Resumo
O artigo examina a obra de dois autores representativos da produção acadêmica de saúde coletiva nos anos 1970-1980: Madel Luz e Emerson Merhy. Sua produção teórica se apoiou em estudos marxistas e em Michel Foucault, dando centralidade à história. Procurou-se analisar esse aspecto, que nesses trabalhos se tornou importante para o campo da saúde coletiva, pois os autores romperam com o pensamento anterior, positivista e evolucionista, sobre saúde. Concluiu-se que, embora os autores reiterem ideias e abordagens metodológicas dos seus antecessores, eles são parte do grupo que inaugurou uma historiografia crítica no campo da saúde. O estudo de obras como essas contribui para a compreensão da relevância da historicidade na relação entre saúde coletiva, política, saber e prática.
Madel Therezinha Luz; Emerson Elias Merhy; saúde coletiva; história da saúde pública
Abstract
This article examines the work of two authors who represent academic production on collective health from 1970 to 1980: Madel Luz and Emerson Merhy. Their theoretical production was based on Marxist studies and Michel Foucault, and centered on history. The object of this analysis was this particular aspect, which became important to the field of collective health, since the authors broke with previous positivist and evolutionist thinking on health. Although Luz and Merhy reiterated the ideas and methodological approaches of their predecessors, they were part of the group that launched a critical historiography in the field of health. Studying works like these builds understanding on the relevance of historicity in the relationship between collective health, politics, learning, and practice.
Madel Therezinha Luz; Emerson Elias Merhy; collective health; history of public health
Este artigo problematiza o uso da perspectiva histórica no campo da saúde coletiva no Brasil. Ancora-se em determinados estudos que hoje compõem o que se pode denominar pensamento social em saúde no Brasil e é parte dos resultados da pesquisa intitulada “Reflexões sobre o pensamento social em saúde, um estudo teórico acerca da produção da saúde coletiva”,1 cujo foco foi a produção teórica original do campo da saúde coletiva nas décadas de 1970 e 1980,2 que apresentam abordagens de matrizes sociológica, da história social e da economia política.
O projeto de pesquisa focou as abordagens teóricas e metodológicas de autores e obras consideradas representativas do campo, por se tratar de produção científica interessada numa nova maneira de pensar saúde pública, ou seja, evidenciar as perspectivas das análises sobre a formação social brasileira e interessada também em modelos teóricos, analíticos e interpretativos novos. Esses estudos, segundo essas premissas, foram, assim, considerados “clássicos”3 ou instituidores do campo da saúde coletiva.
Segundo Minayo (2010, p.79), nos anos 1960 e 1970, o modelo fenomenológico foi de grande importância como contraponto às análises positivistas que dominaram os estudos do campo até então. Nos anos 1970, também se avultaram estudos marxistas, nos quais medicina e saúde pública são colocadas sob o ponto de vista da luta de classes, das relações de dominação e do trabalho. Nesse conjunto de estudos, a história passa a ser um elemento basilar nas análises.
Sem dúvida, quando se analisam retrospectivamente as áreas da medicina preventiva e social e a saúde pública, verifica-se que a década de 70 sobressai em todos os pontos. Percebe-se, claramente, que havia muitos motivos para que as atenções se voltassem para a saúde. De um lado, as questões de saúde e de atenção médica não haviam sido equacionadas e, por sinal, haviam se deteriorado, de outro, não mais se podia contar como exclusivos os modelos teóricos que até então haviam predominado no sentido de explicar essa realidade. Dizia-se que havia uma crise tanto na geração de conhecimentos como de uma determinada prática (Nunes, 1996, p.59).
Mello (2010), em tese de doutoramento sobre o pensamento sanitário no Brasil, refere-se ao período dos anos 1970 como uma transição ao que ele define como um pensamento radical na saúde pública brasileira. Para o autor, “o momento foi muito mais de desconstruir o passado e buscar novos instrumentais teóricos, dentre os quais se destacam o materialismo histórico e dialético e as categorias analíticas de Gramsci, que permeariam boa parte da produção bibliográfica na década seguinte” (p.223).
Trata-se, portanto, de um contexto de ruptura que evidencia aspectos sociais importantes quanto à demanda e oferta de serviços em saúde, colocando em evidência questões econômicas, políticas e de diferenças de classes. Tal ruptura estava em consonância com o contexto político do mundo ocidental (havia o maio de 1968 na Europa, o movimento pelos direitos civis nos EUA) e, no Brasil, a luta contra a ditadura militar, que assumiu feições de combate não apenas no âmbito político, mas também social, no que tange às desigualdades de classe, que se refletiam (e ainda se refletem) no campo da saúde. Compreende-se, portanto, que a mudança de paradigma teórico se vinculava aos novos debates trazidos pelos movimentos sociais, fenômeno que se observa igualmente nos estudos sobre saúde na América Latina (Nunes, 1996; Hochman, Santos, Pires-Alves, 2004). Por um lado, os estudos refletiam o momento histórico, e, por outro, o novo marco teórico utilizado pelos autores apoiava-se, em sua maioria, em autores de matriz marxista e em Michel Foucault, os quais veem a história como principal elemento explicativo. Nesse sentido, o que aqui se argumenta é que, diante do desafio do novo, o recurso à explicação histórica se torna fundamental.
Para Amélia Cohn (2012, p.25), é necessário recolocar temas e questões que sejam atuais e transversais e, também, problematizar a atual produção de conhecimento na saúde coletiva: a autora alerta para a necessidade de um retorno às origens do campo, no sentido do resgate da politização da saúde no âmbito da produção do conhecimento e de suas práticas, ou seja, “resgatar as dimensões sociais da saúde”.
É com essa perspectiva e crescente inquietação com os desafios e dissonâncias atuais frente à defesa do direito à saúde e do princípio da universalidade do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil. que a leitura de obras que inauguraram um campo de conhecimento pautado na saúde como produção social e histórica se faz necessária e atual. A produção teórica do campo da saúde coletiva e da reforma sanitária, que possibilitou a formulação do projeto político-social do SUS no Brasil, tem sido “chamada” para apoiar, de uma forma crítica e sem “lições do passado”, a construção de novas interpretações e abordagens teóricas para o pensamento social, na perspectiva do reposicionamento teórico diante dos atuais tempos turbulentos na saúde.
Para Paim (1981), Nunes (1996) e Escorel (2012), Sergio Arouca e Cecília Donnangelo foram os principais formadores intelectuais do campo da saúde coletiva no Brasil, contribuindo na construção de novos instrumentos analíticos para a compreensão da realidade. Tais ferramentas foram importantes no Movimento da Reforma Sanitária.
O pensamento histórico nos estudos de saúde coletiva
No Brasil, um dos primeiros e relevantes estudiosos da história da medicina e saúde pública foi Lycurgo Santos Filho (1910-1998), que, em 1947, publicou História da medicina no Brasil: do século XVI ao século XIX. Em 1977, foi editado o primeiro volume da sua monumental História geral da medicina brasileira, e, em 1991, o segundo volume. Nesse tipo de trabalho, a história aparece como uma sequência de eventos em que o conhecimento de determinado período é aquele que supera os erros e as superstições do anterior, assim como traz respostas consideradas mais satisfatórias. Esse conhecimento seria, portanto, superior e mais razoável. Tratava-se de uma análise técnico-funcional (ou tecnicista) que ignorava os aspectos culturais, simbólicos e de conflito existentes na sociedade.
O campo de conhecimento da saúde coletiva se apoia nas contribuições teórico-metodológicas que compreendem o princípio do processo saúde/doença e a dimensão do acesso aos serviços de saúde como resultados da produção social e histórica de determinada realidade, no caso, a brasileira. O conhecimento histórico no campo da saúde, anteriormente aos anos 1960-1970, pautava-se, como foi dito, em uma compreensão acumulativa, evolutiva e linear, dos processos históricos. Diferentemente disso, os estudos da saúde coletiva buscaram a interpretação dos eventos e fenômenos de saúde articulados a seus contextos, tirando os aspectos hermético e naturalizado que os objetos apresentavam anteriormente. Ou seja, nos estudos precedentes, pensava-se que a ciência poderia ser compreendida como prática laboratorial e de organização de serviços, que as profilaxias dependeriam, por um lado, de uma observação mais aguçada do meio e, por outro, das formas de adoecimento do corpo etc. sem, entretanto, levar em conta aspectos sociais, culturais e políticos, os quais seriam estorvos ao desenvolvimento científico. São exemplos os estudos muito citados de Lycurgo Santos Filho (1947, 1977, 1991) e Rodolfo Mascarenhas (1949).
O contraponto que a perspectiva histórica na saúde coletiva adota pode ser explicado tomando-se Hobsbawm (1997) como referência: dimensionar a “função social do passado”, no sentido de compreender como influenciou o devir da sociedade pela constante tensão entre presente e passado. Tensão que se dá não pela pretensa evolução científica da medicina e da epidemiologia, mas pela relação (muitas vezes, conflituosa) entre saber científico, intervenção social, controle social, cultura popular, interesses de classe e dominação econômica. Na mesma direção, entende-se que o debate sobre os nexos estruturais que a saúde pública e suas formas de organização mantêm historicamente com os sistemas político, econômico e social no Brasil possibilita uma reflexão sobre os impasses e as contradições que marcaram e têm marcado a construção do nosso sistema de proteção à saúde. Nesse sentido, reforça-se aqui o argumento de que os teóricos e seus textos tampouco fugiram de impasses e contradições.
Analisando a historiografia da saúde pública no Brasil, especificamente com base nas obras de Hochman (1998), Castro Santos (1985), Nunes (1994, 2000) e Merhy (1992, 2014), pode-se dizer que as matrizes discursivas que dominaram nos diferentes períodos foram: até meados de 1950, a construção do ideário sanitarista baseado no “controle” como proteção; e, no período que se inicia em meados de 1970, outra matriz, que legitima o ideário da proteção à saúde como produto histórico e social. Para vários desses autores, o debate atual parece apontar para a necessidade de se politizar o discurso da produção do conhecimento em saúde, considerado o cenário de crise dos sistemas de proteção social.
Nesse sentido, a produção do campo que caracteriza o período dos anos 1970 – e que é parte da mudança teórica de “saúde como controle” para produção histórico-social – é demarcadora. É nessa perspectiva que se analisam as obras de Emerson Merhy e Madel Luz, cada um, com dois trabalhos desenvolvidos no período: de um lado, Medicina e ordem política brasileira: políticas e instituições de saúde (1850-1930) (lançado em 1982) e As instituições médicas no Brasil: instituição e estratégia de hegemonia (lançado em 1979) de Madel Luz, de outro, Capitalismo e saúde pública: a emergência das práticas sanitárias no estado de São Paulo (lançado em 1986) e A saúde pública como política: os movimentos sanitários, São Paulo, 1920-1948: os modelos tecnoassistencialistas e a formação das políticas governamentais (lançado em 1992) de Emerson Merhy. Embora esses autores partam de referenciais teóricos distintos, compartilharam a ideia de conflito de classes e sua expressão nas políticas de assistência à saúde e de repressão às suas demandas. Por isso, propõe-se aqui discutir o que tais obras representaram no período em que vieram a público e qual era o diálogo que se propunham realizar com relação à dimensão política e social das relações entre saúde e Estado. Também, propõe-se apresentar algumas contradições em seus argumentos.
Em ambos, vê-se o compromisso com a questão democrática da saúde nas diferentes narrativas analíticas: (1) o direito à saúde diante da singularidade da formação social brasileira; (2) a saúde e o modo de produção capitalista em sua dimensão histórico-social brasileira; (3) a dimensão técnica do trabalho médico e sua centralidade nas políticas públicas de saúde; e (4) a centralidade do Estado na garantia do acesso à saúde.
Gilberto Hochman (2007, p.153), em artigo intitulado “História e políticas”, escreve que, “no Brasil, os estudos de políticas públicas em perspectiva histórica obtiveram amplo acolhimento multidisciplinar e grande audiência”. Escreve que, até a década de 1980, a ênfase nos estudos das ciências sociais e humanas foi entender as políticas estatais específicas em sua dimensão nacional. Tratava-se, segundo o autor,
de compreender a natureza do Estado brasileiro, seu viés autoritário e centralizador, a modernização econômica e a desigualdade, e refletir sobre as possibilidades de construção de uma ordem democrática. Esse conjunto extenso de trabalhos transitou entre uma narrativa organizada pela teoria e a pesquisa histórica, esta muitas vezes criticada pelos historiadores. Assim, os processos históricos seriam cenários e conteúdos de um argumento teórico e formal que os organizaria e os interpretaria (Hochman, 2007, p.154).
Já foi dito que os estudos mais críticos de proteção à saúde, no período, levaram em conta as análises sobre a formação social brasileira e adotaram uma perspectiva histórica que, metodológica e analiticamente, observaram as estratégias e políticas de saúde como fenômenos vinculados às nuanças do contexto histórico-social brasileiro. Madel Luz e Emerson Merhy, nas obras aqui discutidas, alinham-se a essa perspectiva, pois enfatizam a grande relação entre os momentos históricos em que se formularam e se desenvolveram práticas de saúde pública no Brasil, e os processos mais significativos de modernização do país.
Madel Therezinha Luz
Madel Luz tem uma trajetória acadêmica cosmopolita e multidisciplinar, tendo se graduado em filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 1962, concluído seu mestrado em sociologia na Université Catholique de Louvain, em 1969, e seu doutorado em ciência política na Universidade de São Paulo (USP), em 1978. O primeiro livro aqui em questão, As instituições médicas no Brasil, é uma produção do período em que a autora se doutorava pela USP e coordenava um grupo de pesquisadores no Instituto de Medicina Social na UFRJ, ao qual agradece no prefácio como coautores do livro. O outro livro de Luz também é uma coletânea de textos de autores diversos, por ela coordenados e supervisionados.
As instituições médicas no Brasil, de 1979, reeditado em 2013, analisa o poder institucional médico e sua inserção nas conjunturas de 1960-1964 e de 1968-1974 em quatro etapas: (1) análise das políticas de saúde; (2) condições de saúde da população; (3) imagem das instituições de saúde nos jornais; e (4) prática médica na instituição (produção e reprodução do saber médico), mais especificamente, o hospital universitário. A hipótese desse trabalho é que as instituições estatais de saúde são portadoras de um discurso técnico-científico e praticam esse discurso-saber sob a forma de intervenção maciça e organizada na vida de diversos setores da população, tornando-se, assim, agências políticas de contenção e controle da doença coletiva.
A autora caracteriza os períodos estudados como de imposição institucionalizada por parte do Estado, por meio de um discurso médico, que seria assistencial privatista. Luz também aponta que a consequência desse discurso hegemônico estatal foi o aumento da assistência, da estrutura hospitalar e da figura do médico assalariado. Como consequência da hegemonia da estrutura hospitalar e do setor médico assalariado, o ensino médico passou, então, a voltar-se para essas duas dimensões. As instituições médicas se fortaleceram, segundo a autora, como um projeto de hegemonia de classes na “clareza de sua ambiguidade”, e, nesse sentido, aponta o objetivo do seu trabalho: “apreender as ambiguidades próprias do processo de implantação de hegemonia como implantação do poder” (Luz, 2013, p.14).
Madel explicita o enfoque metodológico do seu trabalho e a sua afiliação teórica e o faz com extremo rigor acadêmico, o qual, certamente, referendou a inserção da sua obra como referência no campo da saúde coletiva. Aponta a autora, coordenadora da pesquisa que originou a tese:
Ao analisarmos o papel das instituições específicas na estratégia de Hegemonia em conjunturas determinadas desejamos contrapor aos modelos tradicionais de análise de instituições um modelo de análise histórico e dialético. Trata-se, portanto, de desenvolver uma abordagem de instituições especificamente política, contribuindo para a construção de uma ciência da história e ciência política (Luz, 2013, p.32).
Indica também que a abordagem analítica sobre as instituições é especificamente política porque “pretende descobrir nas instituições sua densidade específica como modos de poder de um modo de produção social, evitando reduzi-las a reflexo da evolução das forcas produtivas ou à função de reprodutoras das relações sociais de produção” (Luz, 2013, p.32).
Em Medicina e ordem política brasileira, livro coletivo de 1982, coordenado por Luz, pretende-se apresentar a constituição de algumas instituições médicas do século XIX aos anos 1920, suas intervenções na sociedade, ligações com o Estado e pressões sociais por saúde. Na obra, os autores manifestam a sua compreensão de que Estado e ciência são complementares, da seguinte forma:
A ciência é, portanto, parte do Estado, fruto histórico da necessidade de sua intervenção na vida social e sobre a vida de populações que precisavam ser organizadas de acordo com a lógica das novas relações sociais. No capitalismo, a ciência não faz parte das ‘ideias dominantes’: ‘ela é sua ideia dominante’, sua mais brilhante ideia (Luz, 1982, p.16; destaques no original).
As instituições com que o livro trabalha são a Academia Imperial de Medicina (transformada em Academia Nacional de Medicina no período republicano), a “Escola Tropicalista Baiana”, o Instituto Oswaldo Cruz e a Sociedade Brasileira de Higiene. Para analisá-las, os autores fazem uso das obras de Michel Foucault e Antonio Gramsci, incorporando-as como marcos teóricos. De Foucault, servem-se do texto “O nascimento da medicina social”, conferência proferida na Universidade Estadual do Rio de Janeiro em 1974 e, de Gramsci, do conceito de intelectual orgânico.
Luz critica os marcos da historiografia tradicional da medicina e saúde pública; contudo, acaba por manter os mesmos, como, por exemplo, a mencionada ruptura realizada por uma tradição inaugurada pela “Escola Tropicalista Baiana”, tradição elaborada a posteriori (já no século XX) pela historiografia tradicional, como um movimento de inovação e descontinuidade, conforme nos aponta Edler (2011). A primeira parte começa com uma análise das revoltas trabalhistas de início do século XX e termina com Oswaldo Cruz (1872-1917). A segunda parte volta ao século XIX para também terminar na figura de Oswaldo Cruz. Embora seja apresentado como uma personagem autoritária e intervencionista na história da saúde pública, Cruz aparece, assim como para a historiografia tradicional, como o grande divisor de águas da história nacional.
A primeira parte do livro analisa com rigor os anos 1920, e traz como novidade histórica uma visão analítica inovadora: os anos 1920 não são aqueles que antecedem a década de 1930. A tendência de análise da década anterior à Era Vargas, os anos 1930, é interpretá-la à luz do que se soube que viria ocorrer em seguida (o que é uma análise anacrônica), erro em que Luz não incorre. Não sendo “a década que antecede Vargas”, os anos 1920 são, para a autora, anos de crise, inflação, problemas ainda reflexos do encilhamento de 1890 de Rui Barbosa e que se faziam sentir na organização de uma política deflacionária de Campos Salles, com o “médico” Joaquim Murtinho, “ministro das finanças”, que é chamada de “saneamento financeiro”. No plano social, evidencia-se, no texto, a pressão operária, decorrente da pauperização, de um lado e, de outro, dos espancamentos realizados pelos patrões, as multas, as péssimas condições higiênicas das fábricas e casas, as endemias e epidemias. Nesse primeiro momento, os autores esboçam uma ideia importante, que ressurge e fica clara apenas no final do livro: de um lado o problema da febre amarela, da varíola e da peste e, de outro, o da tuberculose. Quando retomam Oswaldo Cruz ao final do livro, a tese se explicita: os problemas de saúde epidêmicos e urgentes recebem atenção rápida, enérgica e autoritária por parte do Estado; já os crônicos, que requerem prevenção, atenção e investimentos, não.
A respeito da década de 1920, seguem interpretando a lei Elói Chaves (que regulamentava as caixas de aposentadorias e pensões em 1923, as quais, em 1929, atendiam 140.435 empregados), estabelecida por pressão operária, mas tida como elitista e paternalista. Dessa forma, já nos anos anteriores a Vargas, a política trabalhista é interpretada por Luz e seus colaboradores como de tipo conciliatório.
O último capítulo da primeira parte tem mais vínculo com a segunda parte do que com a primeira, pois, apesar de se concentrar no período de fins do século XIX e em Oswaldo Cruz, faz um retorno até fins do século XVIII para mencionar e demarcar o início da medicina social, apoiando-se em Michel Foucault (1979) e Machado et al. (1978). Os autores citam a centralização do período joanino com o Protomedicato e a Fisicatura, seguido pela descentralização com a lei das Câmaras de 1828 até a Primeira República para, enfim, falar sobre o projeto imposto sobre a cidade do Rio de Janeiro. Esse projeto é considerado autoritário porque (1) foi imposto pelo Estado; (2) não era consensual; e (3) representava o interesse de minorias (Luz, 1982, p.79). Os interesses dessas minorias se apresentavam na figura de Oswaldo Cruz, com a necessidade de sanear a capital para seguir e incrementar as relações comerciais internacionais, ignorando os moradores e a vida cotidiana da cidade. São apresentadas fontes historiográficas que relatam o caráter militar das operações encabeçadas por Oswaldo Cruz e Francisco Pereira Passos (1836-1913), que obtiveram “sucesso” do seu ponto de vista e geraram uma enorme revolta. Dessa forma, abre-se a possibilidade de trazer a tese da primeira parte do livro: embora a constituição de 1981 previsse um Estado liberal (política e economicamente), a questão da saúde revela um Estado centralista, autoritário e oligarca.
Conforme mencionado, a segunda parte é um retorno ao século XIX. Contudo, o foco principal dessa parte é fazer a distinção entre a Academia Imperial de Medicina e a “Escola Tropicalista Baiana”. Na historiografia, ao que tudo indica, foi Coni (1952) o primeiro a defender que um grupo formado na Bahia pelos médicos Otto Wücherer (1820-1874), José Francisco da Silva Lima (1826-1910), John L. Paterson (1820-1882) e Antônio Pacífico Pereira (1846-1922) teria levantado o bastião de “escola” e defendido as descobertas progressistas e parasitológicas da medicina contra o atraso representado pela Academia Imperial de Medicina sediada no Rio de Janeiro. Luz seguiu pelo mesmo raciocínio. Posteriormente, a “Escola Tropicalista Baiana” ganhou um estudo maior com Peard (1990). Segundo Luz, poderíamos dividir a academia e a “escola” da seguinte maneira:
Academia Imperial de Medicina | “Escola Tropicalista Baiana” |
---|---|
- atrasada | - progressista |
- paradigma climático | - paradigma parasitológico |
- saúde das cidades | - saúde dos escravos |
- combate à desordem | - combate ao agente etiológico |
- laudatórios | - críticos |
- filosófica | - empíricos (dissecação de cadáveres) |
- etiologia social | - etiologia biológica |
O livro termina com um texto mais bibliográfico a respeito de Oswaldo Cruz para tornar clara a ideia de Estado oligarca e autoritário, que havia sido exposta ao final da primeira parte, por meio da sua política de saúde pública: como mencionado, haveria uma utilização instrumental e interessada dos “intelectuais orgânicos da saúde” por parte do Estado, qual seja, em casos emergenciais, como, por exemplo, de epidemias, toda a força era empregada para preservar a força de trabalho (inclusive a repressão completa, caso necessária); em contrapartida, os caros investimentos em prevenção, como os requisitados para diminuir ou erradicar doenças como a tuberculose, não.
O principal ponto a se destacar como problemático na argumentação desse livro de Luz diz respeito exatamente a essa suposta dicotomia, apontada por Edler (2011) como equivocada, entre a “Escola Tropicalista Baiana” – mito criado a posteriori pela narrativa histórica vencedora (a da parasitologia) – e a Academia Imperial de Medicina.
O argumento de Edler pode ser resumido da seguinte maneira: os médicos da Gazeta Médica Baiana, de 1866, não eram uma “escola”, como ficou estabelecido no século XX. A ideia de que o grupo formado por Otto Wücherer era um todo coeso, que levantava o bastião da parasitologia contra a Academia Imperial de Medicina (que seria a expressão máxima do retrocesso científico) começa com Coni em 1952, quando buscava “precursores”, “heróis” da medicina nacional. Dessa forma, tanto Madel Luz quanto Julyan Peard colocam os médicos baianos como negadores dos modelos antigos de interpretação, como rebelados contra a Academia.
***
Recorrer à história, como se nota, foi a estratégia utilizada por Madel Luz para criticar interpretações anteriores do pensamento sobre a saúde pública, ou seja, saúde pública como uma maneira/poder de controle: a autora enfatiza, em cada período analisado, o papel centralizador de um Estado autoritário – “O Estado é sempre o principal interlocutor” (Luz, 1982, p.10) –, que teme sedições, que busca a ordem hierárquica, por mais adversas que fossem as condições de vida e de trabalho do escravo ou do operário que poderiam causar agitações populares. Assim, sua obra tornava-se um instrumento intelectual na luta pela democratização da saúde e para a formação de sanitaristas engajados na luta democrática do país, à época.
Emerson Elias Merhy
O primeiro livro de Merhy em questão, Capitalismo e a saúde pública, é a publicação da sua dissertação de mestrado, defendida em 1983, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. A orientação desse trabalho se iniciou com Maria Cecília Donnangelo (1940-1983), falecida precocemente, antes da finalização do trabalho de Merhy, que contou, a partir de então, com a orientação do professor Eurivaldo Sampaio de Almeida, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.
O trabalho inaugurou, somando-se a outros no período, uma linha de pesquisa historiográfica sobre o campo da saúde pública e sua prática. Com referencial marxista, aproximou a discussão sobre a conformação do campo da saúde pública à construção do Estado moderno. A centralidade do texto é a instituição das práticas sanitárias com vistas ao desenvolvimento de São Paulo como potência capitalista, de acordo com a sua dita excepcionalidade. O autor reeditou a obra em 2014 pela Editora Rede Unida e, em sua apresentação para a edição atual, enfatiza o contexto em que estava inserido o seu trabalho, qual seja, o do movimento pela reforma sanitária, e salienta o que denominou “oferta teórica do campo marxista” para essa produção, citando autores como Nicos Poulantzas e Antonio Gramsci e, também, Franco Basaglia e Giovanni Berlinguer.
Na apresentação da edição original do livro, o autor anunciava que escolhera uma análise desse campo de atividades que fosse além de seus aspectos organizacionais burocrático-administrativos ou técnico-científicos em geral. Assim, sua obra objetivou enfrentar a reflexão do campo da saúde pública como um componente orgânico do conjunto das relações sociais. Ora, no momento em que a reforma sanitária se apresentava como um projeto nacional para pensar a saúde e sua produção social, bem como o papel do Estado na garantia de direitos, entre eles, o direito à saúde, o livro de Emerson Merhy surgia como uma ferramenta cognitiva importante na disputa política.
A prática social, explicitada como linha referencial na obra do autor nesse período, foi aquela conceituada por Cecília Donnangelo e citada no texto de Merhy (2014, p.18) como “um modo de produção específico, um conjunto de práticas sociais, no interior das sociedades capitalistas, que visam à produção e à reprodução das relações de exploração econômica de classe e de dominação político-ideológica particular – capital-trabalho – burguesia sobre o proletariado”. Com essa premissa, o autor se debruçou sobre as práticas sanitárias em São Paulo na Primeira República, período considerado pela historiografia da saúde como “expressivo” na criação de um aparato de intervenção sanitária no corpo social, alinhado com o projeto de formação do Estado.
Para essa abordagem, Merhy escolheu duas etapas: (a) as peculiaridades do objeto e como o mesmo foi abordado em diferentes contextos, no sentido de situá-lo no interior das relações capitalistas; e (b) verificar, na sociedade capitalista emergente paulista do começo do século XX, como as práticas sanitárias emergiram e se efetivaram como práticas sociais. Merhy analisou a saúde pública paulista por meio de seus modelos técnico-assistenciais, identificando sua estruturação em diferentes momentos e suas relações com a dinâmica dos processos sociais. Esse trabalho foi seguido por outro de sua autoria, o seu doutorado, que ampliava a análise até o final dos anos 1940.
A tese doutoral de Merhy, A saúde pública como política: São Paulo de 1920 a 1948, finalizada em 1990 e defendida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), dá destaque aos movimentos sanitários, aos modelos técnico-assistenciais e à formação de políticas governamentais. O autor analisa as políticas segundo modelos como formulações amplas, e não apenas como mera articulação de saberes técnicos. Considera a política governamental uma condensação de modelos técnico-assistenciais que se constituiu em projetos de forças sociais. Para ele, “modelo” se refere à corrente tecnológica de pensamento do campo de ação sanitária agregada à dimensão política mais ampla, tomado em campo específico como arena decisória de disputas, e onde se define o significado social das ações. O período analisado, os anos 1920-1940, se caracteriza como o de uma sociedade de grande complexidade, sobretudo em São Paulo, foco do estudo, onde a industrialização trouxe um novo padrão de relação entre sociedade e Estado.
Merhy distingue as especificidades da saúde nas amplas políticas do Estado nacional autoritário da Era Vargas de 1937 a 1945, um período com precárias informações disponíveis para a saúde pública. Por sua concepção de “modelo”, o autor argumenta que, ao elaborar um projeto técnico-assistencial, o formulador de políticas produz um projeto político, e não apenas de saberes tecnológicos, mesmo que fundados em base técnicas. Dessa forma, o modelo revela uma forma de poder político e deve expressar uma dada conformação de Estado. A hipótese do estudo funda-se na evidência de que o movimento sanitário dos anos 1920 tentou implantar o “modelo” da corrente médico-sanitária que foi frustrado depois de 1930. O autor caracteriza a formação do aparato de saúde pública no confronto das forças políticas de um projeto misto, que foi capaz de agregar tendências até então separadas, como um modelo vertical permanente e especializado, e vigorou em todo o período do comando político de Vargas de 1930 a 1948.
A importância do trabalho de Merhy aqui destacado é sobretudo com relação à discussão metodológica sobre os modelos tecnoassistenciais e suas apropriações para a análise da saúde. Posteriormente, Merhy (2014, p.15) romperia com esses referenciais teóricos. O autor explica que tal ruptura teórica e metodológica com o referencial marxista se deveu ao fato de que, para ele, ao contrário de uma construção linear, cujo objetivo deveria ser embate ao Estado classista, representante de classe, o campo das práticas de saúde seria uma constante disputa de projetos diferentes de inúmeros tipos de atores sociais.
Primeiramente, pode-se dizer que Merhy se insere em, e mesmo ajuda a inaugurar, uma tradição analítica na historiografia da saúde pública brasileira, consolidada em estudos posteriores, que entende que a agenda sanitária brasileira se iniciou na Primeira República. Essa tradição descreve o período que vai até os anos 1930 como fundamental para a compreensão da relação Estado, capital e intervenção sanitária em São Paulo como ação estatal. Dessa tradição, embora com perspectivas teóricas e metodológicas diferentes, fazem parte: Blount, III (1971), Castro Santos (1980, 1985, 1993), Gambeta (1988), Ribeiro (1993, 2004), Telarolli Júnior (1996), Benchimol (1990), Hochman (1998), Benchimol et al. (2003), Löwy (2006), Ponte, Lima, Kropf (2010), Silva (2007, 2011, 2014), entre outros.
As obras atendem aos desafios a que se propõem?
O debate da importância do argumento histórico nas análises de saúde pública está presente em diferentes autores. Carvalho e Lima (1992), em relevante reflexão dos estudos de natureza histórica desenvolvidos na área no Brasil, reconhecem que um campo específico de investigação, de natureza transdisciplinar, começava a se constituir nos anos 1980 e 1990 e mereceria ser mais bem analisado em suas tendências e caminhos metodológicos. Concentrando-se em obras já reconhecidas como referências na historiografia da saúde pública brasileira naquele período (Machado et al., 1978; Luz, 2013, 1982; Carvalho, 1987; Chalhoub, 1986; Sevcenko, 1983, 1984; Bahia, 1988; Benchimol, 1990; Costa, 1980; Needel, 1985; Porto, 1985; Costa, 1986; Castro Santos, 1987), as autoras enfatizaram que a produção sobre o tema no Brasil caminhava alinhada com as tendências da historiografia europeia contemporânea. A tradição historiográfica europeia, representada, entre outros, por Michel Foucault, da associação causal entre cidades e doenças, intervenções sobre o mundo urbano em um projeto disciplinador e de ordem social e o discurso médico sobre o corpo trabalhador, segundo as autoras, se repetia nos principais trabalhos de história da saúde pública brasileira.
podemos afirmar que tais trabalhos incorrem numa versão aproximável à que procuramos caracterizar sob a forma de uma história social referida à absolutização de conceitos explicativos, resvalando, no limite, em reificações. Noções como ‘vida urbana’, ‘tecnologia de poder’, ‘intelectual orgânico’ e ‘medicalização’, entre outras, participam destes textos de forma pouco qualificada, reproduzindo no contexto da modernização brasileira de fins do século XIX e início do século XX as mesmas significações e o mesmo valor explicativo daquelas expressões em seu contexto teórico original (Carvalho, Lima, 1992, p.130; destaques no original).
As obras analisadas pelas autoras são relevantes e inauguraram uma tradição de produção historiográfica na saúde coletiva brasileira. Entendemos que as questões levantadas por Madel e Merhy pretenderam inserir particularidades da formação social brasileira nos estudos do campo, ampliando os argumentos históricos que possibilitam uma aproximação com os problemas e acontecimentos próprios de nossa realidade, ainda que essa perspectiva não tenha sido completamente atingida. Afinal, a “pouca densidade no uso das fontes, a reificação de conceitos, e mesmo seu maniqueísmo analítico” (Hochman, Santos, Pires-Alves, 2004, p.44) são importantes fragilidades a serem apontadas.
Merhy (2014, p.30-31) afirma que
Vários têm sido os estudos sobre o período da República Velha em São Paulo que identificam nas figuras de Emílio Ribas e Geraldo Horácio de Paula Souza duas grandes fases históricas das práticas sanitárias em São Paulo. No entanto, são os de Rodolfo Mascarenhas que mais se têm destacado no conjunto das análises da Saúde Pública no Estado de São Paulo. Estes estudos são uma expressão da incorporação daqueles dois tipos de análises de Saúde Pública referidos acima [os estudos que destacam grandes personagens e aqueles centrados na organização institucional, privilegiando a cientificidade], além de retratarem, fielmente, toda uma corrente metodológica dominante ainda hoje nos trabalhos que se têm produzido, para a compreensão deste campo de práticas.
Por sua vez, Luz afirma que “o saber histórico se confunde com o mito histórico, o cansado ‘mito’ histórico que ainda resiste e confunde o ‘pensar’ histórico ... A História no Brasil permanece entretanto, em parte, presa à mitologia histórica, produzindo e reproduzindo modelos de saber de tal índole que acabam por envolver e deformar a própria história” (Luz, 1982, p.35; destaques no original). A autora se refere tanto às interpretações “mitológicas” da própria produção brasileira quanto à aderência acrítica aos mitos e formas de pensar das metrópoles culturais, aos quais, segundo ela, a história no Brasil continuava presa.
Referindo-se ao trabalho de Luz (1982) e García (1989), Edler (2011, p.150) diz que
Sem estabelecer novas evidências empíricas, esses trabalhos revisionistas e muitas vezes iconoclastas servem-se dos mesmos marcos cronológicos levantados pelos estudos pioneiros. Em vez de refutar a tese estabelecida pela historiografia clássica, articulam-se analiticamente de um modo diverso os termos do corte, reproduzindo, de forma acrítica, a demarcação positivista que se pretendia combater.
Tanto Merhy quanto Luz incorrem nos equívocos que, a princípio, pretendem não cometer: não iterar os trabalhos anteriores, com seus marcadores temporais, suas personagens principais, seus mitos que estabelecem cortes específicos e “gênios” que teriam revolucionado a saúde pública brasileira para o bem. O que fazem de iconoclastia é inverter o juízo de valor e caracterizá-los como autoritários – como, de fato, o foram.
Já no plano teórico, tampouco houve grande inovação para uma “descolonização” – como defende Madel em seu livro – a respeito dos resultados de pesquisa e as interpretações do passado dos intelectuais da metrópole intelectual: os estudos de Michel Foucault se tornam “espelhos autoexplicativos”. Merhy cita Foucault na bibliografia, contudo, não o menciona na diferenciação que faz entre a saúde pública praticada na Alemanha, na França e na Inglaterra. Por sua vez, Luz utiliza conceitos gramscianos, como o de “intelectual orgânico”, e também os de Foucault, contudo, de forma redita. No caso dos dois autores, a realidade brasileira se torna um campo empírico a ser inserido nas elaborações marxistas e foucaultianas.
No caso do estudo de Merhy, cabe também ressaltar que a sequência de capítulos introdutórios, com referências a ideias tradicionais dos processos sanitários em países como Inglaterra, não é retomada em outras partes do trabalho e não ajuda na compreensão do seu objeto de estudo, cujo nexo causal aparece tardiamente e sem demonstração (qual seja: que foram as pressões das greves operárias dos anos 1920 o que impeliu uma primeira atenção por parte do Estado à saúde da classe trabalhadora). Assim, de certa maneira, o autor contradiz a sua manifesta filiação ao materialismo histórico dialético, afinal, “o passado não pode ser entendido exclusiva ou primariamente nos seus próprios termos” (Hobsbawm, 1997, p.159; tradução livre), ele faz parte de um processo histórico que permite analisar e entender a dinâmica das questões sociais; processo histórico que, em Merhy, dá lugar à análise institucional.
Contudo, ainda que apresentem problemas como os mencionados acima, esses estudos devem ser (1) considerados nos seus contextos, o que lhes rende representatividade devido ao papel intelectual e político que exerceram naquele momento histórico e, também, (2) por estarem vinculados à perspectiva teórica de ruptura com o positivismo e os estudos que desvinculam a ciência dos seus aspectos sociais, políticos e econômicos, como se a produção de conhecimento fosse desinteressada.
Considerações finais
As obras de Merhy e Madel persistem como obras de referência,4 estabelecendo problemáticas e continuidades que permitem situar caminhos analíticos para questões atuais no campo. Não se trata de não os criticar ou de repeti-los, mas de, no rastro da tradição do pensamento social, encontrar identidades, linhagens, rupturas e permanências no que se refere tanto ao objeto de estudo quanto às matizes teóricas adotadas por esses autores.
Quando tratavam de temas relacionados a políticas de saúde em diferentes períodos, os argumentos da história foram usados por Merhy e Madel, na maior parte das vezes, de maneira diversa de como eram utilizados em estudos descritivos ou evolucionistas. No entanto, a perspectiva histórica presente em ambos os trabalhos foi resultante das opções teóricas dos autores para apresentar a agenda da saúde pública, as instituições e os serviços, as intervenções sanitárias, e o adoecimento coletivo e individual como objetos de análise dialética.
É presente o desafio para o uso da perspectiva histórica sem incorrer em narrativas descritivas e enaltecedoras (ou, ainda, pautadas em sequências factuais), apontadas como acríticas. Berridge (2010), procurando responder à indagação sobre a necessidade da “evidência” histórica para os construtores de políticas de saúde na atualidade, aponta para a armadilha que pode se tornar o uso do que denomina de “má história”. Citando a historiografia inglesa, Berridge adverte que não são raros os estudos de análises históricas atuais sobre políticas públicas de saúde em que as evidências históricas são usadas para determinado tipo de interpretação, que busca a lição do passado para apoiar ou justificar discursos contemporâneos.
O argumento histórico é relevante para a produção do campo da saúde coletiva como foi nas obras aqui apresentadas? Em uma sociedade cujo pensamento se torna cada vez mais tecnocrata e positivista, a resposta tende a ser negativa. O nosso ponto de vista é diverso: sim, a história importa e muito, conforme escreveu Hochman (2007, p.154). O enfrentamento de temas atuais da saúde com o arcabouço metodológico que esse “tipo” de fazer história possibilita pode permitir uma agenda de reflexão que paute como centralidade as nossas respostas políticas aos processos de viver e adoecer em uma sociedade que permanece desigual e cindida.
A saúde coletiva tem pautado a discussão das questões históricas e sociais da saúde apoiada em campos de conhecimento que conformam a sua base teórica, a saber, as ciências sociais e humanas, a política e a epidemiologia. Na interface entre essas disciplinas o campo enfrenta na pesquisa, no ensino e na prática social a sua “função própria”, entender e agir sobre as externalidades na saúde resultantes de nossa formação social. A ruptura teórica dos anos 1970 e 1980, discutida neste artigo, buscou compor o mesmo tecido de outras ocorridas no pensamento político e na práxis social no período.
Paim (2008, p.292) diz que “a Saúde Coletiva apoiou teoricamente a Reforma Sanitária Brasileira a partir do triedro ideologia, saber e prática, porquanto surgiu de forma vinculada à proposta e ao projeto da Reforma Sanitária”. No entanto, conclui o autor em seu estudo, a reforma sanitária brasileira, fruto profícuo da ruptura referida acima, foi transformada de sua essência “revolucionária” de projeto político para se tornar uma “reforma social inconclusa”. O campo teórico que apontava a necessidade de transformação social foi construído; a realidade brasileira, por sua vez, não acompanhou o ímpeto da mudança realizada nos estudos em saúde coletiva no período.
O relatório do Ministério da Saúde de 2014 aponta indicadores contundentes sobre a situação de saúde no que diz respeito às iniquidades sociais e históricas no Brasil, por exemplo: (1) os homicídios são uma importante causa de morte entre homens jovens, pardos, pretos e indígenas, com destaque nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste; (2) a mortalidade infantil, ainda que decrescente, continua desigual nas regiões brasileiras mais pobres; (3) raça/cor continua sendo uma variável epistemológica considerável ao se analisar expectativa de vida e morbidade e mortalidade (Brasil, 2015).
Tais dados nos colocam frente a frente com as nossas permanências resultantes da formação sócio-histórica brasileira, por exemplo, a desigualdade, o racismo, as diferenças regionais. Essas permanências precisam ganhar historicidade na saúde coletiva, historicidade sem a qual o campo pode abandonar a tríade que foi fundamental para a sua própria construção: ideologia, saber e prática.
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1
Apoiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
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2
Foram estudadas as obras de Donnangelo (1975); Donnangelo, Pereira (1979); Arouca (2004); Teixeira (1989); Merhy (2014); Luz (2013, 1982); Braga, Paula (1981); Oliveira, Teixeira (1989).
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3
Para Gildo Brandão (2005, p.236), a leitura dos clássicos é importante porque suas proposições e bases empíricas são, na qualidade de testemunhos do seu tempo, fonte de problemas e de questões teóricas para a investigação científica na atualidade.
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4
Foram reeditadas recentemente pela Editora Rede Unida na série Clássicos da Saúde Coletiva.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Apr-Jun 2018
Histórico
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Recebido
24 Nov 2016 -
Aceito
8 Dez 2017