Resumo
O ensaio de Hannah Arendt intitulado “A crise na educação”, publicado na década de 1950, atribui o fracasso da educação escolar nos Estados Unidos à corrente educacional denominada educação progressiva e à influência do Pragmatismo. Por ser elaborado originalmente na forma de conferência, o texto contém várias lacunas no tratamento desses temas. Este artigo procura suprir tais lacunas por meio de fontes historiográficas com o propósito de mostrar que Arendt seleciona determinados fatos para construir uma situação retórica - definida como uma situação problemática que chama a atenção da opinião pública - para a qual o ensaio é uma resposta argumentativa. O artigo conclui que o objetivo de “A crise na educação” não é discorrer sobre a história da educação, mas sobre as relações entre adultos e crianças na sociedade contemporânea, assunto que deve ser analisado à luz dos conceitos arendtianos.
Palavras-chave: análise retórica; Hannah Arendt; educação progressiva; educação estadunidense
Resumen
El ensayo de Hannah Arendt titulado “La crisis en la educación”, publicado en la década de 1950, atribuye el fracaso de la educación escolar en los Estados Unidos a la tendencia educativa conocida como educación progresiva y a la influencia del Pragmatismo. Al haberse preparado originalmente en forma de conferencia, el texto contiene varias lagunas en el tratamiento de estos temas. Este artículo busca llenar estos vacíos a través de fuentes historiográficas con el propósito de mostrar que Arendt selecciona ciertos hechos para construir una situación retórica - definida como una situación problemática que capta la atención de la opinión pública - a la que el ensayo es una respuesta argumentativa. El artículo concluye que el objetivo de “La crisis en la educación” no es discutir la historia de la educación, sino las relaciones entre adultos y niños en la sociedad contemporánea, tema que debe ser analizado a la luz de conceptos arendtianos.
Palabras clabe: análisis retórico; Hannah Arendt; educación progressiva; educación americana
Abstract
Hannah Arendt’s essay entitled “The crisis in education”, published in the 1950s, ascribes the failure of school education in the United States to the educational trend known as progressive education and to the influence of Pragmatism. As it was originally prepared in the form of a conference, the text contains several gaps in the treatment of these themes. This article seeks to fill these gaps employing historiographic sources with the purpose of showing that Arendt selects certain facts to build a rhetorical situation - defined as a problematic situation that draws the attention of public opinion - to which her essay is an argumentative response. The article concludes that the objective of “The crisis in education” is not to discuss the history of education, but the relationships between adults and children in contemporary society, a subject that should be analyzed considering Arendtian concepts.
Keywords: retorical analysis; Hannah Arendt; progressive education; american education
Résumé
L’essai d’Hannah Arendt intitulé “La crise de l'éducation”, publié dans les années 1950, attribue l’échec de l’éducation scolaire aux États-Unis à la tendance éducative connue sous le nom d’éducation progressive et à l’influence du Pragmatisme. Préparé à l’origine sous la forme d’une conférence, le texte comporte plusieurs lacunes dans le traitement de ces thèmes. Cet article cherche à combler ces lacunes en utilisant des sources historiographiques dans le but de montrer qu’Arendt sélectionne certains faits pour construire une situation rhétorique - définie comme une situation problématique qui attire l’attention de l’opinion publique - à laquelle son essai est une réponse argumentative. L’article conclut que l’objectif de “La crise de l'éducation” n'est pas de discuter de l’histoire de l’éducation, mais des relations entre adultes et enfants dans la société contemporaine, un sujet qui devrait être analysé à la lumière des concepts arendtiens.
Móts-cles: analyse rétorique; Hannah Arendt; éducation progressive; éducation américaine
Introdução1
Todo pesquisador que trabalha com fontes bibliográficas ou documentais reconhece o princípio de que as informações oriundas de sua investigação devem ser examinadas à luz do contexto em que foram produzidas. Tecnicamente, a palavra contexto possui várias conotações, a depender da corrente teórica que a emprega, mas, de maneira geral, diz respeito a fatos que envolvem a manifestação dos autores das fontes em exame - eventos de natureza social, embates intelectuais e até mesmo, em certos casos, dados biográficos. Os pesquisadores da área de História da Educação incorporam com êxito esse princípio, afastando suas pesquisas do risco de assumir interpretações ingênuas e carentes de respaldo científico.
As fontes investigadas pela abordagem intitulada análise retórica são textos argumentativos elaborados com o propósito de mobilizar determinados leitores. Essa metodologia de pesquisa, que almeja oferecer contribuições à historiografia educacional, segue as reflexões elaboradas por Aristóteles (2011) na Retórica, as quais foram atualizadas por Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002), tendo por pressuposto que todo escrito acadêmico destinado ao público reúne três componentes: os dizeres do texto propriamente dito, no qual se articula um discurso, lógos, que veicula uma tese; os qualificativos profissionais e as inclinações pessoais, ethos, do autor dos argumentos, figura que recebe o nome de orador; e as disposições intelectuais e emocionais, pathos, daqueles a quem se endereça a argumentação, o conjunto de pessoas denominado auditório.
Considera-se, ainda, que o texto visa responder a uma circunstância problemática, chamada situação retórica. Segundo Crick (2010, p. 43), uma situação é retórica quando permeada por conflitos passíveis de serem enfrentados discursivamente, com o intuito de preencher as “lacunas deixadas pelo hábito e pela tradição”. Uma situação retórica conjuga três fatores: o fenômeno problemático que desperta a atenção do auditório; as disposições - muitas vezes, mutuamente conflitantes - desse mesmo auditório perante o fenômeno; e a percepção particular do orador, que então assume a responsabilidade de argumentar em busca de soluções para o problema em causa2.
Uma situação retórica, portanto, não existe exclusivamente porque determinados fatos - sociais, econômicos, políticos, educacionais etc. - se impõem objetivamente. Faz-se necessário que tais fatos atinjam indivíduos ou grupos organizados, sejam especialistas ou a opinião pública em geral, que se sintam por eles afetados, e que esse auditório perceba o acontecimento como problemático e considere relevante a busca por soluções. Por fim, esses elementos devem se apresentar com tal intensidade que provoquem o orador a colocar em cena as suas próprias motivações e convicções para examinar o fenômeno e oferecer uma resposta discursiva ao problema.
Quando investiga um texto por intermédio da análise retórica, o pesquisador se depara, portanto, com uma situação retoricamente construída, cabendo-lhe discutir quais elementos factuais, quais disposições da audiência e quais motivações do orador estão presentes na argumentação que se apresenta ao público leitor. Seguindo essa orientação, o presente artigo fará a análise do ensaio “A crise na educação” (ARENDT, 2018a), no qual Hannah Arendt (1906-1975) discorre sobre os problemas educacionais que atingiram vários países, em especial os Estados Unidos da América, na primeira metade do século XX3. A primeira versão do texto foi elaborada em formato de conferência, ministrada pela autora em 1958 em alemão e publicada no mesmo ano pelo periódico Partisan Review; a versão em inglês foi incluída como capítulo do livro Entre o passado e o futuro (ARENDT, 2018b), de 19614.
Os qualificativos de Arendt como oradora competente para discorrer sobre temáticas desafiadoras para o mundo contemporâneo são indiscutíveis. Em razão de obras como Origens do totalitarismo (ARENDT, 2019), A condição humana (ARENDT, 2020) e Eichmann em Jerusalém (ARENDT, 1999), publicadas respectivamente em 1951, 1958 e 1963, seu nome figura no rol dos grandes pensadores do século XX, em particular no campo da política (HANSEN, 1993; LAFER, 1992; LAFER, 2018; FÁVERO; CASAGRANDA, 2012)5. A temática educacional, porém, não é privilegiada por Arendt, que, além de “A crise na educação”, redigiu apenas mais um trabalho exclusivamente dedicado a essa área, “Reflexões sobre Little Rock”, texto de 1959 incluído na coletânea Responsabilidade e julgamento (ARENDT, 2004), de 1961, no qual discute especificamente as implicações da lei de dessegregação nas escolas dos Estados Unidos.
Apesar dessa produção numericamente pouco expressiva, as reflexões de Arendt em “A crise na educação” são altamente relevantes para quem se dedica a investigar criticamente a situação educacional contemporânea, o que justifica a sua frequente inclusão na bibliografia de cursos de formação docente no Brasil desde 1989, quando o texto foi publicado neste país. Isso acontece porque o ensaio propicia uma discussão política - área em que Arendt se destaca - acerca do modo como a sociedade concebe a infância, com reflexos imediatos no âmbito específico do ensino.
O objetivo deste artigo consiste em mostrar de que maneira Arendt constrói retoricamente a crise na educação americana. Será observado que a autora utiliza alguns fatos, desconsidera outros, e se vale das manifestações do auditório concernentes ao fenômeno em pauta; confere a todos esses elementos uma determinada feição e, por fim, elabora um novo problema, não mais relativo exclusivamente às práticas escolares. Em suma, Arendt lança um olhar seletivo para os acontecimentos educacionais de sua época, fazendo escolhas que viabilizem construir uma nova situação retórica, a qual será enfrentada por meio do quadro conceitual desenvolvido por ela mesma em suas obras.
Para alcançar esse objetivo, a primeira seção do artigo apresentará as ideias gerais expressas em “A crise na educação” acerca da educação progressiva, corrente pedagógica à qual a autora atribui a responsabilidade pela referida crise. Como será possível notar, Arendt é demasiadamente sucinta em relação a esse tema, deixando várias lacunas em sua exposição, o que certamente se deve ao formato original do ensaio, pois um texto elaborado para uma conferência não exige nem permite aprofundamentos na temática em pauta. Por isso, as seções seguintes serão dedicadas a oferecer uma visão mais precisa da educação progressiva - sua evolução histórica, seus contornos pedagógicos, as reações ao seu predomínio etc. -, de modo a ampliar o campo problemático que a autora tinha diante de si ao elaborar o ensaio. A seção final fará a discussão do material apresentado, tendo em vista o tema em exame - a construção da situação retórica por Arendt.
A crise na educação, segundo Arendt
Embora presente em vários lugares, a crise na educação obteve sua expressão mais grave nos Estados Unidos, ocasionando, segundo Arendt (2018a), a decadência de todo o sistema escolar e o rebaixamento geral do nível do ensino, o que deixou o país em defasagem perante as nações europeias. Derivada de teorias educacionais oriundas da Europa Central, onde foi implantada “em determinadas escolas e em instituições educacionais isoladas e estendendo depois gradualmente sua influência a alguns bairros”, a educação progressiva produziu uma verdadeira revolução na totalidade do sistema educacional americano, derrubando as tradições e os métodos de aprendizagem até então vigentes (ARENDT, 2018a, p. 227). A crise despertou a atenção da opinião pública e das autoridades, constituindo um problema político de tal envergadura que tem sido noticiada com frequência pelos meios de comunicação de massa.
Arendt (2018a) não elucida com precisão os traços pedagógicos da crise provocada pelo progressivismo educacional, mas é possível discernir os seus contornos com base nas iniciativas tomadas para minimizar seus efeitos: doravante o ensino será norteado pela autoridade, o que sugere ser esta uma deficiência da educação progressiva; há confusão entre lazer e matérias escolares, pois agora se espera que o brinquedo seja afastado das aulas, dando lugar a trabalho sério; há desprezo pelas matérias escolares tradicionais, uma vez que se procura deslocar a ênfase das atividades extracurriculares para os saberes prescritos no currículo; há falhas na formação docente, pois se pensa em alterar as orientações para os cursos preparatórios para o magistério.
Arendt (2018a) explica o sucesso extraordinário da educação progressiva na América por ser aquele um país de imigrantes: os americanos desenvolveram a crença na possibilidade de reorganizar o mundo por intermédio dos recém-chegados, mentalidade política que se aplicou às crianças, seres recém-chegados ao mundo pelo evento da natalidade. Além disso, os americanos privilegiam a igualdade de direitos, o que os torna avessos à meritocracia, traço que se reflete na abolição das diferenças entre adultos e crianças e, consequentemente, entre professores e alunos. Como resultado, desenvolveram-se os fenômenos da absolutização do mundo infantil, apartando as crianças do mundo adulto, da negligência com os conteúdos escolares em prol do brinquedo - atividade própria da infância - e da redução do professor à posição de mero coadjuvante.
Esse conjunto de fatores recebeu decisivo apoio de uma concepção de aprendizagem - que Arendt (2018a, p. 232) considera derivada do Pragmatismo, corrente filosófica tipicamente americana - segundo a qual “só é possível conhecer e compreender aquilo que nós mesmos fizemos”. A educação progressiva, que é uma “miscelânea de bom senso e absurdo”, logrou instituir nos Estados Unidos tão somente o absurdo (2018a, p. 226). Na América, desapareceu o bom senso, “todas as regras do juízo humano foram postas de parte”; desapareceu “aquele senso comum em virtude do qual nós e nossos cinco sentidos individuais estão adaptados a um único mundo comum a todos nós, e com a ajuda do qual nele nos movemos”. Em suma, a crise na educação americana, conduzida pelo império do progressivismo educacional, representou a “falência do bom senso” (ARENDT, 2018a, p. 227).
Esta breve explanação constitui evidentemente uma súmula das menções feitas por Arendt (2018a) à crise na educação americana e à educação progressiva, mas é suficiente para motivar a investigação desses temas por intermédio de outras fontes, não com o propósito de desmerecer a autora, mas propiciar a discussão das estratégias argumentativas que lhe possibilitaram construir uma situação retórica, tal como foi explicitado na seção introdutória deste artigo. Ao mesmo tempo, espera-se oferecer ao leitor interessado em história da educação um quadro mais preciso desses mesmos temas, de modo a contribuir para uma visão mais nuançada de seu desenvolvimento.
A educação progressiva na Europa
Na avaliação de Branco (2014), não há definição consensual sobre o que se agrupa sob o nome educação progressiva; o que existe é uma série de pressupostos teóricos e metodológicos que visam organizar o processo de ensino-aprendizagem em oposição ao ensino tradicional. Labaree (2005) acrescenta que os pressupostos comuns dessa abordagem se concentram em priorizar as necessidades, os interesses e as características próprias de cada estágio de desenvolvimento da criança. Sua origem é identificada no movimento de renovação educacional surgido em países europeus, onde várias escolas amparadas pelo ideal renovador foram fundadas pela iniciativa privada na década de 1880 (CAVALHEIRO; TEIVE, 2013). Cambi (2009, p. 515) registra que a primeira experiência desse tipo aconteceu na Inglaterra por meio de Cecil Reddie que, em 1889, fundou uma instituição de ensino para meninos com idades entre 11 e 18 anos, buscando promover o desenvolvimento de características como “inteligência, força física, energia, habilidade manual e agilidade”.
As experiências de Reddie conquistaram vários adeptos, como Haden Badley, que fundou em Sussex, também na Inglaterra, uma escola-internato cujos procedimentos eram pautados nos princípios de autogoverno e coeducação; e o francês Edmond Demolins, criador da École des Roches, instituição que visava à formação global da criança com o objetivo de desenvolver as potencialidades intelectuais, morais, físicas e sociais dos aprendizes. Na mesma época e com o mesmo ímpeto renovador, Hermann Lietz inaugurou na Alemanha as Casas de Educação no Campo, pautadas na aquisição de autonomia dos jovens em detrimento da autoridade dos adultos; Gustav Wyneken e Georg Kerschensteiner criaram o modelo da escola do trabalho, propondo a renovação do currículo tradicional, em especial no âmbito do ensino elementar (CAMBI, 2009).
Entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX, tendo à frente estudiosos como Cousinet, Freinet, Decroly, Ferrière e Montessori, a Europa conheceu variadas experiências educacionais amparadas em descobertas da psicologia que contrariavam as diretrizes do ensino tradicional (MARTINS; PORTO, 2018). Garrouste (2010) destaca que aquela foi uma época de intensas mudanças em vários setores da vida social nos países europeus, com destaque para a área da educação. Alemanha, França e Bélgica transformaram os currículos escolares por influência de Fröebel, discípulo de Pestalozzi, cujas ideias fundamentaram os jardins de infância.
Pecore e Bruce (2013) registram a influência de outros teóricos no campo da educação. Na França, assumindo os pressupostos de Freinet, a École Moderne desenvolveu o ativismo social como uma vertente da renovação educacional; na Itália, Loris Malaguzzi e Reggio Emilia incentivaram a presença da arte na educação infantil. Garrouste (2010) informa que, na década de 1920, outros programas de inovação pedagógica foram surgindo naquele continente, todos voltados ao bem-estar das crianças. Itália, Áustria, Bélgica, Hungria e Portugal revisaram seus currículos escolares com forte influência do método Montessori, aplicado sobretudo em pré-escolas e, esporadicamente, nos níveis elementar e médio, preconizando a criança no centro do processo de aprendizagem, com ênfase na atividade autodirigida e no cuidado com a interação entre os alunos.
Durante a Segunda Guerra Mundial, os sistemas de ensino europeus foram submetidos ao comando nazista, mas o pós-guerra permitiu a reativação dos debates acerca da renovação educacional. Poucos países aprovaram reformas efetivas nessa área antes dos anos de 1960, exceto a República Checa e a Hungria, que reconheceram a pré-escola como parte integrante do sistema de ensino, implantaram a recomendação de procedimentos educacionais inovadores e projetaram a instrução em língua materna para todas as crianças. Nesse período, o desenvolvimento da educação escolar foi mais expressivo em países da Europa Soviética, em comparação com as nações da Europa Ocidental (GARROUSTE, 2010).
A educação progressiva na América
Como se pode observar, a renovação educacional europeia ocorreu de maneira pulverizada no espaço de poucas décadas, contando com sólidos suportes teóricos, mas sem que se firmasse uma abordagem unitária e um plano metodológico consensual entre as várias iniciativas. Nos Estados Unidos, o movimento progressivista começou entre o final do século XIX e o início do século XX, gozando de boa aceitação porque, segundo Branco (2014), atendia ao clamor por mudanças na educação e ao imperativo de modificar a vida dos americanos, no cenário da crise econômica que acometeu o país na passagem de um século a outro.
Lourenço Filho (1978), que elabora um quadro detalhado das transformações educacionais em vários países, bem como de seus fundamentos teóricos até a primeira metade do século XX, avalia que o sucesso do movimento educacional renovador nos Estados Unidos foi tributário de diversos fatores sociais e, principalmente, da abertura dos americanos ao espírito de experimentação norteado pela ciência, o que impulsionou condutas didáticas voltadas prioritariamente para o fazer como meio para alcançar o conhecimento. O “valor do homem comum”, o desejo de implementar “um estilo de vida democrática” e a ausência de preconceito contra os trabalhos manuais viabilizaram a instituição do princípio do aprender fazendo (LOURENÇO FILHO, 1978, p. 171).
Bracey (1997) analisa que a avaliação do desempenho das escolas americanas teve início no ano de 1893, quando se criou o Committee of Ten on Secondary School Studies. Sob a liderança de Charles William Eliot, presidente da Universidade de Harvard, sua meta era avaliar a situação das escolas com o propósito de reorganizar o sistema educacional, que era visto como desprovido de coerência e planejamento (WATRAS, 2006).6 O ensino secundário americano expandiu-se rapidamente após o primeiro relatório do Comitê, publicado no mesmo ano de sua criação, mas, sem que houvesse consenso entre os educadores sobre o planejamento do currículo, persistiu a desorganização do sistema. O assunto cativou a opinião pública, sendo pauta de matéria publicada em uma das principais revistas da época, a School Review, que levantou vários questionamentos acerca do tema (BRACEY, 1997).
No âmbito do ensino fundamental, Cambi (2009, p. 521) explica que o “experimento ativista” mais significativo daquele período foi a Laboratory School, criada e dirigida pelo filósofo pragmatista John Dewey, quando de sua filiação à Universidade de Chicago, instituição que, anos atrás, havia sediado as iniciativas inovadoras de Francis Parker. Dewey dirigiu a escola entre os anos de 1894 e 1904, desenvolvendo inovações pioneiras com o intuito de “verificar a aplicabilidade de suas concepções filosóficas e psicológicas e incentivar a criação de novos métodos e técnicas de ensino” (CUNHA, 2018, p. 11). Valdemarin (2010) acrescenta que aquela experiência subsidiou as reflexões teóricas registradas por Dewey em suas várias obras educacionais.
No início do século XX, o avanço da educação elementar ocasionou a necessidade de reavaliar a educação nesse nível de ensino. Em 1919, um grupo de mulheres atuando sob a liderança de Stanwood Cobb fundou em Washington a Progressive Education Association, PEA, tendo por objetivo conduzir a educação com prioridade para os interesses da criança, em contraposição à autoridade do professor (BIEBRICH, [19--]). No decorrer de sua história, a PEA incorporou orientações teóricas de diversos autores sobre o ensino e a aprendizagem, dentre os quais figuram Pestalozzi, Montessori, Rousseau, Freud, Steiner e Dewey (WATRAS, 2006). A Associação elaborou diretrizes com ênfase na liberdade para as crianças se desenvolverem, no interesse como aspecto primordial das atividades educativas e no posicionamento do professor como guia, não como único detentor do saber. Destacavam-se orientações para a cooperação entre escola e família em prol do bem-estar dos educandos, de acordo com os ideais progressivistas (BIEBRICH, [19] --).
Cambi (2009, p. 522) afirma que muitas iniciativas inovadoras foram tomadas naquele período, compondo um cenário amplo e diversificado. Helen Parkhust, por exemplo, inspirada nas concepções montessorianas, desenvolveu o Dalton Plan, que tinha por parâmetro a “individualização do ensino e a livre escolha do trabalho escolar”. Esse método foi aplicado na University-School, uma instituição de ensino particular de Nova York. Apoiado no referencial teórico deweyano, Carleton W. Washburne organizou as escolas de Vinnetka, nas proximidades de Chicago, mediante um sistema baseado nos agrupamentos de alunos e na livre programação dos estudos.
Contando com o apoio de Jane Addams, uma das ativistas sociais mais influentes dos Estados Unidos, a PEA projetou em 1930 o Eigth-year Study, que consistia em uma avaliação do ensino progressivo efetuada em trinta escolas secundárias com o propósito de investigar as potencialidades do desenvolvimento global da criança, associadas às competências básicas exigidas pela escolarização (BIEBRICH, [19--] ). Os dados relativos aos anos de 1932 a 1940 revelaram que os alunos das escolas que adotavam os pressupostos da educação progressiva tiveram maior aproveitamento nos testes de competência individual, melhor desenvolvimento em atividades práticas e em conhecimentos relativos à filosofia de vida, em comparação com as escolas que seguiam o currículo tradicional (BRUCE, 2013).
Apesar das evidências positivas, o movimento renovador sempre foi alvo de críticas, a começar pelo adjetivo progressiva, que despertou a insatisfação de grupos conservadores. Membros do governo e representantes de famílias de alunos frequentemente argumentavam que a aprendizagem dos aspectos formais do currículo vinha sendo menosprezada em benefício de atividades práticas. Em 1955, por fim, as atividades da PEA foram encerradas, embora outros grupos, como o Progressive Education Network, continuassem a propagar o legado progressivista (LITTLE, 2013).
Duas vertentes do progressivismo americano
O avanço da educação progressiva nos Estados Unidos dividiu os teóricos e as iniciativas práticas em duas grandes vertentes. Labaree (2007) explica que uma delas, o progressivismo pedagógico, foi articulada segundo as concepções de John Dewey, William Heard Kilpatrick, Harold Rugg, Boyd Bode e outros. Essa abordagem moldou o discurso dos educadores americanos, mas não foi capaz de alterar concretamente os parâmetros institucionais de funcionamento das escolas, tarefa que foi cumprida com êxito pelo progressivismo administrativo, promovido, entre outros, por David Snedden, Ellwood Cubberley, Charles H. Judd e John Franklin Bobbitt.
Ambas as vertentes se contrapunham ao currículo tradicional, mas a ênfase do progressivismo pedagógico residia em colocar em primeiro plano os interesses e as capacidades dos estudantes, concebendo a aprendizagem como um processo natural e priorizando a iniciativa e o protagonismo dos alunos por meio de atividades práticas. Para seus defensores, a escola deveria ser organizada nos moldes de uma comunidade democrática, estimulando os educandos a se desenvolverem por meio de ações colaborativas (LABAREE, 2007).
Os adeptos do progressivismo administrativo, por sua vez, eram norteados por uma visão utilitarista centrada na administração das instituições de ensino, assumindo o lema da “eficiência social” (LABAREE, 2007, p. 6). Segundo Labaree (2007), essa vertente requeria a formação e capacitação de gestores para os sistemas de ensino e o deslocamento do ensino acadêmico para o ensino profissional, com sustentação na testagem intensiva das capacidades dos estudantes, no intuito de os conduzir para disciplinas mais adequadas a suas competências pessoais. Os currículos passaram a conter poucas matérias acadêmicas, mas amplo espectro de opções para atender as habilidades de cada estudante, considerando o seu posicionamento futuro no mercado de trabalho, configurando a orientação dita vocacional. Em 1918, os progressivistas administrativos reuniram suas ideias no relatório intitulado “The Cardinal Principles of Secondary Education” e as colocaram em prática em algumas escolas, onde as disciplinas tradicionais, como matemática, ciência, história e inglês, receberam um formato voltado à noção de “eficiência social” (LABAREE, 2005, p. 282).
De um lado, portanto, os defensores do progressivismo administrativo ocuparam-se em preparar os estudantes para funções profissionais por meio de cursos de caráter não acadêmico; levando em conta as competências individuais, buscavam combinar o nível de desenvolvimento de cada estudante com opções curriculares diferenciadas. De outro, os progressivistas pedagógicos, utilizando o desenvolvimento individual como base para se oporem a currículos padronizados, posicionaram-se em defesa de práticas escolares voltadas a um processo de aprendizagem fundamentado no interesse e na iniciativa individual dos educandos, bem como em sua disposição para agir coletivamente (LABAREE, 2005, p. 283).
As diferenças entre as duas vertentes podem parecer insignificantes, pois tanto uma quanto outra projetavam alterações drásticas nos currículos e na relação da escola com os educandos, modificando em profundidade a situação dos alunos perante o conhecimento formal, mas Labaree (2007) é categórico ao afirmar que, na primeira metade do século XX, os pressupostos defendidos pelos progressivistas administrativos foram mais exitosos em comparação com as teses dos progressivistas pedagógicos, cuja influência foi modesta e transitória.
Essa afirmação é sustentada por pesquisas que caracterizaram as distinções entre um modelo e outro, como a investigação conduzida por Cuban (1993 apudLABAREE, 2007).7 Ao analisar uma ampla variedade de fontes - fotografias, estudos distritais, relatos de visitantes, layouts de sala de aula etc. - para determinar a extensão da aprendizagem centrada na criança em escolas de New York e Denver, o pesquisador concluiu que, para uma instituição de ensino ser considerada pedagogicamente progressivista, é preciso identificar alguns requisitos: organização da sala de aula em grupos, diálogo entre os estudantes, atividades baseadas em projetos e liberação para os estudantes deixarem suas carteiras quando quiserem. Tais indicadores de uma aprendizagem centrada no aprendiz foram encontrados esporadicamente; em Nova York, por exemplo, entre 1920 e 1940 somente uma pequena parcela de professores adotava práticas em consonância com o progressivismo pedagógico.
Para Labaree (2005, p. 284), a vitória do progressivismo administrativo pode ser explicada pelo apoio de líderes empresariais e políticos, que viam nessa abordagem a oportunidade para instituir reformas educacionais que privilegiassem a organização administrativa das escolas e realizassem os ideais de “americanizar os filhos dos imigrantes” e preparar mão-de-obra com eficiência. Além disso, a supremacia dessa vertente educacional pode ser creditada à sua suposta cientificidade, em oposição à “visão romântica” dos progressivistas pedagógicos. Os estudos de Dewey e outros defensores dessa última abordagem também buscaram respaldo na ciência, mas os seus pressupostos tinham maior dificuldade para oferecer resultados empíricos, enquanto os progressivistas administrativos comprovavam a superioridade de suas propostas por meio de farto arsenal estatístico advindo da aplicação de testes.
Uma investigação conduzida por Zilversmit (1993 apudLABARAEE, 2007) concluiu que os princípios da educação progressiva relativos ao campo estritamente pedagógico não alteraram significativamente o padrão das escolas americanas.8 Embora alguns professores se declarassem adeptos dos pressupostos deweyanos, a grande maioria continuou a seguir as orientações tradicionais centradas no protagonismo docente. Labaree (2005) registra um fator histórico que pode explicar esse fenômeno: a influência prática de Dewey ficou circunscrita aos poucos anos de sua atuação na Laboratory School. Ao se transferir para o Departamento de Filosofia da Universidade de Colúmbia, seus estudos se deslocaram para o campo teórico mais abstrato e acadêmico, distanciado das salas de aula. Enquanto isso, os progressivistas administrativos persistiram na investigação psicométrica da realidade escolar, conseguindo assim influenciar administradores, líderes políticos, gestores encarregados de elaborar os currículos e, por fim, professores, a quem cabia cumprir as determinações superiores.
Segundo Labaree (2007), o progressivismo pedagógico - em especial as teses deweyanas - foi vencedor no plano meramente declarativo, permanecendo como âncora abstrata e teórica das manifestações dos professores acerca de seus objetivos gerais. Mas fracassou no plano institucional, em que prevaleceu a ideia de eficiência social da educação. Mesmo que os professores desejassem atuar em conformidade com uma abordagem centrada na criança, estavam submetidos a um sistema burocrático que impunha um currículo orientado por disciplinas vocacionais. Diante disso, entende-se por que muitos docentes cederam ao progressivismo administrativo ou, até mesmo, continuaram adotando práticas tradicionais.9
Reações à educação progressiva
Após algumas décadas de influência do progressivismo nos Estados Unidos, a situação educacional do país deu margem a várias manifestações públicas de desagrado. Em 1943, o jornal New York Times, em parceria com o Departamento de História da Universidade de Colúmbia, divulgou os resultados de uma pesquisa organizada para avaliar os estudantes no domínio de conteúdos de História e Geografia, concluindo que a maioria dos jovens não havia adquirido conhecimento satisfatório nessas matérias. No período posterior à Segunda Guerra Mundial, os veículos de imprensa ofereciam exames abrangentes do problema, atestando o baixo desempenho acadêmico dos estudantes e o fracasso do sistema educacional (BRACEY, 1997).
O semanário Life, de ampla penetração nos Estados Unidos e no exterior, publicou entre 24 de março e 21 de abril de 1958 uma série de reportagens com o sugestivo título de “Crisis in Education” - coincidentemente, título idêntico ao da conferência ministrada por Arendt naquele mesmo ano. Na primeira matéria, Wilson (1958) denuncia as péssimas condições das escolas americanas, o déficit de professores em sala de aula, a escassez de recursos públicos e a falta de consenso acerca dos conteúdos a serem ensinados. Em contraste, apresenta a União Soviética, cujo currículo contemplava Literatura Russa, Inglês, Física, Química, Matemática e Desenho Técnico, sem disciplinas eletivas; os estudantes que não acompanhavam o ritmo dos estudos eram encaminhados para escolas menos exigentes, enquanto nos Estados Unidos o currículo era flexível, repleto de brincadeiras e atividades extracurriculares, e poucas instituições ensinavam História Americana, Geometria, Biologia e - causa principal da defasagem - Matemática.
A reportagem de Wilson (1958) critica a atuação dos professores, cuja falta de preparo era flagrante, e afirma que os Estados Unidos, embora seguissem o modelo europeu, cometeram o equívoco de estabelecer um sistema curricular que excluía a preocupação com disciplinas formais, em prol de cursos que priorizavam as capacidades individuais dos estudantes. A consequência foi o surgimento de uma geração de educadores orientada por uma nova maneira de conduzir a aprendizagem, nos moldes do proposto por Dewey e outros intelectuais.
Wilson (1958) destaca, porém, que esse último modelo não obteve êxito porque a atenção individualizada ao aluno demandaria recursos financeiros exorbitantes, o que levou à criação de cursos especiais em que os jovens pudessem optar pela matéria ou tema que desejassem estudar, tais como princípios de direção segura no trânsito, males causados pelo consumo abusivo de álcool, datilografia, dança etc. Com o apoio de familiares e professores, o clamor da opinião pública era endereçado à necessidade de recuperar a aprendizagem de fato, pois as crianças não estavam aptas a decidir sobre qual conteúdo aprender.
Em outra reportagem, Farbman (1958) retrata a rotina extenuante dos professores, que eram impelidos a assumir várias ocupações para compor sua renda, fato que evidenciava os baixos salários da categoria e se somava à desorganização das escolas, tanto em relação ao currículo quanto aos aspectos concernentes à estrutura física. A penúltima matéria é de autoria de Conant (1958), ex-reitor da Universidade de Harvard, que relata os esforços que vinha empreendendo com o propósito de introduzir novas experiências no ensino de Matemática e Ciências. O autor realizou uma pesquisa em 50 escolas de segundo grau em 16 estados, na qual organizou os alunos em diferentes níveis, propondo um curso que agregava a abordagem vocacional, com disciplinas escolhidas pelos alunos, a um conjunto de matérias acadêmicas - Inglês, Estudos Sociais, Matemática e Ciências.
No desenrolar desse amplo movimento de críticas ao estado do ensino e de busca por soluções, havia quem se posicionasse em favor do retorno do ensino tradicional, como o escritor Willian Faulkner e o senador James Willian Fulbright, defensores da tese de que a prioridade da educação devia ser o desenvolvimento do intelecto, não das habilidades práticas (THE 1950’S EDUCATION, 2019). Evento decisivo nesse contexto foi o lançamento do satélite artificial Sputnik pela União Soviética em 1957, o primeiro desse gênero, em plena Guerra Fria, levando os americanos a perceberem o quanto estavam atrasados no setor das tecnologias e o quanto era urgente rever o seu sistema educacional como um todo (SCHIVANI, 2014, 35).
O mundo político reagiu rapidamente ao desafio. O senador Lister Hill mobilizou esforços para a criação de uma lei que destinava recursos federais para a educação. O governo federal resistiu à iniciativa, mas, diante das pressões da opinião pública, em 1958 o senado aprovou o dispositivo em favor do sistema público de ensino. Favorecendo inicialmente o ensino das áreas de Ciências, Matemática e Línguas Estrangeiras, a legislação passou também a subsidiar estudantes de baixa renda e investimentos em bibliotecas universitárias (UNITED STATES SENATE, 1957).
As escolhas de Arendt
O cotejo da caracterização feita por Arendt acerca da educação progressiva, apresentada na primeira seção deste artigo, com as análises veiculadas nas seções subsequentes evidencia que a autora minimiza os avanços da educação progressiva na Europa, os quais, segundo registros da historiografia educacional, foram muito além de iniciativas isoladas. Em contrapartida, Arendt retrata fielmente os fatores sociais que levaram à implantação e sustentaram o progressivismo nos Estados Unidos durante várias décadas. Em sintonia com os veículos de comunicação, “A crise na educação” menciona acertadamente as manifestações de contrariedade da opinião pública ante as consequências desse processo. Nos termos da análise retórica, pode-se dizer que Arendt compreende bem as disposições do auditório que inicialmente acolheu e, mais tarde, rejeitou com veemência a educação progressiva.
O mesmo cotejo também evidencia certas lacunas e, em especial, as escolhas feitas pela autora na abordagem do tema, o que viabiliza a análise das estratégias argumentativas por ela adotadas na construção da situação retórica que orienta o ensaio. Em que pese o formato do texto - elaborado originalmente como conferência, vale lembrar -, a lacuna mais evidente de “A crise na educação” reside em não distinguir as duas correntes do progressivismo educacional instituídas na América, a administrativa e a pedagógica. A caracterização feita por Arendt reúne princípios e práticas da primeira, como a ênfase em cursos extracurriculares, a traços típicos da segunda, como a priorização de atividades lúdicas e o decréscimo da autoridade docente, desenhando uma imagem unitária da educação progressiva. Por não ser uma pesquisadora da educação, muito menos uma especialista em História da Educação, a autora pode ter se informado pelo noticiário jornalístico, no qual, de fato, não se fazia a devida discriminação entre as duas correntes.
Arendt (2018a, p. 243) é franca a esse respeito, declarando-se leiga no assunto e afirmando que as reformas do ensino em andamento e as questões técnicas relativas aos currículos “não precisam nos ocupar aqui”. Problemáticas estritamente pedagógicas, como a diferença entre ensinar e educar, por exemplo, não constituem o objeto de suas reflexões: “Tudo isso são detalhes particulares, contudo, que na verdade devem ser entregues aos especialistas e pedagogos” (ARENDT, 2018a, p. 247). Trata-se de uma escolha prudente, justificável, aliás, pela natureza das análises arendtianas, sempre voltadas a aspectos teóricos, não propriamente práticos, como explica Fry (2017, p. 118).
Semelhante justificativa não pode ser aplicada à escolha por não examinar os fundamentos epistemológicos da educação progressiva, derivados, segundo a autora, do Pragmatismo, corrente filosófica que o texto permite identificar como responsável pela crise. Assim como não discute as reformas curriculares e outras medidas de natureza pedagógica, o ensaio também não argumenta em prol da referida atribuição de responsabilidade, nem analisa os eventuais desacertos dessa filosofia, limitando-se ao seguinte comentário:
Seja qual for a conexão entre fazer e aprender, e qualquer que seja a validez da fórmula pragmática, sua aplicação à educação, ou seja, ao modo de aprendizagem da criança, tende a tornar absoluto o mundo da infância (ARENDT, 2018a, p. 233).
O registro dessas lacunas e imprecisões não tem o intuito de desqualificar intelectualmente a autora, mas mostrar que “A crise na educação” é um texto que não pode ser lido como um estudo sobre a história da educação, seja no âmbito mundial, seja no caso específico dos Estados Unidos. O ensaio não tem por objetivo analisar o quadro problemático que se instalou no âmbito escolar, embora o faça com certa precisão. Esse quadro é utilizado por Arendt como estratégia argumentativa com o propósito de realçar um fenômeno mais amplo, situado na esfera das relações entre adultos e crianças - fenômeno do qual as relações entre professores e alunos, os currículos e outros aspectos pedagógicos não passam de decorrências.
Essa estratégia se revela claramente quando Arendt (2018a, p. 223, grifos do original), ao explicar por que o assunto chama a atenção de todos, inclusive de leigos em educação, diz que a crise abre a oportunidade “de explorar e investigar a essência da questão em tudo aquilo que foi posto nu, e a essência da educação é natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo”. A essência da questão, portanto, reside na abertura oferecida pela crise para que se examinem os desvios concernentes ao modo como os adultos concebem a infância.
O quadro problemático instalado na esfera escolar por intermédio da educação progressiva é uma situação retórica que opera como plataforma para a investigação de outra situação retórica, na qual Arendt identifica a verdadeira e mais grave crise, a crise que envolve a interação entre adultos e crianças na sociedade contemporânea e afeta diretamente a essência da educação. Esse é o tema central de “A crise na educação”, a ser examinado por meio do vasto repertório conceitual arendtiano, a começar pelo conceito de natalidade - tarefa esta que deverá ser enfrentada em artigo exclusivamente dedicado ao assunto.
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1
Trabalho subsidiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq
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2
Esta definição de situação retórica resulta de um amplo debate travado por estudiosos da área, com destaque para Bitzer (1968), Vatz (1973) e Biesecker (1989).
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3
Arendt utiliza o substantivo América e os adjetivos que lhe são correspondentes para se referir aos Estados Unidos da América, orientação que será adotada com frequência neste artigo.
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4
Almeida (2011) informa que as diferenças entre a primeira e a última versão são insignificantes.
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5
Sobre a vida e a obra de Arendt, ver Adler (2007) e Young-Bruehl (2020).
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6
Watras (2006) lista as dez instituições representadas no Comitê: Universidade de Harvard; Universidade de Michigan; Universidade do Colorado; Universidade de Missouri; Girls’ High School de Boston; Vassar College de Nova York; High School de Albany; Lawrenceville School de Nova Jersey; Oberlin College de Ohio; e o Comissariado de Educação de Washington, D.C.
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7
CUBAN, Larry. How teachers taught: constancy and change in American classrooms, 1890-1980. New York: Teachers College Press, 1993.
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8
ZILVERSMIT, Arthur. Changing schools: progressive education theory and practice, 1930-1960. Chicago: University of Chicago Press, 1993.
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9
Uma investigação à parte poderá examinar o sucesso do progressivismo pedagógico em iniciativas desenvolvidas não à luz do Pragmatismo, mas com o respaldo de concepções religiosas, como foi o caso da educação metodista analisado por Santos (2021).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
12 Maio 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
13 Jan 2022 -
Aceito
26 Abr 2022