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TERRITÓRIO COMO CONSTRUÇÃO SOCIAL

Ao longo das quatro últimas décadas, a categoria “patrimônio cultural” expandiu-se a ponto de abranger uma variada gama de objetos, materiais, espaços, práticas sociais ou conhecimento identificados, celebrados e/ou contestados como patrimônio por um ou mais grupos sociais (Gonçalves, 2015GONÇALVES, José Reginaldo. O mal-estar no patrimônio: identidade, tempo e destruição. Estudos Históricos, v.28, p.211-228, 2015.). Essa expansão ocorreu acompanhada por reavaliações que abordam o aspecto da interação entre materialidade e imaterialidade, as matrizes de valores como atribuições, a participação social no processo de patrimonialização e gestão do recurso patrimonial e, mais recentemente, as variadas dimensões dos efeitos do processo colonial.

A Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 1988, marcada pela participação da sociedade, estabeleceu que cabe ao Estado proteger, com a colaboração da comunidade, as manifestações das culturas populares, indígenas, afrodescendentes e de outros grupos formadores da sociedade brasileira, definindo o patrimônio cultural do país como os bens materiais e imateriais portadores de referência à memória, à identidade e à ação daqueles grupos.

Se as minorias étnicas, sociais e religiosas têm conquistado significativas vitórias na luta por representatividade na última década, sobretudo no reconhecimento de suas referências culturais imateriais, suas identidades territoriais ainda permanecem delas descoladas. O que é um contrassenso, pois o patrimônio encontra-se ligado ao território e à memória, que operam ambos como vetores da identidade (Hartog, 2014HARTOG, François. Patrimônio e presente. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. p.133-156.). A memória coletiva de um grupo social necessita de uma referência territorial. O território é, portanto, o registro das tensões, dos sucessos e fracassos da história de uma sociedade, e precisa ser compreendido em uma perspectiva integradora (Haesbaert, 2004HAESBAERT, Rogério. Dos múltiplos territórios a multiterritorialidade. Porto Alegre: [s.n.], 2004.).

Nesse cenário, o território como construção social (lugar) emerge como lócus de resistência e mobilização. Falar sobre o patrimônio cultural no território de Manguinhos é trazer para o centro da discussão os sujeitos históricos do local – recuperando processos, experiências e eventos significativos invisibilizados da narrativa dominante –, bem como reconhecer e valorizar seu protagonismo e seu conhecimento. Historicamente, as intervenções sobre o ambiente construído e social em favelas, apesar de apresentarem potencial para contribuir com a reversão das iniquidades em saúde, tradicionalmente não são planejadas, implementadas e avaliadas considerando os processos críticos de determinação local da saúde. Também dificilmente é considerado o impacto no território das decisões projetuais, e de sua implementação, na saúde e na qualidade de vida da população, que, em regra, não é incluída nos processos decisórios e no controle social das ações realizadas em seu contexto de vida.

Com o objetivo de fomentar esse debate, no que tange ao reconhecimento das identidades territoriais e as territorialidades, e suas influências nos processos de saúde, propomos a publicação deste suplemento em 2023, data em que são comemorados os 20 anos da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial da Unesco (32ª sessão), os 40 anos do projeto Tesouros Humanos Vivos (Living Human Treasures) da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura e os 35 anos da Constituição Federal Brasileira.

O suplemento abrange diferentes formas de produção no espaço urbano de Manguinhos, sede da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), por meio de artigos que abordam, sob diferentes enfoques e escalas, as influências e marcas na região que repercutiram de alguma forma nos desenvolvimentos espacial e cultural do lugar. Trata-se, portanto, de um espaço de reflexão interdisciplinar sobre a relação entre território e identidade local, incluindo seus aspectos tangíveis e intangíveis, em especial na relação com a saúde e o patrimônio cultural.

Nesse contexto, o suplemento se apresenta em três seções, reunindo seis artigos, sendo quatro na seção “Análise”, um na seção “Imagens” e um na seção “Depoimento”.

O artigo que abre o suplemento, “Uma história em construção: Manguinhos-Maré no tempo presente”, de Renato da Gama-Rosa Costa, Renata Soares Costa e Matheus Gonçalves, revisa as duas primeiras décadas do século XXI e mostra como esses anos foram representativos para a história institucional, confirmando o protagonismo da Fiocruz no cenário nacional da saúde. A instituição vislumbrou avanços na pesquisa e no diagnóstico de doenças, associados à ampliação de sua rede de infraestrutura – traço de uma identidade cunhada desde o início do século XX –, com abrangências regional e internacional, ao passo que eclodiam crises financeiras e sanitárias. O artigo apresenta as transformações espaciais nos territórios ocupados pela Fiocruz, em especial o campus Fiocruz Manguinhos-Maré, a partir de 2000. São relacionadas as transformações de uso dos territórios com a política institucional da Fiocruz no contexto nacional e ressaltam-se demandas sociais que impactaram a instituição – transformações urbanas de grande porte e pandemias. O estudo averigua, sob os pressupostos da história do tempo presente, as mudanças ocorridas no campus Manguinhos-Maré no período estudado, bem como o discurso de sujeitos institucionais – gestores e projetistas. Para isso, conjuga uma análise dos relatórios institucionais e da base digital cartográfica da instituição, além de imagens aéreas concedidas pelo município, a fim de auxiliar na investigação acerca das alterações físicas no campus.

Em “Saúde urbana, direito à cidade e as comunidades de Manguinhos no Rio de Janeiro”, os autores, Luis Carlos Soares Madeira Domingues e Rosângela Lunardelli Cavallazzi, estudam a dinâmica histórica e contemporânea da urbanização em nosso continente latino-americano. Partem do entendimento de que essa dinâmica produz e reproduz desigualdades, ressalta a crise urbana com a qual atualmente convivemos e penaliza a maior parcela da população, concentrando iniquidades em saúde nas áreas de maior pobreza urbana, quais sejam favelas e periferias. As cidades brasileiras, de forma específica, refletem espacialmente os graves descompassos históricos e estruturais da nossa sociedade. Um dos desafios que se impõe, principalmente considerando o contexto de retrocessos em políticas públicas e direitos sociais, é realizar uma reflexão que articule como enfrentar as situações emergenciais no apoio às famílias em territórios vulneráveis com propostas de médio e longo prazos que possam transformar os processos de determinação social associados às condicionantes habitacionais e urbanísticas que afetam a saúde e a qualidade de vida dessa população, bem como das condições de enfrentamento dessa e de futuras emergências sanitárias e climáticas. O objetivo desse trabalho é contribuir com essa reflexão considerando a fundamentação teórico-metodológica do campo da saúde urbana, associando uma abordagem crítica da epidemiologia e da teoria urbana. Essa abordagem busca superar uma perspectiva apenas funcionalista entre fatores e o processo saúde/doença, e que considera a importância da dinâmica histórica e social e a complexidade da análise urbanística sobre o ambiente construído, sua produção e reprodução social. O trabalho utiliza, como caso referência, as favelas do Complexo de Manguinhos que foram objeto do PAC Urbanização de Favelas.

Em “Participação social e território: diálogos possíveis para a gestão sustentável do patrimônio cultural”, Marcos José de Araújo Pinheiro e Roberta dos Santos de Almeida partem da compreensão antropológica do conceito de “patrimônio cultural” como conjunto de coisas, relações e significados atribuídos por diferentes sujeitos e grupos da sociedade e unem a perspectiva da conservação integrada e da sustentabilidade de maneira a reafirmar a importância da participação social nos processos de construção, preservação, apropriação, valorização, cuidado e transmissão do patrimônio. Adotam como objeto de estudo o Núcleo Arquitetônico Histórico de Manguinhos (Nahm), conjunto de edificações de interesse histórico-cultural inserido no campus Manguinhos da Fiocruz, e o seu Plano de Requalificação, lançado em 2014, com o objetivo de aumentar a oferta de atividades socioculturais oferecidas pelo Museu da Vida, equipamento cultural da Fiocruz, e de transformar esse ambiente em um “campus parque” aberto ao público. Além da sua representação para a história e a memória da instituição e para o cenário das ciências e da saúde no Brasil, o estudo buscou compreender o Nahm como parte indissociável de um território, e, para tanto, incluiu a realização de pesquisa quali-quantitativa direcionada aos trabalhadores da instituição e aos moradores locais, consolidando um diagnóstico sobre a participação social no âmbito do referido plano. Os resultados dessa pesquisa evidenciam que ainda é necessário criar mecanismos para aproximar e envolver esses grupos no conjunto de projetos e iniciativas que estão sendo delineados em vias de efetivar não somente a diretriz da participação social presente no documento referência do Plano de Requalificação do Nahm, mas, sobretudo, de consolidar a vocação social desse patrimônio cultural e de colaborar para a promoção do desenvolvimento sustentável do território.

O ensaio de Renata Reis, “Lembrar, reconhecer, reverenciar: lugares de memória para os trabalhadores e técnicos da Fiocruz”, apresenta o resultado do projeto de educação patrimonial dos lugares de vida históricos e afetivos do campus de Manguinhos relacionados à memória e às muitas histórias dos auxiliares de laboratório que atuaram no Instituto Oswaldo Cruz (IOC) em seus 30 primeiros anos de existência. Tal iniciativa teve como propósito estabelecer um lugar de memória para os trabalhadores técnicos da instituição. Em sua concepção, a proposta busca promover um diálogo entre o passado e o presente da história da Fiocruz, integrando ambientes virtuais e presenciais. O objetivo é que toda a comunidade Fiocruz e o público em geral possam conhecer os aspectos das relações de trabalho no antigo IOC e as muitas histórias de seus trabalhadores, que atuaram lado a lado com os cientistas e, também, participaram da construção da ciência e da saúde pública no Brasil. O projeto vincula-se ao Plano de Requalificação do Núcleo Arquitetônico e Histórico de Manguinhos e foi apoiado pelo edital Chamada para Projetos de Memória Institucional da Fiocruz, em 2020.

Na seção “Depoimento”, o artista, professor e fundador do projeto Experimentalismo Brabo, coletivo de provocação artística surgido no Complexo de Favelas de Manguinhos (Rio de Janeiro-RJ), Leonardo de Souza Melo (Leo Salo), ele próprio um cordelista, reflete sobre o processo de interação desenvolvida no território em entrevista concedida a Elis Regina Barbosa Angelo. O relato destaca o processo de desenvolvimento que resultou na coleção de histórias do Complexo de Favelas de Manguinhos contadas por meio da poesia popular e registrada em folhetos de cordel.

A seção “Imagens” registra a experiência de oficinas de educação patrimonial na comunidade de Manguinhos com o texto “Luta contra o apagamento: acervo comunitário de fotografias da Igreja São Daniel Profeta, em Manguinhos”, de Inês El-Jaick Andrade e Éric Alves Gallo. Tendo como objeto uma seleção de fotos históricas de um álbum fotográfico relacionada com aquela comunidade de fiéis, o artigo apresenta o contexto social no qual essas imagens vieram à circulação. Discute a interpretação daquele patrimônio edificado e a construção de reconhecimento e valorização dos laços tangíveis e intangíveis que unem Igreja e sua comunidade no território de Manguinhos.

A compreensão da saúde, na sua forma mais ampla, permite que ela seja abordada de forma cada vez mais abrangente e inclusiva. A memória, a identidade, o território e a cultura são componentes importantes dessa visão, para a qual os textos reunidos no suplemento pretendem contribuir. Boa leitura a todos!

REFERENCES

  • GONÇALVES, José Reginaldo. O mal-estar no patrimônio: identidade, tempo e destruição. Estudos Históricos, v.28, p.211-228, 2015.
  • HAESBAERT, Rogério. Dos múltiplos territórios a multiterritorialidade. Porto Alegre: [s.n.], 2004.
  • HARTOG, François. Patrimônio e presente. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. p.133-156.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    Maio 2023
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