Acessibilidade / Reportar erro

“Com alegria mando nossas notícias”: escrita epistolar e Movimento de Educação de Base

“Con alegría envío nuestras noticias”: escritura epistolar y Movimento de Educação de Base

“With happiness send our news”: Epistolary Writing and Movimento de Educação de Base

“Heureusement j'envoie nos nouvelles”: écriture épistolaire et Movimento de Educação de Base

ALVES, Kelly Ludkiewicz. Entre as cartas e o rádio: alfabetização de adultos e cultura popular nas escolas radiofônicas do Movimento de Educação de Base. Salvador: EDUFBA, 2022

O surgimento do Movimento de Educação de Base (MEB) liga-se ao contexto desenvolvimentista dos anos 1950 e 1960, no qual diversas iniciativas, tanto em âmbito estatal quanto de distintas instituições, buscaram ampliar o acesso à escolarização da população brasileira. Tratou-se, conforme Alceu Ferraro, do “processo de construção do analfabetismo como problema nacional” (2012FERRARO, Alceu Ravanello. Alfabetização Rural no Brasil na Perspectiva das Relações Campo-Cidade e de Gênero. Porto Alegre: Educação e Realidade, v. 37, n. 3, p. 943-967, set./dez. 2012. , p. 950), quando este passou a ser apontado como um dos mais importantes entraves ao crescimento socioeconômico, político e cultural do país.

O MEB foi criado pela Igreja Católica, através da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), com o objetivo de desenvolver um extenso projeto educativo, por meio de escolas radiofônicas, junto às populações das áreas rurais consideradas subdesenvolvidas. A rede de escolas do MEB alcançou todo o Nordeste e pontualmente o Norte, Sudeste e Centro-Oeste do País. Embora originário da iniciativa eclesiástica, o movimento se concretizou com base no financiamento estatal, a partir de um decreto presidencial assinado por Jânio Quadros, em março de 1961. Sua estrutura organizativa, de caráter centralizado, além do Conselho Diretor, contava ainda com uma equipe de coordenação pedagógica, estabelecida no Rio de Janeiro, uma equipe de professores locutores e supervisores, atuantes nos estados, e com uma ampla rede de monitores que, trabalhando voluntariamente, se responsabilizavam por radicar e acompanhar cotidianamente as atividades das escolas.

Esse movimento já foi estudado a partir de diferentes perspectivas. Inicialmente, por pesquisadores diretamente engajados em sua organização e funcionamento, como é o caso dos trabalhos de Luís Eduardo Wanderley (1984WANDERLEY, Luiz Eduardo Waldemarin. Educar para transformar: educação popular, Igreja Católica e política no Movimento de Educação de Base. Petrópolis: Vozes, 1984.) e de Osmar Fávero (2006FÁVERO, Osmar. Uma pedagogia da participação popular. Análise da prática educativa do MEB - Movimento de Educação de Base (1961/1966). Campinas, SP: Autores Associados, 2006.), ou por pesquisadores seus contemporâneos, como o de Emanuel de Kadt (1970KADT, Emanuel de. Catholic Radicals in Brazil. Londres: Oxford University Press, 1970. e 2007KADT, Emanuel de. Católicos Radicais no Brasil. Brasília: UNESCO; MEC, 2007.)1 1 A tese de Kadt, elaborada junto à Universidade de Londres, foi publicada originalmente em inglês, pela Oxford University Press, em 1970. No Brasil sua primeira edição ocorreu em 2007. . A partir dessas obras pioneiras, o movimento continuou sendo investigado especialmente por pesquisadores ligados ao campo da Educação e da Sociologia que, em geral, privilegiaram as análises de ações institucionais, da Igreja, dos sindicatos e do Estado.

Mais recentemente, o MEB tem recebido maior atenção por parte dos historiadores, principalmente aqueles ligados à História Social e à História da Educação. No primeiro caso se situa, a título de exemplo, o estudo de Claudia Moraes de Souza (2013SOUZA, Claudia Moraes de. Pelas Ondas do Rádio: Cultura Popular, Camponeses e rádio nos anos 60. São Paulo: Casa Alameda Editorial, 2013.) que, lançando mão de uma perspectiva teórica balizada por E. Hobsbawm e por E. P. Thompson, procura fazer uma história vista de baixo. Com base no acervo de cartas de monitoras/es e alunos/as, disponibilizadas no Fundo MEB, do Centro de Documentação e Informação Científica (CEDIC/PUC-SP)2 2 No Fundo MEB, do CEDIC, constam 4000 cartas das regiões Norte e Nordeste enviadas por monitores e alunos, no período de 1961 a 1966. , Souza aborda o sistema estadual de Pernambuco analisando as situações cotidianas, as estratégias, as formas de se apropriar da escola e os usos do rádio nos quais estão envolvidos as trabalhadoras e os trabalhadores rurais alcançados pelo movimento.

As perspectivas investigativas abertas pela análise dessas correspondências são também o mote do trabalho de Kelly Ludkiewicz Alves. Esse estudo, no campo da História da Educação, se utiliza, como principal embasamento empírico, de um conjunto de 649 cartas escritas por monitoras/es, alunos/as do MEB às equipes de professoras/es e supervisores/as também do sistema estadual de Pernambuco, entre 1961 e 19663 3 Esse estudo foi defendido originalmente como tese de doutorado junto ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade da PUC-SP, em 2016, sob orientação de Kazumi Munakata. Ele também escreve o prefácio da obra. . Além das missivas, Alves analisou os documentos legais, relatórios, organogramas, estatutos, bem como os materiais produzidos para a formação das equipes ligadas ao sistema de ensino pernambucano.

Na introdução, a autora apresenta uma síntese do contexto de constituição do MEB e dos grupos que dele participaram. No primeiro capítulo, intitulado Cartas, histórias de cada um e de todos, a autora lança mão de referenciais teóricos que refletem sobre as características e os usos da escrita epistolar, especialmente as abordagens de Castillo Gómez, Sierra Blas e Armando Petrucci. Com base nesses autores, ela aponta o que o estudo sobre as diversas motivações para a escrita, bem como os assuntos tratados ou o grau de proximidade entre remetentes e destinatários pode revelar para a análise histórica do cotidiano. Nesse quesito, menciona que

Apesar da impossibilidade de delimitar com precisão o grau de proximidade que se estabeleceu entre as comunidades e os membros das equipes do MEB, muitas cartas relatam notícias da vida pessoal dos monitores e dos alunos [...] nas quais o autor dá notícias sobre sua vida, de seus familiares e da comunidade (ALVES, 2022, p. 44).

De fato, acompanhar a apresentação e análise das diversas cartas ao longo do livro possibilita ao leitor sentir-se próximo dos aspectos cotidianos das pessoas envolvidas com as escolas radiofônicas. Nelas, observam-se expectativas, condições de trabalho, queixas, elogios e também críticas formuladas ao movimento, aspectos que dificilmente poderiam ser observados em outro tipo de documentação.

No segundo capítulo, intitulado Conscientização e ação pedagógica, a autora aborda as estruturas organizacionais dos sistemas do MEB em Pernambuco; as formas de constituição e de funcionamento das equipes locais, professores-locutores, supervisores e monitores; e a abordagem e dinâmicas de treinamento para a atuação nas escolas. Nessa parte, observa-se o cuidado com a explicitação das características dos grupos de monitores/as. Para isso, Alves embasou-se tanto na bibliografia precedente quanto no que pode apurar na documentação por ela coligida. Assim, é possível observar as predominâncias em termos de gênero, idade, escolaridade e ocupação desse grupo de agentes voluntários do MEB. Eram na maioria mulheres jovens, solteiras, com instrução primária ou menos e que exerciam algum tipo de liderança na comunidade, como catequistas, participantes de grupos de oração ou auxiliares na liturgia. Além disso, uma boa parte delas, mesmo com tão baixa escolaridade, já exercia a docência em escolas regulares dos municípios em que viviam.

O terceiro capítulo, Educação pelo rádio e cultura popular, aborda os impactos do rádio como meio de comunicação de massa, assinalando que a constituição do MEB e de seu modelo educativo se inserem em um contexto geral mais amplo, no qual predominava uma perspectiva desenvolvimentista. Mas, mais do que isso, Alves chama a atenção para o fato de que o rádio tornou-se também “um veículo de ampla divulgação da importância da alfabetização do povo para o desenvolvimento social do país” (2022, p. 122). Porém, a autora aponta às contradições dessa noção de educação, por vezes presentes também no interior do MEB, uma vez que ela

[...] atribuía somente a ação pessoal dos indivíduos a responsabilidade pelas mudanças em sua condição de vida, mascarando, desse modo, os fatores gerais e estruturais que eram determinantes para sua condição (ALVES, 2022, P. 86).

O otimismo com o uso do rádio expandiu-se para a formação dos monitores. A partir de 1963 a coordenação do MEB criou o Programa do Monitor. Cotejando as orientações e atribuições presentes nos roteiros das aulas veiculadas e os textos das missivas enviadas pelas monitoras e monitores para as equipes supervisoras, Alves reflete sobre as distâncias que muitas vezes separavam as utopias desenvolvimentistas das realidades cotidianas. A título de exemplo, podem ser mencionadas as muitas dificuldades ligadas à infraestrutura: falta de querosene para os lampiões, falta de pilhas, defeitos técnicos ou dificuldades de transmissão que muitas vezes impediam a audição da radioaula. Nessas situações, as monitoras e monitores precisavam criar estratégias, inclusive de docência, para a manutenção dos encontros.

Ainda no quesito das contradições, as cartas analisadas permitem observar que a quantidade de tempo demandado e a complexidade das atribuições para a criação e manutenção das escolas radiofônicas eram, muitas vezes, incompatíveis com o voluntariado. Muito eloquentes são as queixas e justificativas para o abandono da função, apresentadas por monitoras e monitores. Essas informações permitem tanto conhecer melhor as condições materiais e o cotidiano de trabalho das comunidades alcançadas pelo MEB, quanto sobre as dinâmicas de manutenção e funcionamento das escolas. Mas, de uma forma que, como referido, dificilmente seria encontrada em outros tipos documentais.

No quarto capítulo, intitulado Escolas radiofônicas e alfabetização de adultos, a autora examina detalhadamente o dia-a-dia das escolas radiofônicas. Por meio da seleção de mensagens enviadas por alunos/as e monitoras/es, Alves possibilita aos leitores aproximarem-se da rotina das aulas, das festas, do trabalho e de outras experiências cotidianas, bem como das esperanças e decepções ligadas à presença do movimento nas comunidades.

Nesse capítulo também são abordados os abalos, na estrutura e no funcionamento do MEB, causados pela instauração da ditadura em 1964. O MEB foi o único movimento de educação popular que sobreviveu ao golpe civil-militar. No entanto, especialmente a partir de 1965, com as reestruturações e com a descentralização da coordenação - que passou a ser exercida pelos bispos diocesanos - já não se tratava mais do mesmo movimento. A abordagem desse contexto, propiciada pelas cartas, permite a Kelly Alves apresentar algumas das considerações feitas por alunos e monitores sobre os boatos então circulantes de que o MEB teria ligações com o comunismo. Alguns trechos de uma mensagem enviada por uma monitora dão uma ideia de como a questão chegou às bases do movimento:

[...] estou quase louca tenho mêdo, mais tenho pena de deixar minha escola pois adoro [...] avize o que devemos fazer, pois vou parar até receber avizo, os livros do Salgueiro não foram distribuído pois as professoras e o padre não entregaram dizendo que eram comunista [...] (DANTAS, 1964a, apud, ALVES, 2022, p. 201).

Diante das dificuldades impostas tanto pela repressão direta, quanto pela drástica redução das verbas, a atuação do MEB diminuiu em várias localidades e o sistema de Pernambuco foi encerrado em 1966. Essa é também a data que delimita a investigação apresentada no livro.

Além desses quatro capítulos, o livro apresenta um Caderno de imagens no qual os leitores encontram uma amostra das cartas estudadas. Esse cuidado da autora permite a observação das mensagens tal como escritas, em suas distintas materialidades, caligrafias, fórmulas de saudações e demais partes dos textos. Assim, pode-se viver, mesmo que parcialmente, a experiência de análise e vislumbrar as inúmeras possibilidades que essa documentação ainda poderá oferecer a pesquisas futuras.

Para finalizar, destaco mais dois pontos. O primeiro, diz respeito à escrita clara, fluente e objetiva, empregada por Alves. Esses cuidados com a redação não apenas tornam a leitura da obra sumamente agradável, como também permitem que tanto os especialistas quanto os demais interessados no tema possam se beneficiar dos resultados da pesquisa.

O segundo aspecto diz respeito à abordagem historiográfica, propriamente dita. A autora segue um caminho investigativo que vem se consolidando em relação a esse e a outros movimentos de educação popular do período. Alves compartilha de uma perspectiva analítica problematizadora, que desnaturaliza consensos generalizantes e, a partir de novas fontes e novos problemas de pesquisa, renova as interpretações, permitindo o reconhecimento de nuances, relações, alcances e contradições dessas experiências educacionais em sua historicidade. Demorou, mas os/as historiadoras/es aos poucos vêm se dando conta da importância do estudo dos movimentos de educação popular para melhor compreensão da história brasileira em suas distintas abordagens. Esse trabalho de Kelly Alves certamente contribui muito para o enriquecimento desse caminho investigativo.

Referências

  • FÁVERO, Osmar. Uma pedagogia da participação popular. Análise da prática educativa do MEB - Movimento de Educação de Base (1961/1966). Campinas, SP: Autores Associados, 2006.
  • FERRARO, Alceu Ravanello. Alfabetização Rural no Brasil na Perspectiva das Relações Campo-Cidade e de Gênero. Porto Alegre: Educação e Realidade, v. 37, n. 3, p. 943-967, set./dez. 2012.
  • KADT, Emanuel de. Catholic Radicals in Brazil. Londres: Oxford University Press, 1970.
  • KADT, Emanuel de. Católicos Radicais no Brasil. Brasília: UNESCO; MEC, 2007.
  • SOUZA, Claudia Moraes de. Pelas Ondas do Rádio: Cultura Popular, Camponeses e rádio nos anos 60. São Paulo: Casa Alameda Editorial, 2013.
  • WANDERLEY, Luiz Eduardo Waldemarin. Educar para transformar: educação popular, Igreja Católica e política no Movimento de Educação de Base. Petrópolis: Vozes, 1984.
  • 1
    A tese de Kadt, elaborada junto à Universidade de Londres, foi publicada originalmente em inglês, pela Oxford University Press, em 1970. No Brasil sua primeira edição ocorreu em 2007.
  • 2
    No Fundo MEB, do CEDIC, constam 4000 cartas das regiões Norte e Nordeste enviadas por monitores e alunos, no período de 1961 a 1966.
  • 3
    Esse estudo foi defendido originalmente como tese de doutorado junto ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade da PUC-SP, em 2016, sob orientação de Kazumi Munakata. Ele também escreve o prefácio da obra.

Editado por

Editora responsável:

Patrícia Weiduschadt

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Jan 2023
  • Aceito
    08 Abr 2024
Associação Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em História da Educação UFRGS - Faculdade de Educação, Av. Paulo Gama, n. 110 | Sala 610, CEP: 90040-060 - Porto Alegre/RS, Tel.: (51) 33084160 - Santa Maria - RS - Brazil
E-mail: rhe.asphe@gmail.com