O livro de Tracy McDonald e Daniel Vandersommers (2019) é um ótimo sinalizador do potencial e dos limites que o campo de investigações identificado como zoo studies possui. Associados a campos similares, como animal studies, os zoo studies têm uma particularidade: são centrados em uma instituição que, segundo os organizadores, normaliza uma determinada maneira de estar no mundo, apartada dos demais seres viventes. Essa instituição é acusada de legitimar, por meio do cativeiro, a supremacia dos humanos sobre os não humanos, assim como de desqualificar o direito destes últimos ao mesmo planeta que habitamos. Os zoo studies surgem, portanto, não apenas para dar visibilidade aos habitantes cativos dos zoológicos, mas também para questionar o nosso próprio conceito de “humanidade”, em oposição, desde o Iluminismo, ao de “animal”.
Esses princípios são interessantes e oportunos. A academia tem, de fato, muito a investigar sobre a história dos zoológicos, assim como há muito a ser discutido, nas mais diversas áreas de conhecimento, sobre o papel que os zoológicos desempenham na sociedade contemporânea e em diversos contextos socioculturais. Não são os princípios, portanto, a razão de minha crítica ao livro de McDonald e Vandersommers. Não divergimos quanto a eles, mas na plataforma política que subjaz a esses princípios. Antes de levantar questões para um debate, farei um breve sumário do conteúdo do volume.
O livro reúne 13 textos organizados em ordem cronológica, que vai do século XVII ao XXI. Não é esse recorte temporal, contudo, que pretendo destacar, e sim o fato de que os textos possuem características distintas quanto ao objeto, à abordagem e ao formato. Esse conjunto pode ser dividido em três grupos. O primeiro é o mais numeroso, com sete textos, incluindo aqueles que se dedicam ao zoológico como instituição e a alguns dos sujeitos que vincularam suas vidas a esses lugares: o de Matthew Senior sobre a arquitetura do zoológico e do hospital para doentes mentais no século XVII; o de Nigel Rothfels sobre a relação entre a história natural e a atividade de caça no século XIX; o de Vandersommers sobre experimentos realizados em zoológicos no final do século XIX e início do XX, atualmente considerados crueis e malsucedidos, mas que estariam na própria fundação da ciência moderna; o de Zeb Tortorici sobre a fotografia estereoscópica de animais cativos em zoológicos e currais e de animais mortos em matadouros; o de John Kinder sobre os discursos e as práticas de nutrição e cuidado animal em zoológicos norte-americanos durante a Segunda Guerra Mundial; o de Mariana Szczygielska sobre a exposição de dois pandas, macho e fêmea, no Zoológico de Toronto, aberta em 2013 e justificada em termos conservacionistas, mas analisada pela autora em um amplo escopo político e ideológico; e o de Takashi Ito sobre uma exposição contemporânea, dita “imersiva”, de pinguins e focas no Zoológico de Asahiyama, interpretada a partir de conceitos da cultura local.
No geral, são bons artigos de pesquisa, bem estruturados, baseados em fontes diversificadas e capazes de inspirar desdobramentos. Meu único questionamento é uma certa extrapolação interpretativa em alguns textos, que parece decorrente de um compromisso prévio com os pressupostos do campo, como já argumentou Chris Pearson (2015)PEARSON, Chris. Beyond ‘resistance’: rethinking nonhuman agency for a ‘more-than-human’ world. European Review of History, v.22, n.5, p.709-725, 2015.. Vandersommers, por exemplo, defende que algumas pesquisas experimentais levadas nos zoológicos encontravam “resistência” por parte dos animais e acabavam falhando: “Ainda assim, eles [os cientistas] falharam em seus experimentos porque animais ‘reais’ resistiam ao imperialismo” (p.87). Outro exemplo do que me parece uma extrapolação é o texto de Szczygielska, uma contundente crítica a algumas bizarrices feitas pelo Zoológico de Toronto na exposição sobre os pandas, mas que não consegue sustentar parte de seu argumento quando afirma que a exposição é uma tentativa de reconstruir ou reparar o passado conflituoso entre imigrantes chineses e a sociedade nacional canadense.
O segundo grupo é composto por três textos, que assumem o desafio de explorar um gênero investigativo que vem sendo desenvolvido há pouco tempo, a biografia animal, no caso, de animais cativos em zoológicos. O desafio é de natureza ética e epistemológica, pois não toma os não humanos como seres passivos ou objetos inanimados, mas procura reconhecer sua agência e, principalmente, sua experiência de cativeiro. Nesses textos conhecemos as emocionantes histórias de Dinah, gorila que viveu em 1914-1915 no New York Zoological Park; de Gust (ca. 1952-1988), também gorila, que viveu no Zoológico de Antuérpia; e de Knut (2006-2011), urso polar nascido no Zoológico de Berlim. Os textos foram escritos, respectivamente, por McDonald, Violette Pouillard e Guro Flinterud. Os dois primeiros focalizam a captura e a sobrevida que os gorilas tiveram em cativeiro, os recintos que habitaram, as relações que construíram, as expressões de sofrimento, as reações aos experimentos públicos a que foram submetidos. O terceiro se dedica à análise das “estrelas infantis”, forjadas pelos zoológicos a partir da reprodução bem-sucedida de espécies icônicas, com a finalidade de divulgar suas atividades, atrair visitantes e aumentar a renda.
O terceiro grupo, bastante desigual em relação aos demais, também é formado por três textos, que se assemelham mais a ensaios. O de Randy Malamud é, literalmente, um manifesto pela extinção dos zoológicos, os quais elege como símbolos de uma sociedade ou de uma cultura que deve ser superada e de problemas ambientais contemporâneos do Antropoceno. O de Ron Broglio, mais teórico, advoga a valorização de um comportamento não humano sobre a Terra, que não admita jaulas, que tenha como princípio o respeito às várias formas de existência. Por fim, o de Jonathan Osborn descreve e fundamenta uma pesquisa coreográfica e um espetáculo de dança inspirado em corpos de animais não humanos, como forma de dar agência ao próprio corpo do Outro animal e de refletir sobre sua resistência aos desejos e às expectativas dos humanos.
Diante dessa diversidade de épocas, temas e abordagens, convém colocar algumas questões em debate, suscitadas pela proposta do livro. A mais evidente delas é de natureza política: trata-se de um diálogo Norte-Norte, isto é, os textos tratam de experiências e casos ocorridos nos EUA, no Canadá, em países da Europa ocidental e no Japão – todos com larga tradição imperialista e colonial. Os textos, portanto, partem de uma moldura crítica norteada pela história desses países. Não há problema nisso, mas na forma como os zoológicos e os sujeitos da história, incluindo os não humanos, são inseridos em um movimento que homogeneíza o zoológico como negócio e instituição supranacional, como se não houvesse, no mundo, variação possível. O leitor finaliza o livro perguntando-se se as bandeiras políticas levantadas e o tipo de análise praticado pelos autores aplicam-se às experiências da América Latina e da África, onde também existem zoológicos. E estes, certamente, não são simples emulações da América do Norte e da Europa, como vem demonstrando Regina Horta Duarte (2017DUARTE, Regina Horta. Zoos in Latin America. In: William Beezley (org.). The Oxford research encyclopedia of Latin American history, v.1. Oxford: Oxford University Press, 2017. p.1-21., 2019DUARTE, Regina Horta. “El zoológico del porvenir”: narrativas y memorias de nación sobre el Zoológico de Chapultepec, Ciudad de México, siglo XX. Historia Critica, n.72, p.93-113, 2019.).
Outra questão muito importante é a forma quase caricata como os zoológicos são retratados em alguns textos, como um lugar perverso ou obsceno. Isso é evidente desde a introdução, quando os organizadores pedem aos leitores que esqueçam tudo o que sabem sobre os zoológicos e os acompanhem em uma visita aos bastidores dessas instituições, como se elas tivessem algo a esconder e nossos heroicos autores fossem fazer grandes revelações. Também é evidente nos temas estudados, alguns bastante pungentes e negativos, e na opção de silenciar alguns sujeitos humanos que protagonizaram a história dos zoológicos, tanto quanto os não humanos. É o caso dos biólogos que ali trabalham, para os quais o conceito de “indivíduo” é menos importante que o de “espécie”, ou seja, admitem o sacrifício de alguns poucos indivíduos desde que isso beneficie a conservação da espécie. Em alguns artigos falta simetria no uso de fontes, um procedimento elementar da pesquisa histórica sobre temas polêmicos e controvérsias, mesmo que ela seja revestida de alguma militância política.
Como o livro se propõe a investigar o passado e o presente para repensar o zoológico no futuro, uma questão final se impõe: há um corte epistemológico feito de maneira consciente, que tende a isolar os zoológicos de um contexto muito maior e complexo. Por exemplo, nenhum autor toca em dois assuntos indissociáveis dos zoológicos: a perda de habitat e o tráfico de animais silvestres. As críticas lançadas contra essas instituições remetem sempre ao cativeiro – à captura, prisão e exploração de não humanos em centros urbanos. Não se reconhece que a atuação dos zoológicos é mais ampla do que a exibição, que muitos atuam diretamente na conservação in situ, isto é, de áreas naturais importantes para a sobrevivência de não humanos; que muitos participam do repovoamento da fauna; que são os mais importantes aliados dos governos contra o tráfico de animais silvestres e em desastres ambientais; que eles próprios, os zoológicos, são capazes de gerar e estimular a crítica ambiental que beneficia os autores. Os organizadores do livro reduzem essa atuação extraexibição a um “discurso ambiental” feito pelos zoológicos, como se ele fosse formulado para justificar o cativeiro.
Não estou defendendo que as jaulas devem ser mantidas, pois os zoológicos precisam, sim, ser repensados em vários aspectos. Penso, contudo, que o assunto merece mais cuidado – se realmente queremos incentivar um debate e não apenas erguer uma bandeira muito fácil de sacudir. Termino com uma pergunta que eu gostaria de fazer aos organizadores e autores do livro: como viver sem os zoológicos?
REFERÊNCIAS
- DUARTE, Regina Horta. “El zoológico del porvenir”: narrativas y memorias de nación sobre el Zoológico de Chapultepec, Ciudad de México, siglo XX. Historia Critica, n.72, p.93-113, 2019.
- DUARTE, Regina Horta. Zoos in Latin America. In: William Beezley (org.). The Oxford research encyclopedia of Latin American history, v.1 Oxford: Oxford University Press, 2017. p.1-21.
- MCDONALD, Tracy; VANDERSOMMERS, Daniel (org.). Zoo studies: a new humanities Montreal: McGill-Queen’s University Press, 2019.
- PEARSON, Chris. Beyond ‘resistance’: rethinking nonhuman agency for a ‘more-than-human’ world. European Review of History, v.22, n.5, p.709-725, 2015.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
07 Fev 2022 -
Data do Fascículo
Dez 2021