Open-access Carta do editor

Caros leitores,

Ao longo de 2013 foram comemorados 25 anos do Sistema Único de Saúde (SUS) com abundantes debates, reportagens e entrevistas. Esta primeira edição de 2014 de História, Ciências, Saúde – Manguinhos traz ainda algumas contribuições às análises em geral muito preocupantes sobre os rumos dessa guinada fundamental na história da saúde pública brasileira.

Ao assumir João Baptista Figueiredo o último governo (1979-1985) da ditadura militar, objeto também de balanços históricos pelos cinquenta anos decorridos desde o golpe de 1964, chegava ao fim o milagre brasileiro e começava a “década perdida”. A elevação dos preços do petróleo, a expansão descontrolada da dívida externa e da inflação e a política recessiva contribuíram para levar às ruas o movimento “Diretas já” (1982-1983). No governo Geisel começara a chamada “abertura lenta e gradual”. Entre as diversas formas de mobilização popular sobressaíam as que conjugavam a luta pela redemocratização a propostas de reforma da saúde. O primeiro Simpósio sobre Política Nacional de Saúde, na Câmara dos Deputados, reuniu em 1978 as principais lideranças do movimento da reforma sanitária, aprovando-se documento com seus princípios centrais. Estavam em sintonia com tendências em curso na saúde global que traziam a primeiro plano o conceito de atenção primária à saúde. Aí também o novo pensamento médico nutria-se de processos que formariam o epílogo da guerra fria. Os movimentos de estudantes, trabalhadores e intelectuais que irromperam em 1968 contestavam não apenas o sistema capitalista e a cultura e ideologia burguesas, mas também o establishment médico, acelerando a obsolescência dos modelos verticais de erradicação de doenças e a ideologia desenvolvimentista correlata, segundo a qual os países “subdesenvolvidos” trilhariam caminho igual ao da América do Norte e Europa Ocidental se fossem providos de tecnologias médicas sofisticadas. Estudos produzidos dentro e fora do campo médico, inclusive no âmbito historiográfico, ajudaram a demolir essa visão de mundo e da saúde. O divisor de águas na saúde global foi a Conferência Internacional sobre a Atenção Primária à Saúde realizada em setembro de 1978 em Alma-Ata, na então União Soviética. A declaração lá aprovada estabelecia como princípios básicos: tecnologia adequada às necessidades das populações pobres em lugar da tecnologia sofisticada consumida por uma minoria urbana; oposição ao elitismo médico e à excessiva especialização; valorização de agentes comunitários de saúde; abertura aos saberes tradicionais; e o conceito de saúde como ferramenta para o desenvolvimento socioeconômico, por meio de ações horizontais e intersetoriais, chegando às zonas rurais e periferias pobres das grandes cidades.

No Brasil, os movimentos sociais com agenda semelhante alcançaram suas vitórias mais expressivas algum tempo depois. Em 15 de janeiro de 1985, foi eleito presidente, pelo voto indireto, o senador Tancredo Neves, que morreu antes da posse, assumindo o cargo o vice-presidente, José Sarney (1985-1990). Pressionado pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e por diversas instituições médicas e científicas, o governo nomeou o principal líder do movimento pela reforma sanitária presidente da Fiocruz. Sergio Arouca, da Escola Nacional de Saúde Pública, assumiu o cargo em 3 de maio de 1985 e em março do ano seguinte presidiu a oitava Conferência Nacional de Saúde, cujas plenárias sacramentaram o conceito de que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado a ser implementado com a unificação, democratização e descentralização do sistema, compreendendo-se saúde não apenas como acesso a serviços, mas como resultado das condições de vida. Medicina previdenciária e saúde pública deviam ser integradas num sistema único que viesse a prover cobertura a todos os cidadãos.

Os deputados federais e senadores empossados em fevereiro de 1987 acumularam as funções de uma Assembleia Constituinte. Presidida por Ulysses Guimarães, do PMDB, era formada majoritariamente por representantes de segmentos conservadores, coligados no “centrão”. Ainda assim, nela foi aprovada a criação do SUS, graças a habilidosas negociações e ao acolhimento de uma emenda popular defendida por Arouca, com o apoio de vários partidos e entidades.

As regras político-eleitorais legadas pelo regime militar ampliaram o peso dos estados com menor colégio eleitoral, em que prevalecem os interesses oligárquicos, em detrimento das áreas mais urbanizadas, e facilitaram a proliferação de partidos políticos, o que dificulta a formação de maiorias no Legislativo e obriga os governos a se apoiar em coalizões conservadoras. Isso ajuda a explicar a opção da Constituinte, e das coalizões que vêm governando o país até hoje, de manter, ao lado do SUS, competindo com ele e ameaçando-o, um setor privado de saúde com privilégios fiscais e outras regalias.

Os artigos e as entrevistas publicados nesta edição da revista trazem importantes subsídios à reflexão sobre esses dilemas.

O leitor encontrará também nas páginas a seguir um dossiê com trabalhos derivados de uma conferência internacional realizada no Instituto de Estudos Latino-americanos da Freie Universität, em Berlim, em outubro de 2011, com o título “Brasil no contexto global, 1870-1945”.1 Organizada por Georg Fischer, Christina Peters e Frederick Schulze, discípulos do renomado historiador Stefan Rinke (o dossiê inclui entrevista concedida por ele), a conferência deu origem a livro preparado pelos mesmos pesquisadores sob o título Brasilien in der Welt: Region, Nation und Globalisierung 1870-1945 (Frankfurt am Main: Campus, 2013). Nem todas as comunicações aí enfeixadas estão nesta edição de HCS-Manguinhos, que reúne trabalhos submetidos à avaliação de pareceristas e a modificações às vezes consideráveis feitas pelos autores, antes de sua publicação em português.

Seguindo as linhas mestras do programa do evento, o dossiê reúne textos sobre temas que não têm necessariamente a ver com saúde. Desde os anos 1990 historiadores norte-americanos, britânicos e mais recentemente alemães vêm discutindo temas e métodos da global e da world history, assim como da história transnacional. Essas abordagens tentam superar antigas limitações resultantes da vinculação entre historiografia e Estado nacional. Inicialmente o esforço de superação se deu por comparações e história de transferências. As abordagens atuais vão além e pesquisam como espaços se constroem por entrelaçamentos e inter-relações, inclusive a circulação de saberes e atores. O dossiê reúne, assim, trabalhos que analisam, sempre no tocante ao Brasil, as referências globais do imaginário nacional; o papel de regiões e regionalismos na formação nacional e sua relação com processos globais; a transformação do significado de conceitos como nacionalidade e descendência étnica no contexto de processos globais de migração; as transferências de conhecimentos pertinentes à história do trabalho, da economia e do consumo; e, por último, as relações entre Alemanha e Brasil a partir de uma perspectiva transnacional.

Bom proveito!

Jaime L. Benchimol
Editor científico

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2014
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