Resumos
Apresenta um conjunto de fontes documentais que integram o Arquivo de Antropologia Física, de responsabilidade do Setor de Antropologia Biológica do Museu Nacional/UFRJ. O arquivo contém importante documentação sobre o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, realizado em 1929, no Rio de Janeiro, em comemoração ao centenário da Academia Nacional de Medicina. Além de originais dos trabalhos apresentados no evento - alguns inéditos -, constam também nesse arquivo documentos reunidos pela secretaria do Congresso, como convocações para a sua realização, ficha dos inscritos, correspondências, recortes de jornais e revistas com artigos sobre eugenia, bem como moções, relatórios e atas finais, constituindo acervo fundamental para a compreensão da história da eugenia no Brasil.
Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia (1929); história da eugenia; Arquivo de Antropologia Física do Museu Nacional; Brasil
The article presents a set of documental sources that are part of the physical anthropology archive administered by the National Museum's biological anthropology sector (UFRJ). The archive holds important documentation on the first Brazilian congress of eugenics, held in Rio de Janeiro in 1929, in celebration of the National Academy of Medicine centennial. In addition to the originals of papers presented at the event (some unpublished), the archive also contains a series of documents compiled by the congress organizers, including announcements of the event, attendee registrations, correspondence, newspaper and magazine clippings of articles on eugenics, as well as motions, reports, and final minutes, all of which makes this collection invaluable in understanding the history of eugenics in Brazil.
First Brazilian Congress on Eugenics; history of eugenics; Physical Anthropology Archive (National Museum/UFRJ); Brazil
FONTES
IDoutorando em História das Ciências e da Saúde pela COC/Fiocruz. Rua Cardeal Leme, 125/S402 - 20240-012 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. vanderleidesouza@yahoo.com.br IIProfessor do Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ; pesquisador da ENSP/Fiocruz. Rua Leopoldo Bulhões, 1480 - 210410-210 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. santos@ensp.fiocruz.br IIIMuseóloga do Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ. Quinta da Boa Vista, s/n - 20940-004 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. monica@mn.ufrj.br IVConservadora-restauradora da Coordenação de Documentação e Arquivo/Mast. Rua General Bruce, 586 - 20921-030 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. ozana@mast.br VProfessora do Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ. Quinta da Boa Vista, s/n - 20940-004 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. claudia@mn.ufrj.br
RESUMO
Apresenta um conjunto de fontes documentais que integram o Arquivo de Antropologia Física, de responsabilidade do Setor de Antropologia Biológica do Museu Nacional/UFRJ. O arquivo contém importante documentação sobre o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, realizado em 1929, no Rio de Janeiro, em comemoração ao centenário da Academia Nacional de Medicina. Além de originais dos trabalhos apresentados no evento - alguns inéditos -, constam também nesse arquivo documentos reunidos pela secretaria do Congresso, como convocações para a sua realização, ficha dos inscritos, correspondências, recortes de jornais e revistas com artigos sobre eugenia, bem como moções, relatórios e atas finais, constituindo acervo fundamental para a compreensão da história da eugenia no Brasil.
Palavras-chave: Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia (1929); história da eugenia; Arquivo de Antropologia Física do Museu Nacional; Brasil.
A partir de meados dos anos 1980, os estudos sobre eugenia tornaram-se bastante recorrentes na historiografia internacional. Vista até então como pseudociência, um conhecimento baseado numa visão tendenciosa e não objetiva, parte dos historiadores entendia que a história da eugenia pouco tinha a nos dizer sobre a sociedade, política e ciência das primeiras décadas do século XX. Sob tal ponto de vista, os divulgadores da eugenia nada mais eram do que um grupo de intelectuais e políticos reacionários e racistas, fortemente ligados ao nazi-fascismo e ao arianismo (Adams, 1990, p.220). Entretanto, ao retomar os estudos sobre os significados das ideias eugênicas, a historiografia tem demonstrado que a eugenia não foi uma obra alheia à nova ordem racional da civilização; ao contrário, foi um "produto legítimo do espírito moderno, daquela ânsia de auxiliar e apressar o progresso da humanidade rumo à perfeição que foi por toda parte a mais eminente marca da era moderna" (Bauman, 1999, p.33).
De outro lado, embora tenha sido lugar comum no pensamento ocidental, os historiadores têm destacado também que a história da eugenia não pode ser apreendida como um conhecimento científico homogêneo e unitário, definido a partir de interesses e objetivos comuns. Recentes estudos sobre a história da eugenia, realizados em países como Alemanha, Estados Unidos, Inglaterra, França, Rússia e Brasil, apontam para uma diversidade de ideias e para a implantação de diferentes políticas eugênicas. Conforme destaca o historiador Mark Adams (1990, p.226), a eugenia foi um movimento de ideias que se reconfigurou de acordo com os diferentes contextos nacionais, conformados pelas tradições culturais específicas de cada região.
Motivada por essas discussões, a história da eugenia no Brasil tem se transformado numa temática recorrente na historiografia recente, especialmente a partir dos anos 1990, quando a historiadora Nancy Stepan (1991) publicou importante obra sobre a história da eugenia na América Latina, enfatizando as questões com as quais lidaram os eugenistas no Brasil, na Argentina e no México. Recentemente a obra foi traduzida para o português (Stepan, 2005), estimulando ainda mais o debate e os estudos históricos acerca da eugenia no Brasil, sobretudo no período entre-guerras, quando o movimento eugênico brasileiro formou adeptos e se institucionalizou.
De maneira geral, as fontes documentais para a pesquisa acerca da eugenia no Brasil são razoavelmente amplas, uma vez que é possível localizar, mesmo que dispersamente, livros, artigos de jornais, revistas e periódicos que trataram do tema. Entre os documentos mais importantes para a reconstrução desse capítulo da história brasileira, alguns merecem destaque: os Annaes de eugenia, volume publicado em 1919, que apresenta trabalhos organizados pela Sociedade Eugênica de São Paulo; as Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, publicado em 1929 com alguns dos trabalhos discutidos no evento; além do Boletim de Eugenia, periódico editado entre 1929 e 1933. Não obstante a quantidade de documentos existentes, é importante ressaltar que esse material encontra-se disperso em arquivos e bibliotecas do país, sendo muitos deles raros e a demandar conservação.
Em 2006 o Setor de Antropologia Biológica, ligado ao Departamento de Antropologia do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), disponibilizou para o público o inventário do Arquivo de Antropologia Física (Santos, Mello e Silva, 2006). O arquivo contém uma série de documentos referentes à eugenia no Brasil, assim como material produzido por eugenistas de outros países. A grande maioria se refere à documentação reunida em razão do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, realizado em 1929, no Rio de Janeiro. Toda a documentação produzida pelo Congresso ficou sob a guarda do Museu Nacional, em razão de o antropólogo Edgard Roquette-Pinto - que ocupava então o cargo de diretor da instituição - ter sido o presidente do evento. Além de conter parte dos originais dos trabalhos apresentados pelos congressistas - alguns inéditos -, o Arquivo de Antropologia Física guarda uma série de documentos reunidos pela secretaria do Congresso, entre eles convocações para a realização do evento, fichas de inscrição, nomes dos inscritos, correspondência dos participantes, moções, relatórios e as atas finais. Trata-se de fontes de grande relevância para compreender a história da eugenia no Brasil, por ter o evento se tornado marco importante do movimento eugênico.
Destaque-se que o material sobre eugenia é apenas uma parte da documentação que constitui o Arquivo de Antropologia Física. No total, são mais de dez mil documentos fundamentais para a compreensão da história da antropologia (especialmente da antropologia física) no Brasil, desde o século XIX até a década de 1960. O Arquivo possui também documentos diversos relacionados a áreas correlatas como antropologia social, etnologia e arqueologia. É constituído tanto por documentos textuais como recortes de jornais e de revistas científicas, correspondências, documentos administrativos e textos científicos diversos, quanto por documentos iconográficos e cartográficos como fotos, mapas, cartazes e desenhos. Todo esse material encontra-se organizado em séries e subséries, em que foram aproveitadas algumas das nomenclaturas de projeções das pastas e das divisórias originais do Arquivo. Vem sendo conservado e acondicionado com base em avaliação do estado de conservação de cada documento, realizada por técnicos do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast) e do Museu Nacional, conforme previsto em acordo de cooperação técnica firmado entre as duas instituições. O trabalho vem sendo executado no Laboratório de Conservação e Restauração de Papel (Lapel) do Mast, sob responsabilidade e acompanhamento de um técnico do Setor de Antropologia Biológica (SAB) do Museu Nacional. Os documentos estão abertos à consulta, com exceção daqueles em estado de conservação precário e dos que aguardam restauro, de acesso restrito.
Apesar da importância de todo o conjunto documental sob a guarda do Arquivo de Antropologia Física, destacamos aqui o acervo referente ao Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, entre outros diretamente relacionados à questão eugênica. Esse material merece uma descrição mais detida, já que o Congresso de Eugenia foi um evento científico importante não somente para o movimento eugênico como também para a própria história intelectual brasileira. Alguns dos temas discutidos durante o Congresso tiveram, inclusive, desdobramentos significativos ao longo dos anos 1930, a exemplo das discussões sobre imigração, que acabaram servindo de referência para um amplo debate acerca da implantação de políticas imigratórias durante a Constituinte de 1934 (Geraldo, 2007).
A eugenia no Brasil, nas primeiras décadas do século XX
As discussões sobre eugenia emergiram, no Brasil, no contexto do pós-Primeira Guerra Mundial, período de grandes mudanças no cenário nacional. Além do processo de urbanização e industrialização e da entrada de novos imigrantes, a passagem dos anos 1910 para os anos 1920 foi marcada pela expansão do nacionalismo e pelo sentimento de que a modernização do país dependeria de amplas reformas sociais, especialmente em relação à saúde pública, educação e formação racial da população (Skidmore, 1976; Schwarcz, 1993; Carrara, 1996; Stepan, 2004). Acalentada por esses ideais, a elite intelectual e política almejava construir uma nova identidade para o homem brasileiro, transformando a fisionomia do 'Jeca' doente e preguiçoso, tal qual havia definido o escritor Monteiro Lobato, em um 'Jeca' bravo e trabalhador (Lima, Hochman, 1996; Lima, 1999). Nesse sentido, quando as ideias eugênicas foram introduzidas no Brasil, nas primeiras décadas do século XX, seus adeptos rapidamente assumiram esse ideário reformista, destacando a contribuição da eugenia para regenerar a população nacional.
Na literatura do período, o termo eugenia aparecia sempre como símbolo de modernidade cultural, assimilada como conhecimento científico que expressava muito do que havia de mais 'atual' na ciência moderna. Falar sobre eugenia significava pensar em evolução, progresso e civilização, termos que constituíam o imaginário nacionalista de boa parte das elites brasileiras. Em muitos casos, a eugenia era interpretada como a "nova religião da humanidade" e, em outros, como a "ciência do futuro", responsável pela regeneração física e mental da população nacional (Souza, 2006, p.19). A própria história da eugenia no Brasil, conforme argumenta Nancy Stepan (2005, p.49-50), deve ser vista como parte de um "endosso à ciência", que havia se tornado "palavra de ordem para a elite moderna e secular". Segundo a autora, nas primeiras décadas do século XX os intelectuais brasileiros abraçaram a ciência, sobretudo a medicina e a própria eugenia, como uma forma de conhecimento progressista que possibilitava pensar numa alternativa para o 'atraso' do país.
Ao contrário do modelo de eugenia desenvolvido sobretudo nos Estados Unidos e na Alemanha, onde o racismo científico grassou fortemente, a eugenia brasileira se caracterizou por um discurso mais 'suave', informado por concepções neolamarckistas e pela crença na herança dos caracteres adquiridos (Stepan, 2004, 2005). Embora medidas mais radicais, ligadas à 'eugenia negativa', tenham feito parte do ideário defendido por alguns dos integrantes do movimento eugênico, a preocupação da maioria dos eugenistas consistia em regenerar a população a partir de reformas no ambiente social, fosse pelo saneamento das áreas urbanas e rurais, combatendo às principais doenças que assolavam o país, ou pela ampliação do cuidado materno-infantil e difusão da educação higiênica e sexual (Marques, 1994; Stepan, 2004; Souza, 2006).
As ideias eugênicas foram moldadas também pela realidade racial do país, uma vez que a grande parcela da população de origem africana, indígena e mestiça era vista como um problema a ser enfrentado pelas autoridades locais. De maneira geral, os eugenistas brasileiros buscavam um caminho alternativo que fugisse dos estereótipos negativos e deterministas que os cientistas e viajantes estrangeiros haviam construído, em relação à suposta instabilidade racial dos brasileiros. A partir do controle das políticas imigratórias e do processo de miscigenação, os eugenistas almejavam homogeneizar a 'raça nacional', por meio de um processo de branqueamento - um caminho que desde o século XIX seduzia as elites nacionais -, ou assumindo uma identidade mestiça - como defendia um grupo de intelectuais liderados por Roquette-Pinto, Gilberto Freyre e Manoel Bomfim. Como a historiografia tem destacado, a rearticulação em torno do conceito de raça e das classificações raciais dominaram o pensamento brasileiro desse período, cujo elemento característico foi a ambiguidade entre a aceitação do racismo científico e a sua negação (Skidmore, 1976; Schwarcz, 1993; Maio, Santos, 1996; Cunha, 2002; Carrara, 2004).
O Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia
Devido à insistente propaganda lançada por um grupo de médicos e eugenistas, liderados especialmente por Renato Kehl, as ideias eugênicas chegaram, no país, ao final dos anos 1920, com fôlego suficiente para mobilizar um bom número de intelectuais, cientistas e autoridades políticas. Seus adeptos e simpatizantes espalhavam-se por várias instituições científicas, exortando a capacidade reformadora que a "nova ciência de Galton" apresentava, por um lado, para auxiliar no processo de regeneração e formação da nacionalidade e, por outro, para apressar o processo de modernização da ciência brasileira. É importante destacar que, além da divulgação do ideário eugênico levado a cabo pela Sociedade Eugênica de São Paulo, pela Liga Pró-Saneamento do Brasil e pela Liga Brasileira de Higiene Mental, outras associações, academias e revistas de medicina assumiram as ideias eugênicas como parte de seu programa científico. Além disso, em janeiro de 1929, Renato Kehl criaria o Boletim de Eugenia, com o objetivo de popularizar o conhecimento eugênico (Souza, 2006, p.131-132).
Em consonância com essa expansão do movimento eugênico, a Academia Nacional de Medicina, então presidida por Miguel Couto, passou a divulgar a realização do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia como parte integrante das comemorações que marcariam o centenário da instituição, fundada em 1829. O anúncio do Congresso, pela Academia de Medicina, uma das principais instituições do campo médico naquele período, contribuiria tanto para reafirmar o interesse e a consolidação da eugenia como um dos principais temas tratados pelos intelectuais brasileiros, quanto para definir os novos rumos que o movimento eugênico seguiria na década de 1930.
Realizado na sede da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em julho de 1929, o Congresso de Eugenia contou com a participação de mais de uma centena de intelectuais, inclusive representantes de outros países da América do Sul. Os participantes eram médicos, educadores, juristas, antropólogos, sociólogos e historiadores. Entre os inscritos, encontravam-se importantes lideranças intelectuais das primeiras décadas do século XX, como Miguel Couto, Roquette-Pinto, Belisário Penna, Affonso de Taunay, Alfredo Ellis, Azevedo Amaral, Renato Kehl e Leonídio Ribeiro, para citar apenas alguns. Distribuídos por seções temáticas, os participantes discutiram acaloradamente temas que envolviam "o futuro eugênico da nação", como a seleção imigratória, o controle matrimonial, a educação sexual, o cuidado materno e infantil, a esterilização eugênica de 'loucos' e 'criminosos', a genética e a hereditariedade, a biometria, a antropologia racial, a psiquiatria e a higiene mental, a educação e a higiene em geral.
Durante o evento, mais de 75 trabalhos foram apresentados, discutidos e alguns votados, de onde foram retiradas as principais conclusões. Apenas uma parte deles foi publicada, compondo hoje um volume raro e essencial para a história da eugenia, as Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia (Actas e trabalhos..., 1929). Além das atas finais e das cinco conferências realizadas durante o evento, o volume apresenta também mais vinte trabalhos sobre eugenia e temas afins. Nas páginas finais do volume há a indicação de que seriam publicados dois outros volumes, com os trabalhos apresentados no evento, o que não chegou a se concretizar.
Entre os textos publicados nas Atas e trabalhos, destaca-se o artigo "Nota sobre os tipos antropológicos do Brasil", de Edgard Roquette-Pinto, em que o autor faz uma ampla defesa da miscigenação processada no Brasil, ressaltando que nenhum dos "tipos raciais" brasileiros apresentavam qualquer estigma de degeneração ou inferioridade racial. Não só devido ao impacto dos argumentos, mas também pela autoridade científica que Roquette-Pinto adquirira no campo da antropologia física (Santos, 1998; 2002), o texto se tornou referência importante no período, sendo inclusive citado por Gilberto Freyre, no prefácio de Casa-grande e senzala, como um dos trabalhos que contribuíram fortemente para sua percepção de que a miscigenação brasileira era eugenicamente viável. O volume traz também importantes trabalhos de autoria de Renato Kehl, Fróes da Fonseca, Azevedo Amaral, Levi Carneiro, André Dreyfus, e outros.
Os originais de boa parte desses trabalhos, além de outros inéditos, fazem parte do acervo que compõe o Arquivo de Antropologia Física do Museu Nacional. Entre eles encontramos, por exemplo, um dos trabalhos que suscitaram maior polêmica durante o Congresso. Trata-se do texto "O problema eugênico da imigração", de Azevedo Amaral, intelectual que se transformaria numa das principais figuras do pensamento político brasileiro durante o governo Vargas. Os argumentos defendidos por esse autor levaram a uma divisão entre os congressistas, sobretudo no tocante ao modelo de imigração a ser assumido pelo governo brasileiro. Apoiado nos pressupostos que reafirmavam a desigualdade racial, Azevedo Amaral defendia que a seleção eugênica dos imigrantes deveria ser observada a partir das qualidades hereditárias e raciais, medidas acima de tudo pelos "caracteres de inteligência e de caráter" e não pelo mero estado de saúde. Em seu ponto de vista, os imigrantes desejáveis, capazes de possuir uma "herança satisfatória", seriam os da Europa setentrional, como os arianos do tipo germânico. Embora a tese de Azevedo Amaral encontrasse um bom número de aliados, entre eles Renato Kehl, Miguel Couto e Xavier de Oliveira, outros participantes, como Roquette-Pinto, Belisário Penna, Fróes da Fonseca e Fernando Magalhães, alegavam que a escolha dos imigrantes para o projeto de colonização do país não deveria se pautar nos caracteres raciais, mais sim no estado de saúde, na robustez física e no interesse em se assimilar à sociedade brasileira.
O acervo disponibiliza também as conferências pronunciadas durante o Congresso. Datilografadas, contêm correções e anotações manuscritas feitas por seus autores. A conferência "A eugenia no Brasil", de Renato Kehl, traz um esboço histórico e bibliográfico sobre a eugenia no Brasil, com informações relevantes para a compreensão do movimento eugênico brasileiro. Ressalte-se que o original é maior do que a versão publicada em Atas e trabalhos. Nesta não consta, por exemplo, um longo trecho em que Renato Kehl tece duras críticas à 'inaptidão' e 'imoralidade' da elite política brasileira, considerada por ele incapaz de levar adiante a ideia da regeneração eugênica da população. Kehl também entendia que essa própria elite precisaria ser eugenizada, chegando a discordar, por exemplo, de Oliveira Vianna, para quem as elites nacionais representavam os melhores "tipos eugênicos". Não há como saber ao certo, mas é provável que esses parágrafos tenham sido eliminados no trabalho publicado por dois motivos principais: primeiro, porque não agradava a muitos dos participantes do Congresso, integrantes da elite política brasileira; segundo, porque as Atas e trabalhos seriam distribuídas para as principais autoridades políticas do país, inclusive para a Presidência da República, Câmara e Senado Federal.
Outra conferência bastante polêmica foi pronunciada por André Dreyfus. Em "O estado atual do problema da hereditariedade", Dreyfus destacou a importância da genética mendeliana na compreensão da hereditariedade e dos fenômenos estudados pelas ciências biológicas, opondo-se aos argumentos neolamarckistas sobre a importância do meio na constituição da hereditariedade. Aliás, essa discussão também dividiu os congressistas, visto que muitos deles eram adeptos fervorosos do neolamarckismo. O melhor exemplo dessa cisão pode ser encontrado na conferência do médico Levi Carneiro, "Educação e eugenia", na qual se destacava que, apesar dos avanços das pesquisas sobre hereditariedade, não era concebível que o meio ambiente, a educação e outras leis sociais não fossem consideradas fundamentais para o melhoramento racial da humanidade. No ponto de vista desse autor, assim como de muitos eugenistas brasileiros, as leis sociais, a higiene e a educação muito poderiam contribuir para as práticas eugênicas regeneradoras, transformando os homens "amolentados" em "tenazes e intrépidos", os "feios" em "rijos", os "incultos" em "sagazes e inteligentes".
Baseados no pressuposto neolamarckista de que a melhoria do meio levaria ao aperfei-çoamento das futuras gerações, parte dos eugenistas que participaram do congresso assumia que higienizar e educar significava, também, eugenizar. De outro lado, vale destacar que os eugenistas valeram-se também de uma forte tradição da climatologia médica, que contagiava o pensamento médico brasileiro desde o século XIX (Edler, 1999). De acordo com Maio (2004), o ideário sanitarista da Primeira República manteve estreitas afinidades com o pensamento médico ambientalista do século XIX, sobretudo no que diz respeito a uma perspectiva neohipocrática e arracialista. Além disso, os problemas sanitários e sociais eram os objetos de maior interesse de médicos, higienistas e eugenistas, nas primeiras décadas do século XX. Desse modo, acreditavam eles que combater os 'ambientes disgênicos', propagar os hábitos de higiene e empregar a profilaxia sanitária seria a maneira mais rápida e eficiente de regenerar a população.
Pelo menos quatro dos textos originais do Congresso são inéditos. Um deles, inclusive, é um manuscrito intitulado "Eugenia", cuja autoria não foi possível identificar. Não se sabe também a sua origem e mesmo se fez parte dos documentos reunidos pela secretaria do evento. O manuscrito procura definir, a partir de referências a Francis Galton e outros eugenistas europeus, o que se deve entender por eugenia, suas funções e seus fundamentos. De acordo com esse texto, "a eugenia é a ciência de uma boa herança biológica, ou a higiene das disposições hereditárias", cujas bases encontram-se ligadas à higiene em geral e a genética. Ao final há uma defesa da associação entre eugenia e higiene, destacando-se o saneamento, da saúde pública, da moralidade sexual, da higiene do corpo e da educação como medidas eugênicas fundamentais para a regeneração física e mental do homem. Aliás, como mencionamos anteriormente, essa associação entre eugenia e higiene, ou eugenia e educação, sintetizava o ponto de vista de muitos eugenistas brasileiros, embora outros, como Renato Kehl, Roquette-Pinto, Octávio Domingues e André Dreyfus, refutassem o neolamarckismo, em favor da genética mendeliana.
A ligação entre eugenia e higiene aparece também em outros dois trabalhos inéditos, que se encontram no Arquivo de Antropologia Física. Um deles foi o trabalho apresentado por Maria Antonieta de Castro, uma das poucas mulheres presentes no Congresso. Intitulado "A influência da educação sanitária na redução da mortalidade infantil", o texto destaca as atividades que a Inspetoria de Educação Sanitária do Estado de São Paulo desenvolvia em relação à saúde materna e infantil. A autora enfatizava, por meio de gráficos com dados estatísticos, que os programas de puericultura, higiene pré-natal e de educação materna eram fundamentais na geração de uma prole saudável. Além de gráficos e outras ilustrações, o trabalho apresenta mais de quarenta fotografias referentes aos serviços da Inspetoria, a exemplo do Serviço de Higiene Pré-natal, do Curso das Mãezinhas, destinado à educação materna, dos concursos de robustez infantil e de escolha do Bebê Eugênico, cujo objetivo era escolher as crianças mais saudáveis e eugenicamente belas.
Outro trabalho inédito é o de Mendes de Castro, médico-auxiliar da Inspetoria de Educação Sanitária e Centros de Saúde de São Paulo. Com o título "A luta contra a sífilis e moléstias venéreas em São Paulo", aborda os serviços médicos prestados pelo estado para o combate à sífilis e a outras doenças venéreas. Mendes de Castro enfatiza a importância eugênica da educação sexual e do tratamento prestado aos 'doentes' acometidos por "males venéreos", considerados responsáveis pela rápida degeneração da 'raça'. O trabalho traz como anexos folhetos instrutivos, fotos do Serviço de Sifilografia e Moléstias Venéreas, além de inúmeros gráficos e tabelas com informações sobre índices e tratamentos contra doenças venéreas no estado de São Paulo.
"A idade e o casamento", de Leonídio Ribeiro, é outro trabalho inédito que pode ser consultado no Arquivo de Antropologia Física. O objetivo de seu autor foi destacar os prejuízos que o "casamento precoce" poderia trazer ao "futuro da raça". Embora afirme que o desenvolvimento das funções sexuais varia com a raça, o clima e as condições do meio, Leonídio Ribeiro argumenta que a constituição física e biológica dos noivos, sobretudo em relação ao aparelho reprodutivo, só estaria "biologicamente formado para procriar" a partir dos 18 anos de idade. O texto não apenas foi bem aceito entre os congressistas, como também fez parte de um conjunto de trabalhos sobre seleção matrimonial e eugenia, tema bastante discutido durante os seis dias de evento. No Arquivo de Antropologia Física é possível encontrar outros textos que tratam desse tema, como o de Jorge de Lima, intitulado "Tese de eugenia", o trabalho de Newton Belleza sobre matrimônio e consanguinidade e as conclusões do trabalho de Joaquim Moreira da Fonseca sobre matrimônio, castidade e eugenia.
A relação completa dos trabalhos disponíveis no Arquivo de Antropologia Física, apresentados durante o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, todos originais e datilografados, é a seguinte (em ordem alfabética):
- "A eugenia no Brasil", de Renato Kehl;
- "A idade e o casamento", de Leonídio Ribeiro (trabalho inédito, não publicado nas Atas e trabalhos);
- "A influência da educação sanitária na redução da mortalidade infantil", de Maria Antonieta de Castro (trabalho inédito, não publicado nas Actas e trabalhos);
- "A luta contra a sífilis e moléstias venéreas em São Paulo", de Mendes de Castro (trabalho inédito, não publicado nas Actas e trabalhos);
- "Estatística de doenças mentais do Hospital do Juquery", de Pacheco e Silva;
- "Biométrica", de Fernando Rodrigues da Silveira;
- "Casamento e eugenia", de Joaquim Moreira da Fonseca;
- "Consanguinidade", de Newton Belleza;
- "Considerações em torno do índice rádio-pélvico de Lapicque e tíbio-pélvico de Fróes da Fonseca", de Ermírio Lima;
- "Contribuição ao estudo dos psicogramas (psicologia individual)", de Ubirajara da Rocha e Arauld Bretãs;
- "Da aplasia clavicular", de Benjamin Vinelli Baptista;
- "Educação e eugenia", de Levi Carneiro;
- "Estado atual dos grupos hemáticos", de Roberto Hinrickesen;
- "Estatística dos tarados no Brasil", de Bulhões de Carvalho;
- "Fatores de degeneração observado nas praças da polícia militar", de Motta Rezende;
- "Genética vegetal", de A.J. de Sampaio;
- "Herencia psíquica intra-uterina", de Waldemar Coutts;
- "Maternidade consciente", Castro Barreto;
- "O dispensário psíquico como elemento da educação eugênica", de Gustavo Riedel;
- "O estado atual do problema da hereditariedade", de André Dreyfus;
- "O problema eugênico da imigração", de Azevedo Amaral;
- "Tese de eugenia", de Jorge de Lima;
Além desses, o acervo de fontes documentais diretamente referentes à eugenia, no Arquivo de Antropologia Física, inclui os seguintes documentos diversos:
- Documentos da secretaria do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, entre eles correspondência, regulamento, regimento interno, programação, relações dos trabalhos encaminhados e dos apresentados, fichas de inscrição, relação de inscritos e material de divulgação do evento;
- Documentos com resumo e conclusões de trabalhos, moções, relatos e atas referentes ao Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, com informações relevantes para a compreensão dos debates travados entre os congressistas;
- Recortes de jornais e revistas científicas, com matérias de autores brasileiros, alemães, franceses, ingleses e espanhóis sobre eugenia, hereditariedade, miscigenação e temas afins;
- Outros textos sobre eugenia, como o de Renato Kehl, intitulado "A eugenia prática" e publicado na Folha Médica em 1929;
- Os três primeiros números do Boletim de Eugenia, publicados em janeiro, fevereiro e março de 1929.
Em conclusão, apesar da crescente produção sobre a história da eugenia no Brasil, ainda não existem trabalhos específicos sobre o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, embora muitos autores tenham destacado a importância do evento para a trajetória do movimento eugênico brasileiro (Marques, 1994; Cunha, 2002; Boarini, 2003; Stepan, 2004; 2005; Souza, 2006). A documentação recentemente disponibilizada no Inventário do Arquivo de Antropologia Física, portanto, é um convite aos interessados no estudo acerca da história da eugenia no Brasil e de temas afins, no início do século XX.
AGRADECIMENTOS
Nossos agradecimentos a Maria Celina Soares de Mello e Silva, do Mast, e a todos os bolsistas e contratados envolvidos na organização e conservação do acervo. Agradecemos também ao CNPq (projeto 400.581/03-05) pelo financiamento para diagnóstico técnico, higienização e acondicionamento dos documentos do Arquivo de Antropologia Física.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
05 Out 2009 -
Data do Fascículo
Set 2009