Resumos
A questão motriz em A origem das espécies por seleção natural é para Charles Darwin, a tentativa de lançar alguma luz sobre o mistério da origem das espécies, mostrando como isso ocorre. Ao analisar a obra, deparamo-nos com uma dada visão de natureza que sustenta e esclarece nossa busca. Neste artigo, examinaremos essa visão e seus significados epistemológico e ontológico para a investigação a que Darwin se propõe. Em que medida foi importante para a sustentação de sua tese de que a seleção natural é o mais importante - ainda que não exclusivo - meio de modificação, o poder de mudança predominante, o princípio da natureza segundo o qual novas espécies se originam. Ao analisar as definições e múltiplas conotações existentes para 'natureza' no livro, encontramos uma necessária articulação entre natureza e seleção natural, visível na concepção darwiniana de luta pela existência e refletida na estrutura lógico-conceitual da obra.
teoria darwiniana; natureza; seleção natural; Charles Darwin
The main issue in the theory of the origin of species through natural selection, according to Charles Darwin, is the attempt to enlighten the mystery of the origin of species, by showing how it takes place. When analyzing Darwin's works, their different aspects and versions, we come across a certain view of nature that sustains and clarifies our search. In this article, we try to examine this view, as well as the epistemological and ontological support it gives to Darwin's investigation and to his thesis that natural selection, among other factors, has been the most important 'means of modification', the prevailing 'power of changing, the 'principle' in nature according to which new species are originated. When analyzing the definitions and various connotations there are for 'nature' in his book, we find the necessary articulation between the two pillars 'nature' and 'natural selection', which is present in Darwin's concept of 'struggle for existence' and reflected in the logical and conceptual structure of his work.
Darwinian theory; nature; natural selection; Charles Darwin
O conceito de natureza em A origem das espécies
The concept of nature in On the origin of species
Anna Carolina K. P. Regner
Professora da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul
Rua Alfredo Schanett, 843
91330-130 Porto Alegre RS Brasil
REGNER, A. C. K. P.: 'O conceito de natureza em A origem das espécies'.
História, Ciências, Saúde Manguinhos, vol. VIII(3): 689-712, set.-dez. 2001.
A questão motriz em A origem das espécies por seleção natural é para Charles Darwin, a tentativa de lançar alguma luz sobre o mistério da origem das espécies, mostrando como isso ocorre. Ao analisar a obra, deparamo-nos com uma dada visão de natureza que sustenta e esclarece nossa busca. Neste artigo, examinaremos essa visão e seus significados epistemológico e ontológico para a investigação a que Darwin se propõe. Em que medida foi importante para a sustentação de sua tese de que a seleção natural é o mais importante ainda que não exclusivo meio de modificação, o poder de mudança predominante, o princípio da natureza segundo o qual novas espécies se originam. Ao analisar as definições e múltiplas conotações existentes para 'natureza' no livro, encontramos uma necessária articulação entre natureza e seleção natural, visível na concepção darwiniana de luta pela existência e refletida na estrutura lógico-conceitual da obra.
PALAVRAS-CHAVE: teoria darwiniana, natureza, seleção natural, Charles Darwin.
REGNER, A. C. K. P.: 'The concept of nature in On the origin of species'.
História, Ciências, Saúde Manguinhos, vol. VIII(3): 689-712, Sept.-Dec. 2001.
The main issue in the theory of the origin of species through natural selection, according to Charles Darwin, is the attempt to enlighten the mystery of the origin of species, by showing how it takes place. When analyzing Darwin's works, their different aspects and versions, we come across a certain view of nature that sustains and clarifies our search. In this article, we try to examine this view, as well as the epistemological and ontological support it gives to Darwin's investigation and to his thesis that natural selection, among other factors, has been the most important 'means of modification', the prevailing 'power of changing, the 'principle' in nature according to which new species are originated. When analyzing the definitions and various connotations there are for 'nature' in his book, we find the necessary articulation between the two pillars 'nature' and 'natural selection', which is present in Darwin's concept of 'struggle for existence' and reflected in the logical and conceptual structure of his work.
KEYWORDS: Darwinian theory, nature, natural selection, Charles Darwin.
1 No Ensaio de 1842 (apud de Beer, 1971, p. 45) 'Natureza' é substituída por 'Criador', ser mais sagaz que o homem, selecionando as variedades que tendem a certos fins ou produzindo causas que tendem ao mesmo fim. No Ensaio de 1844 (idem, ibidem, pp. 114-6) a natureza, como um ser que racionalmente deseja, dá poder, causa adequada disseminação de sementes, seleciona, extingue...
2 Em cerca de 590 passagens examinadas na edição de A origem das espécies que usamos como referência, 37% referem-se a 'estado', 26%, a 'qüididade', 23%, a 'sistema' e 11%, a 'sujeito'.
A questão mestra de A origem das espécies, conforme declara seu autor, Charles Darwin, na introdução à obra, é lançar alguma luz sobre esse mistério dos mistérios, a origem das espécies, é entender como as espécies surgem na natureza. Parte essencial da resposta a essa questão encontra-se em uma dada visão de natureza que se impõe desde o início do texto, juntamente com a necessidade de se focalizar a rede de relações, o pano de fundo integrador, que sustenta a problemática a ser investigada em A origem das espécies. Essa proble-mática apresenta-se sob diferentes versões: como são aperfeiçoadas as surpreendentes adaptações de uma parte da organização com relação à outra e às condições de vida, e de um ser orgânico com relação a outro? Como as variedades, as chamadas espécies incipientes, convertem-se, por fim, em distintas espécies, as quais, na maioria dos casos, diferem mais entre si do que as variedades de uma mesma espécie? Como surgem os grupos de espécies chamados gêneros distintos, os quais diferem entre si mais do que as espécies de um mesmo gênero? (Darwin, 1875, pp. 48-9). A resposta é dada pela seleção natural como poder de mudança, ou o mais importante meio de modificação, na sua condição de princípio da natureza. 'Seleção natural' e 'natureza': a elucidação de um dos termos demanda o esclarecimento do outro. O conceito de natureza em A origem das espécies coloca-se, portanto, no próprio cerne da teoria darwiniana.
Duas definições
Darwin fornece duas definições de natureza no cap. VI, intitulado 'Seleção natural; ou a sobrevivência do mais apto'. Nele, Darwin trabalha a legitimidade do princípio em questão como hipótese explicativa para os fenômenos observados em dois níveis: à luz de seu fundamento em uma concepção de natureza; e como poder explicativo, para dar conta de fatos diversos, incluindo processos e padrões de comportamento, de regras com caráter de regularidades empíricas, de leis da variação, de outros princípios de diversas áreas e mesmo de dificuldades e objeções mais sérias lançadas à teoria. No que concerne à natureza, há duas definições que se sucedem no texto quase imediatamente e com enfoques que podem ser conflitantes.
A definição I, diz: "é difícil evitar personificar a palavra natureza; mas por natureza entendo apenas a ação conjunta e o produto de muitas leis naturais; e por leis, a seqüência de eventos tal como asseverada por nós" (Darwin, 1875, p. 63).
Nessa primeira definição, fica ressaltada uma concepção de natureza como sistema de leis, como o conjunto ordenado de fenômenos cuja ocorrência nós podemos estabelecer com segurança. Se não restringe natureza ao enfoque de algo desprovido de autonomia constitutiva, essa definição pelo menos permite colocá-la na condição de objeto que pode ser conhecido, investigado, externamente determinado por nós, favorecendo uma visão que se pode dizer mecanicista, meramente seqüencial do que nela tem lugar, sem a suposição de qualquer ação interna tendo em vista um fim. Essa primeira definição de natureza parece prover fundamento adequado à definição do princípio de seleção natural em seu caráter de mecanismo "à preservação das variações e diferenças individuais favoráveis e à destruição das injuriosas chamei de seleção natural ou de sobrevivência do mais apto" , expressão/estabelecimento do meio pelo qual se opera, nesse sistema de leis, a produção de novas espécies.
Logo após, Darwin constrói um parágrafo de considerações exemplares sobre situações empiricamente dadas acerca do curso provável da seleção natural. Esse curso pode ser entendido como aquelas etapas seqüenciais asseveradas pelas leis que constituem o sistema. A operação do princípio em pauta como mecanismo ordenador dos eventos e articulador das leis fica bastante clara. Fornecendo um dado conjunto de ocorrências, "a seleção natural terá escopo livre para seu trabalho de aperfeiçoamento" (idem, ibidem, pp. 63-4). Com essa última frase, é introduzido um novo enfoque, sem maiores justificações no texto, centralizando de imediato as atenções no parágrafo que se segue, em que Darwin trata da comparação com a seleção operada pelo homem na produção de novas formas, e, assim, ressaltando o caráter de "poder causal da segunda definição".
É com uma definição de natureza nessa última perspectiva, a definição II, que Darwin (op. p. 65) imediatamente prossegue, antes de retomar as considerações acerca do poder explicativo do princípio de seleção natural:
Natureza, se me for permitido personificar a natural preservação ou sobrevivência do mais apto, não se importa nada com as aparências, a menos que sejam úteis a qualquer ser. Ela pode agir sobre cada órgão interno, sobre cada sombra de diferença constitucional, sobre a inteira maquinaria da vida. O homem seleciona apenas para seu próprio bem; a natureza, apenas para o bem do ser de que cuida.
Darwin segue exaltando que a natureza exercita plenamente os caracteres rigidamente selecionados pela própria seleção, exibindo suas produções caracteres muito mais "verdadeiros" e sendo infinitamente melhor adaptadas às complexas condições de vida do que as produções humanas. Assim, de um modo que aparentemente está em conflito com a definição I, a natureza darwiniana agora tem ressaltada a sua condição de sujeito autônomo, dotado de seu próprio princípio de ação, de seu "poder causal". Nessa segunda definição, não só encontram abrigo aquelas definições do princípio de seleção natural (PSN), em termos de tal poder, como esse poder é identificado com a natureza.Permanece a questão da compatibilização entre mecanismo e poder causal, que se estende agora ao plano da própria visão de natureza, e transferindo-se para um novo nível de problematização: como compatibilizar a relação entre a natureza e seu princípio, inicialmente distintos e, logo após ao que parece, sem problemas para Darwin , idênticos? Como pensar essa diversidade e essa identidade? O esclarecimento de ambos, natureza e princípio, revelam que eles são mutuamente dependentes. Uma resposta para isso pode ser buscada elucidando-se a concepção de natureza que, desde o cap. II, insinua-se em A origem das espécies.
Darwin não toma a natureza como objeto de especulação própria. Não a focaliza explicitamente além do que faz nas definições apontadas anteriormente. Mas quando se procede ao exame da expressão segundo seu uso no texto, pode-se ver que Darwin fala de natureza com múltiplas acepções: em termos de 'qüididade', 'estado', 'sistema', operando em diferentes níveis, de fatos a princípios hierarquicamente organizados em uma complexa totalidade e de um sujeito.
3 Essa distinção coloca-se, em certos momentos, em termos de comparação entre dois estados 'autônomos', partindo do estado de domesticação para, através de analogias, adentrar os processos do estado de natureza, notadamente no processo de seleção natural. Todavia, pode-se encontrar, na exploração do estado de natureza a que a domesticação nos introduz, o fundamento para aquelas analogias, passando o estado de natureza a compreender, como um estado seu 'modificado', o de domesticação.
4 Para referências literais à política ou economia da natureza, ver: Darwin, (1875, pp. 64, 69, 82, 84, 89, 93, 94, 96, 124, 134, 137, 138, 270, 292, 363, 365, 368, 378.
Múltiplas acepções: 'qüididade', 'estado', 'sistema', 'totalidade'
A natureza, em grande parte das vezes em que é mencionada em A origem das espécies, diz respeito àquilo pelo qual algo tem um determinado ser. Assim, Darwin refere-se freqüentemente à natureza dos organismos, de suas partes, das "condições de vida", das "variações", das diferenças individuais; em função da natureza dos primeiros, a natureza das duas últimas será 'certa', 'benéfica', ou não. A pergunta sobre a natureza das condições pode ser mais circunstanciada, atendo-se à natureza do clima, da geologia, das estações ou dos lugares. A pergunta sobre a natureza das variações remete à pergunta sobre a natureza da variabilidade e das mudanças; e a natureza das últimas remete à questão dos seus resultados, sejam eles 'variedades', 'caracteres' ou estabelecimento de 'novas condições'.
Mas a natureza de qualquer um destes fatores ou objetos de investigação depende igualmente da natureza das relações, sobretudo de natureza orgânica (paralelismos, afinidades etc.), bem como do poder determinante e dos processos envolvidos, podendo estes encerrar determinações opostas, como o controle do crescimento e a tendência das espécies ao aumento do número de seus indivíduos. Não só o cuidadoso exame da natureza de casos, fatos, estados de coisas, mas das objeções, dificuldades, exceções apresentadas às explicações da teoria pelo PSN faz parte do contexto de indagações cujas respostas remetem a uma outra acepção de natureza, que fundamenta a própria questão da qüididade. Trata-se de perguntar qual a natureza desse contexto em que se entrelaçam todos aqueles fatores, dele retirando sua própria determinação. A resposta agora coloca-nos frente a um estado de coisas englobante, ao qual Darwin se refere como "estado de natureza".
A questão da natureza é posta como pano de fundo, no cap.II, quando o objetivo de Darwin é mostrar (ou, antes, introduzir a idéia de) que as espécies, tal como as nossas produções domésticas, são apenas variedades bem marcadas pela condição insatisfatória (ambi-güidades, dificuldades de aplicação) dos critérios existentes para a distinção entre espécies e variedades e do exame de regularidades empíricas observadas, permitindo ver analogias entre espécies e variedades. Nesse cap. II, a natureza aparece explicitamente como estado em que terão lugar as complexas relações de mútua dependência entre os seres orgânicos. De modo mais sutil, ela começa também a ser introduzida como 'luta pela existência', como pano de fundo contra o qual farão sentido expressões tais como espécies dominantes e visões tais como a de competição, que se colocam entre as premissas da teoria e à luz das quais as regularidades (e analogias) devem ser esperadas. Como a tessitura das relações que Darwin (op. cit., pp. 33-4) explora no seu segundo capítulo, a complexidade da natureza já é indicada em passagens tais como: "Quase toda a parte de cada organismo é tão belamente relacionada a suas 'complexas condições de vida' que parece tão improvável que cada parte tenha sido produzida perfeita, quanto uma máquina complexa tenha sido inventada pelo homem num perfeito estado."
A acepção de natureza como estado ganhará maior determinação ao ser vista como 'luta pela existência', no cap.III de A origem das espécies. Mas em sua condição de estado, ela já fora introduzida, quando se analisava o que ocorre sob o estado de domesticação, tomando esse estado como a melhor e mais segura pista para se alcançar um insight sobre os meios de modificação e co-adaptação que têm lugar no "estado de natureza" (Darwin, 1875, p. 3).
De início, a introdução da idéia de 'luta pela existência' parece primar por uma ênfase nas diferenças entre os dois estados, distinguindo-os quanto às condições de vida em um e em outro, menos uniformes sob domesticação, com monstruosidades mais raras no estado de natureza, as raças domésticas usualmente férteis no cruzamento entre si e as espécies naturais usualmente inférteis no acasalamento entre si, o estado doméstico sendo um estado cultivado, e o de natureza, selvagem (Darwin, 1875, cap.I). Todavia, papel mais eficaz na introdução pretendida por Darwin desempenham as similaridades que ele aponta entre os dois estados, passando, por analogia, de fatos e condições similares neles encontráveis para o ponto central de sua proposta teórica: a produção de novas espécies na natureza por 'seleção natural' marcando sua relação com o poder humano de seleção.
Essa analogia é focalizada e retomada em diferentes níveis, desde a indicação da similaridade de ocorrências tais como diferenças individuais, variações, hereditariedade, peculiaridades, papel da natureza das condições de vida e da natureza dos organismos, enfrentamento de uma luta pela existência, até a relativização de fatores que poderiam comprometer o sucesso, tais como a alegada questão da fertilidade/esterilidade, apontando-se aí a existência de graus e explorando-se a relação entre a maior ou menor facilidade de cruzamentos e a menor ou maior uniformidade nas condições de vida.
...numa área confinada, com algum lugar na política natural não ocupado perfeitamente, todos os indivíduos que variam na direção certa, embora em diferentes graus, tenderão a ser preservados.
Nada é mais fácil do que admitir a verdade da universal luta pela vida, ou mais difícil ao menos assim tenho constatado do que ter essa conclusão sempre em mente. Apesar disso, a menos que esteja totalmente engrenada na mente, a inteira economia da natureza, com cada fato de distribuição, raridade, abundância, extinção e variação, será dificilmente vista ou entendida.
Diversos estudiosos de Darwin, dentre os quais Schweber (1985), têm enfatizado a influência das idéias dos economistas ingleses, especialmente de Adam Smith, sobre a visão darwiniana de natureza como um sistema auto-regulado; e da realidade socioeconômica da 'fábrica' presente na concepção do organismo como um todo cujas partes são mutuamente dependentes e agem todas para a produção de um determinado fim; e da "divisão (fisiológica) do trabalho".Essa visão de natureza traz igualmente, segundo Schweber (1985), a influência dos estudos da química agrícola de Humphry Davy e dos textos de química de Thomas Thomson. De acordo com esse filão de análise, reúnem-se na concepção de natureza como sistema, em A origem das espécies, influências de várias áreas. Egerton (1968), por exemplo, destaca a importância dos estudos de biogeografia de De Candolle e Lyell, que teriam contribuído, com sua idéia de competição, para a formação da perspectiva de Darwin, que teria rompido com uma visão estática da natureza.
O papel dessa visão sistêmica tem sido igualmente ressaltado como moldura conceitual propulsora para a investigação, abrangendo fenômenos de diversas áreas. Fenômenos relacionados à seleção sexual (Darwin, 1875, pp. 69, 124), à divergência de caracteres (pp. 87, 89, 304, 363, 413), distribuição (pp. 93, 94, 378) e à classificação (pp. 96, 400, 402, 419) todos têm sua explicação sustentada ou referenciada na visão do caráter sistêmico das mútuas relações entre os seres orgânicos.
A natureza é uma totalidade ordenada que viabiliza uma busca sistemática e traz sua contribuição para a própria tarefa classificatória. Trata-se de uma totalidade ordenada e ordenadora, em relação à qual seres, processos, questões e regras encontram seu lugar. Como totalidade, o sistema impõe regularidades a fenômenos, comportamentos e processos (Darwin, 1875, pp. 86, 245, 397, 414) há leis de maior e menor abrangência (pp. 76, 117, 238, 396), há a regra comum, pela qual o mesmo fim dever ser atingido pelos mais diversificados meios (pp. 154, 165, 414), há princípios (pp. 62, 67) sob a determinação maior do PSN e sob o pressuposto fundamental de um "grande princípio da gradação" (p. 220). O "princípio da vida", que perpassa o sistema, reflete a complexidade dessa totalidade, que não se reduz a uma soma de elementos: "esse princípio, de acordo com Herbert Spencer, é o de que a vida depende da ou consiste na incessante ação e reação de várias forças, as quais, através da natureza, estão sempre tendendo a um equilíbrio; e quando essa tendência é levemente perturbada por qualquer mudança, as forças vitais ganham em poder".
Como totalidade ordenada e diferenciada, em que novas formas são produzidas como formas 'aperfeiçoadas', há uma escala, um mais e um menos ¾ uma "escala da natureza", à qual Darwin (1875, pp. 57-8, 69, 97, 118, 205, 228, 239, 346) literalmente refere-se e que fornece parâmetro para situar a diversidade das formas orgânicas. Esse parâmetro, contudo, refletindo o dinamismo intrínseco do sistema, é 'relacional', com as formas sempre expostas a modificações. Como a escala pertence ao todo, é com relação a ele que caberia perguntar acerca da existência ou não de um avanço na organização seria então o avanço do sistema que estaria em questão. E, de fato, é com relação à organização em seu todo que Darwin (op. cit., p. 99) admite a possibilidade de um avanço, ressalvando que, apesar disso, a escala apresentará sempre muitos graus de perfeição, pois o avanço superior de certas classes inteiras ou de certos membros de cada classe não leva necessariamente à extinção daqueles grupos com os quais eles não entram em íntima competição. O fator determinante coloca-se, pois, em termos das condições da luta.
Qualquer alteração na rede de relações orgânicas e inorgânicas que constituem as condições de vida leva a rearranjos na ocupação de lugares e nas relações econômicas e políticas. Mas, subjacente à própria situação de equilíbrio, está sempre presente o fator de mudança e de luta para a ocupação de lugares (Darwin, 1875, pp. 80, 64), uma vez que os lugares existentes sempre podem ser mais bem preenchidos, e o serão por aqueles organismos que apresentarem modificações favoráveis a essa ocupação. Trata-se, pois, de um sistema que se equilibra por meio de suas transformações e que encontra na idéia de luta pela existência uma representação privilegiada.
A visão de luta pela existência
Diz Darwin (op. cit., p. 50) sobre a expressão luta pela existência: "Tomo como premissa o uso desse termo em um sentido amplo e metafórico, incluindo a dependência de um ser em relação a outro e incluindo (o que é mais importante) não só a vida do indivíduo, mas sucesso em deixar descendência." Assim representada, a natureza que se coloca na base da problemática darwiniana exibe o amplo espectro da luta pelo alimento e pelo legado de descendência entre indivíduos da mesma espécie, do indivíduo com suas condições físicas de vida e/ou com indivíduos de outras espécies, de modo a deixar descendência, por meio de adaptações e co-adaptações, como segue dizendo Darwin na mesma passagem. Essa visão de natureza convida a algumas reflexões.
Ao longo de A origem das espécies, Darwin refere-se à luta pela existência, e a expressões sinônimas "luta pela vida", "batalha pela vida", "corrida pela vida", "lei da batalha", "luta pela produção de novos e modificados descendentes" , em diferentes momentos da obra e como fator explicativo que opera em diferentes níveis. Ela é chamada a dar conta de: fatos particulares, como o do grande número de pingüins existentes, da mútua co-adaptação de pássaros, da formação de peixes-voadores, do instinto arquitetônico das abelhas, dos pés palmados das fragatas, da superioridade que caberia atribuir aos crustáceos, da condição menos severa da competição entre habitantes de lagunas do que entre os terrestres (respectivamente, pp. 283, 349, 140-1, 227, 143, 309, 346); padrões de fatos como a distribuição geográfica (pp. 72, 136, 358), as mudanças adaptativas (pp. 185-6), as relações em geral entre os seres orgânicos (pp. 83, 86, 291-2, 319, 411) e entre indivíduos do mesmo sexo (p. 411); os critérios para superioridade ou aperfeiçoamento (pp. 166, 307, 314, 315, 417); ou mesmo o de aproveitamento da nutrição (p. 118).
Nas situações explicativas que ele cita, a luta pela existência tem caráter fortemente causal, seja no plano de cada indivíduo, seja no próprio princípio, segundo o qual novas formas orgânicas originam-se na natureza (idem, ibidem, pp. 138,49):
...como cada (animal) existe por uma luta pela vida, é claro que cada um deve estar bem adaptado a seu lugar na natureza.
Graças a essa luta, variações, embora leves e procedentes de qualquer causa, em algum grau, úteis aos indivíduos de uma espécie, nas suas infinitamente complexas relações com outros seres orgânicos e com suas condições físicas de vida, tenderão à preservação de tais indivíduos e serão geralmente herdadas pelos descendentes. Os descendentes também terão, assim, uma melhor chance de sobreviver, pois dos muitos indivíduos de qualquer espécie que periodicamente nascem, apenas um pequeno número pode sobreviver. Chamei a esse princípio, pelo qual cada leve variação, quando útil, é preservada, pelo termo seleção natural.
Como aquilo decorre do PSN, a luta pela existência é dada como a grande pauta de respostas às questões que, imediatamente antecedendo a citação anterior, Darwin enuncia como as questões ou as versões pertinentes ao problema que dá base a A origem das espécies. Como as espécies surgem na natureza vale dizer, como são aperfeiçoadas as adaptações e co-adaptações, como variedades ou espécies incipientes convertem-se em boas e distintas espécies, como se constituem os distintos gêneros, que diferem mais entre si do que as espécies de um mesmo gênero? Logo após enunciar tais questões, diz Darwin (op. cit., p. 49): "Todos esses resultados, como deveremos mais plenamente compreender no próximo capítulo, seguem da 'luta pela existência.'"O capítulo seguinte é aquele em que Darwin explicitamente ocupa-se da fundamentação teórica do PSN e apresenta as definições de natureza que estão sendo examinadas. 'Ver mais plenamente' sugere 'ter explicitado', ver em funcionamento, 'operacionalizado'. Sendo assim, é de esperar que o PSN venha mostrar como a luta pela existência provê o fundamento daquilo que cabe ao livro A origem das espécies explicar. E, de início, Darwin vincula sua relação fundamental com o PSN.
O que pode ser a luta pela existência, qual o seu status epistêmico e ôntico para prover tal fundamento ao PSN? Em seguida à mesma passagem citada, Darwin (op. cit., pp. 50, 49) conclui o parágrafo referindo-se à seleção natural como um trabalho da natureza. E logo a seguir pode-se apreciar o sentido amplo e metafórico com que Darwin usa a luta pela existência, que se oferece como uma visão da natureza que constitui a rede das "complexas condições de vida" para o que certamente concorrem as referências imediatamente feitas à 'economia' e à 'face' da natureza, quando Darwin se propõe a "discutir, com um pouco mais de detalhe, a luta pela existência".
Em que bases Darwin estabelece essa visão? Em mais de uma passagem, Darwin (op. cit., pp. 3, 102, 411, 50) diz que a luta deve-se ou é inevitavelmente resultado da alta taxa geométrica de aumento dos seres orgânicos: a "doutrina de Malthus aplicada com múltipla força a todo o reino vegetal e animal". Darwin arrola diversos fatos relativos à presença de um controle do número de nascimentos sobre cujas causas somos, em boa parte, muito ignorantes , de sorte que nem todos os que nascem sobrevivem. Todavia, Darwin não pôde obter a rica visão de luta pela existência que o orienta apenas a partir dessa base factual e do princípio malthusiano. Não resulta desses fatores o ponto fundamental de que os sobreviventes serão descendentes modificados, 'aperfeiçoados' com relação às suas condições de vida, dando origem a 'novas' formas orgânicas. Além disso, Darwin também se ocupa em mostrar como a luta pela existência interfere na atuação dos fatos arrolados.
Cabe assinalar em particular que não basta acrescer ao princípio malthusiano e aos fatos arrolados o dado de que há sobreviventes ('ganha-dores'), o juízo de senso comum de que 'ganham' os portadores de instrumentos 'úteis' à luta, de que há hereditariedade, lugares a serem mais bem ocupados e que a variabilidade, uma vez começada, tende a continuar. Em várias passagens Darwin ressalta que essa tendência da variabilidade a continuar deve ser fixada pela seleção natural, para que haja acúmulo em uma dada direção, capaz de levar ao grau de diferenciação necessário. Apenas esse elenco de fatores, postos lado a lado, não explica a 'acumulação' que deve ter lugar. Parece que devem ser levados em conta outros ingredientes, como a suposição de luta permanente e de algo como "padrões de otimização" nos diferentes contextos de luta, ou de uma tendência a otimizar o que é favorável.
Em qualquer caso, porém e esse é o aspecto irredutível determinante , há que tomá-los todos segundo a visão de uma totalidade sistêmica, que deverá ser, em um princípio que lhe seja intrínseco, a mola propulsora para operar na direção da preservação e do acúmulo das variações úteis. À luz dessa visão sistêmica de preservação do próprio sistema em sua dinâmica, pode-se então perceber o papel desempenhado para o processo de diferenciação pela ocorrência de lugares a serem mais bem ocupados na política da natureza, dado que o sistema deverá dar conta da peculiar tarefa de produção de novas formas a partir de suas próprias condições constitutivas ¾ o que é útil e a utilidade de seu acúmulo são determinados na integridade do sistema.
Assim interpretada, a luta pela existência darwiniana, visão matricial de natureza, exibe as conotações de um 'sistema político-econômico', de um 'sistema de investigação científica' dotado de um princípio interno, unificador (que logo será representado pelo PSN), passível de determinações empíricas e com o cunho 'metafísico' de um 'sujeito' cuja 'face' não é sempre brilhante e cuja 'ação' nem sempre é bem entendida.
Para que tal visão justifique o papel fundamental que A origem das espécies lhe reserva, há que 'operacionalizá-la', o que será feito pela face à qual se tem acesso pelo PSN. Uma vez estabelecida essa relação, o poder explicativo que essa visão de natureza passa a exibir garante a ela a condição de um modelo explicativo, subsumindo sob essa característica todas as demais conotações. Nesse ponto, então, seu fortalecimento projeta o modelo para as diversas situações calcadas na matriz geral da luta e sobrevivência do mais apto.
Darwin (op. cit., p. 100) diz que é um erro supor que não haverá luta pela existência e seleção natural até que muitas formas tenham sido produzidas: variações benéficas podem surgir em uma espécie que habita uma área isolada, e, então, toda a massa de indivíduos poderia ser modificada, ou duas formas distintas poderiam surgir. Seu escopo explicativo parece ser imbatível.
5 Darwin, com uma certa freqüência, usa alternadamente 'regra', 'lei' e 'princípio'.
6 Entre os exemplos para essa situação está o caso da alegada ausência de evidências geológicas dos 'elos intermediários' (entre outras passagens, Darwin, 1875, pp. 264-5).
PSN: princípio do sistema
7 Como foi assinalado por Hodge e Kohn (1985, pp. 199-200), já em seu Notebook E (entradas 71 e 72), Darwin dizia que a natureza usa "precisamente os mesmos meios" para fazer suas espécies, como o homem com as raças domésticas, mas que seu selecionar é mais prolongado, discriminativo e compreensivo. Ou seja, ele refere-se à natureza como um sujeito que age ¾ visão que permaneceu e chegou à 6a ed. de A origem das espécies.
8 Passagens similares encontram-se desde seus Ensaios de 1842 e 1844.
9 Esse princípio foi certamente importante, conferindo 'cientificidade' à visão e trazendo-lhe a conotação do pensamento sociopolítico. Todavia, não é fácil determinar em que consiste essa importância 'científica'. Embora alguns autores destaquem seu caráter 'quantitativo', outros, como Mayr (1982, p. 485) e Sober (1985, p. 869), ressaltam o caráter não quantitativo do PSN, no sentido de ser facilmente expresso em linguagem ordinária, tornando gratuita sua expressão matemática.
10 O essencial da visão darwiniana aqui proposta é mais o vínculo entre sistema e seu princípio do que a exigência de que o sistema seja sempre bem-sucedido, ainda que prevaleça em Darwin uma visão 'otimista'. Se o sistema não for bem-sucedido sempre, também não o será seu princípio, e vice-versa. Segundo Sears (1950, p. 99), a essência do darwinismo é o seu caráter integrativo.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo auxílio de pesquisa em diferentes momentos do trabalho que resultou no presente artigo.
A natureza como sujeito que se objetiva: a articulação das duas definições
As reflexões até aqui feitas remetem, em boa medida, à definição I de natureza como um sistema de leis. Mas um dinamismo próprio, que lhe é interno, esboça-se em sua imagem como luta pela existência, conferindo-lhe uma dimensão que escapa à de um objeto que passivamente recebe determinações nossas, sem autonomia. Junte-se a isso a condição de explicar a 'produção' de novas espécies e tem-se a visão de natureza como um sistema autônomo, no sentido de um sujeito agente das determinações presentes no quadro antes formado.
No texto de A origem das espécies, freqüentemente nos deparamos com a acepção de natureza como um sujeito e designada com 'N'. Assim, Darwin (1875, pp. 52, 61, 429, 49, 57) fala em olhar a natureza com aquele seu conjunto de características próprias, o qual tem, na '"guerra da Natureza", um de seus traços mais fortes, senão o mais marcante. Como traço de um sujeito que exibe sua face, essa guerra não pode mais ser confundida com uma simples expressão retórica; ela representa o jogo de forças vivas que tem lugar sob as diferentes feições assumidas por esse sujeito.
Quando não mais olhamos para um ser orgânico como um selvagem olha a um navio, como algo totalmente além de sua compreensão; quando consideramos cada produção da natureza como tendo uma longa história; quando contemplamos cada estrutura e instinto complexo como a soma de muitos engenhos, cada qual útil a seu possuidor, do mesmo modo que qualquer grande invenção mecânica é a soma do trabalho, da experiência, da razão de numerosos trabalhadores, quando assim vemos cada ser orgânico, quão mais interessante falo por experiência torna-se o estudo da história natural.
Ao considerar a operacionalidade de cada uma das definições, há igualmente a exigência de tal conjugação. O dinamismo próprio do sistema natureza representado nas cores da luta pela existência confere ao mecanismo pelo qual a natureza opera o caráter de um poder causal direcionado a um fim, a sobrevivência do mais apto e a preservação do sistema por meio de suas transformações. A luta pela existência como visão de natureza darwiniana é mais do que um princípio entre outros e não segue meramente o princípio malthusiano do crescimento geométrico da população.Recebido para publicação em setembro de 2000.
Aprovado para publicação em junho de 2001.
Referências bibliográficas
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
06 Jan 2004 -
Data do Fascículo
Dez 2001
Histórico
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Recebido
Set 2000 -
Aceito
Jun 2001