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Precariedade enquanto categoria formativa do campo: as vulnerabilidades de antropólogos(as) e motoristas de aplicativo em um contexto de pandemia

Precariousness as a formative category of the field: the vulnerabilities of anthropologists and app drivers in the context of a pandemic

Resumo

A pandemia de Covid 19 aprofundou dinâmicas de vulnerabilidade que há muito já eram sentidas por certos agrupamentos sociais. Nesse contexto, a solidez das redes de suporte material e psíquico frequentemente emerge como aquilo que amortece aqueles que foram os efeitos mais corrosivos da pandemia. Neste artigo, trago reflexões sobre esse tema a partir de uma etnografia feita nos ambientes virtuais em que uma importante liderança dos motoristas de aplicativo em Pernambuco se faz presente. Além de identificar algumas das arbitrariedades sofridas pelo grupo de trabalhadores que esse interlocutor representa (publicizadas em seu Instagram), também mapeio como os próprios motoristas se associam para lidar com tais vulnerabilidades. Por fim, demonstro que foi o meu próprio sofrimento psíquico (aprofundado pelo isolamento social da pandemia) que me fez procurar um motorista engajado com a defesa dessa categoria de trabalhadores.

Palavras-chave:
precariedade; pandemia de Covid-19; sofrimento psíquico; etnografia virtual

Abstract

The COVID-19 pandemic has deepened dynamics of vulnerability that had long been felt by certain social groups. In this context, the solidity of material and psychological support networks often emerged as what buffers the most corrosive effects of the pandemic. In this article, I reflect on this topic based on an ethnography carried out in virtual environments in which an important leadership of app drivers in Pernambuco is present. In addition to identifying some of the arbitrariness suffered by the group of workers that this interlocutor represents (publicized on his Instagram), I also map how the drivers themselves come together to deal with such vulnerabilities. Finally, I demonstrate that it was my own psychological suffering (deepened by the social isolation of the pandemic) that made me look for a driver committed to defending this category of workers.

Keywords:
precarity; COVID-19 pandemic; psychological suffering; virtual ethnography

Introdução

Como se chega aos interlocutores? Quais são os caminhos institucionais, pessoais, econômicos e subjetivos que permitem com que antropólogos e antropólogas interajam, ganhando confiança e respeito, com aqueles que selecionamos como protagonistas e coadjuvantes de nossos trabalhos? A teoria antropológica vem dando respostas nunca conclusivas para essas questões de acordo com o paradigma que parece hegemonizar o ambiente acadêmico em um determinado período. De fato, o complexo processo de descrição dos esforços de chegar às nossas autopromulgadas “alteridades” assume por vezes a forma de fascínio poético. Nesse sentido, a capacidade de descrever de modo minucioso, processualmente envolvendo o leitor por sentimentos fortes como é o caso da solidão vivida (e descrita) por Malinowski (1984)MALINOWSKI, B. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1984. nas Ilhas Trobriand ou o reconhecimento enquanto um comum depois de correr da polícia em uma briga de galo como fez Geertz (1989)GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989., aparece por vezes como sinal de qualidade metodológica, quando não de expressão de autoridade.

No entanto, o que fazer quando a proximidade presencial significa morte? O que fazer quando tanto o eu quanto o outro está vivendo sob uma situação permanente de risco de falecimento não apenas de si próprio, como também da rede de humanos e não humanos que a dá suporte enquanto vida passível de ser vivida e sustentada (Butler, 2022BUTLER, J. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2022.)? Esses questionamentos inundaram as reflexões de congressos, seminários e dossiês da antropologia quando a pandemia de Covid-19 se alastrou no Brasil em 2020 (As implicações […], 2020AS IMPLICAÇÕES da etnografia on-line. Webinar 1. Prof. Alex Vailati. Recife: LAV, 2 jul. 2020. 1 vídeo (1h57min05s). Publicado no canal LAV - Laboratório de Antropologia Visual. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_kMxNal122w&t=517s . Acesso em: 5 out. 2023.
https://www.youtube.com/watch?v=_kMxNal1...
; [LabMet] […], 2020[LABMET] Minicurso “Introdução à etnografia online” Professora Dra. Letícia Cesarino (UFSC) 19/10/2020. Florianópolis: LabMet, 2020. 1 vídeo (2h53min39s). Publicado no canal Instituto de Relações Internacionais PUC-Rio. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=y5Q480GkQag. Acesso em: 5 out. 2023.
https://www.youtube.com/watch?v=y5Q480Gk...
; Segata et al., 2021SEGATA, J. et al. A Covid-19 e suas múltiplas pandemias. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 27, n. 59, p. 7-25, jan./abr. 2021.; Vailati; Barreto; Menezes Neto, 2021VAILATI, A.; BARRETO, F. S.; MENEZES NETO, H. Anthropológicas podcast. Estéticas e políticas no campo público. Iluminuras, Porto Alegre, v. 22, n. 57, p. 181-196, out. 2021.). Nesse contexto, enquanto método que não exige a presença em um mesmo espaço físico, os minicursos sobre netnografia, etnografia digital, etnografia em ambientes virtuais (ou qualquer nome que se queira dar para pesquisas de caráter etnográfico em espaços virtuais) se multiplicaram. Tal esforço mostrou-se necessário, por um lado, pelo desafio de contornar os medos desse não humano invisível como é o Sars-CoV-2 nos contextos de campo e, por outro, pelo esforço de mostrar como os próprios interlocutores de pesquisa se utilizam dos diversos ambientes virtuais como meio de enfrentar a pandemia. De fato, embora esses interlocutores já encarassem aplicativos como WhatsApp, Telegram e Instagram como constitutivos de suas interações cotidianas bem antes de a pandemia se alastrar, os modos com os quais eles começaram a criar vínculos (dentro e fora das infraestruturas tecnológicas desses aplicativos) foram significativamente renovados.

Neste artigo, trago reflexões sobre essa questão a partir de meu contato com um motorista de aplicativo, e os desafios com que me deparei para fazer uma pesquisa etnográfica com ele em pleno contexto pandêmico. De fato, nos tópicos que se seguem pretendo - através de uma etnografia em ambientes virtuais (Leitão; Gomes, 2017LEITÃO, D. K.; GOMES, L. G. Etnografia em ambientes virtuais. Perambulações, acompanhamentos e imersões. Antropolítica, Niterói, n. 42, p. 41-65, 1. sem. 2017.) - conduzir o leitor por algumas de minhas experiências pessoais e político-partidárias que, dinamizadas pelo contexto de isolamento social da pandemia, me fizeram chegar ao professor Thiago,1 1 Como esse interlocutor pediu que deixasse seu nome e identificação tal como eles são de verdade (ou seja, sem pseudônimos), optei por atender ao seu pedido. presidente da Associação de Motoristas e Motofretistas por Aplicativos de Pernambuco (Amape). Argumento que essas experiências me permitiram justificar metodologicamente a entrada e saída de certos ambientes virtuais, além de como esse movimento é condicionado pelo nível de (des)confiança que ia acumulando com o referido interlocutor na medida em que conversávamos pelo aplicativo de troca de mensagens WhatsApp. De fato, foi o caminho entre um ambiente virtual e outro que me permitiu desvelar algumas questões centrais para compreender as rotinas desse grupo de trabalhadores (os motoristas de aplicativo) em seus trajetos pelas grandes cidades brasileiras. Assim, as contingências de meu processo de interlocução com Thiago - também condicionado por meu processo depressivo, que se agudizou durante o isolamento social na pandemia - vão ser trazidas para o centro das minhas próprias possibilidades de percepção de como esse interlocutor aceita ou recusa as solicitações de viagens que chegam a ele pelo aplicativo da Uber, além de como ele transmite o conhecimento que é fruto dessas interações para um grupo maior de motoristas em seu Instagram. De fato, é nesse espaço que ele tanto dá dicas de como circular pela cidade de Recife quanto faz recomendações de como interagir com o aplicativo para que os motoristas tenham maior ganho por viagem realizada.

Em seguida, irei evidenciar como a dimensão vulnerável do campo, que parece atravessar tanto a vida do pesquisador quanto a do interlocutor de pesquisa, é justamente aquilo que me permitiu navegar entre circunstâncias, situações e ambientes virtuais tão diversos. Aqui, defendo que a vulnerabilidade física, simbólica e psíquica do interlocutor e do antropólogo que escreve estas linhas se mostra como aquilo de comum entre experiências tão diversas. De fato, à luz das reflexões de Judith Butler (2022)BUTLER, J. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. sobre a dimensão precária da vida humana, defendo precariedade enquanto categoria capaz de demonstrar como os atores se associam para lidar com suas respectivas vulnerabilidades, e de como esses pontos de associação podem ser estratégicos para pesquisadores se situarem nos variados fragmentos do campo em um momento pandêmico. Também sugiro que essa forma de encarar a precariedade pode ser metodologicamente mais produtiva do que um outro uso, frequentemente utilizado por certa sociologia do trabalho (Antunes, 2018ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.; Braga, 2013BRAGA, R. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2013., 2017BRAGA, R. A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no sul global. São Paulo: Boitempo, 2017.; Standing, 2013STANDING, G. O precariado: a nova classe perigosa. São Paulo: Autêntica, 2013.).

A formação do campo

Neste tópico, irei relatar alguns pressupostos teóricos, necessários para que o leitor entenda como fiz a construção do campo do presente trabalho, bem como aquilo que motivou seguir certos trajetos, além das necessidades metodológicas que acompanham esses trajetos. Espero com isso mostrar que a abordagem aqui desenvolvida é a expressão de um modo específico de se encarar a formação do social, que mostra sua relevância seja na forma com a qual ela se coloca diante da história da antropologia,2 2 Na medida em que se contrapõe à busca de sociedades organicamente constituídas, como diz Strathern (2017). seja na sua capacidade de mostrar caminhos teórico-metodológicos produtivos para apreender uma categoria de trabalhadores que concentram um arcabouço de experiências tão fragmentadas quanto os são os motoristas de Uber.

Menos que um elemento dado, o campo de uma pesquisa antropológica é algo que se forma enquanto as possibilidades etnográficas se abrem ou se fecham, bem como na forma com a qual o antropólogo decide situar-se estrategicamente frente a essas aberturas e fechamentos. O que opera aqui é a contradição entre um campo em formação que impõe limites para a interação do antropólogo com certos interlocutores e na autoridade que o antropólogo tem de decidir quando deve cortar essas interlocuções e fechar os limites de seu campo. Portanto, o “cortar a rede” de Strathern (2017)STRATHERN, M. O efeito etnográfico. São Paulo: Ubu, 2017. é a síntese do tipo de liberdade que permite ao antropólogo, através de um ato que se dá tanto a partir de contingências do campo quanto de opções político-epistemológica específicas, definir quais as associações entre humanos e não humanos (Latour, 2012LATOUR, B. Reagregando o social: uma introdução à Teoria do Ator Rede. Salvador: EDUFBA, 2012.) são passíveis de serem ou não seguidas, ou, nos termos de Marilyn Strathern (2017)STRATHERN, M. O efeito etnográfico. São Paulo: Ubu, 2017., quais escalas e as relações que estas ensejam podem ser construídas pelo antropólogo(a).

Dito isso, ter a capacidade de evidenciar de que modo o antropólogo seguiu certas associações para, em um momento específico, cortá-las, talvez seja o principal desafio da escrita etnográfica. Destacar esses rastros significa evidenciar como o antropólogo mobiliza recursos institucionais, pessoais, afetivos, profissionais, econômicos e de como esses recursos vão processualmente formando o social (Latour, 2012LATOUR, B. Reagregando o social: uma introdução à Teoria do Ator Rede. Salvador: EDUFBA, 2012.). De fato, a crítica de certa antropologia pós-social (Gell, 2018GELL, A. Arte e agência. São Paulo: Ubu, 2018.; Latour, 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Tradução de Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994., 2012LATOUR, B. Reagregando o social: uma introdução à Teoria do Ator Rede. Salvador: EDUFBA, 2012.; Strathern, 2017STRATHERN, M. O efeito etnográfico. São Paulo: Ubu, 2017.; Wagner, 2017WAGNER, R. A invenção da cultura. São Paulo: Ubu, 2017.) à antropologia clássica e a estabilidade com a qual ela definia a “sociedade” ou o “outro” partia de um apagamento das associações que permitiam chegar a tais “sociedades”. É justamente essa ausência, por exemplo, que faz Malinowski (1984)MALINOWSKI, B. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1984. chegar às Ilhas Trobriand como se estivesse vindo de um mundo em abstrato em seu tímido barquinho, de modo a tirar de cena os interesses estratégicos da Inglaterra com aquela região (Álvares, 2018ÁLVARES, L. P. Para uma crítica da razão antropológica (parte 1). Práxis Comunal, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 88-117, jan./dez. 2018.) e de como tais interesses o permitiram realizar a pesquisa sobre o kula. Ademais, é justamente a ausência dessas associações que leva o antropólogo a formular o “outro” enquanto alteridade radical (distante do “eu”) ou como uma “sociedade” enquanto um todo organicamente constituído (Strathern, 2017STRATHERN, M. O efeito etnográfico. São Paulo: Ubu, 2017.), o que frequentemente opera como algo dotado de uma identidade prévia a certas condições de relação.

A partir dessa perspectiva, pretendo nos tópicos que se seguem fazer um esforço de (des)constituir o social de modo a evidenciar para o leitor os caminhos que percorri para chegar a Thiago. Nesse sentido, rememoro os pontos específicos de minha trajetória pessoal e política (como militante partidário), uma vez que esta me permitiu um primeiro contato com Thiago. Tal esforço é fundamental para evidenciar como cheguei aos espaços em que esse interlocutor se faz presente (sejam esses espaços um determinado bairro ou específicos ambientes virtuais), o que será fundamental para o leitor compreender a minha opção por adotar certas metodologias.

Tal abordagem ajudará na compreensão dos motoristas menos como uma categoria sociológica já constituída dotada de tais ou quais características do que como um grupo que se forma enquanto as associações entre humanos e não humanos se desenrolam ao longo do campo. Assim, me distancio de uma ampla gama de estudos da sociologia do trabalho que abordam os motoristas como trabalhadores precarizados, que teriam como marca a ausência de garantias trabalhistas, previdenciárias e legais em um contexto de aprofundamento do neoliberalismo3 3 Como aprofundo no último tópico deste artigo. (Abílio, 2018ABÍLIO, L. Uberização e viração: mulheres periféricas no centro da acumulação capitalista. Margem Esquerda, São Paulo, n. 31, p. 54-61, 2018.; Antunes, 2018ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.; Braga, 2013BRAGA, R. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2013.). Para esses autores, é justamente a perda de direitos em comparação a um momento anterior de maior seguridade social que ajuda na caracterização dos motoristas de aplicativo. Aqui, o tempo de descanso é progressivamente apropriado pelo imperativo de estar disponível para receber as viagens permanentemente dispostas pelas sofisticadas inteligências artificiais dos aplicativos de corrida. Como afirma Antunes (2018)ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018., a flexibilidade se torna a regra.

Minha abordagem se contrapõe à essa na medida em que encara os motoristas enquanto grupo em formação, compreendido a partir das conexões temporárias (Latour, 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Tradução de Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.) com os vários atores humanos e não humanos que permearam meu encontro com Thiago, e não enquanto categoria sociológica constituída a partir de determinado momento histórico. Assim, como recomenda Strathern (2017)STRATHERN, M. O efeito etnográfico. São Paulo: Ubu, 2017., não parto da premissa de que existe uma “sociedade neoliberal” prévia ao movimento das associações instáveis entre humanos e não humanos a ser acompanhada, nem me reconforto com uma “explicação social” (Leitão; Gomes, 2017LEITÃO, D. K.; GOMES, L. G. Etnografia em ambientes virtuais. Perambulações, acompanhamentos e imersões. Antropolítica, Niterói, n. 42, p. 41-65, 1. sem. 2017.) que possa me ajudar a compreender os interlocutores a que faço referência.

A socialização política como rastreador de associações

Foi minha socialização partidária que me permitiu acessar Thiago. Aqui, faço um breve relato autoetnográfico sobre a minha entrada no programa de pós-graduação que tornou possível a dissertação que inspirou este trabalho.4 4 Utilizo aqui alguns de meus achados etnográficos feitos durante meu mestrado. Assim, trago um relato pessoal (Bandeira; Costa, 2022BANDEIRA, K. de L.; COSTA, K. S. da. Mulheres com deficiência na Amazônia: a autoetnografia como recurso metodológico para narrar histórias invisibilizadas. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 28, n. 64, p. 121-141, set./dez. 2022.) sobre aquilo que vivi e senti durante a pandemia de Covid-19 no Brasil. De fato, como permite entender os fatos individuais de modo analítico (Bandeira; Costa, 2022BANDEIRA, K. de L.; COSTA, K. S. da. Mulheres com deficiência na Amazônia: a autoetnografia como recurso metodológico para narrar histórias invisibilizadas. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 28, n. 64, p. 121-141, set./dez. 2022.), a autoetnografia aqui se faz útil para que o leitor compreenda o caminho das associações que segui para chegar até Thiago.

O momento de entrada no curso de mestrado pelo PPGA-UFPE se deu justamente no momento em que a pandemia de Covid-19 se alastrou no Brasil. Nesse contexto, as mortes diárias que, em certo momento, chegaram a mais de 3.000, assim como o permanente estado de temor que as pessoas que moram em minha casa se somassem a essa cifra, foi aquilo que caracterizou o ambiente vivido por mim durante a maior parte de minha trajetória na pós-graduação. De fato, a consciência de que tal realidade estava desacompanhada de qualquer tipo de planejamento por parte da principal autoridade do país5 5 Alguns levantamentos demonstram (Pesquisas […], 2021) que o atraso na compra de doses da vacina de Covid-19 representou um adicional de 400 mil mortes, absolutamente evitáveis. fez que as leituras e as experiências etnográficas tipicamente experienciadas por um aluno de pós-graduação se tornassem uma das tantas dimensões de minha vida afetadas pelo permanente processo de subjetivação do medo que tal processo engendrou. Somada ao necessário distanciamento social, responsável por expandir a sensação de desamparo, tal realidade produziu em mim um quadro depressivo, que se expressou de maneira mais marcada a partir da segunda metade de 2020. A partir daí, os sintomas decorrentes desse quadro só se expandiram: crises de ansiedade permanentes, distúrbios cognitivos como dificuldade de foco, zumbidos, perda de sensações emocionais e noites mal dormidas. Na medida que se aprofundavam, tais sintomas diminuíam cada vez mais minha capacidade produtiva (seja para ter atenção durante as aulas por EAD, seja para ter foco nas leituras), o que expandia ainda mais a duração e a profundidade dos próprios sintomas.

Induzido pela terapeuta que me acompanhou durante esse processo a relatar meu próprio sentimento durante nossas sessões, cheguei à conclusão de que precisava construir algo sobre essas sensações, de modo a dar corpo a um sentimento que me paralisava e, com isso, desenvolver a capacidade tanto de apropriar quanto de gerir meu próprio sofrimento, mesmo que de forma limitada.6 6 Cheguei a essa compreensão de maneira conjunta com minha terapeuta. Foi o momento em que a militância política entrou de maneira decisiva na minha vida. Isso porque vi nas vindouras eleições de 2020 uma oportunidade de encontrar na construção coletiva uma forma de dar sentido a tal sofrimento. Nesse sentido, o apoio a um candidato como Ivan Moraes (PSOL) que, a meu olhar, se colocava de forma acessível à sua militância (além de estar afinado politicamente com aquilo que acredito) parecia ser o caminho mais convidativo para realizar tal tarefa. Assim, após me deparar com uma chamada em sua página oficial do Instagram convocando militantes que pudessem ser voluntários em sua campanha, entrei em contato com sua equipa7 7 Como os membros de seu mandato intitulam a si mesmos. e, em algumas semanas, estava começando minhas atividades presenciais em sua campanha de reeleição para vereador, sempre com o uso de máscaras, bastante álcool em gel e com cuidados de me afastar das tarefas que envolviam maiores aglomerações como comícios e refeições, quando o risco de contágio parecia aumentar significativamente.

Diálogos com transeuntes em sinais de trânsito e mercados públicos, bicicletaços em avenidas abertas e conversas com lideranças comunitárias e sindicais foram algumas das tantas atividades que fizemos durante pouco mais de um mês pelas ruas de Recife. Mais do que abordagens impessoais, buscávamos falar concretamente sobre algumas das conquistas de seu mandato, bem como alinhá-las com o tipo de interlocutor com o qual nos deparávamos e seu potencial interesse com essa ou aquela pauta. Por isso, íamos às garagens de ônibus falar com motoristas e cobradores sobre o esforço do mandato em aprovar a lei municipal responsável por proibir a dupla função dos motoristas ou dialogar com entregadores por aplicativos sobre o projeto de lei que visava garantir pontos de apoio para essa categoria em alguns territórios de Recife.

Foi graças a essa última pauta que minha experiência de organização abriu caminho para o desenho metodológico deste trabalho. Isso porque foi a partir de um panfleto utilizado para dialogar com os entregadores por aplicativo feito para a campanha que pude visualizar como aquele mandato estava sensível às demandas dessa categoria de trabalhadores. Tal sensibilidade pareceu a mim como um ponto estratégico para adentrar-me no campo, uma vez que via relações entre as principais questões mobilizadas por esses motoristas nas minhas entrevistas com eles e as demandas suscitadas pelo mandato de Ivan naqueles panfletos utilizados para tentar conseguir votos para sua reeleição. De fato, à medida que os meses se passavam e os prazos para a realização do trabalho de campo da minha dissertação iam se comprimindo, cada vez mais me angustiava com a pouca interlocução que tinha tido com os motoristas de Uber até então, seja pelo medo de contágio imposto pela pandemia (e, até aquele momento, os recentes desafios que ela colocava à pesquisa antropológica), seja pelo aprofundamento da minha depressão, que progressivamente erodia minha capacidade produtiva. Nesse sentido, a presença na campanha de Ivan foi tanto um mecanismo que encontrei para suportar meu sofrimento psíquico quanto uma forma de me jogar de volta ao meu campo de pesquisa.

Assim, depois de ter uma resposta positiva de seu mandato no que diz respeito à ideia de estender a proposta de suporte dos entregadores de aplicativos (que era inicialmente a proposta do mandato) aos motoristas de aplicativos, pude encontrar algo que pudesse convencer meus futuros interlocutores a participar de minha pesquisa. De fato, mesmo após a sua reeleição, os discursos de Ivan envolvendo os trabalhadores de aplicativo continuavam a acontecer em suas falas na câmara de vereadores de Recife ao longo do ano de 2020 (ano em que foi reeleito) e 2021 (primeiro ano de seu segundo mandato como vereador, e quando eu finalmente comecei a me adentrar no material etnográfico).

Desse modo, como já previa uma dificuldade de manter contato com um grupo de trabalhadores que não têm previsibilidade em suas rotinas, achei que a busca de construir a relação entre o mandato e as demandas específicas dos motoristas poderia colocar esse contato sob um terreno mais estável, uma vez que poderia apresentar algo que pudesse interessar os motoristas a participarem de minha pesquisa.

Essa rememoração é fundamental para o leitor compreender que foram esses os caminhos e as razões que motivaram minha procura por algum motorista que pudesse receber as propostas do mandato de Ivan, e ter condições de socializá-las perante os trabalhadores da sua própria categoria. Esse foi o caso de Thiago, presidente da Amape, e, por isso, alguém com uma experiência pregressa de organização e agitação em relação às necessidades dos trabalhadores dessa categoria. Desse modo, acreditava que o contato com Thiago poderia me fornecer uma posição estratégica para realizar tal proposta, sobretudo considerando seu já existente contato com o poder público e demais parlamentares. Embora já previsse potenciais discordâncias entre as minhas expectativas e as expectativas do interlocutor, a vivência de campo revelou que elas foram mais robustas do que no início presumia.

Meu contato inicial com ele ajuda a ilustrar tais dificuldades. Ele se deu após uma busca no Google acerca de figuras no estado de Pernambuco que já estivessem organizadas em associações de motoristas de aplicativo, já que isso seria estratégico na concretização da minha proposta. Foi a partir dessa busca que descobri a Amape. Ao perceber que o terceiro link disposto pelo Google sugeria que a associação poderia ter uma conta na rede social Instagram e que a partir das interações que usuários fizessem a partir dos posts dessa organização eu poderia ser levado a uma figura engajada politicamente, cliquei nele e fui levado até lá.

Esse link me levou ao aplicativo Instagram, inicialmente criado para que amigos e familiares compartilhassem entre si fotografias de viagens, reuniões de família, além de ocasiões especiais como festas, bailes de formatura e casamentos. Com o tempo, no entanto, esse aplicativo também começou a ser utilizado como uma ferramenta para venda de produtos, serviços, compartilhamento de interesses particulares como moda, cinema ou até agitação política.

A página da Amape se adéqua a esse último propósito. De fato, convocação para mobilizações, parcerias da associação com concessionárias e pedido aos seguidores para dizer o que acham acerca de um aumento do preço da gasolina são alguns dos posts feitos pelo Instagram da associação. Nesse sentido, à medida que ia perambulando nesta (Leitão; Gomes, 2017LEITÃO, D. K.; GOMES, L. G. Etnografia em ambientes virtuais. Perambulações, acompanhamentos e imersões. Antropolítica, Niterói, n. 42, p. 41-65, 1. sem. 2017.), notava que boa parte desses posts eram convocados por Thiago (cf. Tavares, 2022TAVARES, Á. P. A. Precariedade em movimento: por uma abordagem antropológica da uberização. 2022. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2022., p. 51). Isso porque, embora a primeira vez em que me deparei com o perfil de Thiago no Instagram tivesse ocorrido em 2020, durante a campanha eleitoral de Ivan, foi apenas em 2021 que tive tempo (já que finalmente havia terminado as cadeiras obrigatórias por EAD de meu curso de mestrado) e condições psicológicas (já que nesse período minha depressão já demonstrava sinais de melhora) para me aprofundar no material etnográfico que iria inspirar este trabalho.

Dentre os 15 posts feitos pela associação entre 26/08/2021 e 06/11/2021, seis tinham o protagonismo de Thiago, seja por serem posts diretamente compartilhados do Instagram de meu interlocutor, seja por ele dar recados que eram postados diretamente pela página da Amape. Tal recorrência me despertou curiosidade acerca dessa figura, que parecia gozar de prestígio perante uma associação responsável por mobilizar e organizar sucessivas paralisações dos trabalhadores de aplicativo.8 8 Em uma pesquisa exploratória através do Google, notava que o nome da Amape sempre era citado quando a busca por “paralisação de aplicativo” era feita por mim. Por isso, cliquei em uma das tantas menções ao nome de Thiago no perfil da Amape e logo fui encaminhado ao seu perfil no Instagram.

Aqui, alguns elementos me chamaram atenção. O primeiro deles era a quantidade de seguidores de Thiago, sobretudo quando comparado à página da Amape. Assim, enquanto esta última tinha 1.912 seguidores, a página de Thiago tinha 17.600. Além disso, através de sua bio,9 9 Local no Instagram onde os usuários podem fazer uma descrição sucinta de si mesmos. descobri que ele era tanto presidente da Amape quanto aluno do RenovaBr, “escola de formação política que prepara pessoas comuns de diversas origens e posicionamentos para renovar a democracia”, como indica a página do Instagram da própria instituição. Essas constatações apareceram a mim como uma abertura das possibilidades de inserção no campo. De fato, a associação com o Renova parecia a mim como um interesse em abordar as questões dos motoristas de um ponto de vista político-parlamentar, o que se comprovou depois que vi, a partir de seus posts no Instagram, que ele também tinha sido candidato a vereador em 2020 pelo partido Cidadania, com parte de sua pauta de campanha sendo encaminhada às necessidades concretas dos motoristas de Uber, como indica a Figura 1. Além disso, a ampla repercussão de seus posts, que pode ser verificada pela quantidade de seus seguidores e pela frequência com a qual eles repostavam os posts de Thiago, ou até pela menção de Thiago em posts de outros usuários quando falavam em algo referente aos motoristas (Thiago faz questão de compartilhar em seu perfil o compartilhamento que outros perfis faziam de seus posts, como indica a Figura 2), mostrava a mim que as interações possíveis de serem rastreadas a partir de seu Instagram poderiam me fornecer um amplo material etnográfico.

Figura 1
Postagem de campanha de Thiago a vereador.

Figura 2
Postagem compartilhada por Thiago.

No entanto, a riqueza desse material só foi por mim tematizada quando percebi que uma outra infraestrutura não iria exatamente me fornecer o mínimo de subsídio para compreender as arbitrariedades sofridas pelo grupo de trabalhadores que Thiago representa. Isso porque encarei inicialmente o Instagram apenas como uma forma de chegar a um espaço individualizado de interlocução, como é o caso do aplicativo de troca de mensagens, WhatsApp. De fato, como seu contato nesse aplicativo não pode ser acessado por vias públicas (fiz questão de checar tanto na página da Amape quanto na bio do perfil de Thiago se ele não compartilhava o número de seu telefone), presumi que uma vez que conseguisse chegar a esse meio, poderia ter em mãos uma infraestrutura mais adequada a construir uma relação duradoura de confiança com o interlocutor do que uma à qual qualquer usuário poderia ter acesso, como é o caso do seu popular Instagram. De fato, pensava que se por sorte conseguisse uma resposta sua perante o amontoado de mensagens que certamente devem chegar a ele através deste último, seria improvável que um diálogo sobre temas mais específicos pudesse decorrer ali ao longo do tempo.

De início, essa impressão pareceu razoável. Isso porque, a primeira mensagem mandada por mim ao seu direct10 10 Ferramenta que permite a qualquer usuário do Instagram enviar mensagens diretas para algum perfil específico. No entanto, caso o usuário desejar, ele pode restringir a possibilidade de receber essas mensagens apenas àqueles seguidores seguidos por ele próprio, o que não parecia ser o caso de Thiago. De fato, como o leitor irá notar, mesmo Thiago não sendo meu seguidor, eu consegui mandar uma mensagem direta para ele nessa rede social. no Instagram alcançou os dois objetivos por mim esperados: 1) obter uma resposta em um relativo tempo curto; e 2) conseguir o número de seu WhatsApp para finalmente poder me desvencilhar de um ambiente seguido por outros 17.000 seguidores. Como visto na Figura 3, para minha surpresa, o primeiro dos objetivos foi alcançado com larga folga, já que sua resposta à minha mensagem de apresentação veio no mesmo dia.11 11 Mesmo que a ferramenta no Instagram não deixe isso registrado, Thiago respondeu minha mensagem no mesmo dia 18 de março em que fiz a pergunta. Afirmo isso porque a plataforma indica, no topo de cada mensagem, quando a mensagem é enviada em um dia diferente daquela que foi primeiramente encaminhada. Assim como o segundo, já que seu número de celular foi enviado a mim por ele na mensagem subsequente às mensagens mostradas na Figura 3.12 12 Como nesse diálogo o interlocutor me diz seu número pessoal, optei por não torná-lo público.

No entanto, o desejado WhatsApp e a maneira com a qual Thiago o utiliza frustrou parte das minhas expectativas com aquela infraestrutura. Isso porque cada pergunta feita por mim era acompanhada de períodos cada vez maiores sem resposta por parte de Thiago. Mesmo quando aconteciam, estas pareciam telegráficas, como se já tivessem sido treinadas por ele com outros jornalistas, políticos e pesquisadores.

Figura 3
Troca de mensagens com Thiago pelo direct do Instagram.

A primeira mensagem mandada por mim para seu WhatsApp já foi um ensaio dessas dificuldades. Como indica a Figura 4, inauguro o diálogo com Thiago com um áudio de pouco mais de um minuto, onde detalho qual era minha intenção ao entrar em contato com ele, bem como quais eram meus interesses com a pesquisa que estava desenvolvendo. Através de sua resposta (que demora três dias para acontecer) descubro que o interlocutor estava realmente interessado em se envolver com aquele esforço. Diante disso, envio outro áudio no qual peço que ele descreva sua trajetória individual até se tornar um trabalhador por aplicativo, que ele demora mais três dias para responder. Em sua resposta, a suposta posição privilegiada daquele aplicativo veio por terra:

Oi, Álvaro. Boa tarde, amigo. Primeiramente, queria pedir desculpa pela demora aí pra te responder. Eu ouvi teu áudio e aí meu WhatsApp começou a chegar um monte de mensagens e a tua mensagem desceu e acabou que eu não respondi mas eu vou tentar responder a primeira etapa da pergunta agora e, se der, as duas.

Figura 4
Primeiro diálogo com Thiago pelo WhatsApp.

Essa não seria a única resposta que Thiago demoraria a dar. De fato, a exceção era quando as respostas eram enviadas com um prazo menor do que três dias, o que exigiu um permanente esforço de destacar as mensagens por mim enviadas, enviando outras que pudessem destacá-las13 13 O WhatsApp fornece uma ferramenta ao usuário que o permite buscar uma mensagem já enviada, ao mesmo tempo que se envia uma nova logo abaixo dela. Do ponto de vista interlocutivo, isso permite que temas sejam resgatados, bem como que respostas confirmadas ou negadas por aqueles com quem se dialoga. e, com isso, fazer com que elas subissem em seu WhatsApp. Foi justamente nessas últimas que eu pude ver brechas para identificar em que tipo de situação Thiago respondia minhas perguntas, já que, pelo menos no início de minha interlocução com ele, essas segundas mensagens pareciam deixá-lo constrangido por não ter respondido as primeiras, pressionando-o a respondê-las nos mais variados lugares que estivesse assim que as visualizasse. Pude presumir que isso acontecia porque o preenchimento dos dois tracinhos pela cor azul em meu chat com ele (indicativo, para a linguagem do WhatsApp, de que o interlocutor abriu a conversa com a nova mensagem) geralmente vinha acompanhado de suas respostas em áudio.

Através dos ruídos presentes nesses áudios pude catalogar pistas não apenas para identificar os lugares em que Thiago estava enquanto os enviava, mas, sobretudo, para poder traçar que tipo de interação meu interlocutor conduzia nesses ambientes. Assim, se escutava barulhos de carros se movimentando junto a sons de rádio e/ou comentários de possíveis passageiros solicitando para que dobrasse em uma rua e não em outra, presumia que ele respondia minha mensagem enquanto fazia uma de suas viagens. Se percebia que suas respostas eram emboladas por sons de deglutição acompanhados de barulhos de plástico, presumia que ele respondia a mensagem enquanto fazia uma refeição entre suas viagens. Desse modo, precisei encarar os áudios não apenas como fonte de conteúdo sobre sua rotina, mas também como um rastro a partir do qual seria possível mobilizar minhas próprias associações entre som e ambiente e, a partir delas, mapear as potenciais interações de Thiago.

Se esses sons me davam um canal para acessar o ambiente, eles também perturbavam o desenrolar das respostas de Thiago, já que os ruídos dos carros passando em alta velocidade ou o fato de seu celular estar conectado ao som de seu automóvel enquanto gravava um áudio, por vezes, faziam com que sua fala fosse encoberta, ou até mesmo totalmente silenciada. Tais dificuldades fizeram com que eu pedisse para que ele repetisse suas respostas, o que parecia deixá-las ainda mais telegráficas. Nesse sentido, suas narrativas apareciam a mim como pequenos fragmentos que, para se tornarem compreensíveis, exigiram que eu os reunisse em uma narrativa etnográfica (limitadamente) coerente. De fato, precisei fazer uma reunião dos vários áudios de Thiago com seus chiados, quedas e interrupções suscitadas pelas suas interações em ambientes físicos e, com isso, construir narrativas etnográficas capazes de me permitir compreender algumas questões que considerava centrais para o entendimento das rotinas dos motoristas de Uber (Junge; Tavares, 2020JUNGE, B.; TAVARES, Á. P. A. Subjetividades móveis: sentidos de periferia e percepções da crise entre motoristas de uber em Recife. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 39, n. 1, p. 103-123, jan./abr. 2020.; Tavares, 2021TAVARES, Á. P. A. Aplicativo de corrida compartilhada como infraestrutura: por uma nova forma de compreender a circulação de pessoas. Revista Anthropológicas, Recife, v. 31, n. 2, p. 200-227, 2021.).

A partir de uma das respostas de Thiago em áudio é possível exemplificar tal construção. Aqui, pergunto a Thiago sobre sua trajetória, profissão pregressa e o que poderia ter acontecido com esta para que ele tenha tomado a escolha de se inscrever na Uber, primeiro aplicativo de viagens em que ele ingressou. De fato, minha experiência anterior de trabalho com motoristas de Uber desde a graduação me despertava interesse específico nessa questão, já que boa parte dos relatos de outros motoristas no que diz respeito ao período anterior à entrada na Uber era caracterizada por certas narrativas em comum: decepção com antigos patrões, frustração com a estrutura hierárquica de empresas e demissões que aconteciam perante um momento de crise econômica nacional (Junge; Tavares, 2020JUNGE, B.; TAVARES, Á. P. A. Subjetividades móveis: sentidos de periferia e percepções da crise entre motoristas de uber em Recife. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 39, n. 1, p. 103-123, jan./abr. 2020.).

A resposta de Thiago não divergiu desses pontos. Aqui, o interlocutor fala que trabalha desde os 16 anos, quando era estagiário na prefeitura de Recife no núcleo de tecnologia de educação do programa Bolsa Escola. Para ele, começar a trabalhar tão cedo pode ser explicado pela sua vontade de conseguir independência financeira e de “não depender de ninguém”. Nesse sentido, ele afirma que entrou na faculdade, se formou e, por isso, pôde se tornar professor da rede privada, local onde trabalhou nos dez anos que antecederam sua entrada na Uber, de início, como renda secundária e, em seguida, como renda principal. No entanto, sucessivas decepções com o ramo educacional o fizeram desistir dessa área:

Como a docência no Brasil todo mundo sabe, você também deve saber disso, é uma profissão muito ingrata, né, com os professores, o que era a renda principal, se tornar apenas um complemento de renda. Realmente minha renda caiu bastante. Então, eu fiquei muito chateado, decepcionado, muito mexido com o tempo que eu trabalhei na iniciativa privada, da falta de reconhecimento, associado a tudo isso a questão de você ter que ter uma jornada de trabalho. Tem hora pra chegar, hora pra sair, às vezes num tem hora pra sair. Pressão psicológica, assédio moral, falta de reconhecimento.

As frustrações com esse ramo e sua estrutura hierárquica fizeram Thiago explorar um novo setor, ainda incipiente e potencialmente arriscado:

Acabou que os aplicativos chegaram aqui no Recife, né? Na verdade chegou aqui em 2016 a Uber e posteriormente, no final de 2017, a 99, e aí quando ela chegou aqui poucas pessoas conheciam. E aí eu decidi arriscar. Ali em meados de maio de 2016 eu fiz o meu cadastro. A Uber chegou em março, eu fiz o cadastro em maio, logo no início onde existia muita perseguição, taxistas quebrando carro, apreensão de veículos por parte da prefeitura, por parte da CTTU e a gente trabalhava escondido. A gente tinha que rodar mais descaracterizado do que a gente já anda, sem nenhum tipo de indicativo de que era motorista de aplicativo porque a pessoa podia ser mort[a] naquela época, você podia levar um tiro e ficar por isso mesmo porque a perseguição era muito grande e também poderia ter seu carro apreendido com uma multa de quase 5 mil reais. Então, a gente rodava com muito medo naquela época lá atrás, e a gente trabalhava com uma preocupação enorme, uma preocupação muito grande mesmo.

Tais respostas, no entanto, não estavam dispostas em apenas um dos áudios. Isso porque o primeiro áudio mandado por Thiago que menciona essas questões foi marcado por sucessivos períodos de silêncio (suponho que o interlocutor tenha colocado as mãos no autofalante do celular), que exigiram pedidos meus para o interlocutor repetir alguns das partes ausentes, sobretudo quando tais partes cortavam períodos extensos de seu áudio.

Além de meras repetições, os áudios em que Thiago respondia meus pedidos para refazer as respostas forneciam novas descrições sobre as mesmas situações, o que permitia rastrear diferentes (e às vezes contraditórios) sentidos através dos quais ele compreendia sua situação como motorista de Uber. Em um desses casos, Thiago explica novamente sua trajetória, citando seu acúmulo de decepções com sua profissão. No entanto, um ponto novo é citado por ele ao explicar sua trajetória desde quando era estagiário:

Eu comecei trabalhando na prefeitura do Recife como estagiário, com 17 para 18 anos, e aí depois disso eu fui para a inciativa privada, passei um tempo e aí depois fui demitido, e quando eu fui demitido, eu fiquei chateado, fiquei abusado, fiquei decepcionado, vamos dizer assim, e decidi que eu precisava encontrar uma nova forma de trabalho.

Thiago aqui traz um fator fundamental omitido na primeira de suas respostas: o fato de ele buscar a empresa de compartilhamento de corridas depois que foi demitido de seu emprego na rede privada. Menos sugerir uma interpretação discursiva ou psicanalítica para explicar o motivo dessa nova informação, aqui basta destacar que as falhas na infraestrutura de aplicativos como WhatsApp levam a processos de repetição por parte dos interlocutores, que acabam por expandir as formas com as quais eles se colocam perante sua própria inserção na Uber. Nesse sentido, se a partir de sua primeira fala é possível presumir uma ação perante decepções acumuladas (“eu decidi arriscar”), na segunda tal aspecto é abafado pela nova informação adicionada, que aparece aqui como o fator que levou à decepção (“e quando eu fui demitido, eu fiquei chateado, fiquei abusado, fiquei decepcionado”). Mesmo que isso também aconteça em conversas presenciais, a dimensão assíncrona das respostas em áudios de WhatsApp, além dos espaços temporais que separam um áudio do outro, acabam por amplificar a dimensão contraditória das repetições.

Sobre a perda de interlocução

Os dois últimos trechos citados de meus diálogos com Thiago são fruto dos últimos áudios que recebi dele em nossas conversas por WhatsApp. Isso porque, à essa altura de nosso diálogo, tinha sentido abertura suficiente de sua parte para introduzir aquele que era um dos meus objetivos com o presente trabalho: fazer com que ele fosse um mediador de alguma ação concreta para os trabalhadores com os quais estava buscando interlocução. A apresentação dessa dimensão de minha pesquisa produziu o efeito inverso daquele que eu previa, de modo que a disposição de Thiago para se engajar naquela proposta, ou até mesmo de voltar a responder as perguntas como aquelas que estava fazendo antes da referida proposta, diminuíram consideravelmente. De fato, os últimos dois áudios que ele me manda (presentes na Figura 5) são para justamente falar das potenciais dificuldades que teria em construir alguma proposta que envolvesse figuras políticas como Ivan Moraes, bem como com membros do partido a que o parlamentar do PSOL está filiado:

Ô, Álvaro, eu conheço Ivan, inclusive já tive no gabinete dele em algumas oportunidades, convidei ele pra dar uma palestra lá na faculdade que eu dou aula. Nutro de respeito e admiração pelo trabalho dele, mas a gente tem muitos pontos de, vamos dizer assim, de discordâncias políticas, né? A começar pela questão partidária mesmo, que eu tô num partido que é de centro-direita, que tem uma visão completamente antagônica ao modelo e formato de mandato que Ivan compartilha. Ivan inclusive é muito amigo de João Freire, que é secretário-geral do partido, que também é meu amigo… Assim, nada impede de se falar, sabe? Mas é muito complicad[a] essa relação por causa dessa questão antagônica que existe de leituras de diversas interpretações de fatos diferentes, justamente porque a gente tá em campos políticos distintos, entende?

Figura 5
Últimos áudios de Thiago enviados pelo WhatsApp.

Embora nessa resposta o interlocutor não tenha exatamente fechado as portas para essa proposta, o ritmo em que se deu o diálogo posterior ao envio desse áudio me mostrou o contrário. Desestimulado pela resposta que recebia dele, lhe enviei uma nova pergunta (ainda sobre a possibilidade de construir uma ação conjunta) depois de dez dias do áudio mandado por ele (como indicam as Figuras 5 e 6). Aqui, especulo quais seriam os eixos principais responsáveis por motivar uma ação conjunta, bem como quais novas regulamentações poderiam ser elaboradas. Não mais a partir de áudios, o interlocutor me dá um curta resposta digitada a essa pergunta, tal como vista na Figura 6. Esse seria o padrão de suas respostas, até ele definitivamente parar de responder meus questionamentos, no dia 27 de maio de 2021.

Figura 6
Respostas de Thiago por mensagem de texto no WhatsApp.

O retorno ao Instagram

Como o leitor pôde constatar, a volta ao primeiro dos espaços em que tive contato com Thiago se deu menos por uma escolha do que por uma imposição do campo. Assim, nos termos desta pesquisa, o corte na rede (Strathern, 2017STRATHERN, M. O efeito etnográfico. São Paulo: Ubu, 2017.) foi feito muito mais pelo interlocutor do que pelo antropólogo, o que acabou por condicionar o movimento de associações que precisaria seguir para aprofundar meu entendimento sobre Thiago.

De fato, à medida que percebia seu progressivo distanciamento, sua página no Instagram aparecia como uma sombra através da qual eu poderia navegar para conseguir sanar algumas das lacunas geradas pelo seu desinteresse em continuar o nosso diálogo. Assim, embora não conseguisse concretizar a ideia de ação conjunta que tinha concebido, através da volta ao Instagram pude verificar como Thiago compartilhava com um público amplo algumas das informações que tinha me fornecido privadamente.

Para desvendar alguns aspectos dessa questão, pretendo nos tópicos que se seguem fornecer uma descrição de seu Instagram, dando relevância para aqueles posts que têm uma maior capacidade de dialogar com os temas sobre os quais conversamos por WhatsApp. Para esses, pretendo enfatizar as razões metodológicas que me fizeram destacá-los da gama de informações, diálogos, curtidas e interações presentes em sua página nessa rede social. Nesse sentido, além de mobilizar temas centrais para desvendar o cotidiano dos motoristas, pretendo também fornecer um (possível) mapa para caminhar através de um ambiente marcado pela saturação de imagens e sons (Leitão; Gomes, 2017LEITÃO, D. K.; GOMES, L. G. Etnografia em ambientes virtuais. Perambulações, acompanhamentos e imersões. Antropolítica, Niterói, n. 42, p. 41-65, 1. sem. 2017.), algo constitutivo de ambientes virtuais como o Instagram.

Mapeando Thiago e seu grupo político

Exibindo uma Coca-Cola gelada à frente de sua televisão, é no dia 4 de janeiro de 2012 que Thiago faz sua primeira postagem no Instagram. Daí até 2017 suas postagens parecem não ter um padrão bem definido: fotografias de sua cachorra, de pratos em restaurantes, jogos de futebol, encontros com profissionais da docência (profissão pregressa à sua entrada na Uber), viagens com sua filha e esposa, selfies em que só vemos a face do interlocutor, imagens de paisagens e pôr do sol. Com no máximo 20 curtidas, essas postagens raramente são acompanhadas de comentários, que quando acontecem geralmente versam sobre a beleza e harmonia de sua família.

Como mostra a Figura 7, é no dia 28 de outubro de 2017 que o interlocutor faz a primeira postagem que envolve a categoria de motoristas de aplicativos. Sem comentários e com apenas 4 curtidas, a postagem já aparece como um ensaio de como vai ser a aparência de seus posts no futuro: uma convocação para a mobilização nacional dos motoristas de aplicativo, fornecendo a seus seguidores data, local e horário do acontecimento.

Figura 7
Primeira postagem de Thiago no Instagram envolvendo a categoria de motoristas de aplicativo.

Além de agitação política, Thiago também compartilha diversas formas de ajuda material, bem como de reconhecimento social em seu Instagram. Frequentemente condicionando a possibilidade de conseguir tais apoios e reconhecimentos a uma filiação na Amape, esses vão desde suporte psiquiátrico a descontos para blindagem de carro. Na Figura 8, por exemplo, vemos um desconto de 50% oferecido para a aquisição de uma blindagem para carro e moto “100% garantida”, fruto de uma parceria da Amape com a empresa Vedafuro. Thiago associa o link a partir do qual é possível fazer tal pedido ao seu Instagram pessoal, já que o dispõe em seu story nesse aplicativo. Aqui, o interlocutor não deixa claro se apenas associados a Amape têm direito ao benefício, ou se este se estende a outros motoristas de aplicativo. Mais na frente, o interlocutor deixa clara essa especificação ao oferecer atendimento psicológico para “associados Amape e familiares”, como evidencia a Figura 9. No texto vinculado a esse post, Thiago não apenas estimula os motoristas parceiros a marcarem um atendimento, como também parece dar ênfase para a condição exigida para efetuar a marcação: a filiação à Amape, possível de ser feita através de uma mensagem direta ao meu interlocutor.

Figura 8
Postagem de Thiago no Instagram com oferta de parceira feita pela Amape.

Figura 9
Postagem de Thiago no Instagram com oferta de atendimento psicológico a associados da Amape.

Para além de assistência a demandas específicas, Thiago também se mostra com abertura para conversar com determinados grupos já formados de motoristas, de modo a tentar vincular suas atuações à associação presidida por ele, a Amape. Com um desses grupos que atuam próximo ao Recife Flat, no bairro Boa Viagem na Zona Sul de Recife, Thiago escuta as demandas dos motoristas e apresenta ações em andamento, como aquela em que busca obrigar os aplicativos a justificarem potenciais suspensões, como indica a Figura 10. Ele também demonstra atenção às sugestões que chegam em sua página no Instagram, como aquela vista na Figura 11. Aqui, vemos sua interação com um dos comentários da foto exposta na Figura 10, onde ele responde às recomendações de seus seguidores, que vão desde a exigência de exibição de foto dos passageiros à necessidade de a Uber colocar os bairros certos em que se situam os passageiros solicitantes de uma viagem. Aqui, Thiago parece se mostrar tão disponível a responder as indagações de seus parceiros quanto nos espaços físicos aos quais as postagens fazem referência, de modo a ser impossível criar uma cisão entre espaço virtual e não virtual (Miller; Slater, 2004MILLER, D.; SLATER, D. Etnografia on e off-line: cibercafés em Trinidad. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 41-65, jan./jun. 2004.). Nesse sentido, tanto essas interações quanto aquelas demonstradas anteriormente exibem distintos modos em que os espaços virtuais se vinculam ao material, seja fornecendo um canal de interação através do qual um motorista poderá adquirir um desconto para a blindagem de seu carro, seja como um meio de divulgar uma manifestação realizada presencialmente.

Figura 10
Postagem de Thiago no Instagram sobre seu contato com motoristas de aplicativo.

Figura 11
Comentários à postagem de Thiago no Instagram.

Ademais, as postagens que estabelecem vinculações como essas fornecem um meio através do qual Thiago pode provar que sua atuação vai além de redes sociais como Instagram, já que ele chega aos espaços onde grupos específicos de motoristas costumam realizar viagens, como é o caso de sua ida ao Recife Flat em Boa Viagem. Assim, essas postagens operam como equivalentes ao “estar lá” de nós antropólogos, já que funcionam como prova de autoridade mobilizada por Thiago para conseguir respaldo e reconhecimento dos motoristas que o seguem. Aqui, a presença nos ambientes frequentados por estes últimos (sejam eles virtuais ou não) é justamente aquilo que justifica tal autoridade.

Dicas feitas por e para motoristas

No Instagram de Thiago, as redes de apoio também se expressam através do compartilhamento de informações que os motoristas fazem entre si. De fato, além das informações concedidas por Thiago em seu posts, aquelas que são socializadas pelos motoristas nos respectivos comentários dessas postagens também são fundamentais para que eles tenham dados para desviarem das falhas operacionais dos aplicativos de corrida, bem como de suas potenciais arbitrariedades. Desse modo, é possível identificar margem para compreender as distintas formas com as quais diferentes motoristas apreendem e se relacionam com uma mesma funcionalidade dos aplicativos de corrida, já que, se alguns motoristas confirmam o que foi dito por Thiago, outros parecem ter uma visão oposta à de meu interlocutor. É o que podemos ver nas Figuras 12 e 13. Aqui, Thiago expõe sua percepção de um dos mecanismos utilizados pela Uber para atrair passageiros nos momentos de baixa demanda, a Uber Promo, que permite que quem pede uma viagem pelo aplicativo possa pagar menores valores por viagem. Com um print de uma das viagens dispostas em seu aplicativo com a referida função, Thiago parece fazer uma conta que envolve quilômetro percorrido por valor do litro de gasolina, a partir dos dados fornecidos pelo aplicativo. Embora não fale explicitamente, o resultado de sua conta é óbvio: um prejuízo de 4 reais para o motorista que aceitasse percorrer o trajeto. No entanto, não é o que pensa um de seus seguidores. Para este, a Uber Promo faria sentido para o motorista que roda com GNV14 14 Gás natural veicular. ou para aquele que quer evitar ir para certo destino sem um passageiro. Thiago responde o comentário com ainda mais clareza do que aquela presente em seu post: para ele, sob nenhuma circunstância tal funcionalidade é vantajosa ao motorista.

Figura 12
Postagem de Thiago no Instagram sobre o Uber Promo.

Figura 13
Comentários à postagem de Thiago no Instagram sobre o Uber Promo.

Interações como essas são recorrentes no Instagram de Thiago. Quando acontecem, elas vêm acompanhadas de relatos sobre experiências que podem ou não confirmar as perspectivas de Thiago. De uma forma ou outra, tais espaços servem como canais através dos quais os motoristas podem melhor se informar sobre sua circulação, tendo espaço tanto para relatar suas próprias experiências quanto para escutar a visão de outros motoristas. Espaços como esses parecem suscitar saberes sobre a cidade capazes de chegar a um público amplo, já que são expostos em uma rede social de uma figura pública como Thiago. Além disso, o fato de ele responder alguns dos comentários que recebe (inclusive aqueles discordantes) parece potencializar ainda mais tal dimensão.

Além de alertar sobre funções desvantajosas, esses espaços também servem como um canal para informar sobre potenciais defeitos nas infraestruturas dos aplicativos de corrida compartilhada. É o que mostra o post presente nas Figuras 14, 15 e 16. Aqui, Thiago alerta sobre o que ele mesmo chama de um bug no aplicativo de corrida compartilhada 99. Nesse dia, devido à alta demanda de viagens, a 99 anuncia que dará recompensas para os motoristas que decidiram aceitar viagens, como indica a Figura 14, onde vemos uma recompensa de 24 reais pelo fato de Thiago ter aceitado uma viagem caracterizada como “embarque de longa distância”. De fato, como no dia dessa viagem (11 de agosto de 2021, como indica a Figura 16) Recife passava por uma forte chuva, que acabou por provocar alagamentos em vários territórios da cidade (Terceiro […], 2021TERCEIRO dia seguido de chuvas fortes causa alagamentos e complica o trânsito no Grande Recife. G1 Pernambuco, Recife, 11 ago. 2021. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2021/08/11/terceiro-dia-seguido-de-chuvas-fortes-causa-alagamentos-e-complica-o-transito-no-grande-recife.ghtml . Acesso em: 11 jul. 2022.
https://g1.globo.com/pe/pernambuco/notic...
), recompensas como as oferecidas a Thiago eram uma forma de a 99 compensar pelos riscos de trafegar pela cidade em tal condição. No entanto, uma vez aceita, as recompensas se mostraram consideravelmente menores, como mostra a segunda imagem de seu post (Figura 15), quando evidencia uma recompensa de apenas 24 centavos para meu interlocutor. É o que confirma um outro motorista em um dos comentários do mesmo post, ao relatar sua experiência nesse dia (Figura 16). Semelhante à de Thiago no que diz respeito a falta de simetria entre demanda por passageiros e valores por viagens, este último vai mais longe ao afirmar que uma tentativa de desviar desses bugs podia vir acompanhada de potenciais bloqueios.

Figura 14
Postagem de Thiago no Instagram sobre o bug no aplicativo 99.

Figura 15
Postagem de Thiago no Instagram mostrando a diferença de valor no aplicativo 99.

Figura 16
Comentário à postagem de Thiago no Instagram sobre o bug no aplicativo 99.

Mais do que críticas à arbitrariedade das empresas de aplicativo ou exigências específicas ao poder público, algumas das postagens de Thiago versam sobre o orgulho de conseguir o melhor aproveitamento possível enquanto um “motorista parceiro”. Se em alguns momentos esse orgulho se expressa enquanto uma promoção do próprio Thiago (Figura 17), em outros ele vocaliza a “excelência” de outros motoristas que compartilham suas respectivas notas com meu interlocutor (Figura 18). Tratando-os como guerreiros que conseguem fazer seu melhor mesmo em situações adversas, esses espaços são locais para louvar o mérito individual e o empenho.

Figura 17
Postagem de Thiago no Instagram sobre a qualidade do seu serviço.

Figura 18
Postagem de Thiago no Instagram sobre a qualidade do serviço prestado pelos outros motoristas.

Precariedade em movimento

Como fica claro na breve perambulação virtual (Leitão; Gomes, 2017LEITÃO, D. K.; GOMES, L. G. Etnografia em ambientes virtuais. Perambulações, acompanhamentos e imersões. Antropolítica, Niterói, n. 42, p. 41-65, 1. sem. 2017.; Segata, 2016SEGATA, J. Dos cibernautas às redes. In: SEGATA, J.; RIFIOTIS, T. (org.). Políticas etnográficas no campo da cibercultura. Brasília: ABA, 2016. p. 91-114.) que fiz aqui, Thiago demonstra uma rede de solidariedade, suporte material e reconhecimento social robusta, o que, em parte, justifica sua reticência em aceitar a proposta feita por mim. Aliado às intermitências de nosso diálogo, encaro tais dissensos como elementos a serem evidenciados na escrita etnográfica, já que ajudam a compreender os interlocutores de pesquisa enquanto atores políticos autônomos, que não esperam nem dependem da ação de um “antropólogo bondoso” (Bourgois, 1997BOURGOIS, P. Confronting the ethics of ethnography: lessons from fieldwork in Central America. In: HARRISON, F. V. (ed.). Decolonizing anthropology: moving further toward an anthropology for liberation. 2nd ed. Arlington: American Anthropological Association, 1997. p. 111-127.). Munidos de associações políticas específicas, esses motoristas constroem formas singulares de resistirem a algumas das arbitrariedades às que a Uber os submetem, especialmente pela forma com a qual eles compartilham e utilizam as informações sobre suas circulações cotidianas.

Do ponto de vista etnográfico, o mais importante aqui é explicitar o encadeamento de razões e motivos que me fizeram buscar um interlocutor como ele. Isso porque foi através da dinâmica dessa busca que as questões que constituem a contraditória relação dos motoristas com os aplicativos de corrida puderam vir à tona. Aqui, menos do que algo previamente estabelecido, a precariedade que constitui a realidade dos motoristas era algo que se movimentava de acordo com as possibilidades de interlocução que eu tinha com Thiago, bem como nas decisões que eu tomava frente a essas dificuldades. Isso porque, se quisermos compreender a precariedade enquanto uma categoria capaz de expressar diversas formas de vulnerabilidade (como defendo no tópico seguinte), é necessário descrever o processo de circulação dos relatos através dos quais as variadas dinâmicas de espoliação sofridas pelos motoristas são expostas, bem como na maneira com a qual esses relatos se movimentam entre ambientes virtuais distintos.

Nessa perspectiva, como recomenda uma ampla literatura sobre etnografia em ambientes virtuais (Leitão; Gomes, 2017LEITÃO, D. K.; GOMES, L. G. Etnografia em ambientes virtuais. Perambulações, acompanhamentos e imersões. Antropolítica, Niterói, n. 42, p. 41-65, 1. sem. 2017.; Miller; Slater, 2004MILLER, D.; SLATER, D. Etnografia on e off-line: cibercafés em Trinidad. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 41-65, jan./jun. 2004.; Segata, 2016SEGATA, J. Dos cibernautas às redes. In: SEGATA, J.; RIFIOTIS, T. (org.). Políticas etnográficas no campo da cibercultura. Brasília: ABA, 2016. p. 91-114.), seria possível dissolver uma dicotomia que frequentemente emerge nos estudos sobre cibercultura e mídias sociais (Rifiotis, 2016RIFIOTIS, T. Etnografia no ciberespaço como “repovoamento” e explicação. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 31, n. 90, p. 85-99, fev. 2016.). Essa dicotomia seria constituída pela existência de dois mundos que estariam a priori separados. Por um lado, se encontra o mundo das simbologias, discursos e subjetividades, onde estão os humanos e suas infindáveis disputas por poder (Latour, 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Tradução de Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.). Do outro, o mundo dos objetos técnicos (não humanos), dinamizados pelas leis imanentes da natureza, aparentemente imunes às controvérsias do sempre nebuloso universo dos humanos. Própria do pensamento moderno (Latour, 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Tradução de Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.), tal dicotomia se expressa nos estudos sobre mídias sociais quando se tenta tornar opaco o meio pelo qual os humanos vinculam a expressão de símbolos, discursos e subjetividades. Em contraste a isso, os autores acima citados incluem as dimensões técnicas das redes sociais como atores do processo social, ou seja, os algoritmos, a tela dos smartphones, a rede móvel que conecta os celulares saem dos bastidores silenciosos da ação para se tornarem actantes (Latour, 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Tradução de Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.), amalgamados aos atores humanos. Aqui, as redes sociais não seriam apenas um “locus de sociabilidade” (Rifiotis, 2016RIFIOTIS, T. Etnografia no ciberespaço como “repovoamento” e explicação. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 31, n. 90, p. 85-99, fev. 2016.), mas um tecido não inteiriço, “pois está mesclado de outros elementos que desempenham atividades diversas no curso da ação” (Rifiotis, 2016RIFIOTIS, T. Etnografia no ciberespaço como “repovoamento” e explicação. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 31, n. 90, p. 85-99, fev. 2016., p. 90).

Para os termos deste trabalho, a aparente dicotomia entre humanos (os relatos dos motoristas sobre suas conturbadas rotinas de trabalho, bem como suas concordâncias e dissensos acerca de sua própria profissão) e não humanos (as redes sociais dos motoristas, o WhatsApp, a queda dos áudios de Thiago) poderia ser superada por uma abordagem que enxergue: 1) as crises e instabilidades do processo interlocutivo do pesquisador com interlocutor; 2) as arbitrariedades vividas pelos motoristas em sua circulação cotidiana; e 3) a dinâmica própria de interação de redes sociais como Instagram, com seu ritmo frenético de curtidas, compartilhamentos e comentários como um híbrido (Latour, 2012LATOUR, B. Reagregando o social: uma introdução à Teoria do Ator Rede. Salvador: EDUFBA, 2012.), que tem a precariedade como categoria/movimento capaz de furar a suposta oposição entre técnica, de um lado, e suas explicações sociais, de outro (Leitão; Gomes, 2017LEITÃO, D. K.; GOMES, L. G. Etnografia em ambientes virtuais. Perambulações, acompanhamentos e imersões. Antropolítica, Niterói, n. 42, p. 41-65, 1. sem. 2017.).

Considerações finais

Aprofundemos esse ponto à luz dos usos que certa sociologia do trabalho faz da categoria precariedade, em contraste com o uso que proponho aqui. Com isso, pretendo sugerir que mais do que um termo utilizado para descrever precisamente um fenômeno social dotado de tais ou quais características, precariedade pode ser utilizada para descrever certo laço social que interliga, por um lado, os interlocutores uns aos outros e, por outro, os interlocutores ao próprio pesquisador.

O termo “precariedade” é frequentemente utilizado para descrever fenômenos diversos. Em seu uso mais frequente desde que o neoliberalismo se sustentou enquanto modelo de acumulação hegemônico a partir dos anos 1980 no mundo, precariedade começou a ser utilizado como categoria capaz de descrever as modalidades de relações laborais que emergiram a partir da chamada era da acumulação flexível. Aqui, empresas que têm sua produção distribuída ao longo de todo o globo - mas com seus centros de comando localizados nos países centrais do capitalismo - administram seus trabalhadores sob a instabilidade dos contratos intermitentes, o que, com o argumento de corte de custos e necessária flexibilidade para atender a demandas sempre mutáveis, impõe aos trabalhadores igual flexibilidade para atender a rotinas que não podem ser mais previstas. De fato, para se manter em atividade no mercado de trabalho, o(a) trabalhador(a) - que autores como Antunes (2018)ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018. e Braga (2013)BRAGA, R. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2013. compreendem como precariado - precisa estar acostumado(a) a se adaptar a novos modos de controle e gerência que são permanentemente introduzidos aos locais de trabalho.

Aliado a isso, para certa literatura (Braga, 2017BRAGA, R. A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no sul global. São Paulo: Boitempo, 2017.; Standing, 2013STANDING, G. O precariado: a nova classe perigosa. São Paulo: Autêntica, 2013.), um outro ponto que ajudaria a conceituar os(as) trabalhadores(as) precários(as) seria a mobilização por projetos políticos autoritários. De fato, como o precariado não estaria mais envolvido com espaços de classe tradicionais (como os sindicatos), onde tanto uma certa compreensão de mundo quanto complexos processos de reconhecimento são construídos e compartilhados pelos trabalhadores, essa classe perigosa (Standing, 2013STANDING, G. O precariado: a nova classe perigosa. São Paulo: Autêntica, 2013.) seria facilmente seduzida por soluções de caráter populista. Aqui, o enfrentamento ao sistema político vigente aparece como solução para algumas das angústias de indivíduos que vivem sob o signo da flexibilidade.

No entanto, os usos do termo precariedade - também utilizado para descrever a condição de vida dos trabalhadores precários (Braga, 2013BRAGA, R. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2013., 2017BRAGA, R. A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no sul global. São Paulo: Boitempo, 2017.; Standing, 2013STANDING, G. O precariado: a nova classe perigosa. São Paulo: Autêntica, 2013.) - frequentemente vêm à tona para descrever outras épocas que não as dos anos neoliberais. Nesse sentido, Braga (2013)BRAGA, R. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2013. utiliza esse termo para descrever a realidade daqueles trabalhadores emigrados do Nordeste, e que em grandes capitais como São Paulo irão servir como mão de obra barata para sustentar a produtividade das grandes indústrias do Brasil durante a década de 1930 até 1960. Responsáveis por ocuparem as regiões periféricas dos grandes centros urbanos, já que seus baixos salários reservam a eles as piores condições de habitação e saneamento, esses trabalhadores, assim como os de telemarketing do século XXI igualmente abordados por Braga, também recebem a alcunha de trabalhadores precarizados. Aqui, formas distintas de organização da produção, que permitem a emergência de subjetividades díspares (uma marcada pelos atos repetitivos do modelo fordista, e a outra pela flexibilidade imanente ao neoliberalismo) são igualmente definidas por parte da literatura enquanto expressão da precarização (Antunes, 2018ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.; Braga, 2013BRAGA, R. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2013.).

Autoras como Abílio (2019)ABÍLIO, L. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, [s. l.], v. 18, n. 3, p. 41-51, 2019. buscaram dar uma precisão maior para esse termo ao dar ênfase nas modalidades de administração dos trabalhadores pelas grandes empresas. Nesse sentido, para falar dos trabalhadores de aplicativo, Abílio (2019)ABÍLIO, L. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, [s. l.], v. 18, n. 3, p. 41-51, 2019. cita que a forma com a qual os algoritmos dos aplicativos administram os movimentos dos trabalhadores através dos grandes centros urbanos expressa nada mais do que o aprofundamento de um tipo de controle próprio da fase neoliberal do capitalismo. Assim, autogerenciamento subordinado (Abílio, 2018ABÍLIO, L. Uberização e viração: mulheres periféricas no centro da acumulação capitalista. Margem Esquerda, São Paulo, n. 31, p. 54-61, 2018., 2019ABÍLIO, L. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, [s. l.], v. 18, n. 3, p. 41-51, 2019.) é o termo mobilizado por Abilio para descrever a forma com a qual os trabalhadores lidam com o controle feito pelos algoritmos dos aplicativos de corrida, que, ao implicar uma dinâmica de controle dispersa através de uma série de atores e circunstâncias, não pode se restringir nem a um lugar específico nem às mesmas lógicas de controle e avaliação ao longo do tempo (na medida em que o que é considerado como uma viagem satisfatória varia de passageiro para passageiro). Para Abílio, tais dinâmicas de controle, embora radicalizadas pela dinamicidade das inteligências artificiais dos aplicativos, são parecidas àquela a que os trabalhadores precarizados das empresas que emergiram a partir do processo de globalização produtiva estão sujeitos.

Embora a caracterização de Abílio seja fundamental pela sua capacidade de identificar o que singulariza os trabalhadores de aplicativos perante outros trabalhadores que estão envolvidos por contextos flexíveis, ela talvez não dê maiores subsídios para uma compreensão mais rígida sobre o porquê de a experiência social de um motorista de aplicativo ser mais (ou menos) precária do que a de um trabalhador do setor de teleatendimento, ou uma outra que trabalha como revendedora da Avon (Antunes, 2018ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.). Ou ainda, caso queiramos considerar tanto motoristas de aplicativo quanto revendedoras da Avon enquanto trabalhadores(as) precarizados(as), deveríamos questionar se uma categoria que descreve dinâmicas de labor tão distintas pode realmente servir enquanto categoria útil para compreender o atual mundo do trabalho.

À luz das experiências etnográficas que descrevi ao longo deste trabalho e dos limites acerca dos usos da categoria precariedade, sugiro que seja possível olhar para esse termo enquanto uma categoria associativa, que serviria menos como recurso através do qual o pesquisador poderia definir com precisão sociológica um tipo específico de fenômeno do que como um operador político com capacidade de construir um horizonte comum entre sujeitos com demandas singulares. Ou seja, defenderia que precariedade poderia apontar para uma certa vulnerabilidade da experiência social que, embora atravesse de maneiras distintas agrupamentos sociais diferentes, demonstra indistintamente que o outro pode vir a perecer, seja por uma bala de borracha vinda da polícia militar em um protesto de professores, seja por um acidente de carro causado pela desatenção no trânsito após uma noite inteira levando passageiros em uma grande cidade. Baseio tal discussão sobretudo a partir das reflexões de Judith Butler (2022)BUTLER, J. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. acerca das dinâmicas de produção dos regimes de visibilidade através dos quais certas mortes são sentidas e enlutadas, enquanto outras são omitidas. Butler dá ênfase em como a vulnerabilidade física aponta, de maneira incontornável, para o entrelaçamento que temos uns com os outros, e de que dependemos desse entrelaçamento para nos sustentarmos enquanto alguém que necessita de suporte material e simbólico:

Isso significa que somos constituídos politicamente em parte pela vulnerabilidade social dos nossos corpos - como um local de desejo e vulnerabilidade física, como um local de exposição pública ao mesmo tempo assertivo e desprotegido. A perda e a vulnerabilidade parecem se originar do fato de sermos corpos socialmente constituídos, apegados a outros, correndo o risco de perder tais ligações, expostos a outros, correndo o risco de violência por tal exposição (Butler, 2022BUTLER, J. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2022., p. 40).

Nesse sentido, uma vida precária é justamente aquela marcada pela experiência da vulnerabilidade, definida pela ausência - e ao mesmo tempo busca - de condições materiais e simbólicas que sustentem uma vida como passível de ser vivida, bem como de ser reconhecida por uma série de outras vidas. Assim, é seu entrelaçamento com essas outras que permite, por um lado, que ela seja sustentada, e, por outro, que ela seja sentida caso venha a perecer.

Tal debate na obra de Butler enseja uma discussão complexa sobre ética, geopolítica e imperialismo, sobretudo após o 11 de Setembro nos Estados Unidos (e as narrativas que autorizaram discursivamente a invasão ao Iraque e a outros países do Oriente Médio pelo exército estadunidense). No entanto, nos termos deste trabalho, tal discussão é fundamental para compreendermos as redes construídas entre os interlocutores, e destes para com o pesquisador que escreve estas linhas. De fato, foram variadas formas de precariedade, ou seja, diversas formas de vulnerabilidade material e simbólica que permitiram que atores humanos (e não humanos) interagissem e dessem visibilidade uns aos outros. Assim, foi na busca de atender às vulnerabilidades materiais dos motoristas de aplicativo que Thiago utilizou de seu Instagram tanto para compartilhar descontos em mecânicos e oferecer assistência psicológica a outros motoristas parceiros quanto para dar visibilidade às questões dos motoristas e, com isso, fazer suas vulnerabilidades e ausências serem sentidas por um público mais amplo. Do mesmo modo, foi minha própria vulnerabilidade psíquica em um contexto pandêmico que me fez entrar em certos espaços, responsáveis por me levar ao encontro de Thiago.

Por fim, creio ser possível realizar um giro no olhar que se tem sob o termo precariedade, para além de uma categoria mobilizada pelo sujeito/pesquisador para compreender da forma mais precisa o interlocutor/objeto. Assim, precariedade se tornaria uma ferramenta para identificar diversas formas de vulnerabilidade, bem como de que forma os atores se associam para lidar com tais vulnerabilidades na produção coletiva de um mundo comum.

Referências

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  • WAGNER, R. A invenção da cultura São Paulo: Ubu, 2017.
  • 1
    Como esse interlocutor pediu que deixasse seu nome e identificação tal como eles são de verdade (ou seja, sem pseudônimos), optei por atender ao seu pedido.
  • 2
    Na medida em que se contrapõe à busca de sociedades organicamente constituídas, como diz Strathern (2017)STRATHERN, M. O efeito etnográfico. São Paulo: Ubu, 2017..
  • 3
    Como aprofundo no último tópico deste artigo.
  • 4
    Utilizo aqui alguns de meus achados etnográficos feitos durante meu mestrado.
  • 5
    Alguns levantamentos demonstram (Pesquisas […], 2021PESQUISAS apontam que 400 mil mortes poderiam ser evitadas; governistas questionam. Senado Notícias, Brasília, 24 jun. 2021. Disponível em: Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/06/24/pesquisas-apontam-que-400-mil-mortes-poderiam-ser-evitadas-governistas-questionam . Acesso em: 4 jul. 2022.
    https://www12.senado.leg.br/noticias/mat...
    ) que o atraso na compra de doses da vacina de Covid-19 representou um adicional de 400 mil mortes, absolutamente evitáveis.
  • 6
    Cheguei a essa compreensão de maneira conjunta com minha terapeuta.
  • 7
    Como os membros de seu mandato intitulam a si mesmos.
  • 8
    Em uma pesquisa exploratória através do Google, notava que o nome da Amape sempre era citado quando a busca por “paralisação de aplicativo” era feita por mim.
  • 9
    Local no Instagram onde os usuários podem fazer uma descrição sucinta de si mesmos.
  • 10
    Ferramenta que permite a qualquer usuário do Instagram enviar mensagens diretas para algum perfil específico. No entanto, caso o usuário desejar, ele pode restringir a possibilidade de receber essas mensagens apenas àqueles seguidores seguidos por ele próprio, o que não parecia ser o caso de Thiago. De fato, como o leitor irá notar, mesmo Thiago não sendo meu seguidor, eu consegui mandar uma mensagem direta para ele nessa rede social.
  • 11
    Mesmo que a ferramenta no Instagram não deixe isso registrado, Thiago respondeu minha mensagem no mesmo dia 18 de março em que fiz a pergunta. Afirmo isso porque a plataforma indica, no topo de cada mensagem, quando a mensagem é enviada em um dia diferente daquela que foi primeiramente encaminhada.
  • 12
    Como nesse diálogo o interlocutor me diz seu número pessoal, optei por não torná-lo público.
  • 13
    O WhatsApp fornece uma ferramenta ao usuário que o permite buscar uma mensagem já enviada, ao mesmo tempo que se envia uma nova logo abaixo dela. Do ponto de vista interlocutivo, isso permite que temas sejam resgatados, bem como que respostas confirmadas ou negadas por aqueles com quem se dialoga.
  • 14
    Gás natural veicular.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    06 Out 2023
  • Aceito
    31 Maio 2024
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH-UFRGS UFRGS - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43321, sala 205-B, 91509-900 - Porto Alegre - RS - Brasil, Telefone (51) 3308-7165, Fax: +55 51 3308-6638 - Porto Alegre - RS - Brazil
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