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BLOOM, Harold. Presságios do Milênio: anjos, sonhos e imortalidade. Rio de Janeiro: Objetiva, 1996. 185 p.

BLOOM, Harold. Presságios do Milênio: anjos, sonhos e imortalidade. 1996. Rio de Janeiro: Objetiva, 185

Harold Bloom, não sendo cientista social e sim um prestigiado crítico literário americano contemporâneo, vem contribuir ao debate em torno da presença da religião no final de século, reivindicando a vida espiritual como necessidade humana que transcende às estruturas institucionais, históricas e dogmáticas. No seu livro Presságios do Milênio: anjos, sonhos e imortalidade, lançado no Brasil pela Editora Objetiva em 1996, mesmo ano em que foi publicado nos Estados Unidos, sob o título Omens of Milenium: the gnosis of angels, dreams and resurrection, o autor aborda com a erudição que o caracteriza, questões de grande interesse para leigos e estudiosos do tema.

Presságios do Milênio é o resultado de muitos anos de estudo da gnose antiga e contemporânea. Bloom combina sua trajetória pessoal de crítico literário, tendo presente o elemento estético, com a dimensão espiritual que, no seu entender, constitui o objeto da crítica religiosa, inclusive com certo grau profético. Nessa perspectiva, o livro pode ser lido como uma obra “literária-religiosa” já que, para o autor, as obras literárias, através do domínio da linguagem, podem comunicar a transcendência. Esta, entendida como atributo de Deus e atributo humano. Mas o livro também é fruto de suas preocupações espirituais, pessoais, judaicas e americanas. Nesse sentido, ele próprio o define como uma autobiografia espiritual (“uma canção ao eu”) e um sermão gnóstico. São essas duas leituras possíveis, e complementares, do livro, que me proponho a comentar.

Enquanto obra “literária-religiosa”, Bloom observa que há um senso contemporâneo de angústia com a aproximação do milênio, um senso que tem seu próprio sabor característico, e é admiravelmente semelhante à angustia gnóstica de dois milênios atrás, que as obsessões americanas por anjos, sonhos e viagens a outro mundo tem claras analogias no período de formação do gnosticismo antigo. O autor propõe, como explicação desses paralelos, uma idéia que se encontra presente em todas as gnoses antigas, medievais e modernas, as quais “buscam responder a uma necessidade autêntica e duradoura, que é reconciliar o tempo e a morte com nossos prenúncios de imortalidade” (p. 63).

Assim, nesta obra instigante e polêmica, Bloom discute e analisa as relações entre anjos, sonhos, viagens a outro mundo e expectativas messiânicas, enquanto imagens recorrentes da espiritualidade humana, que têm “famosos precursores em veneráveis tradições”. No entanto, ele recorre, erudita e originalmente, à grande tradição religiosa ocidental, indo buscar no imaginário religioso do gnosticismo cristão, do sufismo xiita muçulmano e do cabalismo judaico, os três mais generalizados augúrios presentes na religiosidade americana. Isso com o propósito de “estabelecer o contexto que possa servir como padrão de medida espiritual para esses fenômenos, conhecendo o que melhor se escreveu sobre eles no passado, pois do contrário nos afogaremos em entusiasmos e auto-satisfações da Nova Era” (p. 161). Para tanto, segue autores como Hans Jonas e lona Couliano para o primeiro, Henry Corbin para o segundo e Gershom Scholem e Mosche Idel para o último, os quais considera os melhores estudiosos dessas tradições.

Como crítico religioso, o autor procura resgatar o elemento espiritual presente nessas crenças, isto é, o centro da experiência religiosa. Portanto, lhe interessa “a superioridade espiritual da gnose mais antiga em relação a nossos degenerados modos contemporâneos cúlticos ou populares” (p. 146), já que, para ele, a gnose explica melhor a persistência das grandiosas imagens de anjos, as profecias em sonhos, a vida após a morte e outros augúrios do milênio que se encontram presentes há dois mil anos. Para o escritor, essas crenças reinam no mundo intermediário, que não é nem o mundo empírico dos sentidos nem o mundo abstrato do intelecto. Também não se encontram como arquétipos do inconsciente coletivo. Elas teriam sua própria força e persistência, atestando a necessidade e o desejo humanos, mas também uma fronteira transcendente que assinala um limite ao humano ou uma ausência de limite que talvez esteja além do humano.

Contudo, Bloom sustenta que todas essas crenças, mesmo com sua degeneração comercial, atestam, mais do que nunca, uma expectativa de libertação dos fardos de uma sociedade cansada de seu senso de atraso, tendo como sintoma predominante o declínio dos padrões intelectuais no governo, nas universidades, nos meios de comunicação, refletido, inclusive, pelos anjos da Nova Era.

Tratando-se de uma autobiografia espiritual, cabe precisar alguns elementos que a compõem, e que permitem compreender o que o autor rejeita e no que ele “acredita”, ou melhor, “conhece”. Esses elementos encontram-se explicitados com maior clareza no Prelúdio e na Coda: Sermão Gnóstico.

Harold Bloom se autodefine como não cristão e judeu gnóstico, que tem seu próprio conflito com o judaísmo normativo. E a partir de sua história pessoal que explica a gnose e como entende o gnosticismo; por isso, trazer esses dados biográficos torna-se pertinente. Aos 64 anos descobre que “1er, viver e meditar mais não vai alterar muito o eu”, este entendido como a centelha divina. Volta-se para a gnose, na convicção de que ela liberta porque ensina uma ressurreição que precede à morte. A preocupação do autor com a morte lembra J. L. Borges e seu Instantes. Porém, ambos escolhem caminhos distintos para resolver suas “angústias”: o último aceitando-a com resignação e o outro reconhecendo que faz considerável diferença acreditar que remontamos a antes da criação, que sempre estivemos lá, parte e partícula de Deus, garantindo dessa forma sua imortalidade.

Mas se o livro todo é quase um testemunho de conversão religiosa e um sermão gnóstico, então, em termos gerais, poder-se-ia dizer que vai se articulando na busca do gnosticismo puro ou do “simples gnosticismo, sem misturas”, a partir de duas rejeições: de um lado, as religiões normativas, as fés institucionalizadas, e, de outro, o que Bloom chama de gnosticismo travestido, materializado na vacuidade do discurso da Nova Era.

No decorrer de Presságios do Milénio encontra-se a oposição permanente entre a visão de Deus gnóstica e a das fés institucionais. A primeira, trata do conhecimento do Deus interior como uma modalidade de experiência religiosa e de espiritualidade irredutível. A segunda, refere-se ao Deus do cristianismo europeu encarado como externo ao eu, como um impostor independentemente do nome que assuma. Afirma que “um Deus que tolerou o Holocausto simplesmente é intolerável” (p. 16). Para Bloom, as ortodoxias dogmáticas suprimiram ou exilaram o elemento imaginativo da religião que é a gnose, entendida como o conhecimento de Deus e como doutrina do eu profundo ou mais profundo, que se distingue da psique ou da alma.

Por outro lado, o autor procura distanciar-se da auto-adoração promovida pela Nova Era, a qual teria sua origem numa velha mistura de Ocultismo e Fé Harmonial americana, suspensa a meio caminho entre o sentir-se bem e os bons sentimentos, mas que ele considera “uma degradação contemporânea do gnosticismo”.

Sustenta que tanto a obsessão popular pela quase morte quanto o atual reducionismo do mundo angélico, possuem um mínimo de realidade espiritual. No entanto, sua comercialização resultou numa caricatura de verdades gnósticas antigas. Para Bloom, a literatura de quase morte é tão insípida quanto as narrativas populares sobre anjos, e as experiências de quase morte são paródias de xamanismo autêntico. Porque, com raríssimas exceções, não têm senso algum de divindade, nenhuma convicção de que um eu mágico está voltando a seu domínio próprio»

Portanto, ele procura construir sua gnose pessoal remontando às origens, não do cristianismo, mas do pleroma, estado em que Deus e o humano são indistinguíveis, libertando-se das igrejas dogmáticas e de seu “falso resto de Deus e dos Anjos que eram o resíduo depois que romperam com o humano” (p. 180).

Chama atenção que, na busca do “gnosticismo mais puro”, Bloom adote, para elaborar o seu Sermão Gnóstico, uma antiga fórmula de Valentino, que reconhece como “o mais poderoso autor entre os antigos gnósticos”, considerando que ele observa neste “um grande elitista, que oferecia uma salvação e ressurreição intelectuais para os intelectuais, e uma esperança modificada para os de menores dotes” (p. 144). Mas será que, ao se dirigir “aos sem igrejas, aos buscadores de muitos tipos, que são demasiados lúcidos e espiritualmente maduros para brincar com os brinquedos Nova Era ou Woodstock” (p. 171), o autor não está pregando um gnosticismo tão elitista quanto a crítica que ele faz a seu grande inspirador?

Evidentemente, o conteúdo de Presságios do Milênio não se esgota nos parágrafos anteriores. Os cinco capítulos do livro: Anjos, Sonhos, Não morrer, Gnose e Milênio, mais o Prelúdio e a Coda, são densificados por informações, datas, autores, referências geográficas e as mais variadas representações religiosas presentes ao longo de quase dois mil anos, nas três tradições examinadas pelo autor. Sem dúvida, a obra de Bloom constitui uma excelente referência de consulta para leigos e estudiosos da religião interessados em aprofundar essas matérias, já que reflete por extenso a trajetória de um dedicado estudioso do gnosticismo, há algumas décadas professor nas Universidades de Yale e Nova York. Então, conhecer a origem dessas crenças, através da vasta e erudita bibliografia revisitada pelo autor, possibilita reflexões bem mais fundamentadas para observar as reinterpretações, continuidades e misturas que se encontram na base da busca e da prática das mesmas, hoje em curso em nossas sociedades.

Afinal, o milênio e as expectativas messiânicas não são novidades no Brasil. Basta lembrar o Movimento do Contestado, Canudos e Mucker e a preocupação renovada por eles, que se expressa enquanto objeto de filmes e de teses acadêmicas. A crença em anjos, reflete-se no aumento da literatura angélica. Conforme o levantamento realizado pelo Catálogo Brasileiro de Publicações (CPB), em 1993 registravam-se 13 livros disponíveis, número que aumenta para 21 em agosto de 1994 e que duplica em setembro de 1995, período no qual contabilizam-se 52 títulos no mercado (Istoé, 1353, 6/9/95). Ao mesmo tempo encontramos a Projeciologia e sua difundida “experiência fora do corpo” e o Movimento Gnóstico Cristão Universal do Brasil, espalhado por todo o país. Portanto, vale perguntar: tudo isso tem algo a ver com as antigas crenças discutidas por Bloom? E, se assim for, para onde caminha nossa religiosidade ou espiritualidade?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 1998
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