pensamento e sua relevância nos debates culturais (Gonçalves, 1996, 2000). O que sublinho é a utilidade dessa noção de "cultura autêntica" como um instrumento conceitual para interromper todo e qualquer processo de definição e objetificação de formas culturais. Explorando as conseqüências analíticas mais importantes do texto de Sapir, poderíamos dizer que a cultura autêntica é precisamente o que escapa de toda e qualquer definição, classificação e identificação precisa e objetificadora, tal como ocorre nos discursos de patrimônio cultural em seu sentido moderno, especialmente quando articulados por agências do Estado. São exatamente as formas de "cultura autêntica" que necessariamente escapam das redes desses discursos.
Num ensaio de 1933, Experiência e Pobreza, Walter Benjamin perguntava: "[ ] qual o valor de todo nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós?" (Benjamin, 1986a, p. 196). Numa perspectiva identificada como "crítica da cultura", o autor apontava a "perda da experiência" como uma característica da modernidade. No entanto, é possível que, se concebemos os patrimônios do ponto de vista etnográfico, se abrimos essa categoria e exploramos suas outras dimensões, podemos encontrar formas de patrimônio cultural no mundo contemporâneo que estejam fortemente ligadas à experiência. Assim como as festas religiosas populares, quando consideradas do ponto de vista dos devotos e suas relações de troca com determinadas divindades (Gonçalves, 2003b). Essa dimensão existe numa permanente tensão com aquela outra, na qual as festas são classificadas a partir do ponto de vista de agências do Estado (e parcialmente assumida pelos próprios devotos) como formas de "patrimônio cultural", "patrimônio imaterial", etc.
As variações de significado nas representações sobre a categoria "patrimônio" oscilam possivelmente entre um patrimônio entendido como parte e extensão da experiência, e portanto do corpo, e um patrimônio entendido de modo objetificado, como coisa separada do corpo, como objetos a serem identificados, classificados, preservados, etc. Por um lado, um patrimônio inseparável do corpo e suas técnicas o corpo, que é, em si, um instrumento e um mediador social e simbólico entre o self e o mundo (Mauss, 2003, p. 401-424); e, por outro lado, um patrimônio individualizado e autonomizado, com a função de assumir o papel de "representação" ou de "expressão" emblemática de categorias que são transformadas em alguma forma de entidade, seja a nação, o grupo étnico, a região, a natureza, entre outras.
Penso que, uma vez submetidos a esse prisma analítico, os atuais discursos (e políticas) de patrimônio cultural talvez possam assumir formas menos onipotentes, interrompendo-se o esforço obsessivo de objetificação ou naturalização dos patrimônios na medida mesma em que esses discursos são expostos ao reconhecimento da natureza necessariamente ambígua e precária dos objetos que simultaneamente representam e constituem. Para o autor destas reflexões, esta seria evidentemente uma expectativa ambiciosa.
Recebido em 03/01/2005
Aprovado em 31/03/2005
Referências bibliográficas
- ARAÚJO, Ricardo Benzaquen. 1995 Guerra e paz: casa grande e senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
- BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 2. ed. São Paulo, Edunb: Uicitec, 1993.
- BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: BOLLE, Willi (Org.). Documentos de cultura, documentos de barbárie. São Paulo: Cultrix: Edusp, 1986a.
- BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: v. 1: magia e técnica, arte e política. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986b. p. 197-221.
- CANDIDO, Antonio. Ressonâncias. In: CANDIDO, Antonio. O albatroz e o chinês: ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004. p. 43-51.
- CASCUDO, Luis da Câmara. Rede de dormir: uma pesquisa etnográfica. Rio de Janeiro: Funarte: INF: Achiamé: UFRN, 1983.
- CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simbólicas São Paulo: Martins Fontes, 2001.
- CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: Minc/Funarte, 1994.
- CAVALCANTI, M. L. V. C.; GONÇALVES, J. R. S. Simbolismo e análise cultural: um estudo comparativo sobre o significado das festas na cultura popular. Projeto Integrado apresentado ao CNPq. Rio de Janeiro: PPGSA/IFCS/UFRJ, 2002.
- CLIFFORD, James. Experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Org. José Reginaldo Santos Gonçalves. 1. reimpressão. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2002.
- CLIFFORD, James. Objects and selves: an afterword. In: STOCKING, G. (Org.). Objects and others: essays on museums and material culture. Madison: The University of Wisconsin Press, 1985. p. 236-246.
- EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978.
- FUMAROLI, Marc. Jalons pur une histoires littéraire du patrimoine. In: NORA, Pierre (Ed.). Science et conscience du patrimoine Paris: Fayard, Éditions du Patrimoine, 1997.
- GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978.
- GOLDMAN, Harvey. Max Weber and Thomas Mann: calling and the shaping of the self. Berkeley: University of California Press, 1988.
- GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A obsessão pela cultura. In: PAIVA, Marcia de; MOREIRA, Maria Ester (Coord.). Cultura, substantivo plural Rio de Janeiro: CCBB: 34 Letras, 1996. p. 159-176.
- GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Coleções, museus e teorias antropológicas: reflexões sobre conhecimento etnográfico e visualidade. Cadernos de Antropologia e Imagem, Rio de Janeiro: Uerj, n. 8, p. 21-34, 1999.
- GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Cotidiano, corpo e experiência: reflexões sobre a etnografia de Luis da Câmara Cascudo. Revista do Patrimônio, Rio de Janeiro, n. 28, p. 74-81, 2000.
- GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Autenticidade, memória e ideologias nacionais: o problema dos patrimônios culturais. In: FRY, P.; ESTERCI, N.; GOLDENBERG, M. (Org.). Fazendo antropologia no Brasil Rio de Janeiro: DP&A: Fundação Capes, 2001. p. 15-33.
- GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Monumentalidade e cotidiano: os patrimônios culturais como gênero de discurso. In: OLIVEIRA, Lucia Lippi de. (Org.). Cidade: história e desafios. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002. p. 108-123.
- GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: discurso nacionalista e patrimônio cultural no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2003a.
- GONÇALVES, José Reginaldo Santos. O patrimônio como categoria de pensamento. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mario (Org.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A: Faperj: Unirio, 2003b. p. 21-29.
- GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A fome e o paladar: a antropologia nativa de Luis da Câmara Cascudo. Revista Estudos Históricos: alimentação, Rio de Janeiro: FGV, n. 33, p. 40-55, 2004.
- GREENBLATT, Stephen. Ressonance and wonder. In: KARP, Ivan; LAVINE, Steven L. (Ed.). Exhibiting cultures: the poetics and politics of museums diaplay. Washington: Smithsonian Institution Press, 1991. p. 42-56.
- GUMBRECHT, Hans Ulrich. O campo não-hermenêutico e a materialidade da comunicação. In: ROCHA, João Cezar de Castro. (Org.). Corpo e forma Rio de Janeiro: Ed. Uerj, 1998. p. 137-152.
- HANDLER, Richard. On having a culture: nationalism and the preservation of the Quebec's Patrimoine. In: STOCKING, G. (Org.). Objects and others: essays on museums and material culture. Madison: The University of Wisconsin Press, 1985. p. 192-217.
- LÉVI-STRAUSS, Claude. Le totémisme aujourd'hui Paris: PUF, 1962.
- MACIEL, Eunice. Uma cozinha brasileira. Revista Estudos Históricos: alimentação, Rio de Janeiro: FGV, n. 33, p. 25-39, 2004.
- MALINOWSKI, Bronislaw. Os argonautas do Pacífico ocidental Rio de Janeiro: Abril, 1976. (Coleção Os Pensadores).
- MAUSS, Marcel. Manuel d'ethnographie Paris:Payot, 1967.
- MAUSS, Marcel. Divisions et proportions des divisions de la sociologie. In: MAUSS, Marcel. Oeuvres: v. 3: cohésion sociale et divisions de la sociologie. Paris: Editions du Minuit, 1969. p. 178-245.
- MAUSS, Marcel. Civilizações: elementos e formas. In: CARDOSO, Roberto (Org.). Mauss São Paulo: Ática, 1979. p. 181-195. (Coleção Grandes Cientistas Sociais).
- MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia São Paulo: Cosac & Naif, 2003.
- NAVES, Santuza Cambraia. O violão azul: modernismo e música popular. Rio de Janeiro: FGV Editora, 1998.
- PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido: v. 1: no caminho de Swann. 19. ed. Trad. Mario Quintana. Porto Alegre: Globo, 1998.
- SAPIR, E. Culture, genuine and spurious. In: MANDELBAUM, David G. (Ed.). Selected writings in language, culture and personality Berkeley: University of California Press, 1985. p. 308-331.
- SCHLANGER, N. The study of techniques as an ideological challenge: technology, nation, and humanity in the work of Marcel Mauss. In: JAMES, W.; ALLEN, N. J. (Org.). Marcel Mauss: a centenary tribute. New York: Berghahn Books, 1998. p. 192-212.
- TURNER, Victor W. The forest of symbols Ithaca: Cornell University Press, 1967.
- WEBER, Max. The religion of China London: Collier Macmillan Publishers, 1951.
- WEBER, Max. El sentido de la "neutralidad" valorativa em las ciencias sociológicas e económicas. In: WEBER, Max: Ensayos sobre metodologia sociológica Buenos Aires: Amorrotu, 1973. p. 222-269.
- WEINER, Annette. Inalianable possessions: the paradox of keeping while giving. Berkeley: University of California Press, 1992.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Ago 2005 -
Data do Fascículo
Jun 2005
Histórico
-
Aceito
31 Mar 2005 -
Recebido
03 Jan 2005