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A cidade imaginada ou o imaginário da cidade

The city imagined, or the city’s imaginary

Resumos

O artigo trata da temática da cidade real-cidade imaginária. Argumenta que, ao refletirmos sobre a cidade, refletimos, também, sobre nós mesmos, com todos os nossos sonhos, frustrações, ansiedades e esperanças. A discussão parte de uma ciência reencantada, que aproxima as questões do cotidiano, da memória, do símbolo e do mito.

cidade; imaginário; símbolo; mito


Exploring the topic ‘actual city/imagined city’, the article argues that when we reflect on the question of city, we are also reflecting upon ourselves - including all our dreams, frustrations, anxieties, and hopes. This discussion is made possible by a science that interrelates the issues of daily life, of memory, of symbol and of myth.

city; imagination; imaginary; symbol; myth


A cidade imaginada

ou o imaginário

da cidade

The city imagined,

or the city’s

imaginary

Maria Aparecida Lopes Nogueira

Antropóloga da Fundação Joaquim Nabuco e

pesquisadora da Universidade Federal de

Pernambuco (UFPE).

Rua d. Julieta 70 casa 2 Encruzilhada

52045-550 Recife — PE Brasil

e-mail: cidanogu@hotlink.com.br

NOGUEIRA M. A. L.: ‘A cidade imaginada ou o imaginário da cidade’. História, Ciências, Saúde — Manguinhos,

V (1): 115-123 mar.-jun. 1998.

O artigo trata da temática da cidade real-cidade imaginária. Argumenta que, ao refletirmos sobre a cidade, refletimos, também, sobre nós mesmos, com todos os nossos sonhos, frustrações, ansiedades e esperanças. A discussão parte de uma ciência reencantada, que aproxima as questões do cotidiano, da memória, do símbolo e do mito.

PALAVRAS-CHAVE: cidade, imaginário, símbolo, mito.

NOGUEIRA M. A. L.: ‘The city imagined, or the city’s imaginary’. História, ciências, Saúde — Manguinhos,

V (1): 115-123 Mar.-Jun. 1998.

Exploring the topic ‘actual city/imagined city’, the article argues that when we reflect on the question of city, we are also reflecting upon ourselves — including all our dreams, frustrations, anxieties, and hopes. This discussion is made possible by a science that interrelates the issues of daily life, of memory, of symbol and of myth.

KEYWORDS: city, imagination, imaginary, symbol, myth.

11 topografia móvel, que se reconstrói no entre-cruzamento entre a nossa emoção e as ruas da cidade. Tenho em mente, portanto, um espaço qualitativo (o topos, espaço próprio do mito). Convém ressaltar que a memória é contraditória, não-racional, e envolve um universo diversificado de marcas, como mostra Montenegro (1992). Possuindo lógica desconhecida, distingue-se em dois tipos: a voluntária e a involuntária. Na primeira, os fatos vêm à tona de acordo com a vontade do indivíduo, ao passo que, na segunda, não se sabe qual estímulo desencadeia o rememorar: uma relação invisível envolve os dois tipos de memória, configurando uma dimensão não apreendida, que só reforça sua imersão no universo simbólico, cujos significados nos escapam a todo instante. Fio condutor desse trabalho, a memória é assim a responsável pela construção da ‘cidade imaginada’ da qual trato. Não me importa saber se é ou não real, e considero descabido qualquer esforço no sentido de estabelecer nítida distinção entre a cidade real e a imaginada, visto que a realidade objetiva daquela nem sempre coincide com o que significa, subjetivamente, para o indivíduo. Na cidade, constrói-se uma rede infinita de relações e repre-sentações, o que torna pertinente o conceito de cultura de Muniz Sodré (1988). Tal conceito se adequa a um estudo na perspectiva da antropologia do imaginário, entendendo-se este como "vasto campo organizado de forças antagônicas" (Durand, 1988). Em seu âmbito, a memória entrecruza os pares de opostos indivíduo/sociedade, significante/significado, sujeito/objeto, objetividade/subjetividade, combinando-os segundo sua própria lógica e reordenando-os nas malhas do tempo sincronístico, mítico, arquetípico e do espaço qualitativo. O estudo da cidade imaginada é importante porque permite ampliar nossa compreensão do fenômeno urbano a partir da narrativa da memória. O narrador — "aquele que descreve com a maior exatidão o extraordinário e o miraculoso" (Benjamin, 1985, p. 221) — informa-nos, em última instância, qual "o processo reativo que a realidade provoca no sujeito" (Montenegro, op. cit., pp. 19-20). Tais reações interessam-nos na medida em que representam "o que está submerso no desejo e na vontade individual e coletiva". O que subjaz à cidade são nossos desejos, que logo se tornam lembranças, mas "a cidade não conta o seu passado, ela o contém" (Calvino, 1990, p. 14). Ao rememorar, o narrador revê não as coisas em si, mas significados das coisas. Ele se revisita. Às imagens que vêm à tona corresponde um olhar a percorrer ruas, becos, calçadas, pessoas, brigas, amores, família, patrão, trabalho... A cidade é um livro-texto que se deixa desnudar pelo narrador. Este, ao mesmo tempo que olha, conta-lhe segredos, repete discursos. É impossível apreender em sua totalidade esse universo infinito de símbolos que envolve a cidade, pois cada um de nós estabelece relações próprias com o lugar, descreve com ele uma trajetória sempre singular. O que se pode compreender são representações individuais e coletivas plasmadas em conteúdos simbólicos gerais. Afinal de contas, "a cidade é redundante: repete-se para fixar alguma imagem na mente ..., a memória é redundante: repete os símbolos para que a cidade comece a existir" (idem, ibidem, p. 23). Decifrar símbolos é tarefa incerta, pois a todo instante são colecionados novos sentidos. Sempre existe algo a descobrir: "Agora, desse passado real ou hipotético, ele está excluído; não pode parar; deve prosseguir até uma outra cidade em que outro passado aguarda por ele, ou algo que talvez fosse um possível futuro e que agora é o presente de outra pessoa" (idem, ibidem, p. 29). A cidade carrega consigo algo de grandioso, porque é aquilo que ela de fato se tornou que proporciona a magia atrativa da recordação, assim como a possibilidade de imprimir as marcas do que não-é na alma de seus habitantes. Em todas as épocas, vão imaginar o que seria dela e deles mesmos caso não tivesse se tornado a cidade real. Cada um constrói, então, sua cidade imaginada, sua cidade ideal, e dentro dela as relações dão conta de todos os desejos. Podemos supor que há as que dão forma aos desejos, e outras, que são engolidas por eles. Os desejos são os dínamos da cidade, viabilizando a transformação das lembranças no âmago de novas relações com os fatos. Ao descrever a cidade, o narrador percorre-a inteira com o pensamento, não se perde, e tem a sensação exata do vazio que envolve o espaço percorrido, vazio inexprimível por palavras. Daí a necessidade de metáforas para aludir ao que só o coração revisita. Das relações, das pessoas, o que se obtém é o que o olhar do narrador capta. Ele propicia os encontros e desencontros com pessoas e acontecimentos de um tempo dado. É desse modo que Baudelaire (1989) nos fala através da figura tão bem qualificada por Benjamin (1985): o flâneur. Este estabelece com a cidade outro nível de relação, uma cumplicidade que decorre do ritmo próprio com que a percorre, e dos olhos poéticos com que perscruta a alma de seus habitantes. A cidade contém os segredos deles. Por isso, não convém confundi-la com a descrição de quem a narra: ela não se deixa apreender por um só discurso. Os deuses e mitos que a guardam tornam-na ambigua e milagrosa, e muito maior que a construção de um modelo. A cidade extrapola a ânsia de ser verossímil. As relações intricadas que agasalha são um convite permanente ao mergulho. Não se pode compreender o homem da cidade fora dessa rede que o engole e embala, que se inventa na mente a partir de detalhes, caminhos de cidades já vistas e de outras, nunca visitadas. Todas as imagens construídas estão presentes na própria história de vida do narrador. Suas dúvidas, respostas, alegrias, seus anseios e seu futuro é que possibilitam a cidade imaginada. A viagem que faz por ela através da memória transcende espaço e tempo convencionais, e ativa, a um só tempo, indivíduo e multidão, sendo esta a origem de seu transtorno ou, ao contrário, o seu refúgio (Benjamin, 1985). Visitar a cidade através da memória é visitá-la com paixão para o instante-já; é conservá-la singular da única forma possível, dentro do coração, sem visualizar a ordem subjacente ao resgate. Mas quem ouve/lê a narrativa "retém somente as palavras que deseja (pois) ... quem comanda a narração não é a voz: é o ouvido" (Calvino, 1990, p. 123). Para Recket (1989, pp. 11, 13) o imaginário da cidade é "um conjunto de imagens que a significam, ou que ela por sua vez significa". Entre os significados, ressalta o autor o de mãe: "as estruturas mais primitivas — casa, celeiro, pombal, o cercado que as rodeia até o túmulo — eram maternalmente redondas e aconchegantes". Não por acaso a cidade imaginada de Platão era circular. A própria Bíblia designa-a como recinto familiar protegido por cerca. Encontramos novamente o arquétipo do círculo na etimologia indo-européia, onde um conceito abstrato figura a cidade enquanto comunidade de habitantes. A identificação da maternidade, do feminino, com a cidade encontra-se em Calvino (op. cit.). Todas têm nome de mulher. Metaforicamente, a cidade é personificada como mãe-pátria. O psicanalista Carl G. Jung (1981) também a associa ora à mãe, ora à filha. Imagens similares freqüentam os poemas do pernambucano João Cabral de Melo Neto (1968). Outro conjunto de símbolos leva a perceber a cidade à luz da dicotomia paraíso/inferno. A saudade, a distância da terra trazem à memória o paraíso, enquanto o inferno pode ser apreendido no passado recente. Por exemplo, na Paris onde escreveu Baudelaire (1989), que o oprime e que, pouco a pouco, transfigura a paisagem de "sua" Paris. A idealização do passado é tema marcante nas narrativas sobre a cidade. Acrescenta-se a esta a utopia do futuro (cidade celeste) e a do presente, encontrada em Fernando Pessoa (1971), que se vê "com saudades dele/já ao vivê-lo". A utopia do passado revela "uma metáfora da perda íntima e irrecuperável sofrida por quem a lamenta, e causada pela mudança que o tempo operou tanto nele como no ... tal centro perdido, o qual não era menos um tempo — o da juventude — do que um espaço" (Recket, 1989, pp. 20-1). Lembremos da "topografia móvel" de W. Bollie:1 esse é o topos mítico, silencioso, poético, subjetivo, o tempo todo reencontrado na narrativa. "Voltar ao passado/sem tempo de manteiga nos dentes", deseja Fernando Pessoa (1971). Já a utopia do futuro envolve uma viagem de religação com o ‘centro’ perdido. É o caráter sagrado da cidade que se tenta recuperar, literal e fisicamente. Quer-se de volta o "umbigo do mundo", o lugar de Deus. No presente, a cidade situa-se num continuum espaço-tempo em eterno movimento, um "sonho feliz de cidade ... (onde) Narciso acha feio o que não é espelho" (Caetano Veloso, Sampa). Projetaram-se utopias desde sempre: da cidade de Platão, passando pelas de Gulliver, até a Brasília de Niemeyer e aquela imaginada por Philip K. Dick em Blade Runner. É na utopia do futuro que se apreende o mito da decadência e destruição, cujo ápice seria o fim da civilização ocidental e o começo de um novo tempo, uma nova civilização, através do restabelecimento do laço com o sagrado. Para Calvino (1990, p. 48), a cidade é uma metáfora da linguagem, pois "os símbolos formam uma língua, mas não aquela que você imagina conhecer ..., não existe linguagem sem engano". Ora, se a cidade é uma linguagem, e se quase todas as cidades ideais são metáforas de mulheres, podemos pensar que as mulheres são linguagens, "as mulheres particulares, que a ‘preenchem’ de figura e de forma, como textos ou signos: cada uma com a sua mensagem única e intraduzível, o seu discurso individual, o seu secreto significado". Podemos ir além nessas conjecturas, dizendo que a cidade é ainda mais insondável e imprevisível que a linguagem e a mulher, visto que é anterior tanto "à diferenciação dos signos como à dos sexos" (Recket, 1989, p. 27). O imaginário da cidade remete-nos à "nostalgia do paraíso", de que M. Eliade (1964) nos fala. Remete-nos à busca incessante do divino, atualizando o símbolo que "se revela como a melhor forma de se comunicar com os mistérios", já que a palavra, em sua lineari-dade, não dá acesso a eles (Lucas, M. Clara de A., 1989, p. 79). O paraíso é inatingível, é o centro, o ponto de partida do mundo. E o centro é uma construção arquetípica. Seu simbolismo reúne noções que vão desde a união entre céu e terra, o espaço de criação do mundo, até a fonte de vida. Portanto, quando repetimos um gesto arquetípico, "vivemos um presente mítico, situado num tempo sagrado anti-histórico" (idem, p. 95). Lembremos do tempo junguiano associado à memória: o narrador revive um gesto arquetípico ao revisitar suas lembranças, e este momento é presente, eterno. Na realidade, o narrador vivencia um tempo mágico-religioso através da utopia da cidade. Dessa forma, o presente torna-se o instante em que o discurso é pronunciado, e o ouvinte/leitor se transporta, também, para a cidade imaginada, viajando por esse presente fora do tempo cronológico. Tal discurso/narrativa envolve uma outra lógica, e é fundamentalmente simbólico, porquanto estrutura um conjunto de arquétipos, manifesta certo processo de aquisição de conhecimento. A cidade imaginada "não seria uma encarnação do desejo do homem, mas ela própria ... seria o desejo" (idem, ibidem, p. 102). Isso gera imaginários de várias ordens, e eles apenas se deixam tocar pela emoção que corrompe a narrativa. Nessa linha, o que o narrador nos dá é uma cidade de origens e atributos míticos, consubstanciada na imagem da mãe, objeto de desejo e de satisfação de desejo. A cidade está fadada à destruição, pela exacerbação do princípio feminino que consegue sobrepor o instinto e a sensualidade à razão, o excesso à medida, o ócio ao trabalho. Essa ordem, tida como desordem em nossa civilização, permite o nascimento de uma cidade nova, voltada para o sagrado, repetindo o gesto arquetípico da criação do mundo. Mas não nos esqueçamos de que "a imagem é um modelo da realidade ... o que é imaginável é também possível" (Wittgenstein, 1963, pp. 16 e 19). Portanto, a utopia que envolve a cidade percorre um círculo incessante que supõe sonho e realidade. Corresponde a um imaginário singular próprio da narrativa, que se alimenta das visões do narrador e as alimenta ao mesmo tempo. A cidade ultrapassa a dicotomia natureza-cultura e se nos apresenta como "natureza naturante, que ... se liga não à paisagem arquitetônica, mas a um dinamismo de forças" que reflete "a presença dos conflitos humanos" (Mendes, 1989, pp. 306-7). Os versos de Fernando Pessoa (1971) deixam transparecer essa complexidade de relações e conflitos: "Recluso/Num desejo de não ser recluso,/Escuto ansiosamente os ruídos da rua." Tal vivência ambivalente da cidade lá fora/cá dentro corresponde ao paradoxo inerente à relação eu/cidade. É necessário o entrecruzamento dos elementos opostos para que seja superado, no decurso da busca incessante do sentido da existência. O paradoxo implica a idéia de uma cidade inatingível, contraponto necessário à cidade imaginada. É na verdade seu impulso criador: "a cidade imagina-se e alimenta-se do real, realizando e construindo imaginário" (Fernandes, e Dias, 1989, p. 358). O imaginário liberta-se. A cidade passa a ser reconhecida por sua imagem, pelos sentidos e desejos que insufla. Lembro de Brasília, a cidade funcionalizada que funcionalizou o homem dentro dela: "as cidades-satélite: planejadas segundo o imaginário da função (da sua função) não têm lugar para o homem fora dessa função" (Pimenta, 1989, p. 415). A concepção estática de cidade é superada no instante em que seu imaginário se liberta e poematiza. Agora, ela é cenário e personagem de vivências e situações, é paisagem e abrigo. Passa a jogar o esconde-esconde, mostra-se labirinto a ser percorrido pelo homem-minotauro. O desejo do narrador/homem/minotauro é capturar a cidade, apreendê-la, descrevê-la. Mas, repetimos, a cidade não se reduz ao discurso. Não há uma idéia verdadeira de cidade, pois toda imagem urbana está carregada de emoções e visões de mundo. Isso a torna inevitavelmente plural. Nessa perspectiva, a tarefa do leitor/ouvinte não é tentar descobrir a cidade, e sim, compreendê-la como o narrador compreende, pois, afinal, "o catálogo de formas é interminável: enquanto cada forma não encontra a sua cidade, novas cidades continuarão a surgir" (Calvino, 1990, p. 126). O trajeto que percorremos juntos, leitor-ouvinte/narrador, insere-se num universo simbólico onde revelar a cidade é vê-la pelo avesso. Tal estudo nos encaminha para um repertório infinito de imagens onde "o irreal ou o sobre-real se desvendam e assumem estruturas explícitas possíveis de experimentação e de conceituação" (Durand, 1989b, p. 51). Em última instância, podemos afirmar que o estudo da cidade-símbolo/cidade-mito é o estudo da metáfora da profundidade. "As cidades ... vêm captar e por assim dizer identificar na memória do grupo, a pulsão dos arquétipos. A cidade concreta vem modelar o desejo da cidade ideal, porque uma utopia jamais está isenta do seu nível sócio-histórico" (idem, ibidem, p. 55). Conferência proferida na 45a Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da

Ciência (SBPC), Recife, 12 a 16 de julho de l993.

É uma cidade igual a um sonho: tudo o que pode ser imaginado pode ser sonhado, mas mesmo o mais inesperado dos sonhos é um quebra-cabeça que esconde um desejo, ou então o seu oposto, um medo. As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas e que todas as coisas escondam uma outra coisa.

Ítalo Calvino

A cidade de que pretendo falar é um símbolo. É a cidade ambígua, desenhada pelas marcas da memória individual/coletiva. É a cidade do nosso desejo, espelho de nossas paixões, experiências e expectativas. Nesse sentido, está presente em nossa memória sob a forma de marcas profundas. O conceito de memória que adoto está calcado na psicanálise e tem relação direta com a fantasia (Bezerra de Menezes, 1991). É inventada e reinventada, construída e reconstruída a partir do laço estabelecido com o acontecimento, que muda constantemente, arrastando nessa mudança o seu significado.

Na memória superpõem-se presente, passado e futuro. Nela flui não mais o tempo linear encontrado em Freud, mas um tempo a-causal, sincronístico, junguiano, o Kairos, tempo próprio do mito, tão bem colocado por Calvino (1990, p. 29): "Você viaja para reencontrar o seu futuro?", ou mesmo, na referência a "saudades do futuro" dos físicos modernos (Capra, 1983). Pois a memória não tem margens nem limites, é solta, atrela-se apenas ao desejo. Se fixarmos suas margens com palavras, elas cancelam-se.

Para lidar com a questão do espaço, recorro ao conceito de memória topográfica do prof. W. Bollie da Universidade de São Paulo (USP):

Recebido para publicação em maio de 1998 .

  • Baudelaire, C. 1989 Le spleen de Paris. Paris.
  • Bezerra de Menezes, A. 199l 'Memória e ficçăo' Revista Resgate, Campinas, n° 3.
  • Benjamin, W. 1985 Magia e técnica, arte e política. Săo Paulo, Brasiliense.
  • Cabral de Melo Neto, J. 1968 Poesias completas. Rio de Janeiro, Sabiá.
  • Calvino, I. 1990 As cidades invisíveis. Săo Paulo, Companhia das Letras.
  • Capra, F. 1983 O tao da física: um paralelo entre a física moderna e o misticismo oriental. Săo Paulo, Cultrix.
  • Darnton, R. 1986 O grande massacre de gatos - e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro, Graal. Biblioteca de História, vol. 13.
  • De Coulanges, F. s. d. A cidade antiga. Rio de Janeiro, Ediouro. Col. Universidade de Bolso.
  • Durand, G. 1989a As estruturas antropológicas do imaginário. Lisboa, Editorial Presença. Col. Métodos, n° 3.
  • Durand, G. jan.-jun. 1989b 'A renovaçăo do encantamento'. Revista da Faculdade de Educaçăo. Săo Paulo.
  • Durand, G. 1988 A imaginaçăo simbólica. Săo Paulo, Cultrix.
  • Eliade, M. 1964 Traté d'histoire de religions. Paris, Payot.
  • Fernandes, J. Manuel e Dias, M. Graça. 1989 'Imaginário ŕ solta em Lisboa'. Em O imaginário da cidade. Lisboa, Fundaçăo Calouste Gulbenkian/Acarte, p. 358.
  • Ferrara, D'Allessio mar.-abri.-mai. 1990 'As máscaras da cidade in Dossię ... Cidades'. Revista USP. Săo Paulo.
  • Holeton, J. 1993 A cidade modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia. Săo Paulo, Companhia das Letras.
  • Jung, Carl G. 198l Symbols of transformation. Londres, Routledge and Kegan Paul. Complete Works, V.Kothe,
  • Flávio R. (org.) 1985 Walter Benjamin. Săo Paulo, Ática. Col. Grandes Cientistas Sociais.
  • Lucas, M. Clara de A. 1989 'A cidade celeste na hagiografia medieval portuguesa'. Em O imaginário da cidade. Lisboa, Fundaçăo Calouste Gulbenkian/Acarte, p. 79.
  • Mendes, A. 1989 'Berlim: uma cidade oculta - percursos e deambulaçőes no conto 'Der Irre', de George Heyn. Em O imaginário da cidade. Lisboa, Fundaçăo Calouste Gulbenkian/Acarte, pp. 306-7.
  • Montenegro, Antonio T. 1992 História oral e memória - a cultura popular revisitada. Săo Paulo, Contexto. Caminhos da História.
  • Muniz Sodré 1988 A verdade seduzida. 2a ed., Rio de Janeiro, Francisco Alves.
  • Pessoa, F. 1971 Seleçăo poética. Rio de Janeiro, Biblioteca Manancial, Instituto Nacional do Livro.
  • Pimenta, A. 1989 'A cidade N'. Em O imaginário da cidade. Lisboa, Fundaçăo Calouste Gulbenkian/Acarte, p. 415.
  • Pirenne, H. 1977 As cidades da Idade Média. 4a ed., Săo Paulo, Publicaçőes Europa-América. Col. Saber.
  • Recket, Stephen 1989 'O signo da cidade'. Em O imaginário da cidade. Lisboa, Fundaçăo Calouste Gulbenkian/Acarte, pp. 11, 13.
  • Wittgenstein, L. 1963 Tractatus logico-philosophicus. Frankfurt, Suhrkamp.
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    topografia móvel, que se reconstrói no entre-cruzamento entre a nossa emoção e as ruas da cidade. Tenho em mente, portanto, um espaço qualitativo (o
    topos, espaço próprio do mito).
    Convém ressaltar que a memória é contraditória, não-racional, e envolve um universo diversificado de marcas, como mostra Montenegro (1992). Possuindo lógica desconhecida, distingue-se em dois tipos: a voluntária e a involuntária. Na primeira, os fatos vêm à tona de acordo com a vontade do indivíduo, ao passo que, na segunda, não se sabe qual estímulo desencadeia o rememorar: uma relação invisível envolve os dois tipos de memória, configurando uma dimensão não apreendida, que só reforça sua imersão no universo simbólico, cujos significados nos escapam a todo instante.
    Fio condutor desse trabalho, a memória é assim a responsável pela construção da ‘cidade imaginada’ da qual trato. Não me importa saber se é ou não real, e considero descabido qualquer esforço no sentido de estabelecer nítida distinção entre a cidade real e a imaginada, visto que a realidade objetiva daquela nem sempre coincide com o que significa, subjetivamente, para o indivíduo.
    Na cidade, constrói-se uma rede infinita de relações e repre-sentações, o que torna pertinente o conceito de cultura de Muniz Sodré (1988). Tal conceito se adequa a um estudo na perspectiva da antropologia do imaginário, entendendo-se este como "vasto campo organizado de forças antagônicas" (Durand, 1988). Em seu âmbito, a memória entrecruza os pares de opostos indivíduo/sociedade, significante/significado, sujeito/objeto, objetividade/subjetividade, combinando-os segundo sua própria lógica e reordenando-os nas malhas do tempo sincronístico, mítico, arquetípico e do espaço qualitativo.
    O estudo da cidade imaginada é importante porque permite ampliar nossa compreensão do fenômeno urbano a partir da narrativa da memória. O narrador — "aquele que descreve com a maior exatidão o extraordinário e o miraculoso" (Benjamin, 1985, p. 221) — informa-nos, em última instância, qual "o processo reativo que a realidade provoca no sujeito" (Montenegro, op. cit., pp. 19-20). Tais reações interessam-nos na medida em que representam "o que está submerso no desejo e na vontade individual e coletiva".
    O que subjaz à cidade são nossos desejos, que logo se tornam lembranças, mas "a cidade não conta o seu passado, ela o contém" (Calvino, 1990, p. 14). Ao rememorar, o narrador revê não as coisas em si, mas significados das coisas. Ele se revisita. Às imagens que vêm à tona corresponde um olhar a percorrer ruas, becos, calçadas, pessoas, brigas, amores, família, patrão, trabalho... A cidade é um livro-texto que se deixa desnudar pelo narrador. Este, ao mesmo tempo que olha, conta-lhe segredos, repete discursos.
    É impossível apreender em sua totalidade esse universo infinito de símbolos que envolve a cidade, pois cada um de nós estabelece relações próprias com o lugar, descreve com ele uma trajetória sempre singular. O que se pode compreender são representações individuais e coletivas plasmadas em conteúdos simbólicos gerais. Afinal de contas, "a cidade é redundante: repete-se para fixar alguma imagem na mente ..., a memória é redundante: repete os símbolos para que a cidade comece a existir" (idem, ibidem, p. 23).
    Decifrar símbolos é tarefa incerta, pois a todo instante são colecionados novos sentidos. Sempre existe algo a descobrir: "Agora, desse passado real ou hipotético, ele está excluído; não pode parar; deve prosseguir até uma outra cidade em que outro passado aguarda por ele, ou algo que talvez fosse um possível futuro e que agora é o presente de outra pessoa" (idem, ibidem, p. 29).
    A cidade carrega consigo algo de grandioso, porque é aquilo que ela de fato se tornou que proporciona a magia atrativa da recordação, assim como a possibilidade de imprimir as marcas do que não-é na alma de seus habitantes. Em todas as épocas, vão imaginar o que seria dela e deles mesmos caso não tivesse se tornado a cidade real. Cada um constrói, então, sua cidade imaginada, sua cidade ideal, e dentro dela as relações dão conta de todos os desejos. Podemos supor que há as que dão forma aos desejos, e outras, que são engolidas por eles. Os desejos são os dínamos da cidade, viabilizando a transformação das lembranças no âmago de novas relações com os fatos.
    Ao descrever a cidade, o narrador percorre-a inteira com o pensamento, não se perde, e tem a sensação exata do vazio que envolve o espaço percorrido, vazio inexprimível por palavras. Daí a necessidade de metáforas para aludir ao que só o coração revisita. Das relações, das pessoas, o que se obtém é o que o olhar do narrador capta. Ele propicia os encontros e desencontros com pessoas e acontecimentos de um tempo dado. É desse modo que Baudelaire (1989) nos fala através da figura tão bem qualificada por Benjamin (1985): o
    flâneur. Este estabelece com a cidade outro nível de relação, uma cumplicidade que decorre do ritmo próprio com que a percorre, e dos olhos poéticos com que perscruta a alma de seus habitantes.
    A cidade contém os segredos deles. Por isso, não convém confundi-la com a descrição de quem a narra: ela não se deixa apreender por um só discurso. Os deuses e mitos que a guardam tornam-na ambigua e milagrosa, e muito maior que a construção de um modelo. A cidade extrapola a ânsia de ser verossímil.
    As relações intricadas que agasalha são um convite permanente ao mergulho. Não se pode compreender o homem da cidade fora dessa rede que o engole e embala, que se inventa na mente a partir de detalhes, caminhos de cidades já vistas e de outras, nunca visitadas.
    Todas as imagens construídas estão presentes na própria história de vida do narrador. Suas dúvidas, respostas, alegrias, seus anseios e seu futuro é que possibilitam a cidade imaginada. A viagem que faz por ela através da memória transcende espaço e tempo convencionais, e ativa, a um só tempo, indivíduo e multidão, sendo esta a origem de seu transtorno ou, ao contrário, o seu refúgio (Benjamin, 1985).
    Visitar a cidade através da memória é visitá-la com paixão para o instante-já; é conservá-la singular da única forma possível, dentro do coração, sem visualizar a ordem subjacente ao resgate. Mas quem ouve/lê a narrativa "retém somente as palavras que deseja (pois) ... quem comanda a narração não é a voz: é o ouvido" (Calvino, 1990, p. 123).
    Para Recket (1989, pp. 11, 13) o imaginário da cidade é "um conjunto de imagens que a significam, ou que ela por sua vez significa". Entre os significados, ressalta o autor o de mãe: "as estruturas mais primitivas — casa, celeiro, pombal, o cercado que as rodeia até o túmulo — eram maternalmente redondas e aconchegantes". Não por acaso a cidade imaginada de Platão era circular. A própria Bíblia designa-a como recinto familiar protegido por cerca. Encontramos novamente o arquétipo do círculo na etimologia indo-européia, onde um conceito abstrato figura a cidade enquanto comunidade de habitantes. A identificação da maternidade, do feminino, com a cidade encontra-se em Calvino (op. cit.). Todas têm nome de mulher. Metaforicamente, a cidade é personificada como mãe-pátria. O psicanalista Carl G. Jung (1981) também a associa ora à mãe, ora à filha. Imagens similares freqüentam os poemas do pernambucano João Cabral de Melo Neto (1968).
    Outro conjunto de símbolos leva a perceber a cidade à luz da dicotomia paraíso/inferno. A saudade, a distância da terra trazem à memória o paraíso, enquanto o inferno pode ser apreendido no passado recente. Por exemplo, na Paris onde escreveu Baudelaire (1989), que o oprime e que, pouco a pouco, transfigura a paisagem de "sua" Paris.
    A idealização do passado é tema marcante nas narrativas sobre a cidade. Acrescenta-se a esta a utopia do futuro (cidade celeste) e a do presente, encontrada em Fernando Pessoa (1971), que se vê "com saudades dele/já ao vivê-lo".
    A utopia do passado revela "uma metáfora da perda íntima e irrecuperável sofrida por quem a lamenta, e causada pela mudança que o tempo operou tanto nele como no ... tal centro perdido, o qual não era menos um tempo — o da juventude — do que um espaço" (Recket, 1989, pp. 20-1). Lembremos da "topografia móvel" de W. Bollie:1 esse é o
    topos mítico, silencioso, poético, subjetivo, o tempo todo reencontrado na narrativa. "Voltar ao passado/sem tempo de manteiga nos dentes", deseja Fernando Pessoa (1971).
    Já a utopia do futuro envolve uma viagem de religação com o ‘centro’ perdido. É o caráter sagrado da cidade que se tenta recuperar, literal e fisicamente. Quer-se de volta o "umbigo do mundo", o lugar de Deus.
    No presente, a cidade situa-se num
    continuum espaço-tempo em eterno movimento, um "sonho feliz de cidade ... (onde) Narciso acha feio o que não é espelho" (Caetano Veloso,
    Sampa).
    Projetaram-se utopias desde sempre: da cidade de Platão, passando pelas de Gulliver, até a Brasília de Niemeyer e aquela imaginada por Philip K. Dick em
    Blade Runner. É na utopia do futuro que se apreende o mito da decadência e destruição, cujo ápice seria o fim da civilização ocidental e o começo de um novo tempo, uma nova civilização, através do restabelecimento do laço com o sagrado.
    Para Calvino (1990, p. 48), a cidade é uma metáfora da linguagem, pois "os símbolos formam uma língua, mas não aquela que você imagina conhecer ..., não existe linguagem sem engano". Ora, se a cidade é uma linguagem, e se quase todas as cidades ideais são metáforas de mulheres, podemos pensar que as mulheres são linguagens, "as mulheres particulares, que a ‘preenchem’ de figura e de forma, como textos ou signos: cada uma com a sua mensagem única e intraduzível, o seu discurso individual, o seu secreto significado". Podemos ir além nessas conjecturas, dizendo que a cidade é ainda mais insondável e imprevisível que a linguagem e a mulher, visto que é anterior tanto "à diferenciação dos signos como à dos sexos" (Recket, 1989, p. 27).
    O imaginário da cidade remete-nos à "nostalgia do paraíso", de que M. Eliade (1964) nos fala. Remete-nos à busca incessante do divino, atualizando o símbolo que "se revela como a melhor forma de se comunicar com os mistérios", já que a palavra, em sua lineari-dade, não dá acesso a eles (Lucas, M. Clara de A., 1989, p. 79).
    O paraíso é inatingível, é o centro, o ponto de partida do mundo. E o centro é uma construção arquetípica. Seu simbolismo reúne noções que vão desde a união entre céu e terra, o espaço de criação do mundo, até a fonte de vida. Portanto, quando repetimos um gesto arquetípico, "vivemos um presente mítico, situado num tempo sagrado anti-histórico" (idem, p. 95). Lembremos do tempo junguiano associado à memória: o narrador revive um gesto arquetípico ao revisitar suas lembranças, e este momento é presente, eterno. Na realidade, o narrador vivencia um tempo mágico-religioso através da utopia da cidade.
    Dessa forma, o presente torna-se o instante em que o discurso é pronunciado, e o ouvinte/leitor se transporta, também, para a cidade imaginada, viajando por esse presente fora do tempo cronológico. Tal discurso/narrativa envolve uma outra lógica, e é fundamentalmente simbólico, porquanto estrutura um conjunto de arquétipos, manifesta certo processo de aquisição de conhecimento.
    A cidade imaginada "não seria uma encarnação do desejo do homem, mas ela própria ... seria o desejo" (idem, ibidem, p. 102). Isso gera imaginários de várias ordens, e eles apenas se deixam tocar pela emoção que corrompe a narrativa.
    Nessa linha, o que o narrador nos dá é uma cidade de origens e atributos míticos, consubstanciada na imagem da mãe, objeto de desejo e de satisfação de desejo. A cidade está fadada à destruição, pela exacerbação do princípio feminino que consegue sobrepor o instinto e a sensualidade à razão, o excesso à medida, o ócio ao trabalho. Essa ordem, tida como desordem em nossa civilização, permite o nascimento de uma cidade nova, voltada para o sagrado, repetindo o gesto arquetípico da criação do mundo.
    Mas não nos esqueçamos de que "a imagem é um modelo da realidade ... o que é imaginável é também possível" (Wittgenstein, 1963, pp. 16 e 19). Portanto, a utopia que envolve a cidade percorre um círculo incessante que supõe sonho e realidade. Corresponde a um imaginário singular próprio da narrativa, que se alimenta das visões do narrador e as alimenta ao mesmo tempo. A cidade ultrapassa a dicotomia natureza-cultura e se nos apresenta como
    "natureza naturante, que ... se liga não à paisagem arquitetônica, mas a um dinamismo de forças" que reflete "a presença dos conflitos humanos
    " (Mendes, 1989, pp. 306-7).
    Os versos de Fernando Pessoa (1971) deixam transparecer essa complexidade de relações e conflitos: "Recluso/Num desejo de não ser recluso,/Escuto ansiosamente os ruídos da rua." Tal vivência ambivalente da cidade lá fora/cá dentro corresponde ao paradoxo inerente à relação eu/cidade. É necessário o entrecruzamento dos elementos opostos para que seja superado, no decurso da busca incessante do sentido da existência.
    O paradoxo implica a idéia de uma cidade inatingível, contraponto necessário à cidade imaginada. É na verdade seu impulso criador: "a cidade imagina-se e alimenta-se do real, realizando e construindo imaginário" (Fernandes, e Dias, 1989, p. 358).
    O imaginário liberta-se. A cidade passa a ser reconhecida por sua imagem, pelos sentidos e desejos que insufla. Lembro de Brasília, a cidade funcionalizada que funcionalizou o homem dentro dela: "as cidades-satélite: planejadas segundo o imaginário da função (da sua função) não têm lugar para o homem fora dessa função" (Pimenta, 1989, p. 415).
    A concepção estática de cidade é superada no instante em que seu imaginário se liberta e poematiza. Agora, ela é cenário e personagem de vivências e situações, é paisagem e abrigo. Passa a jogar o esconde-esconde, mostra-se labirinto a ser percorrido pelo homem-minotauro. O desejo do narrador/homem/minotauro é capturar a cidade, apreendê-la, descrevê-la. Mas, repetimos, a cidade não se reduz ao discurso. Não há uma idéia verdadeira de cidade, pois toda imagem urbana está carregada de emoções e visões de mundo. Isso a torna inevitavelmente plural.
    Nessa perspectiva, a tarefa do leitor/ouvinte não é tentar descobrir a cidade, e sim, compreendê-la como o narrador compreende, pois, afinal, "o catálogo de formas é interminável: enquanto cada forma não encontra a sua cidade, novas cidades continuarão a surgir" (Calvino, 1990, p. 126).
    O trajeto que percorremos juntos, leitor-ouvinte/narrador, insere-se num universo simbólico onde revelar a cidade é vê-la pelo avesso. Tal estudo nos encaminha para um repertório infinito de imagens onde "o irreal ou o sobre-real se desvendam e assumem estruturas explícitas possíveis de experimentação e de conceituação" (Durand, 1989b, p. 51).
    Em última instância, podemos afirmar que o estudo da cidade-símbolo/cidade-mito é o estudo da metáfora da profundidade. "As cidades ... vêm captar e por assim dizer identificar na memória do grupo, a pulsão dos arquétipos. A cidade concreta vem modelar o desejo da cidade ideal, porque uma utopia jamais está isenta do seu nível sócio-histórico" (idem, ibidem, p. 55).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Abr 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 1998
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