LIVROS & REDES
Ordem e disciplina no espaço urbano
Order and discipline in urban space
Beatriz Teixeira Weber
Professora do Departamento de História, UFSM. Rua Tuiuti, 2434/301 97050-420 Santa Maria RS Brasil btw@conex.com.br
Dificilmente pensamos nos hábitos comuns que realizamos no dia-a-dia, como lavar as mãos antes de comer ou escovar os dentes. Eles estão tão incorporados em nossa vida contemporânea, que esquecemos o quanto o seu surgimento e difusão têm uma dimensão histórica. Heloísa Helena Pimenta Rocha apresenta-nos uma reflexão sobre os esforços de elaboração e divulgação dos princípios de higiene que foram incorporados na dita sociedade brasileira 'civilizada'. A partir da análise sobre as iniciativas que visaram fazer da educação escolar um meio de higienização da população, oferece-nos um denso campo de interpretação, articulando história, saúde, higiene e educação como áreas que se apresentam indissociáveis. Para interrogar as representações e práticas que configuraram o modelo de educação sanitária que foi difundido na escola primária paulista e, ao mesmo tempo, para atentar aos múltiplos dispositivos através dos quais se divulgaram, dentro e fora da escola, os preceitos da 'moderna higiene' a toda a população, a autora priorizou a instituição que centralizou as ações no campo da saúde pública, tanto na cidade como no estado de São Paulo, nas primeiras décadas do século XX, o Instituto de Hygiene de São Paulo.
Criado em 1918, o Instituto de Hygiene teve um papel fundamental na formulação da política sanitária adotada naquele estado a partir de 1925, e foi responsável por gestar um modelo de intervenção difundido em todo o Brasil através da Sociedade Brasileira de Higiene, organizada a partir de 1923. Esta instituição foi responsável por orientar as autoridades no tratamento das questões de saúde pública, correspondendo aos intentos de 'regeneração' do povo brasileiro, considerado como doente e improdutivo.
O Instituto de Hygiene foi criado em conformidade com os moldes norte-americanos, como resultado de um acordo entre o governo do Estado de São Paulo e a Junta Internacional de Saúde da Fundação Rockefeller. Foi responsável pela formulação de uma política sanitária calcada nos ideais de prevenção das doenças e manutenção da saúde como objetivo prioritário na formação da consciência sanitária, constituindo a educação como uma das suas principais pautas.
A pesquisadora oferece um excelente quadro da organização da Fundação Rockefeller e dos seus desdobramentos, que servirá de referência para outros trabalhos, pois o seu papel no Brasil ainda foi pouco analisado. A liderança assumida pelas instituições norte-americanas, através da doutrina do pan-americanismo, difundiu um modelo de administração sanitária centralizada e autoritária, que funcionou de forma bastante eficiente em nosso país. A idéia defendida pela Fundação consistia em transformar São Paulo numa referência nacional na difusão do sistema de educação médica no Brasil, superando as escolas do Rio de Janeiro e da Bahia.
A articulação que a autora faz entre história da educação e saúde revela um universo de elementos interligados de forma coerente e promissora. A estrutura proposta pelos capítulos permite relacionar o enorme crescimento da cidade de São Paulo, que atraiu um grande contingente de pessoas, com as mudanças na organização do novo espaço urbano e dos novos moradores nesse espaço. Uma das imagens da cidade é a das suas mazelas: pobreza, imundície, escuridão e crime como resultantes do crescimento, precisando haver uma transformação da desordem urbana à ordem racional. Os que se auto-representam como porta-vozes da razão, do progresso e da modernidade são os 'homens de ciência', que assumem a responsabilidade pelos destinos da cidade e dos seus habitantes, impondo-lhes um conjunto de preceitos para guiar suas vidas num espaço classificado, controlado e ordenado para que pudesse expressar a saúde e a higiene. A autora baseia o primeiro capítulo nas várias imagens sobre a cidade, considerando os trechos mais reflexivos da produção bibliográfica que trata São Paulo no início do século XX. Ela utiliza o que essa produção apresenta de mais inteligente para expressar as mudanças pelas quais a cidade precisou passar, relacionando-as com o ordenamento urbano em outros lugares.
No segundo capítulo, a autora oferece um panorama das relações de constituição de uma proposta de ensino prático, materializando as características da "moderna ciência da higiene", através das justificativas para a criação e transformação do Instituto. Ela sugere uma leitura das disputas que marcaram a legitimação de novas concepções no campo da saúde pública, articuladas a novas estratégias de intervenção sobre a cidade e seus habitantes. As disputas sobre as estratégias de difusão dos conhecimentos e práticas da medicina científica relacionam-se com as diferentes interpretações sobre a 'realidade brasileira', tida como inadequada aos padrões de civilidade, mas diferente dos modelos de onde tais interpretações foram apropriadas.
A interpretação das imagens, proposta pela autora, demonstra um esforço de compreensão das representações articuladas a partir do ideário da instituição. A construção do prédio do Instituto, bem como a análise do uso da fotografia como um poderoso instrumento de identificação de um amplo projeto de reforma dos costumes, são estratégias claramente definidas de constituição das intervenções dos 'homens de ciência' sobre as condições de vida e saúde na cidade.
As opções de atuação do Instituto centraram-se na formação de médicos com conhecimentos específicos na área de higiene; de professoras para atuação no ensino, como educadores sanitários, substituindo o que seria o trabalho de enfermeiras; e de quadros administrativos para atuação na área de saúde pública. Os 'homens de ciência' procuraram erigir-se como privilegiados na produção do conhecimento sobre o espaço da cidade, e legitimar-se como núcleo de formação dos quadros para atuarem na realidade que eles estavam esquadrinhando.
Por fim, a atuação do Instituto elegeu um foco privilegiado de atividade, através de métodos educativos sobre as crianças, moldando seus corpos e suas almas, e atingindo suas famílias. A proposta procurava erigir a escola como cenário onde os habitantes da cidade aprendessem os modelos nos quais deveriam pautar suas vidas. Daí a intervenção ser exaustiva e minuciosa, ensinando-lhes um padrão 'civilizado' expresso em práticas desejáveis de asseio pessoal e do vestuário, higiene do lar, alimentação e cuidados com os filhos. Sua proposta consistia na formação de homens fortes, saudáveis, produtivos e ordeiros para a atuação no novo espaço que se constituía. A autora utilizou uma documentação que apresenta as áreas que deveriam ser fiscalizadas pelas várias instâncias das escolas, com todos os passos que deveriam ser seguidos para o cumprimento de um novo padrão de vida e comportamento. Além disso, o material produzido pelo Instituto utilizou técnicas de propaganda que foram disseminadas por várias regiões com o uso da cartilha de higiene nas escolas, de cartões postais, de slides, de cartazes e de palestras, através de uma intervenção sistemática e rigorosa. O material escancara o esforço de disciplinarização da população da cidade a ser atingida.
Com perspicácia, Heloísa Helena Pimenta Rocha conclui que as leituras desses esforços não foram coesas e receberam críticas, apontando um outro perfil de compreensão dos esforços de organização do espaço da cidade. A forma como foram lidos pelos destinatários permite compreender uma re-significação da higiene sob os olhos dos trabalhadores. As críticas ao projeto do Instituto de Hygiene e as releituras são sugeridas ao longo do texto, embora o Instituto se constitua como espaço de análise privilegiado. Ou seja, é muito instigante o potencial que a pesquisadora abre para a discussão dos aspectos que abordou. O material, sem dúvida, se constituirá em obra de referência para pesquisas que tematizem a saúde a partir do início do século XX. Mais que tudo, oferece-nos um panorama de compreensão de como se formou o nosso cotidiano.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
12 Abr 2006 -
Data do Fascículo
Mar 2006