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Oracy Nogueira: esboço de uma trajetória intelectual

Oracy Nogueira: sketch of an intellectual trajectory

DEPOIMENTO

Oracy Nogueira: esboço de uma trajetória intelectual

Oracy Nogueira: sketch of an intellectual trajectory

Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti

Professora adjunta e pesquisadora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Oracy Nogueira, juntamente com intelectuais como Antonio Candido, Guerreiro Ramos, Florestan Fernandes, é membro de uma geração cuja história se entrelaça com a das ciências sociais no país. Com eles nos deparamos quando indagamos por nossa própria prática e, curiosos, queremos saber como se estabeleceu o nosso espaço social e institucional.

O começo, se não é tudo, é muita coisa: a um só tempo os pés no chão e o próprio chão, uma referência e uma direção. Lá no centro desse começo, sempre discreto (quase tímido) e muito ativo, está o nome de Oracy Nogueira. Podemos acompanhá-lo em muitas das instituições e iniciativas marcantes do período: na Escola Livre de Sociologia e Política, na revista Sociologia, na Escola de Chicago, na Comissão Paulista de Folclore, na pesquisa da Organização Educacional, Científica e Cultural das Nações Unidas (Unesco) sobre relações raciais no Brasil, no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, na Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo, no Instituto de Administração e, mais tarde, no Departamento de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo.

Em uma avaliação da produção sociológica paulista no período entre 1940-52, Antonio Candido (1958) refere-se com simpatia à "auspiciosa compenetração" então existente entre sociologia e antropologia. Se é verdade que a época é de fluidez cie fronteiras entre disciplinas que mais tarde traçariam clivagens mais nítidas, muito da extraordinária (e ainda pouco avaliada) originalidade e da consistência de toda a produção de Oracy Nogueira podem ser atribuídas a esta "compenetração". Sua inspiração teórica e metodológica, os temas de investigação eleitos, talvez até mesmo os percalços de sua trajetória institucional possam se esclarecer quando postos sob essa luz.

Se usarmos livre e anacronicamente nossa atual nomenclatura profissional, seus professores na Escola Livre foram o etnólogo Herbert Baldus, o sociólogo Donald Pierson, o antropólogo Radcliffe-Brown, entre outros; nos dois anos que passou na Escola de Chicago, sob a orientação de Everet Hughes, Nogueira freqüentou tanto cursos de antropologia como de sociologia. Assim é que, em sua dissertação de mestrado, Vozes de Campos do Jordão (1950), ele chega, antes de Erving Goffman, muito perto da noção de estigma, num trabalho que tanto pode integrar a hoje chamada microssociologia, como a nossa atual antropologia urbana. Seus "estudos de comunidade", as pesquisas sobre família (1962) e sobre as relações raciais em Itapetininga (1955a) incorporam de modo decidido e inovador a dimensão histórica: trata-se de estudar a definição e transformação de relações sociais ao longo de um período de duzentos anos. O conjunto de suas inspirações teóricas aproxima a ênfase empírica de sua abordagem sociológica daquilo que nós, antropólogos, denominamos com tanto orgulho de etnografia. Situações de pesquisa esclarecedoras, reminiscências, dramas pessoais, narrados com especial vivacidade nos dois últimos livros do autor — sobretudo na 'Introdução' de Tanto preto quanto branco: estudo de relações raciais (1991) e em Negro político, político negro (1992) —, integram nosso modo atual de lidar com a "observação participante", falam da fina sensibilidade, imaginação sociológica e profunda ligação afetiva com os temas de seu interesse.

Essa feliz "compenetração" está na base de toda a sua obra e, especialmente, de seu trabalho mais famoso, muito bem recebido internacionalmente e modestamente intitulado 'Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil' (1955b). O poder compreensivo da relativização é plenamente atestado na abordagem desenvolvida. O preconceito racial integra o domínio da modalidade, diria Marcel Mauss. Sua lógica e funcionamento, nos revela Nogueira, baseiam-se em critérios distintos de classificação social — lá a descendência, aqui a cor da pele — que podem ser relacionados ao ethos de cada um dos sistemas culturais considerados. O ensaio desvenda o mistério do racismo à brasileira (como o denominaria mais tarde Roberto da Matta) por meio de uma perspectiva holista e comparativa. Seu brilho, tão intenso quanto discreto, mantém-se intacto.

Apesar disso, o nosso atual reconhecimento do lugar de Oracy Nogueira na história das ciências sociais no Brasil está aquém de sua importância. Algumas perspectivas parecem de fato dificultá-lo. Nas visões disponíveis da história das ciências sociais no país, deparamo-nos por vezes com um certo darwinismo intelectual que supõe uma necessária superação do passado pelo presente, este inquestionavelmente superior (é tão fácil quanto ilusório superar argumentos estrategicamente empobrecidos); e, com freqüência, encontramos também uma visão hobbesiana da vida intelectual que equaciona significação de um pensamento ao sucesso de um projeto institucional. Desse modo, o 'fracasso' institucional da Escola Livre a partir de certo momento aparece como sinônimo da falência intelectual de uma concepção de ensino, de pesquisa e de sociologia; a 'superação' dos estudos de comunidade por outras perspectivas teóricas e metodológicas simplifica e invalida a alternativa anterior. Produzem-se mal-entendidos que, no popular, jogam fora o bebê junto com a água do banho.

Não está em jogo simplesmente a necessidade de conhecermos, por uma quase obrigação da construção de identidades, modalidades de instituições, estudos e autores que, afinal, foram importantes para sua própria época. Como alguns estudos vêm também nos sugerindo (Peirano, 1993), a compreensão da história de nossas disciplinas pode ser muito mais interessante. Os termos de uma época podem nos dizer respeito diretamente, podem revelar a inevitável arbitrariedade e o poder de definição de realidade de arranjos institucionais, podem refinar nosso pensamento, ampliar nosso horizonte de referências, e permitir que nos situemos melhor em termos de nossa própria época.

Na área das investigações sobre relações raciais, o reconhecimento da importância das contribuições de Oracy Nogueira tem sido crescente, como a publicação de seus dois últimos livros o atestam. (Tanto preto quanto branco... traz a reimpressão de dois de seus artigos sobre relações raciais, entre eles o excelente ensaio já citado, e uma ótima introdução autobiográfica. Infelizmente, o terceiro, 'Relações raciais no município de Itapetininga', que completaria o conjunto de sua reflexão sobre esse tema, acabou por ficar de fora. Negro político, político negro reúne pesquisa histórica, ficção e argumento sociológico na construção da biografia do dr. Casemiro Rocha, médico negro radicado em Cunha, que ocupa lugar de destaque na vida política local durante a Primeira República). Numa perspectiva mais ampla, há a sugestão de Castro Faria (1993), assinalada por Peirano (1994), de compreensão da antropologia social feita no Brasil como resultante de uma "incorporação germinativa" com a sociologia expressa claramente nos trabalhos de Oracy Nogueira entre outros.

O conjunto de sua obra e sua trajetória merecem, entretanto, avaliação mais abrangente, que ainda está por ser feita. A presente publicação do depoimento do prof. Oracy Nogueira, prestado à profa. Mariza Corrêa em 1984, no contexto da pesquisa 'História da antropologia no Brasil', desenvolvida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), vem se somar aos esforços nessa direção.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Candido, Antonio 1958 'Informações sobre a sociologia paulista', em Ensaios paulistas. São Paulo, Anhembi.

Castro Faria, Luís de 1993 Antropologia: espetáculo e excelência. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ.

Nogueira, Oracy 1992 Negro político, político negro. São Paulo, Edusp.

Nogueira, Oracy 1991 Tanto preto quanto branco: estudo de relações raciais. São Paulo, T. A. Queiroz.

Nogueira, Oracy 1962 Família e comunidade. Rio de Janeiro, MEC/CBPE.

Nogueira, Oracy 1955a 'Relações raciais no município de Itapetininga', em Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo. São Paulo, Anhembi.

Nogueira, Oracy 1955b 'Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem', em Anais do XXXI Congresso Internacional de Americanistas e na separata relativa ao Symposium Etno-sociológico sobre Comunidades Humanas no Brasil. São Paulo.

Nogueira, Oracy 1950 'Vozes de Campos de Jordão'. Revista Sociologia, São Paulo

Peirano, Mariza dez. de 1994 'Mais que emérito'. Resenha de Castro Faria (1993), Boletim da Associação Brasileira de Antropologia.

Peirano, Mariza 1994 Uma antropologia no plural: três experiências contemporâneas. Brasília, Edunb.

Formação e atividades profissionais

Fui aluno da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, de 1940 a 1945. Em 1945, terminei o mestrado, na primeira turma de pós-graduandos da escola, juntamente com Gioconda Mussolini e Virgínia Leone Bicudo. Tendo Gioconda falecido há poucos anos, Virgínia e eu somos os decanos dos mestres em ciências sociais por instituição brasileira.

Terminado o mestrado, fui para os Estados Unidos, com bolsa do Institute of International Education, para fazer o doutorado na Universidade de Chicago. Fiquei lá de 1945 a 1947, fazendo parte dos créditos no Departamento de Antropologia e parte no de Sociologia, e regressei para fazer o trabalho de campo para a tese. Em 1952, estava prestes a embarcar para os Estados Unidos para apresentar a tese, com bolsa da Fundação Rockefeller, quando me foi negado o visto.

Estava-se em pleno macarthismo e eu era conhecido como intelectual de esquerda. Me politizei bem cedo, tanto que, em 1932, no terceiro ano do ginásio e com 15 anos incompletos, inscrevi-me num batalhão, em Botucatu, para o que tive que apresentar autorização por escrito de meu pai. Em 1933, como repórter do diário local, Correio de Botucatu, dirigido por Manuel Deodoro Pinheiro Machado, passei à militância de esquerda e creio que devo meu interesse pelas ciências sociais, em grande parte, à preocupação com a justiça social.

Desde 1933-34 meu interesse pelo jornalismo ... levou-me a conviver com Manoel Deodoro Pinheiro Machado, que se candidatou a deputado pelo Partido Socialista Brasileiro e fazia sua campanha doutrinária e eleitoral através de seu diário. ...A adesão ao socialismo intensificou meu interesse pelas pessoas de cor e seus problemas, dada a freqüente coincidência entre a condição de trabalhador e a identificação como mulato ou preto. (Esta transcrição e as seguintes foram tiradas da 'Introdução' de Tanto preto quanto branco: estudo de relações raciais [N. da E.]).

De 1936 a 1938, tive que me isolar da família, para tratamento de saúde, em São José dos Campos. Nesse ínterim, meus pais e irmãos se mudaram para São Paulo, onde, de retorno da estância climática, vim a fazer o curso de formação de professor primário, de dois anos, tendo tido alguns excelentes professores de sociologia, psicologia e disciplinas afins.

Quando estávamos para terminar o curso, um colega japonês, Yozo Yawata que, tendo chegado de seu país pouco antes da guerra, fizera o madureza e ingressara no curso de formação de professores mais como pretexto para conviver com nacionais e apressar sua integração na sociedade de adoção, mostrou-me um anuário da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo. As informações ali obtidas levaram-me a me matricular no Curso de Bacharelado, no ano letivo de 1940.

A partir de 1941 passei a trabalhar como estudante-bolsista, junto ao prof. Donald Pierson, na função de auxiliar de pesquisa, tendo como principal local de trabalho a sala que Sérgio Milliet lhe cedeu no Departamento de Estatística e Documentação Social da prefeitura, num anexo do mercado municipal, nas vizinhanças do Parque Pedro II. Como professor de sociologia e antropologia, doutorado em Chicago (EUA), sob a orientação de Robert Ezra Park, Pierson passou 16 anos em São Paulo como docente e verdadeiro diretor acadêmico da Escola de Sociologia e Política, enquanto Ciro Berlinck se desincumbia dos problemas administrativos da instituição. A Pierson se deveu uma reestruturação do bacharelado da escola e a criação de sua divisão de estudos pós-graduados que, por ocasião de sua retirada, contava com uma seção de sociologia e antropologia e outra de economia, em pleno funcionamento, e uma terceira, de psicologia, em vias de instalação.

Concluído o bacharelado em 1942, no ano seguinte passei a integrar o corpo docente da escola, como assistente de Pierson, condição em que me manteria até a ida para Chicago. De regresso, reassumi minha função docente, cujo exercício somente viria a interromper em 1957, para ficar à disposição do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, no Rio de Janeiro, onde permaneci até princípios de 1961.

No bacharelado, dois professores contribuíram mais diretamente para despertar meu interesse pelo estudo das relações raciais: Donald Pierson e Emílio Willems. Desde o segundo ano, passei a trabalhar com o primeiro ... vindo a colaborar na tradução de seu livro sobre a situação racial da Bahia. ... Willems influenciou-me principalmente através da discussão de suas pesquisas sobre a assimilação e aculturação dos alemães no Sul do país.

Ao regressar de Chicago, em 1947, passei a me encarregar do programa de pesquisas do convênio da escola com o Serviço Social da Indústria (Sesi). Enquanto eu era incumbido pela escola da execução das pesquisas, Cândido Procópio Ferreira de Camargo veio atuar junto à mesma como fiscal do Sesi. Foi aí que começou nossa amizade, de que resultaria nossa colaboração em projeto coordenado por ele, anos mais tarde.

Até 1952, eu trabalhava quase exclusivamente na escola, salvo quanto a aulas noturnas em alguns outros estabelecimentos e ao atendimento de convites para colaboração ocasional em outras instituições. Na escola, além de ensinar no curso de graduação, desde 1943, e no de pós-graduação, desde 1947, eu me desincumbia de pesquisas, como já foi mencionado. A partir de 1948, quando a revista Sociologia foi adquirida pela mesma escola, atuei em sua co-direção, a princípio com Emílio Willems e, mais tarde, com Pierson.

A partir de 1952, com o visto negado para minha viagem aos Estados Unidos, senti que minha situação na escola já não era a mesma, vindo a ocorrer não poucas manifestações de hostilidade à minha pessoa, algumas anônimas, outras, partindo de colegas e da alta administração. Sentia que não contava mais com a mesma confiança da alta administração da escola, cuja situação financeira nunca fora satisfatória e se agravara de tal modo que, já casado e com filhos, fiquei, certa ocasião, seis meses com os vencimentos em atraso.

Tudo isso me levou a reconsiderar o convite que o prof. Mario Wagner Vieira da Cunha (responsável pela cadeira de ciência da administração da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas da Universidade de São Paulo, e pelo Instituto de Administração, anexo) me fizera, em várias ocasiões, para com ele trabalhar. Assim, em 1952, entrei para o Instituto de Administração como técnico de administração substituto, cargo em que me efetivaria, em 1955. No instituto viria, ainda, a ser chefe do Setor de Pesquisas Sociais, tendo ocorrido ali uma das fases mais estimulantes de minha vida profissional.

Em 1960, quando estava à disposição do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, no Rio, colaborei com a escola, dando aulas na pós-graduação, para o que vinha semanalmente a São Paulo. Ao regressar do Rio de Janeiro, em princípios de 1961, mantive-me formalmente ligado à escola por alguns meses, porém logo dela me desliguei, com grande pesar, dada minha ligação sentimental com a instituição.

Em 1968, passei a integrar o grupo de docentes da área de sociologia da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas e, com a reforma universitária de 1969-70, transferi-me para o Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, onde dei prosseguimento à minha carreira acadêmica até a função de professor adjunto. Em 1978, prestei concurso para professor titular de sociologia aplicada à economia, da Faculdade de Economia e Administração, cargo em que tomei posse em princípios de 1980 e no qual me aposentei em 1983.

Até 1974, seja como técnico do Instituto de Administração, seja como docente da Universidade de São Paulo, por necessidade de complementação salarial, fui obrigado a assumir o compromisso de dar aulas em diferentes estabelecimentos de ensino, na Grande São Paulo e no interior do estado, chegando a lecionar até em cinco estabelecimentos no mesmo período letivo, podendo enunciar entre as cidades onde dei aulas Santo André, Osasco, Campinas, Rio Claro, Itapetininga.

Foi um período de muita angústia, com muito tempo perdido em locomoção, roubado à leitura e outras atividades necessárias à atualização e boa forma do professor. Ainda assim encontrava tempo para atividades de pesquisa aplicada e assessoramento, tendo sido assessor, durante quatro anos, do Sindicato da Indústria de Peças para Automóveis e Similares, durante a presidência do dr. José Mindlin, da Serete, e do Escritório de Arquitetura do prof. Joaquim Guedes. Assim, participei de pesquisas subsidiárias para a elaboração dos planos diretores de Goiânia e Natal, da Nova Marabá e da Central de Abastecimento de Salvador, entre outros. Nos trabalhos da Serete e do escritório de Joaquim Guedes participei de equipes multiprofissionais, ao lado de arquitetos, engenheiros civis, economistas, assistentes sociais... Entre esses profissionais havia especialistas em paisagismo, comunicação visual, redes de água e esgotos... enfim, o trabalho nessas entidades suscitava uma experiência enriquecedora para quem atuava predominantemente no meio acadêmico, com suas peculiaridades, entre as quais a ênfase no conhecimento pelo conhecimento.

Um dos característicos da Escola de Sociologia e Política, ao tempo em que dela fui aluno, era a ênfase no preparo dos estudantes para a pesquisa empírica, vista como condição para o conhecimento sistemático da realidade social. Como estudante bolsista e, posteriormente, assistente do prof. Donald Pierson, tive oportunidade de acompanhar diferentes projetos de investigação, desde a coleta de informações bibliográficas ao planejamento da atividade de campo; da elaboração dos instrumentos de coleta à realização de entrevistas e aplicação de questionários, até a elaboração e apresentação dos resultados, incluindo a redação do relatório final.

Preconceito racial de marca e de origem

Graças à experiência assim acumulada, antes de concluir o bacharelado, realizei minha primeira pesquisa autônoma, num período de ausência do prof. Pierson, escolhendo um problema que por si mesmo já revelava a influência dele no desenvolvimento de um dos meus interesses de pesquisador: intrigado pelos anúncios do Diário Popular, de procura de empregados, em que a cor era explicitada como critério de exclusão ou preterição de candidatos, resolvi entrevistar os responsáveis pelos mesmos, para conhecer seus característicos pessoais e as razões alegadas para a discriminação desfavorável às 'pessoas de cor'.

Apresentei os resultados num artigo que saiu publicado, em fins de 1942, na revista Sociologia, dirigida pelos profs. Emílio Willems e Romano Barreto. (O artigo 'Atitude desfavorável de alguns anunciantes de São Paulo em relação aos empregados de cor' foi reimpresso em Tanto preto quanto branco: estudo de relações raciais [N. da E.]). O artigo teve um impacto maior do que eu esperava, graças, principalmente, aos comentários de dois intelectuais mulatos — Maurício de Medeiros, médico e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras, em sua coluna de A Gazeta, e Fernando Góes, jornalista e, mais tarde, membro da Academia Paulista de Letras, então recém-chegado da Bahia.

Aqui chegando, Góes teve uma crise de indignação com o nível de discriminação em relação aos pretos e mulatos e saudou meu artigo como uma confirmação de sua experiência pessoal, o que, de certo modo, também aconteceu com Maurício de Medeiros. Enquanto este era médico de grande prestígio, Fernando Góes era um autodidata já de sucesso como jornalista, porém ainda em início de carreira como escritor. Para dar uma idéia do espírito irônico e do fair-play de Fernando Góes, basta lembrar um caso que me foi contado por um dos seus amigos mais íntimos: certa vez, Negrão de Lima deveria visitar a redação do jornal em que ele trabalhava e alguém telefonou para a redação, perguntando se o mesmo lá se encontrava. Quem atendeu foi Fernando Góes, que respondeu: "Aqui não há nenhum Negrão de Lima; há um negrinho de lama, que sou eu!"

Meu artigo deixava claro a existência de preconceito e discriminação contra o negro, isto é, contra as pessoas com vestígios de ascendência africana em São Paulo. Uma hipótese implícita com que parti era a de que os anunciantes constituíssem um grupo exótico, atípico em relação à população brasileira, paulista e paulistana. No entanto, os dados revelaram que, em sua maioria, os anunciantes que discriminavam desfavoravelmente as pessoas não-brancas eram brasileiros e católicos, tal como a maioria da população.

Em 1945, já portador do título de mestre, fui para os Estados Unidos, para fazer o doutorado na Universidade de Chicago, onde fiquei até 1947, perfazendo créditos, conforme mencionei, nos departamentos de Antropologia e Sociologia. Já motivado para o estudo de relações raciais, aproveitei o ensejo para atuar como observador participante e conhecer por dentro a situação racial norte-americana para poder compará-la com a nossa.

Tive a sorte de vir logo a travar conhecimento com um negro de cerca de trinta anos, que freqüentava a International House, onde residi durante os primeiros dez meses, para se exercitar na língua espanhola que já vinha estudando há algum tempo e que já arranhava o suficiente para poder desenvolver-se pelo uso. Logo ele se tornaria o meu grande cicerone pelo bairro e pelas instituições 'negras'. Com ele, visitei várias vezes o Abraham Lincoln Institute, onde encontrei retratos de vários personagens da história brasileira em quem eu nunca havia pensado como 'negros', na galeria dos negros ilustres do mundo. Por essa apresentação, o Brasil já havia tido presidentes, ministros e outros importantes políticos negros, sem contar os poetas e prosadores...

Vi, nos Estados Unidos, negros identificarem como de seu grupo estadistas, poetas e outros personagens brasileiros que, entre nós, usualmente não são vistos como tal - Nilo Peçanha, Floriano Peixoto, Castro Alves - aplicando-lhes o conceito de 'negro' a que estavam habituados.

Com esse cicerone, visitei igrejas e casas comerciais e freqüentei residências, no bairro negro de Chicago. Compareci a reuniões internacionais e a conferências de intelectuais negros, como o antropólogo Saint-Clair Drake, o sociólogo Horace Cayton, o lingüista Lorenzo Turner. Ao mesmo tempo, por outras vias, conheci e freqüentei reuniões do Committee on Race Equality, cujos membros atuavam sob a ideologia gandhiana da não-violência, o Anti-Discrimination Committee, a National Association for the Advancement of Colored People, de que me tornei associado, o grupo religioso Baha'i, que se propunha a unificar as nove religiões ecumênicas... Enfim, os cerca de dois anos que permaneci em Chicago e umas férias que passei com um colega norte-americano, em casa de sua família, numa pequena cidade madeireira do Sul, me permitiram vivenciar a 'situação racial' dos Estados Unidos, quando já dispunha de ampla informação bibliográfica sobre relações raciais nesse país e no Brasil, colhida antes e depois de minha viagem para lá.

Eu já sabia, por exemplo, pela leitura, da existência, nos Estados Unidos, de indivíduos brancos, loiros, de olhos claros, que eram definidos e a si próprios se definiam como 'negros', por ser sabido que tinham ancestrais africanos, ainda que remotos.

Enquanto nos Estados Unidos exclui-se da categoria 'branco' todo indivíduo que se saiba ter ascendência não-branca, por mais remota e imperceptível que seja, no Brasil mesmo indivíduos com leves porém insofismáveis traços negróides são incorporados ao grupo branco, principalmente quando portadores de atributos que implicam status médio ou elevado (riqueza, diploma de curso superior e outros).

Lloyd Warner, de quem vim a ser aluno, no prefácio do Deep South, um estudo de comunidade voltado para o problema de relações raciais, realizado no Sul dos Estados Unidos, já se referia a negros tão brancos que jamais poderiam ter descendentes negros, por mais que se esforçassem... Foi por ocasião de uma das conferências de uma série realizada no Abraham Lincoln Institute, por Drake e Cayton, que conheci pessoalmente uma mulher loira, clara, de cabelos sedosos, que poderia viver como branca em qualquer país europeu e que se declarou negra quando, ao fazer perguntas ao conferencista, percebeu que os demais negros presentes lhe dirigiam olhares irritados... Ela os esclareceu, dizendo que não pensassem que ela estava fazendo aquelas perguntas por menosprezo ao negro, pois, ela também, era negra... Ao fim da reunião, fui procurá-la e ela me contou que, certa vez, passara por branca, durante seis meses, em Nova York. Eu já conhecia estórias de passing de 'negros brancos', como a do autor de Native Son que, segundo consta, viveu anos como branco para freqüentar bibliotecas e outras instituições, sem ser incomodado. Li, certa vez, que, na biografia de tais "negros brancos", havia sempre folhas perdidas, isto é, períodos mais ou menos longos, sobre os quais faltavam informações e que correspondiam àqueles em que haviam passado por brancos.

Num curso sobre 'relações raciais' ministrado na Universidade de São Paulo, no segundo semestre de 1977, empreguei a expressão 'etnocentrismo negativo' para indicar a condição de negro destribalizado, colonizado, escravizado, europeizado, que interiorizou o ideal estético do branco, no que toca à figura humana, e vê a si próprio do ponto de vista deste — condição característica do negro na diáspora, em contraste com a do negro tribalizado ou que preservou sua identidade étnica, na África.

O secretário executivo da National Association for the Advancement of Colored People, durante anos de minha permanência nos Estados Unidos, era um desses negros-brancos, um homem loiro e de olhos verdes que, por ironia da sorte, levava o nome de Walter White. Sobre ele, ouvi contar várias lendas. Segundo uma delas, certa vez ele se meteu numa turba de brancos, no Sul, que se empenhava em perseguir um negro para um possível linchamento. Em dado momento, um membro da turba, desconfiado, se dirigiu a ele, perguntando: "O senhor me dá sua palavra de gentleman de que não é negro?"

Diziam que, em outra ocasião, White procurou um político, então no poder, para fazer uma reivindicação em nome do grupo negro. Na sala de espera estavam várias outras pessoas, inclusive um deputado do Sul, homem moreno e tarraco, ao qual o oficial de gabinete se dirigiu, chamando-o de "Mister White", ao que o verdadeiro "Mister White" esclareceu: "I am Mister White, the Negro"...

Durante minha permanência na Universidade de Chicago, vários professores indicaram aos alunos uma leitura que, para mim, foi fascinante: a do livro de James Weldon, Autobiography of an ex-coloured man, em que o autor expunha suas experiências dos primeiros anos de socialização, no Sul dos Estados Unidos, dos vividos como branco, em países da América Latina e da Europa, e dos de reassunção da identidade de negro, ao voltar para os Estados Unidos. Essa autobiografia pode ser vista como um documento íntimo, dramático e profundamente humano, em que não se sabe em que medida estão dosados fatos autênticos e ficção. Em resumo, ele conta ser filho de um fazendeiro branco, do Sul, e de uma mulata. Esta o manteve, na terra natal, durante o período pré-escolar, procurando preservá-lo do impacto das situações de discriminação. Quando Weldon chegou à idade de escolarização, a mãe se mudou para o Norte, para uma cidade em que ele pudesse freqüentar uma escola "inter-racial". Ali, ele teve sua primeira experiência dramática e traumática, quando uma pessoa veio recensear os alunos e pediu aos brancos que se levantassem. Como ele também se levantou, disseram-lhe que "não era a sua vez". À saída da aula, ele se viu duplamente hostilizado — pelos colegas brancos, por o suporem impostor, e pelos negros, por o julgarem traidor. Depois de expor suas experiências no exterior e após o retorno, James Weldon descreve o linchamento de um jovem negro, por ele testemunhado, no Sul, em que os requintes de crueldade o fazem transbordar de indignação, pois aquilo jamais se faria a um cão... Por vingança, ele decide, então, passar definitivamente por branco.

Nas culturas das tribos africanas, ...as entidades sobrenaturais benfazejas eram pintadas como escuras, enquanto as malfazejas ... eram imaginadas como figuras claras na pele, nos cabelos e nos olhos. Lembro-me sempre do caso do missionário inglês Livingstone que, depois de prolongada convivência com membros de uma tribo africana, foi de tal modo influenciado pelo consenso da população que o cercava quanto à superioridade estética do tipo negróide que passou a envergonhar-se da própria cor, sentindo-se como se fosse um homem desbotado entre os pretos que o rodeavam.

Sempre que me achava presente em alguma casa de negros ou em alguma reunião ou evento no bairro negro, e os presentes conversavam sobre suas experiências de discriminados, seus ressentimentos e reivindicações e alguém chamava a atenção para minha presença, havia sempre quem me pusesse à vontade, dizendo: "Abaixo do Rio Grande (rio que separa os Estados Unidos do México), todo mundo é índio ou negro." Tomando-me assim como um dos seus, deixavam-me ouvir até suas observações ou comentários mais reservados, como a de estar a sociedade norte-americana sujeita à ordem das bicadas (peck-order): os brancos tradicionais bicam os recém-chegados, estes bicam os latino-americanos e todos bicam os negros, que, não tendo em quem se desforrar, bicam uns aos outros.

Ouvi, também, anedotas e casos chistosos que mostravam, com ironia, as inconsistências e contradições que a situação racial impunha aos brancos, levando-os a uma verdadeira ginástica mental e verbal para proteger os valores que proclamavam.

Para exemplificar, vou lembrar apenas dois casos.

O primeiro caso é o de um negro que, se mudando de uma cidade menor para a Filadélfia, e estando imbuído de uma mentalidade aristocrática, procurou uma igreja da tradicional elite local para freqüentar. Entrou, participou do culto e, tendo gostado, voltou vários dias seguidos. Vendo-o, o pastor ficou preocupado, porém, achou que ele logo perceberia que aquele não era o seu lugar. Esperou uma semana e, como o negro insistisse em ir ao templo, procurou-o e o aconselhou a rezar, em sua própria casa, e perguntar a Deus se deveria continuar a freqüentar aquela igreja... O negro seguiu-lhe o conselho e, em casa, ajoelhou-se, rezou e fez a pergunta, ouvindo a resposta da voz reboante de Deus: "Meu filho, se eu que sou Deus, há dois mil anos estou tentando entrar nessa igreja e até hoje não consegui, se você conseguiu, continue indo lá, continue indo lá..."

O segundo é o de um negro de Serra Leoa que foi a um cinema onde estavam passando um filme sobre seu país. Ao chegar à bilheteria, disseram-lhe que não podiam vender entrada "a pessoas do seu tipo". Ele então protestou, dizendo em voz alterada que haviam feito o filme em seu país e ele tinha que vê-lo. O bilheteiro ficou receoso de que se tratasse de algum diplomata e apelou para o gerente. Este conversou com o negro, que repetiu sua proclamação de que tinha que ver o filme feito em seu país. O gerente, então, autorizou-o a entrar e, acompanhando-o até o porteiro, apresentou-o com estas palavras: "This man is not a Negro, he is an African..."

Toda essa miscelânea de coisas lidas, ouvidas e presenciadas veio ao encontro do interesse que eu já havia desenvolvido pelos problemas de relações raciais.

Voltando ao Brasil, depois de compulsar dados e visitar diferentes localidades, escolhi Itapetininga como objeto de meu trabalho de campo para o doutorado. Em 1951, estava em plena pesquisa, quando Alfred Métraux, antropólogo suíço, veio ao Brasil para contratar uma equipe, em nome da Unesco, para realizar uma série de investigações sobre relações raciais em diferentes pontos do país, por sugestão de Artur Ramos e sob o pressuposto de que aqui as raças conviviam de modo descontraído, sem os conflitos extensivos que ocorriam em outras sociedades multirraciais. Assim, para o estado de São Paulo, Métraux encarregou os profs. Roger Bastide e Florestan Fernandes de estudarem a situação da capital, e a mim, de me aprofundar na questão de relações raciais, no trabalho de Itapetininga.

Ao fim do prazo, apresentei um relatório com uma visão histórica e atual da situação racial no referido município, e no qual esboçava o contraste entre dois tipos de preconceito racial — o característico do Brasil, em que a aparência física das pessoas era decisiva, e o característico dos Estados Unidos, em que o decisivo era o conhecimento da ascendência na raça discriminada. Minha conclusão extrapolava o âmbito da localidade estudada e me fazia lembrar uma reflexão de Robert Redfield no sentido de que, nas ciências sociais, em geral, os autores não operam com conjuntos precisos e bem delimitados de dados empíricos. Estes têm valor heurístico, porém as ilações não decorrem apenas de sua consideração.

Em 1954, entre os eventos comemorativos do IV Centenário da cidade de São Paulo, estava programada a realização, aqui — por empenho, principalmente, de Herbert Baldus — do XXXI Congresso Internacional de Americanistas, para o qual Florestan Fernandes planejou um simpósio etno-sociológico, para o qual fui convidado a contribuir com um depoimento sobre o relacionamento entre brancos e não-brancos na sociedade nacional e, mais precisamente, na área por mim pesquisada.

Na época, andava excessivamente atarefado com aulas e outros compromissos e até a véspera do simpósio não consegui preparar o texto solicitado por Florestan. Exatamente nessa noite, consegui redigir 12 enunciados comparativos sobre os dois tipos de preconceito esboçados no relatório sobre Itapetininga. Na manhã seguinte, apresentei-os, no simpósio, acompanhando-os de explicações orais. Vários dos presentes, entre os quais Thales de Azevedo, acolheram meu esquema com uma atitude que me estimulou. Poucos dias depois, apresentei o texto que figura na separata dos Anais do XXXI Congresso Internacional de Americanistas, com as demais contribuições ao simpósio organizado por Florestan Fernandes. Alguns meses após o congresso, recebi dois artigos escritos por Juan Comas para um jornal mexicano, comentando meu texto. Em 1957, por ocasião de um congresso, em San Juan de Porto Rico, reapresentei meu texto, com ligeiras alterações. A coletânea de contribuições a esse evento foi publicada nas línguas inglesa e espanhola, em dois volumes separados.

Estudos de comunidade

Minha tese de mestrado teve como objeto a comunidade de doentes de Campos do Jordão. O trabalho de campo foi feito em 1944 e a defesa, no ano seguinte. Através de observação participante, entrevistas, histórias de vida e análise de documentos íntimos, focalizei as relações dos doentes entre si, com o pessoal de saúde — médicos, enfermeiros — e com a população circundante ou não tuberculosa, enfatizando a mudança de autoconcepção e a ressocialização que a doença implicava. De certo modo, foi um estudo de estigma, sem dispor ainda das luzes do hoje clássico trabalho de Goffman. Do ponto de vista teórico e dos recursos empregados na análise, meu estudo de Campos do Jordão estava a meio caminho, ou melhor, na confluência entre a sociologia e a antropologia, de um lado, e a psicologia social, de outro. Devo lembrar que lecionei esta disciplina por cinco anos, na Escola de Sociologia e Política.

Os dois anos de isolamento por motivo de doença a que fui forçado e a impressão de estigma que me ficou como seqüela contribuíram para aumentar minha empatia em relação às pessoas de cor que, embora por outra razão, eu percebia estarem também sujeitas a isolamento e estigmatização.

Na homenagem de despedida ao prof. Radcliffe-Brawn, após seus três anos de permanência na escola, em seu discurso de agradecimento, o mestre de Oxford se referiu elogiosamente ao leque variado de disciplinas do currículo da mesma e à versatilidade que isso dava aos que nela se graduavam. Então, dispúnhamos de pouquíssimas profissões de nível superior regulamentadas e, na área de ciências humanas, somente das que implicavam o curso de direito. Daí terem saído da escola muitos dos pioneiros de algumas profissões novas que, somente anos mais tarde, viriam a contar com cursos de formação próprios e específicos, e com a respectiva regulamentação: estatísticos, psicólogos, economistas, pesquisadores de mercado e de opinião pública.

O trabalho com o qual pretendia defender o doutorado na Universidade de Chicago (EUA) foi publicado em 1962 pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, sob o título 'Família e comunidade, um estudo sociológico de Itapetininga'. Era um 'estudo de comunidade' como os então em moda, principalmente entre cientistas sociais norte-americanos, e como as investigações pioneiras de Emílio Willems, em Cunha, e Lucila Herrmann, em Guaratinguetá. Minhas principais fontes de inspiração foram alguns dos estudos clássicos do gênero, como os do casal Lynd, os de Redfield (de quem fui aluno), Lloyd Warner (idem) e o de Lucila Herrmann. Nesta, impressionou-me a dimensão histórica do estudo de Guaratinguetá, quando os autores norte-americanos de 'estudos de comunidade' davam pouca atenção à documentação sobre o passado, numa ênfase quase exclusiva à situação sincrônica do presente, numa transferência muito literal, para comunidades urbano-rurais inseridas no contexto de sociedades nacionais complexas, da experiência dos antropólogos no estudo de sociedades ágrafas ou pré-letradas.

Em Itapetininga, além de procurar absorver o máximo sobre a vida local, através da observação participante, freqüentando situações e eventos sociais os mais diversos, também busquei conhecer o passado, com a experiência histórica da comunidade levando em conta a literatura disponível — Saint-Hilaire, Aluisio de Almeida e outros —, e levantando material primário em cartórios, arquivos públicos e documentação privada. Na época de meu trabalho de campo, ainda vivia, em Itapetininga, o octogenário Antônio Galvão, homem de ascendência africana, decano dos jornalistas de O Estado de S. Paulo e que iniciara sua carreira na década de 1870, como tipógrafo do jornal local, Município, em que atuavam personalidades como Venâncio Aires, Antonio Moreira da Silva, o padre Francisco de Assunção Albuquerque e outros que se distinguiram como adeptos de movimentos como o abolicionista, o republicano, o municipalista e outros. Esse homem excepcional teve o cuidado de preservar coleções, encadernadas, de todos os jornais em que havia trabalhado, como tipógrafo, a princípio, e jornalista, posteriormente, desde o primeiro, de 1872 ou 1873, até anos bem mais recentes. Essa coleção estava na casa de seu filho homônimo, igualmente jornalista, que, generosamente, durante anos, me permitiu que ficasse horas a folhear sua hemeroteca e a tomar notas. Um meu ex-aluno era funcionário da Estrada de Ferro Sorocabana e todos os anos me renovava um passe-livre, com autorização para levar estudantes, quando julgasse conveniente, o que me permitia ir quase todas as quintas-feiras a Itapetininga e voltar aos domingos.

Meu trabalho de Itapetininga é o estudo de uma estrutura oligárquica que se formou a partir do século XVIII e perdurou até 1930, com a substituição da família hegemônica, em fins do século XIX, porém, sem mudança da estrutura até o golpe político do referido ano. A mudança dessa estrutura oligárquica, em que uma família tradicional praticamente monopolizava o poder político, para outra em que o poder político se apresentaria diluído, sem nenhuma família em posição homóloga à das que dominaram o município e a região, no decorrer de dois séculos, iria se tornar clara com a liberdade de competição política que se seguiu à queda do Estado Novo. Suponho que o que observei em Itapetininga sirva de exemplificação de um processo que vem ocorrendo por toda a parte, no Brasil, embora com acelerações e defasagens regionais e locais, conforme a persistência de um relativo isolamento ou a intensificação dos contatos pela melhoria dos meios de transporte e comunicações.

Erradicar o analfabetismo

Quanto ao projeto dos municípios-laboratórios, devo lembrar que, em princípios de 1957, Darcy Ribeiro e João Roberto Moreira foram a São Paulo e me convidaram para trabalhar com eles, no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), no Rio de Janeiro. Em agosto, licenciado pela Escola de Sociologia e Política e pelo Instituto de Administração, passei a integrar o quadro de pesquisadores do CBPE. Tinha a incumbência de realizar investigações em linha com os objetivos do centro e colaborar no Curso de Aperfeiçoamento de Pesquisadores Sociais a ser ministrado pela instituição, para o qual foram recrutados alunos graduados em ciências sociais e áreas afins, das diferentes regiões do país, para estudarem com bolsas e em tempo integral.

Minha ida para o CBPE coincidiu com o engajamento de João Roberto Moreira e Darcy Ribeiro na Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo, nascida de entendimentos entre o ministro da Educação, Clóvis Salgado, e o diretor do centro, Anísio Teixeira. João Roberto Moreira foi nomeado coordenador da campanha e Darcy Ribeiro, responsável pelo seu setor de estudos e levantamentos. Sua incumbência era fornecer informações sobre o contexto dos centros-pilotos em que se fariam inovações educacionais e fazer o acompanhamento e avaliação das iniciativas que fossem adotadas.

De reuniões realizadas com a participação de Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, João Roberto Moreira, Aparecida Joly Gouveia, Jaime de Abreu e outros, surgiu a idéia de que os municípios escolhidos para áreas de atuação da campanha fossem tratados como verdadeiros laboratórios, isto é, como campos de elaboração tanto de conhecimentos especificamente voltados para o processo educacional, como de conhecimentos de interesse das ciências sociais em geral, que se viessem a acumular através de levantamentos periódicos e de investigações avulsas e ad hoc, por iniciativa dos responsáveis pela campanha ou de instituições e pesquisadores com objetivos convergentes e que com ela quisessem colaborar. Fui, então, incumbido de redigir um projeto, fixando essa perspectiva e que saiu no número de abril de 1958 de Educação e Ciências Sociais, órgão do CBPE, sob o título de 'Projeto de instituição de uma área-laboratório para pesquisas referentes à educação'.

Com efeito, além da atuação especificamente educacional, a campanha realizou pesquisas sociais em Leopoldina e Cataguases, na Zona da Mata de Minas Gerais, com participação de professores e alunos do curso já referido e de outros pesquisadores chamados a colaborar, como o sociólogo Juarez Rubens Brandão Lopes, o geógrafo Orlando Valverde, e outros. Houve vários outros centros em que equipes de educadores e pesquisadores atuaram com entusiasmo, como os de Santarém, no Pará, Benjamin Constant, no Amazonas, Júlio de Castilhos, no Rio Grande do Sul, Macaé, no estado do Rio de Janeiro.

No plano especificamente educacional, entre as questões que preocupavam Roberto Moreira e que vinham sendo objeto de reflexão de Anísio Teixeira, estavam as elevadas taxas de repetência e reprovação da escola primária no Brasil. Em Leopoldina e outros centros-pilotos, João Roberto Moreira procurou pôr em prática medidas que tornassem mínimas essas taxas e fizessem com que a promoção dos alunos fosse tão automática quanto possível. Enfim, compartilhando das idéias de Anísio Teixeira, Roberto Moreira procurava incutir em seus colaboradores uma filosofia educacional que enfatizasse o desenvolvimento pessoal dos alunos, e não a competição intra-escolar como objetivo do processo educacional sistemático.

Os levantamentos feitos tinham, antes de mais nada, caráter de pesquisa aplicada. Assim, eram, sempre, acompanhados de relatórios minuciosos e informativos para uso da coordenadoria da campanha, em seu planejamento das medidas e atividades especificamente educacionais. Eu mesmo redigi vários textos sobre Leopoldina e Cataguases (Minas Gerais), Benjamin Constant (Amazonas) e Santarém (Pará). Em outros centros-pilotos, pesquisadores, contratados em São Paulo, no Rio de Janeiro ou nas respectivas regiões, encarregaram-se das pesquisas. Entre as publicações, podem ser citados: o artigo de Orlando Valverde, 'Estudo regional da Zona da Mata de Minas Gerais' (Revista Brasileira de Geografia, ano XX, nº 1, jan.-mar. de 1958, pp. 3-82, em que o autor mostra os característicos da área e a história de sua ocupação, salientando, no período que se seguiu à decadência da cafeicultura, a correlação entre a pujança dos centros urbanos e a desorganização ou empobrecimento da economia rural; e o livro de Juarez Rubens Brandão Lopes, Crise do Brasil arcaico (São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1967), em que o autor analisa as práticas de administração, especialmente de pessoal, observadas em empresas da Zona da Mata mineira, tomando como pano de fundo a organização social nacional e regional, profundamente marcada pelo ethos patrimonialista, adotando, como instrumental, conceitos e referenciais teóricos weberianos. Posso lembrar, também, que Rodolfo Lehnhard defendeu tese de livre-docência, em São José do Rio Preto, numa das faculdades que vieram a integrar a Universidade do Estado de São Paulo (Unesp), baseando-se nas pesquisas que realizou para a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo, nos centros-pilotos de Macaé, no estado do Rio de Janeiro, e Júlio de Castilhos, no estado do Rio Grande do Sul. Ao mesmo sociólogo deve-se um relatório sobre a pesquisa que realizou no centro-piloto de Mococa, estado de São Paulo.

Sociologia das profissões

Em Chicago, tive um curso de sociologia das ocupações e profissões, com o meu adviser, prof. Everett C. Hughes, discípulo de Park, e que se distinguiu nesse domínio. Acabei sendo o introdutor dessa especialização da sociologia na Escola de Sociologia e Política da Universidade de São Paulo e em outros estabelecimentos. Além de me inspirar no curso de Hughes e em sua bibliografia, também me amparei em autores ingleses e franceses que fui incorporando, ao logo do tempo. Minha tese de livre-docência, divulgada em edição mimeografada, foi sobre as profissões de nível universitário no estado de São Paulo. Tirei meu quadro de referência, basicamente, de dois livros clássicos ingleses: The professions, de Carr-Saunders e Wilson (1933), e Professional people professions, de Lewis e Maude (1952).

Outra pesquisa que gostaria de mencionar, de que participei, foi o projeto referente ao Nordeste, coordenado por Cândido Procópio Ferreira de Camargo, e integrada num programa de âmbito internacional, patrocinado por duas entidades européias — uma católica, o Institute de Études Socio-Religieuses, e a outra protestante, o Conselho Mundial de Igrejas. Embora nos entreajudássemos durante todo o desenvolvimento do projeto, em todos os seus aspectos, Camargo cuidou mais especificamente do papel do catolicismo no desenvolvimento, Esdras Borges Costa, do protestantismo, e eu, de uma visão geral de contexto sócio-econômico regional. No trabalho de campo, contamos com uma equipe integrada em parte por jovens levados do estado de São Paulo e outros recrutados em Natal. A principal publicação resultante da parte brasileira do programa é o livro de Cândido Procópio Ferreira de Camargo, Igreja e desenvolvimento (São Paulo, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento/Editora Brasileira de Ciências, 1971). De meu texto, intitulado O Brasil e o Nordeste, foi feita uma edição em multilato (Bruxelas, Centre de Documentation sur l'Action des Églises dans le Monde, 1968).

Ficha técnica:

Local: Unicamp, Campinas

Data: 25.9.1984

Entrevistadores: Mariza Corrêa e Guita Grin Debert (em vídeo), além dos estudantes da turma de 1984 do mestrado em antropologia social (em áudio).

Edição: Ruth B. Martins

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2006
  • Data do Fascículo
    Out 1995
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