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João Vicente Martins e o ensino da leitura e da escrita para crianças no Brasil do século XIX

Resumo

Este artigo visa a compreender a história da escolarização no Brasil, na segunda metade do século XIX, especificamente nos aspectos do ensino da leitura e da escrita para crianças, a partir da análise de um impresso escolar escrito por João Vicente Martins, em 1854. Na Cartilha de leitura repentina, ou plágio do Método Castilho, Martins lançou-se no mercado editorial na tentativa de aproximar os ideários de dois precursores do debate acerca dos métodos para o ensino da língua materna: o francês Joseph Jacotot e o português António Feliciano Castilho. Tomando como fonte, sobretudo a imprensa periódica e as produções de Castilho e Martins, a análise empreendida se organizou a partir de dois principais aspectos: a biografia desse último autor e a materialidade de sua cartilha. Conclui-se que, embora anuncie a realização de um plágio do método Castilho, o trabalho empreendido por João Vicente Martins apresentou os seus ideários acerca da escolarização de crianças no contexto brasileiro.

Palavras-chave:
cartilha; ensino de leitura e escrita; Império brasileiro

Abstract

Based on an analysis of a school textbook produced by Joo Vicente Martins in 1854, this article aims to understand the history of schooling in Brazil in the second half of the nineteenth century, notably in the elements of teaching reading and writing to children. Martins launched himself into the publishing market with Cartilha de Leitura repentina, ou plágio do Método Castilho, in an attempt to bring together the ideals of two important forerunners of the debate about methods for teaching the mother tongue engaged with the universalization of elementary education: the Frenchman Joseph Jacotot and the Portuguese António Feliciano Castilho. Takins as a source, above all the periodical press and the productions of Castilho and Martins, the analysis carried out was organized around two main aspects: the biography of the latter author and the materiality of his textbook. It is concluded, that, although it announces the elaboration of a plagiarism of the Castilho method, the work undertaken by João Vicente Martins presented his ideals about the child schooling in the Brazilian context of clashes between techniques of teaching reading and writing in the nineteenth century.

Keywords:
cartilha; teaching Reading and writing; Brazilian Empire

Resumen

Este artículo tiene como objetivo comprender la historia de la escolarización en Brasil, en la segunda mitad del siglo XIX, específicamente en los aspectos de la enseñanza de la lectura y de la escritura a los niños, a partir del análisis de un impreso escolar escrito por João Vicente Martins, en 1854. En Cartilha de Leitura repentina, ou plágio do Método Castilho, Martins se lanzó al mercado editorial en un intento de reunir las ideas de dos importantes precursores del debate sobre los métodos para la enseñanza de la lengua materna, comprometidos con la universalización de la educación primaria: el francés Joseph Jacotot y el portugués António Feliciano Castilho. Tomando como fuente, sobre todo la prensa periódica y las producciones de Castilho y Martins, el análisis realizado se organizó a partir de dos aspectos principales: la biografía de este último autor y la materialidad de su opúsculo. Se concluye que, aunque ha anunciado la realización de un plagio del método Castilho, el trabajo emprendido por João Vicente Martins presentó sus ideas acerca de la escolarización de los niños en el contexto brasileño de las disputas entre los métodos de enseñanza de la lectura y de la escritura en el siglo XIX.

Palabras clave:
cartilla; enseñanza de lectura y escritura; Imperio brasileño

Résumé

Cet article vise à comprendre l'histoire de l'école au Brésil, dans la seconde moitié du XIXe siècle, en particulier, les aspects de l'enseignement de la lecture et de l'écriture aux enfants, ceci à partir de l'analyse d'un imprimé scolaire écrit par João Vicente Martins, en 1854. Dans Cartilha de Leitura repentina, ou plágio do Método Castilho, Martins se lance sur le marché de l'édition pour tenter de rapprocher les idéologies de deux précurseurs importants du débat sur les méthodes d'enseignement de la langue maternelle, engagés avec l'universalisation de l'enseignement primaire : le français Joseph Jacotot et le portugais António Feliciano Castilho. Prenant comme source avant tout la presse périodique et les productions de Castilho et Martins, l’analyse réalisée s’est organisée autour de deux aspects principaux: la biographie de ce dernier auteur et la matérialité de son impimré. On em conclut que bien qu'il annonce la réalisation d'un plagiat de la méthode Castilho, l'ouvrage entrepris par João Vicente Martins a présenté ses idéologies sur la scolarisation des enfants dans le contexte brésilien des querelles entre les méthodes d'enseignement de la lecture et de l'écriture au XIXe siècle.

Mots-clés:
livret; enseignement de la lecture et de l'écriture; Empire brésilien

INTRODUÇÃO

A propósito do que considera ser uma arqueologia da escola, Escolano Benito (2017) explicita que o material, imagem ou texto de uso escolar “pode ser considerado como um condensador ou sintetizador semântico e como um objeto narrativo ou informador, que conta coisas acerca da instituição em que foi utilizado” (ESCOLANO BENITO, 2017ESCOLANO BENITO, Agustín. A escola como cultura: experiência, memória e arqueologia. Campinas: Editora Alínea, 2017., p. 226). Além disso, tal materialidade é catalisadora da História da Educação de um determinado momento e local, abrangendo aspectos mais globais, que, de maneira nenhuma, estão circunscritos aos muros da instituição escolar. Logo, olhar para uma história da cultura material escolar não significa exclusivamente aprofundar num debate das características de um artefato. Tal como Peres e Souza advertem, “é necessário entender que os significados não estão nos objetos apenas, mas nas condutas, valores e sentidos que são atribuídos pelos sujeitos que deles fazem uso” (PERES; SOUZA, 2011PERES, Eliane; SOUZA, Gizele. Aspectos teórico-metodológicos da pesquisa sobre cultura material escolar: (im)possibilidades de investigação. In: CASTRO, César Augusto (Org.). Cultura Material Escolar: a escola e seus artefatos (MA, SP, PR, SC e RS, 1870-1925). 1ª Ed. São Luís: EDUFMA: Café & Lápis, 2011., p. 55-56).

Nesse sentido, este trabalho assume por objetivo investigar a história da escolarização no Brasil, especificamente o ensino de leitura e da escrita para crianças na segunda metade do século XIX, a partir da análise de um impresso escrito por João Vicente Martins (1808-1854), em 1854. O livro em questão é a Cartilha de leitura repentina, ou plágio do Método Castilho, no qual o autor, compreendendo as disputas empreendidas no campo editorial e também o problema dos métodos a serem adotados para o ensino da leitura no solo brasileiro, fez a tentativa de coadunar duas propostas de pedagogistas estrangeiros, engajados na universalização do ensino elementar: o francês Joseph Jacotot (1770-1840) e o português António Feliciano de Castilho (1800-1875).

Nossa proposta é a de compreender, a partir desse artefato, como a institucionalização do ensino de leitura no Brasil nos Oitocentos foi pensada e projetada por diferentes intelectuais em meio a uma circulação de ideias em contexto transnacional. Afinal, “o livro escolar congregou e ordenou a cultura escolar, conciliando conhecimento, ação e valores. A edição escolar reflete os grandes ciclos científicos, pedagógico e curriculares” (MAGALHÃES, 2022MAGALHÃES, Justino Pereira de. Livro escolar - adaptação e tradução no Portugal de Oitocentos: do ‘aprender pelo livro’ ao ‘mestre-livro’. Cadernos de História da Educação, v. 21, p.1-13, 2022., p. 11).

A partir de uma perspectiva histórica, a pesquisa empreendida tomou como fontes documentais a imprensa periódica Oitocentista, os impressos escolares, em diálogo com a produção científica a respeito da história da alfabetização e do livro escolar no Brasil e em Portugal. Os procedimentos de análise foram organizados em torno de duas principais categorias temáticas: a biografia de João Vicente Martins e a materialidade de sua cartilha.

Dessa maneira, inicialmente destacamos o contexto de produção do livro escrito por Martins, em especial a história da escolarização da leitura, em diálogo com o mercado editorial de manuais escolares, que ensejavam a ordenação de uma “liturgia escolar” (BOTO, 2014BOTO, Carlota. A liturgia da escola moderna: saberes, valores, atitudes e exemplos. História da Educação, v. 18, n. 44, p. 99-127, 2014.). Nesse item também retomamos alguns aspectos da vida e obra de Martins. Na sequência, apresentamos uma análise da Cartilha de leitura repentina, ou plágio do MétodoCastilho (MARTINS 1854CASTILHO, António Feliciano de. Felicidade pela instrução. Lisboa: Tipografia da Academia Real das Ciências, 1854.a), demonstrando as tentativas de apaziguamento que João Vicente Martins empreendeu na organização de um método que se fizesse capaz de vincular os ideários de Castilho e Jacotot no contexto de um país em que cresciam as querelas sobre dos métodos para o ensino da leitura e da escrita no século XIX.

JOÃO VICENTE MARTINS E A ESCOLARIZAÇÃO DA LEITURA

Ao abordar a organização da instrução pública brasileira, a partir da segunda metade do século XIX, Boto (2014BOTO, Carlota. A liturgia da escola moderna: saberes, valores, atitudes e exemplos. História da Educação, v. 18, n. 44, p. 99-127, 2014.) explicita que as cartilhas e os livros de leitura foram importantes artefatos que auxiliaram na organização de uma “liturgia escolar”. Entre os “saberes e haveres” próprios da escola, a autora evidencia que os manuais escolares guiavam os rituais de classe e orientavam professores. Maciel, Goulart e Rocha (2020MACIEL, Francisca Izabel Pereira; GOULART, Ilsa do Carmo Vieira; ROCHA, Juliano Guerra. Os manuais para uso das cartilhas na história da formação das alfabetizadoras no Brasil. In: MACIEL, Francisca Izabel Pereira; SANTOS, Sônia Maria dos; ROCHA, Juliano Guerra (Orgs.). História de alfabetizadoras em Minas Gerais. Uberlândia: Navegando Publicações, 2020.) corroboram tal perspectiva, demonstrando que esses livros, na ausência de cursos de formação de professores, tornavam-se elementos formativos, sendo apropriados pelos docentes como principais guias de suas práticas para o ensino da leitura e da escrita. Outros autores também fundamentam a tese de que os livros ocuparam um lugar de destaque na constituição da escola moderna em contextos luso-brasileiros (MORTATTI, 2000MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da Alfabetização: São Paulo, 1876 - 1994. São Paulo: Editora UNESP, 2000.; BOTO, 2012BOTO, Carlota. A escola primária como rito de passagem: ler, escrever, contar e se comportar. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012.).

Destarte, tomando como referência os estudos históricos da alfabetização, sabemos que os primeiros livros que circulavam pelas escolas brasileiras eram, sobretudo, redigidos por escritores portugueses. A partir de 1850, houve um movimento de nacionalização do mercado editorial escolar e de abertura de imprensas pelo Brasil, provocando uma intensa produção de livros dirigidos para crianças, algo que, conforme Lajolo e Zilberman (1996LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1996.) explicam, ganhou força já no final do século XIX.

Em um país composto majoritariamente por pessoas que não sabiam ler e escrever, somando-se a isso um ensino público que iniciava a arquitetar-se, o debate em torno de qual método utilizar para a organização da escola e para o ensino da leitura e da escrita estava em pauta, engendrando polêmicas e disputas editoriais, por isso mesmo essencialmente políticas. A pesquisa de Mortatti (2000MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da Alfabetização: São Paulo, 1876 - 1994. São Paulo: Editora UNESP, 2000., p. 24) a respeito da história dos métodos de alfabetização em São Paulo assevera que, do “ponto de vista da longa duração histórica”, houve uma disputa em torno dos “sentidos da alfabetização”, fundando, para a autora, uma tradição em torno de tensões e rupturas entre os métodos “modernos” versus “tradicionais” e, em alguns momentos, entre ambos e os denominados de “mais modernos”.

Nesse cenário, muitos escritores, na segunda metade do século XIX e início do XX, despontaram com suas produções e ganharam projeção nacional em função das chancelas que receberam do governo, bem como das estratégias comerciais que utilizaram para divulgação de suas obras nas escolas brasileiras. Sobre isso, gostaríamos de apontar o caso de autores que escreveram impressos para alfabetização de crianças e que os propagandearam de diversas formas, com a intenção de que os métodos e materiais que haviam criado fossem adotados.

Um caso exemplar é o de Abilio Cesar Borges, o Barão de Macahubas, cuja obra foi amplamente analisada por Valdez (2006VALDEZ, Diane. A representação de infância nas obras pedagógicas do Dr. Abilio Cesar Borges (1856-1891). 2006. 319 p. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Estadual de Campinas (Faculdade de Educação), Campinas, 2006.), que demonstrou o alcance desse autor na divulgação de seus livros em todo o território brasileiro, uma vez que remetia exemplares a diferentes locais, o que ocasionava a compra de altas tiragens desses impressos pelos governos provinciais para que fossem distribuídos nas escolas. Borges pode ser considerado um dos primeiros autores brasileiros que, no século XIX, teve uma obra referendada por diversos órgãos educacionais e um dos pioneiros na produção brasileira de livros de leitura seriada (VALDEZ, 2006VALDEZ, Diane. A representação de infância nas obras pedagógicas do Dr. Abilio Cesar Borges (1856-1891). 2006. 319 p. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Estadual de Campinas (Faculdade de Educação), Campinas, 2006.), direcionando tanto aspectos da própria legislação educacional, quanto influenciando a criação de rituais para escolarização da leitura e da escrita.

A estratégia comercial de Borges se ampliou com a abertura de escolas por ele dirigidas, sua atuação na política brasileira e sua “rede de sociabilidade”5 5 Expressão empregada tomando como referência Sirinelli (2003). com intelectuais e agentes educacionais. Ao analisar suas obras, constata-se que os ideários ali contidos vinham na defesa de uma escola e de um método que se contrapunham às práticas enfadonhas dos métodos soletração, centradas nas cartas de ABC e nos silabários, que circulavam naquele momento. Sua argumentação voltava-se para a edificação de uma metodologia de ensino de leitura capaz de atender aos desafios de ensinar as crianças a ler de maneira rápida e agradável. Esse argumento é muito característico dos impressos escolares portugueses, por exemplo nas obras de João de Deus e de António Feliciano de Castilho, contemporâneas das de Macahubas.

Como visto, as ações do Abilio Cesar Borges concentraram duas particularidades interessantes que o auxiliaram na divulgação das suas obras e da sua proposta para o ensino da leitura e da escrita. A primeira foi a de remeter os livros a várias localidades e a segunda, a de abrir Colégios para circulação e exposição dos resultados obtidos com o emprego do seu método. Nesse sentido, outros escritores no mesmo período também lançaram mão dessas alternativas, alguns com menos projeção, como é o caso de Antonio Pinheiro de Aguiar, autor do livro Bacadafá ou methodo de leitura abreviada.

Pinheiro de Aguiar foi o responsável pela criação de um plano de leitura baseado em 20 lições, as quais eram constituídas a partir do nome de quatro pessoas de uma família de indígenas brasileiros e de historietas. Sua proposta foi criada no final dos anos de 1850 e circulou de maneira mais alargada a partir dos anos de 1860. A pesquisa de Maciel e Rocha (2023MACIEL, Francisca Izabel Pereira; ROCHA, Juliano Guerra. Antonio Pinheiro de Aguiar. In: VALDEZ, Diane; PANIZZOLO, Claudia; DIAS, Ana Raquel Costa; ROCHA, Juliano Guerra (Orgs.). Dicionário de autoras/es de cartilhas e livros de leitura no Brasil [Século XIX]. Goiânia: Cegraf UFG, 2023. ) demonstra que, inicialmente, Pinheiro de Aguiar publicou as lições do método de forma avulsa, tendo sido posteriormente compiladas num único impresso. Rocha (2019) assinala que o autor abriu escolas no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, como um espaço para propagandear o método e também realizar exposições públicas para sua divulgação. Além disso, a imprensa noticiou que Pinheiro de Aguiar fez a impressão de tiragens do seu livro para remeter às províncias. Algumas pesquisas confirmam que o método Bacadafá esteve presente em várias localidades no final do Império, mas faltam fontes documentais para saber se e como foi utilizado nas escolas (ARAÚJO E SILVA; 1975ARAÚJO E SILVA Nancy Ribeiro de . Tradição e renovação educacional em Goiás. Goiânia: Oriente, 1975.; TRINDADE, 2001TRINDADE, Iole Maria Faviero. A invenção de uma nova ordem para as cartilhas: ser maternal, nacional e mestra. Queres Ler? 2001. 524 p. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Faculdade de Educação), Porto Alegre, 2001.; AMÂNCIO; CARDOSO, 2006AMÂNCIO, Lázara Nanci de Barros; CARDOSO, Cancionila Janzkovski. Fontes para o estudo da produção e circulação de cartilhas no Estado de Mato Grosso. In: FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva; MACIEL, Francisca Izabel Pereira (Orgs.). História da Alfabetização: produção, difusão e circulação de livros (MG / RS / MT - Séc. XIX and XX). Belo Horizonte: UFMG/FAE, 2006., FRANKLIN, 2017FRANKLIN, Ruben Maciel. Projetos educacionais para um Brasil-nação: uma reflexão sobre a Educação brasileira no processo de transição império-primeira república (1850-1930). Revista de História e Historiografia da Educação, Curitiba, v. 1, n. 1, p. 86-101, 2017.).

Os dois autores acima referidos, com as respectivas obras e estratégias comerciais para sua divulgação, demonstram aspectos relevantes para a compreensão de uma faceta da história da escolarização no Brasil que não pode ser resumida aos acontecimentos das práticas em sala de aula, do fazer que envolve agentes educativos e estudantes no ambiente escolar. Mesmo cientes de que escolarizar é também institucionalizar o ato educativo, criando protocolos para organização das interações humanas, não se pode esquecer que a escolarização passa por enfoques que são externos ao ambiente escolar e influenciam indiretamente o fazer pedagógico. No caso específico deste artigo, optamos por focalizar a questão da escolarização à luz dos impressos escolares direcionados para o ensino da leitura e escrita. Afinal, “os livros didáticos indicam o ritual de escolarização” (BOTO, 2019BOTO, Carlota. Rascunhos da história da leitura escolar: entre Portugal e Brasil. Educação & Sociedade, v. 40, p. 1-14, 2019. , p. 9). Corroborando outras pesquisas da história educacional brasileira, ressaltamos que, a partir da segunda metade do século XIX, as práticas escolares com a leitura e a escrita ficaram, cada vez mais, reguladas e ritualizadas e, sem dúvida, as cartilhas e livros de leitura deram grande contribuição para isso.

Nessa perspectiva e com estratégias similares às que Borges e Pinheiro de Aguiar utilizaram para a propagação de suas propostas e livros, entrou em cena o português João Vicente Martins, naturalizado brasileiro, com sua obra publicada com o instigante título Cartilha de leitura repentina, ou plágio do Método de Castilho (MARTINS, 1854a MARTINS, João Vicente. Cartilha de leitura repentina, ou plágio do Methodo Castilho. Rio de Janeiro: Tipografia da Viúva Viana Junior, 1854a. ).

Santos (2018a SANTOS, Wilza Betania dos. João Vicente Martins: do pessoal à discussão sobre as nacionalidades. Almanack, Guarulhos, n. 20, p. 266-281, 2018a.), a partir de um texto escrito por Martins, em 1846, para o Jornal do Commercio, no Rio de Janeiro, analisou elementos sobre a vida do autor em pauta. Destaca que ele nasceu em 1808, em Lisboa, onde se formou para médico-cirurgião na Escola de Cirurgia de Lisboa. Veio para o Brasil em 1837, atuando como “alopata na especialidade das ‘moléstias dos olhos’” (SANTOS, 2018 a SANTOS, Wilza Betania dos. João Vicente Martins: do pessoal à discussão sobre as nacionalidades. Almanack, Guarulhos, n. 20, p. 266-281, 2018a., p. 271). Dedicou-se à cirurgia dos olhos e esteve em províncias como as de Minas e da Bahia divulgando algumas de suas técnicas. No Rio de Janeiro, em 1843, conheceu Benoît-Jules Mure (1809-1858), um homeopata francês, que veio ao Brasil entre 1840 e 1848, e influenciou Martins para a especialidade da homeopatia, assunto no qual nos deteremos mais no próximo item.

Com sua dedicação ao ramo da homeopatia, Santos (2018 a SANTOS, Wilza Betania dos. João Vicente Martins: do pessoal à discussão sobre as nacionalidades. Almanack, Guarulhos, n. 20, p. 266-281, 2018a.) aponta que Martins foi alvo de críticas e acusações, sobretudo pelos médicos ligados à ciência alopata e grupos nacionalistas que se opunham a ele, o que o levou a propagar suas ideias na imprensa periódica carioca, sendo responsável por uma série de artigos no Jornal Correio Mercantil, de título “Espontaneidades”, a partir de abril de 1849. Os textos não tratavam apenas da homeopatia, mas estavam, sobretudo, relacionados aos “laços de sangue que uniam portugueses e brasileiros por trezentos anos” (SANTOS, 2018 a SANTOS, Wilza Betania dos. João Vicente Martins: do pessoal à discussão sobre as nacionalidades. Almanack, Guarulhos, n. 20, p. 266-281, 2018a., p. 274). Os artigos de Martins destacavam seu ufanismo em relação a Portugal e tentavam conciliar esse ideário com a história do Brasil. Esse aspecto, no contexto de um país ex-colônia, unido à tentativa de propagação de uma ciência, a homeopatia, também introduzida no solo brasileiro por um estrangeiro, fez com que ele sofresse duras acusações em jornais locais (SANTOS, 2018aSANTOS, Wilza Betania dos. João Vicente Martins: do pessoal à discussão sobre as nacionalidades. Almanack, Guarulhos, n. 20, p. 266-281, 2018a., 2018bSANTOS, Wilza Betania dos. Identidades, Convivências e Histórias: os Gabinetes Portugueses de Leitura de Pernambuco e da Bahia (1850-1931). 2018. 403 p. Tese (Doutorado em História) - Universidade do Porto (Faculdade de Letras), Porto, Portugal, 2018b.).

No Correio Mercantil, entre 1853 e 1854, Martins fez uma ampla divulgação do português António Feliciano de Castilho, descrevendo a viagem que teria feito a Portugal, bem como sua experiência com o método de leitura repentina. Tais textos são assinados por Martins ora com o seu nome completo, ora com suas iniciais (J. V. M. ou J. V. Martins). Trata-se de artigos pouco extensos, mas que divulgam a obra de Castilho e demonstram o interesse do autor em propagá-la pelas escolas brasileiras. Nesse sentido, o primeiro texto localizado por Rocha (2019ROCHA, Juliano Guerra. História da alfabetização de crianças em Goias, 1835-1886. 2019. 334 p. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Uberlândia (Faculdade de Educação), Uberlândia, Minas Gerais, 2019.), assinado por Martins no Correio Mercantil, na edição de 3 de setembro de 1853, na seção “Publicações a pedido”, faz a propaganda da segunda edição da obra Metodo Castilho para o ensino rapido e aprasivel do ler impresso, manuscrito, e numeração e do escrever. Nesse texto justifica que não aplicaria o método de Castilho porque se dedicava a estudos da homeopatia; ademais “oferece aos habilitados para ensinar por esse método um ordenado ou gratificação, a casa, os livros e materiais para abertura de uma escola de leitura repentina” (ROCHA, 2019ROCHA, Juliano Guerra. História da alfabetização de crianças em Goias, 1835-1886. 2019. 334 p. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Uberlândia (Faculdade de Educação), Uberlândia, Minas Gerais, 2019., p. 195).

Em 8 de setembro de 1853, no mesmo Jornal, Martins divulgou que faria a impressão do livro de Castilho e o distribuiria gratuitamente para as Câmaras Municipais do Império, o que não ocorreu, já que decidiu, a partir de uma “correspondência particular” que teve com o irmão de Castilho, José Feliciano de Castilho Barreto e Noronha, publicar uma cartilha com o “plágio do método” (MARTINS, 1854a, p. V). A extensa pesquisa sobre a vida e obra de Martins empreendida por Santos (2018 b SANTOS, Wilza Betania dos. Identidades, Convivências e Histórias: os Gabinetes Portugueses de Leitura de Pernambuco e da Bahia (1850-1931). 2018. 403 p. Tese (Doutorado em História) - Universidade do Porto (Faculdade de Letras), Porto, Portugal, 2018b.) adiciona que “ele pretendia atingir a população pobre e por isso instalou uma escola gratuita em sua própria casa, para atender vinte e cinco crianças carentes, em 03 de novembro de 1853” (SANTOS, 2018 b SANTOS, Wilza Betania dos. Identidades, Convivências e Histórias: os Gabinetes Portugueses de Leitura de Pernambuco e da Bahia (1850-1931). 2018. 403 p. Tese (Doutorado em História) - Universidade do Porto (Faculdade de Letras), Porto, Portugal, 2018b., p. 83). Anterior a sua ação, Martins (1854a) explicitou que Augusto Emilio Zaluar já havia aberto uma escola com o método Castilho. “O Colégio Zaluar adotou esse Método Castilho de leitura repentina a partir de 1º de outubro de 1853 para doze alunos, gratuitamente” (SANTOS, 2018bSANTOS, Wilza Betania dos. Identidades, Convivências e Histórias: os Gabinetes Portugueses de Leitura de Pernambuco e da Bahia (1850-1931). 2018. 403 p. Tese (Doutorado em História) - Universidade do Porto (Faculdade de Letras), Porto, Portugal, 2018b., p. 83).

Em 1854, Martins lançou a sua Cartilha de leitura repentina, ou plágio do Método de Castilho, ensejando vulgarizar o método Castilho, admitindo-se como seu plagiário. Maciel e Rocha (2022MACIEL, Francisca Izabel Pereira; ROCHA, Juliano Guerra. Prefácios de manuais escolares de iniciação à leitura produzidos em Portugal e no Brasil do século XIX.In: CARDOSO, Cancionila Janzkovski; AMÂNCIO, Lázara Nanci de Barros; RODRIGUES, Sílvia de Fátima Pilegi; BERTOLDO, Sandra Regina Franciscatto (Orgs.). História(s) de alfabetização, leitura e escrita: concepções, práticas e materialidades. Rondonópolis: EdUFR, 2022.) registraram que Martins já havia divulgado anteriormente uma obra de Castilho no Brasil, o livreto Eco da Voz Portugueza por Terras de Santa Cruz (1847). Tudo isso corrobora nossa afirmação de que João Vicente Martins foi um dos divulgadores de Castilho no solo brasileiro, antes mesmo de sua vinda ao Brasil, que ocorreu em 1855.

A organização geral dessa cartilha pode ser compreendida em quatro principais partes, a partir de sua paginação. Antes dos textos, no verso da folha de guarda, há uma imagem de João Vicente Martins, algo característico dos impressos daquele momento, que estampavam o retrato de seus autores. Na sequência, apresentam-se páginas numeradas em algarismos romanos (p. V a XI) com dois itens: o primeiro é intitulado “Ao leitor”, constituindo uma espécie de prefácio da obra (p. V e VI); e o segundo, “Padre Nosso ou Novo Methodo para ensinar a ler e escrever sem mestre nem explicações” (p. VII a XI). As quatorze páginas seguintes não têm numeração e são partituras de “Cantos religiosos para uso das casas de educação compostos por Raphael Coelho Machado, Rio de Janeiro”. Na sequência, o método Castilho é disposto em 159 páginas com numeração cardinal. As últimas 70 páginas, também sem numeração, são estampas das letras do alfabeto e dos números de 0 a 9. Essa disposição gráfica da numeração das páginas remonta ao impresso de Castilho (1853CASTILHO, António Feliciano de. Metodo Castilho para o ensino rapido e aprasivel do ler impresso, manuscrito, e numeração e do escrever. 2ª edição inteiramente refundida, aumentada, e ornada de um grande número de vinhetas. Lisboa: Imprensa Nacional, 1853. Biblioteca Nacional de Portugal. <Available at: http://purl.pt/185 >. Accessed on: April 07, 2023.
http://purl.pt/185...
), em que tudo que antecede o método propriamente é paginado em número romanos e, posteriormente, quando são apresentadas as lições do método, em números cardinais.

Com a Cartilha de leitura repentina, ou plágio do Método de Castilho, em meio a um cenário de disputas entre os métodos de ensino de leitura, João Vicente Martins lança-se como um intelectual que transita no campo da instrução pública para crianças no Brasil do século XIX, com uma possível proposta conciliatória entre dois pedagogistas que têm ideias opostas, o próprio António Feliciano de Castilho, que intitula a obra, e o francês Joseph Jacotot.

A CARTILHA DE MARTINS E SUA TENTATIVA DE APAZIGUAMENTO DAS QUERELAS DOS MÉTODOS DE ENSINO DA LEITURA E ESCRITA NO SÉCULO XIX

Albuquerque (2019ALBUQUERQUE, Suzana Lopes de. Métodos de ensino de leitura no Império brasileiro: António Feliciano de Castilho e Joseph Jacotot. 2019. 240p. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade de São Paulo (Faculdade de Educação), São Paulo, 2019.) registrou as disputas no Império brasileiro envolvendo António Feliciano de Castilho com a tentativa de propagação de seu método para o ensino da leitura e da escrita e os defensores do Ensino Universal de Joseph Jacotot. Enquanto Castilho estava preso à sonoridade das palavras em uma marcha sintética, Jacotot partia do princípio da totalidade de um texto no início do processo de alfabetização, rumo à matriz de um método global. Segundo Aguayo (1959AGUAYO, Alfredo Miguel. Didática da Escola Nova. J. B. Damasco Penna e Antônio D’avila (trad. e notas). São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1959. , p. 182), Jacotot foi o criador do método analítico para o ensino da leitura através de seu Ensino Universal apresentado na obra Língua materna, publicada em 1822.

Diante das querelas que envolviam tais matrizes sintética e analítica do ensino de leitura, João Vicente Martins apresentou no prefácio de sua cartilha o caminho da conciliação, propondo que “comece Castilho a ensinar-nos alguma cousa perfeitamente; por exemplo: ler e escrever, que o resto Jacotot nos ensinou já como havemos de aprendê-lo sem mestre nem explicações” (MARTINS, 1854aMARTINS, João Vicente. Cartilha de leitura repentina, ou plágio do Methodo Castilho. Rio de Janeiro: Tipografia da Viúva Viana Junior, 1854a. , p. XI).

Como mencionamos anteriormente, Martins fez uma viagem para Portugal, ocasião em que conheceu as ideias de Castilho. Já sua aproximação com os princípios de Jacotot, acreditamos que foram em função da experiência com a medicina homeopática. Em seu percurso profissional, sabemos que atuou como professor na Escola de Homeopatia6 6 “Na reunião anual do Instituto, em julho de 1844, João Vicente Martins, um de seus membros, apresentou o plano de uma Academia de Medicina Homeopática e Cirurgia. Redigidos seus estatutos e aprovados em 12 de janeiro de 1845, foi instalada então com a denominação de Escola Homeopática do Brasil, na rua São José, Rio de Janeiro, nº 59, sob a direção de Benoit Jules Mure” (VELLOSO, online, s.d.). e assinou algumas matérias do periódico A Sciencia (1847A SCIENCIA, v. 1, n. 5, nov. 1847. <Available at: http://memoria.bn.br/ DocReader/docreader.aspx?bib=730076 >. Accessed on: March 10, 2023.
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-1848A SCIENCIA, v. 2, n. 16, maio 1848. <Available at: http://memoria. bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=730076 >. Accessed on: March 10, 2023.
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)7 7 Esse periódico está digitalizado e disponibilizado no site da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. , que visava a defender a entrada da homeopatia no Império brasileiro. Em tal periódico, observa-se uma admirável e respeitável referência aos trabalhos do professor.

Uma das fontes mais cabais onde beberemos será a história da homeopatia no Brasil. Esta polêmica, sem exemplo, que há cinco anos a esta parte, perturbou toda a imprensa, que tem invadido os jornais de todos os formatos, e que tem tantas vezes sufocado o retumbante clamor da política, merecia ser concentrada em uma obra mais duradoura do que as folhas nas quais ela se acha disseminada. Este fulgor inesgotável, esta exuberância da vida e de força, esta ousadia de pensamento e de expressão que dão ao escrever do Sr. João Vicente Martins um tipo inimitável, devia reviver para servir de modelo sobre todos os pontos do globo àqueles que se dedicam à propagação da homeopatia (A SCIENCIA, 1847A SCIENCIA, v. 1, n. 3, set. 1847. <Available at: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=730076 >. Accessed on: March 10, 2023.
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, vol. 1, p. 2).

A homeopatia foi introduzida em solo brasileiro a partir da vinda do Dr. Mure, que, fundamentado na máxima da panecastiqué do francês Joseph Jacotot, “tudo está em tudo”, abriu o Instituto Homeopático do Brasil, juntamente com João Vicente Martins.

Da mesma forma que fizera na Europa e África, Mure propagou a homeopatia no Brasil, por meio de ensino, publicações, experiências e preparação de remédios homeopáticos. Logo o Instituto passou a abrir consultórios pela Corte e interior das províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. Mure e João Vicente Martins, que foi seu importante braço direito enquanto esteve no Brasil, estavam à frente da propagação. Mais tarde foram criadas ainda a Sociedade Homeopática Baiana (1847), e a Sociedade Homeopática Maranhense (1849), como filiais do Instituto (CRUZ, 2018, p. 51).

Após os registros de João Vicente Martins no periódico A Sciencia, no qual apresentou a Filosofia Panecástica de Jacotot com minúcia de detalhes, engendrando a defesa da homeopatia e a abertura da Escola Homeopática no Brasil, ele partiu para a escrita de um método de leitura e escrita para crianças, enaltecendo o que aprendera sobre essa filosofia e sua experiência no campo da instrução, pautando-se em princípios como a escuta, atenção mais detida nos interesses do aluno e em sua participação nas atividades de seu próprio aprendizado, fugindo da estrutura clássica de um mestre explicador e detentor de todo o conhecimento e respostas.

Uma das glórias de Hahnemann consiste em ter sido o primeiro a compreender que o médico deve só escutar e não guiar o doente: assim n’outra ordem de ideias de Jacotot entendeu que o mestre deve escutar o discípulo e verificar o seu trabalho em lugar de lhe dar explicações (MARTINS, 1865MARTINS, João Vicente. Conselhos clínicos de Mure ou Pratica Elementar da Homoeopathia. Tomo 1. 6ª edição. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro & C. ,1865. Available at:<Available at:https://aph.org.br/wp-content/uploads/2016/07/livro-conselhos-clinicos-prat ica-elementar-homeopathia.pdf >. Accessed on: Jan. 15, 2023.
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, p. 36).

Seguindo os passos de Joseph Jacotot, que apresentava uma ruptura com os métodos de ensino da leitura da sua época, trazendo uma potência criadora da parte do sujeito para o processo, Martins (1854a) se debruçou em sua cartilha sobre as polêmicas envolvendo o ensino da leitura e da escrita no Brasil. Já no início da obra, ele menciona a influência de Jacotot sobre suas ideias:

Honra e louvor a Jacotot que até à morte insistiu no bom propósito de convencer os pobres de que em sua mão estava, se em sua vontade estivesse, tudo quanto é mister para alcançarem que seus filhos soubessem tudo, que deviam indispensavelmente saber, e o que mais eles quisessem (MARTINS, 1854aMARTINS, João Vicente. Cartilha de leitura repentina, ou plágio do Methodo Castilho. Rio de Janeiro: Tipografia da Viúva Viana Junior, 1854a. , p. V).

Da mesma forma que honrara Jacotot, Martins apresentou “honra e louvor” à Castilho, “que não só escreveu, mas também com perseverança e com o próprio exemplo, fez adotar o seu engenhoso Método de leitura e de escrita” e, portanto, em seu prefácio, já agradecia “ao velho cego a luz e a vida, que distribui pelos pobres meninos ignorantes, por esses que mais amados são de Deus e mais dignos de o ser” (MARTINS, 1854aMARTINS, João Vicente. Cartilha de leitura repentina, ou plágio do Methodo Castilho. Rio de Janeiro: Tipografia da Viúva Viana Junior, 1854a. , p. V).

Após escrever um prefácio, expondo louvores a Jacotot e Castilho, Martins apresentou um tópico intitulado “Padre nosso ou novo methodo para ensinar a ler e escrever sem mestre nem explicações”, trazendo os princípios de Jacotot fundamentados na autonomia, ausência de mestres explicadores e na máxima da Panecástica de que “tudo está em tudo”.

Nem por isso ficaremos em contradição flagrante, porque diz Jacotot tout est dans tout. - Toda a ciência está em saber alguma coisa perfeitamente e comparar com ela tudo o que se ignorava e que se pretende saber tão perfeitamente como o que se sabia já (MARTINS, 1854aMARTINS, João Vicente. Cartilha de leitura repentina, ou plágio do Methodo Castilho. Rio de Janeiro: Tipografia da Viúva Viana Junior, 1854a. , p. XI).

Partindo para a necessidade de relacionar os múltiplos fatores envolvidos no ato de ler, o Ensino Universal tinha como premissa básica “aprender qualquer coisa e a isso relacionar todo o resto, segundo o princípio de que todos os homens têm igual inteligência” (RANCIÈRE, 2015RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Tradução de Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015, 3. ed., p. 30), porque há sempre algo que pode servir de termo de comparação, ao qual é possível relacionar algo novo a ser conhecido. Tal ideia é apropriada por Martins em seu impresso ao mencionar que:

Todos os conhecimentos humanos resultam da comparação que se faz de uma coisa qualquer, perfeitamente conhecida, com todas as outras coisas que se não conhecem. Um pai ou mãe, ignorante e pobre, que não souber ler, nem puder mandar seu filho à escola, querendo pode ensiná-lo a ler e escrever, fazendo-lhe aprender de cór, perfeitamente, uma oração qualquer; por exemplo: a Oração dominical, ou - Padre Nosso - como vulgarmente se diz; e quando seu filho não só souber de cór, perfeitamente, mas também a compreender, no seu sentido próprio de oração dirigida à Deus, em súplica, adoração, e promessa, dando-lhe escrita impressa, essa oração, e fazendo-lhe notar que a primeira palavra, que ele sabe de cór, deve ser a primeira que no papel está escrita, que diz - Padre - [...] e assim por diante, sem nunca dar explicações nenhumas, sem até mesmo carecer de dar imediatamente nome às letras, mas só perguntando e representando [...] (MARTINS, 1854aMARTINS, João Vicente. Cartilha de leitura repentina, ou plágio do Methodo Castilho. Rio de Janeiro: Tipografia da Viúva Viana Junior, 1854a. , p. VII - VIII).

Para Martins (1854a, p. XI), em Jacotot “tudo parece paradoxal”, definição usada atualmente por Raisky (2012RAISKY, Claude. Joseph Jacotot: Le pédagogue paradoxal. Dijon, Editions Raison et Passions, 2012.), que o define como pedagogo paradoxal por vislumbrar uma defesa pela emancipação intelectual do indivíduo e, ao mesmo tempo, objetivar “prepará-lo para desempenhar um papel social, ocupar um lugar no mundo, na ordem econômica e política, porque será a condição de sua existência” (RAISKY, 2012RAISKY, Claude. Joseph Jacotot: Le pédagogue paradoxal. Dijon, Editions Raison et Passions, 2012., p. 117). Entretanto, apesar de compreender tal filosofia e propagar os princípios de Jacotot, Martins deixa registrado no início de sua cartilha que “o Método Castilho para ensinar a ler e escrever é preferível, por ser essencialmente prático, fácil e divertido” (MARTINS, 1854aMARTINS, João Vicente. Cartilha de leitura repentina, ou plágio do Methodo Castilho. Rio de Janeiro: Tipografia da Viúva Viana Junior, 1854a. , p. XI). Apesar de anunciar aproximações com os princípios de Jacotot, ele também se inspira, e com maior afinco, na escola metódica do português António Feliciano Castilho.

Ocupava-me eu já do desenvolvimento de um método para aprender-se a ler e escrever, e tudo mais, sem mestre e sem explicações, só pelo esforço do próprio querer. Reconheci que esse método, (que é de Jacotot), é menos prático para crianças suposto poder dar-lhes educação, mais vagarosa sim, porém mais sólida, desenvolvendo-lhes de motu próprio, todas as faculdades, não lhe deixando tomar de empréstimo ideias de outrem, fazendo-os homens, que a si unicamente devam tudo, atingindo ao desideratum da emancipação intelectual (MARTINS, 1854aMARTINS, João Vicente. Cartilha de leitura repentina, ou plágio do Methodo Castilho. Rio de Janeiro: Tipografia da Viúva Viana Junior, 1854a. , p. VI).

Vojniak (2014VOJNIAK, Fernando. O Império das primeiras letras: Uma História da Institucionalização da Cartilha de Alfabetização no Século XIX. 1.ed. Curitiba: Editora Prismas, 2014.) apresentou a preferência pelo método Castilho que Martins demonstrou ao final de sua vida, pois, “depois de uma estada na Europa, entre o final de 1851 e o início de 1853, passou a dedicar às artes gráficas, e a cartilha que elaborou para suas primeiras aplicações da técnica de zincografia no Brasil” (VOJNIAK, 2014VOJNIAK, Fernando. O Império das primeiras letras: Uma História da Institucionalização da Cartilha de Alfabetização no Século XIX. 1.ed. Curitiba: Editora Prismas, 2014., p. 247-248). Acerca dessa questão, o autor também explicitou:

E foi justamente uma cartilha de ensino de leitura que o médico lisbonense João Vicente Martins (1810-1854), radicado no Brasil a partir de 1837, escolheu para as primeiras experiências na aplicação do processo Gillot no Brasil. Trata-se da técnica de gravação criada na França em 1851 por Firmin Gillot, “primeiro a obter verdadeiro êxito numa série de gravação em zinco, isto é, “o zinco grava-se em água-forte”, de maneira que em pouco tempo os termos “gillographia”, “paniconographia” ou “gillotagem” foram substituídos pelas designação: “zincografia” (VOJNIAK, 2014VOJNIAK, Fernando. O Império das primeiras letras: Uma História da Institucionalização da Cartilha de Alfabetização no Século XIX. 1.ed. Curitiba: Editora Prismas, 2014., p. 169).

A técnica de gilotagem8 8 “A gillographia, ou paniconographia, como lhe chama Gillot, é a arte de transformar em tipo metálico (ou em relevo como os de madeira) qualquer transporte de uma gravura, estampa ou desenho, ou qualquer desenho feito já expressamente para ser transformado em tipo, como os da imprensa ordinária” (MARTINS, 1854b, p. 65). foi introduzida no Brasil por João Vicente Martins, que, segundo seu relato no periódico Illustração Brasileira, comprou na França o processo da Gillot para aplicá-lo no solo brasileiro, servindo, conforme alega, para “favorecer a instrução da classe mais necessitada” e “para facilitar às classes pobres a leitura pelo Método Castilho, de que tenho composta, e há longo tempo no prelo, uma cartilha, ou plágio” (MARTINS, 1854 b MARTINS, João Vicente. Gillographia ou paniconographia-Gillot. In: Illustração Brasileira, v. 1, n. 3, Rio de Janeiro, abril de 1854b. 1854b. <Available at: https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=758370&pasta=ano%20185&pesq=&pagfis=626 >. Accessed on: Jan. 25, 2023.
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, p. 64). Nas páginas finais da cartilha são organizadas imagens de números 0 a 9 e das letras do alfabeto, que seguiam a técnica da gilotagem.

Figura 1.
Detalhes das gilotagens da cartilha de João Vicente Martins (número 6 e letra P)

Cabe esclarecer que as estampas de letras e dos números apresentados seguem a proposta de Castilho (1853CASTILHO, António Feliciano de. Metodo Castilho para o ensino rapido e aprasivel do ler impresso, manuscrito, e numeração e do escrever. 2ª edição inteiramente refundida, aumentada, e ornada de um grande número de vinhetas. Lisboa: Imprensa Nacional, 1853. Biblioteca Nacional de Portugal. <Available at: http://purl.pt/185 >. Accessed on: April 07, 2023.
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), que associou os seus formatos a alguma imagem com remissão a uma historieta, base de sua apresentação para os alunos. Há toda uma liturgia proposta para apresentação das letras às crianças; e Martins (1854aMARTINS, João Vicente. Cartilha de leitura repentina, ou plágio do Methodo Castilho. Rio de Janeiro: Tipografia da Viúva Viana Junior, 1854a. , p. 12) a recupera, transcrevendo os encaminhamentos explicitados no método Castilho, incluindo a posição do mestre e dos estudantes, os gestos de cada um, o ritmo e a ordem com que as letras deveriam ser ensinadas.

Ao adentrarmos especificamente a parte da cartilha em que Martins (1854aMARTINS, João Vicente. Cartilha de leitura repentina, ou plágio do Methodo Castilho. Rio de Janeiro: Tipografia da Viúva Viana Junior, 1854a. ) trouxe as explicações do método Castilho, notamos que ele apresentou inicialmente o item “Mobília e alfaia necessárias para uma aula de leitura repentina”, diferente da exposição de Castilho (1853CASTILHO, António Feliciano de. Metodo Castilho para o ensino rapido e aprasivel do ler impresso, manuscrito, e numeração e do escrever. 2ª edição inteiramente refundida, aumentada, e ornada de um grande número de vinhetas. Lisboa: Imprensa Nacional, 1853. Biblioteca Nacional de Portugal. <Available at: http://purl.pt/185 >. Accessed on: April 07, 2023.
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), que iniciou sua obra com um prólogo com respostas às três perguntas, “Qual a história de seu método?” “O que é este método?” “E de quem é este método?”, seguido de explicações de aspectos como a leitura repentina e outras concepções que regiam sua proposta metodológica.

Nesse primeiro capítulo, que antecedia as lições da cartilha, Martins (1854aMARTINS, João Vicente. Cartilha de leitura repentina, ou plágio do Methodo Castilho. Rio de Janeiro: Tipografia da Viúva Viana Junior, 1854a. ) iniciou demonstrando os quinze objetos para realização de uma aula de leitura repentina com base em Castilho (1853CASTILHO, António Feliciano de. Metodo Castilho para o ensino rapido e aprasivel do ler impresso, manuscrito, e numeração e do escrever. 2ª edição inteiramente refundida, aumentada, e ornada de um grande número de vinhetas. Lisboa: Imprensa Nacional, 1853. Biblioteca Nacional de Portugal. <Available at: http://purl.pt/185 >. Accessed on: April 07, 2023.
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). Além desses, o autor acrescentou mais cinco materiais meticulosamente descritos e que iriam compor o ambiente escolar para aplicação do método, incluindo, nessa descrição, elementos da cor e da iluminação para chamar atenção das crianças. Com isso, Martins reitera o pensamento de Castilho de que “é preciso que espaços, mobiliários, impressos e outros objetos se façam presentes” para escolarização de saberes e conhecimentos (CASTRO; BOTO; MAGALHÃES, 2022CASTRO, César Augusto; BOTO, Carlota; MAGALHÃES, Justino. O espaço escolar e as “alfaias” para o ensino inicial da leitura pelo Método Português de António Feliciano de Castilho. Revista Brasileira de Alfabetização, n. 18, 2022., p. 15).

Na sequência, ao descrever sobre a disposição do pessoal numa aula de leitura repentina, João Vicente Martins copia na íntegra os tópicos apresentados no método Castilho (1853CASTILHO, António Feliciano de. Metodo Castilho para o ensino rapido e aprasivel do ler impresso, manuscrito, e numeração e do escrever. 2ª edição inteiramente refundida, aumentada, e ornada de um grande número de vinhetas. Lisboa: Imprensa Nacional, 1853. Biblioteca Nacional de Portugal. <Available at: http://purl.pt/185 >. Accessed on: April 07, 2023.
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), inserindo adendos referentes aos seus posicionamentos, que estão graficamente marcados, no decorrer no livro, ou em notas de rodapé ou dentro de parênteses. O plágio anunciado não impede que suas perspectivas sobre o tema sejam registradas, conforme menciona o próprio autor.

Muitas alterações fiz; mas sempre que me foi possível as notei, recomendando a leitura do método na parte que alterei, ou dando as razões porque tais alterações fiz, ou de outra maneira enfeitando o meu plágio para que não parecesse tão feio como soem ser os plágios que se revestem do título dos originais (MARTINS, 1854aMARTINS, João Vicente. Cartilha de leitura repentina, ou plágio do Methodo Castilho. Rio de Janeiro: Tipografia da Viúva Viana Junior, 1854a. , p. 11).

Um exemplo dessas inserções foi sua negação diante do anúncio de Castilho de que, caso houvesse discípulos dos dois sexos na mesma aula, seria necessária completa separação dos rapazes e das meninas.

Não há tão grande necessidade, como pode julgar-se à primeira vista, de ser tão rigoroso no cumprimento deste preceito; antes me parece que este preceito mais tende a despertar maus pensamentos do que a prevení-los. A rigorosa separação em que nós, portugueses e brasileiros, costumamos conservar os meninos e meninas, traz consigo o grande mal de despertar a curiosidade, que eles e elas têm naturalmente de saber a razão porque com tanta cautela os separamos (MARTINS, 1854aMARTINS, João Vicente. Cartilha de leitura repentina, ou plágio do Methodo Castilho. Rio de Janeiro: Tipografia da Viúva Viana Junior, 1854a. , p. 6).

Nesse ponto, consideramos que Martins (1854aMARTINS, João Vicente. Cartilha de leitura repentina, ou plágio do Methodo Castilho. Rio de Janeiro: Tipografia da Viúva Viana Junior, 1854a. ), ao flexibilizar que as classes poderiam ser formadas com “meninos e meninas”, avultou os princípios da coeducação, algo que naquele momento no Brasil ainda não estava legislado, tampouco era consenso entre os intelectuais e políticos. O autor, nessa perspectiva, demonstrou seus ideais acerca do processo de escolarização das crianças brasileiras, prezando muito mais pela formação intelectual e moral do que propriamente pelo caráter homogeneizador de uma organização escolar centrada nos parâmetros de gênero.

A abertura de aulas mistas no Brasil será mais bem delineada diante da novidade empreendida pela Reforma Leôncio de Carvalho, em 1879, quando se abriu a prerrogativa de meninas e meninos frequentarem as aulas juntos (BRASIL, 1879BRAZIL. Decree No. 7.247, of April 19, 1879. Available at: < Available at: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-7247-19-abril-1879-547933-publicacaooriginal-62862-pe.html >. Accessed on: June 16, 2023.
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/dec...
). Gondra e Schueler (2008GONDRA, José Gonçalves; SCHUELER, Alessandra. Educação, poder e sociedade no Império brasileiro. São Paulo: Cortez, 2008., p. 204) nos lembram que durante o Império brasileiro houve a publicação e divulgação de “manuais de civilidade e livros de educação moral e difusão de comportamento para meninas”, cuja principal finalidade era de produzir um “modelo ideal de mulher, predisposta a exercer a gestão da vida familiar e a função primordial de mãe de família e educadora de filho”. Logo, embora Martins (1854a) apregoe seus ideários pelas aulas mistas, especifica que há práticas que são mais do universo feminino, como, por exemplo, no outro comentário que ainda fez no item acerca da “Disposição do pessoal de uma aula de leitura repentina”. Ali, o autor julga que sempre se dará a autoridade às meninas para ocupar o cargo de “discípulo-vigia” - aquele estudante que, sentado do meio do banco, iria “vigiar os seus vizinhos da direita e da esquerda” (MARTINS, 1854aMARTINS, João Vicente. Cartilha de leitura repentina, ou plágio do Methodo Castilho. Rio de Janeiro: Tipografia da Viúva Viana Junior, 1854a. , p. 7).

Outro aspecto em que Martins (1854a) se afasta de Castilho (1853) é a explicitação do tempo e modo das lições, em que registrou suas preferências por aulas de três horas, em contraposição a Castilho, que vislumbrava duas horas de lições. Acerca da ordem do ensino das letras do alfabeto, Martins (1854aMARTINS, João Vicente. Cartilha de leitura repentina, ou plágio do Methodo Castilho. Rio de Janeiro: Tipografia da Viúva Viana Junior, 1854a. ) propõe uma nova ordenação, utilizando-a para apresentar as lições de sua cartilha. Diferente de Castilho (1853), ele inicia pelas vogais A, I, U, O, E, Y, e depois as consoantes P, B, M, F, V, S, Z, X, J, G, Q, K, C, Ç, H (PH, CH, NH, LH), L, N, D, T, R. Enfim, em vários locais da cartilha onde ele se afasta da proposta original do método Castilho, deixa registrada a liberdade concedida aos professores para escolher e colocar em prática as metodologias estudadas.

Fica a arbítrio do professor escolher e pôr em prática todos os meios que imaginar para mais facilmente conseguir o único fim a que nos propomos, que é fazer com que os meninos, o mais depressa o mais agradavelmente que for possível, aprendam a ler e a escrever, leiam e escrevam o melhor possível, letras e algarismos (MARTINS, 1854aMARTINS, João Vicente. Cartilha de leitura repentina, ou plágio do Methodo Castilho. Rio de Janeiro: Tipografia da Viúva Viana Junior, 1854a. , p. 10) [...] e póde tanto começar-se o estudo pela ordem em que elas estão na oração dominical, como no alfabeto de Castilho ou desta cartilha (MARTINS, 1854 a CASTILHO, António Feliciano de. Felicidade pela instrução. Lisboa: Tipografia da Academia Real das Ciências, 1854., p. 14).

Tudo isso sugere que o plágio empreendido por Martins (1854a) constituiu-se como uma perspectiva de apropriação e reinvenção da proposta metodológica de Castilho (1853), demonstrando também seus ideários para o ensino da leitura e da escrita no Brasil, no século XIX. Não apenas transcreveu a cartilha, como suprimiu partes, opinou e propôs novas aplicações, sempre oferecendo ao mestre possibilidades de uso.

A cartilha de Martins propõe a conciliação entre duas perspectivas antagônicas, a de Castilho e Jacotot, especialmente nas relações entre o mestre de primeiras letras e seu discípulo, o que se opõe de forma frontal à escola metódica arquitetonicamente pensada por Castilho. Essa escola de Castilho, como se sabe, tinha o professor com um perfil hermeticamente projetado, com indicação de atividades, explicitando o material escolar, os tempos e espaços, com toda uma ritualização de suas práticas, para cumprir “a tarefa de liderança, à qual ele estaria inevitavelmente vinculado, na direção firme daquele corpo coletivo e disciplinado constituído por seu grupo-classe” (BOTO, 2012BOTO, Carlota. A escola primária como rito de passagem: ler, escrever, contar e se comportar. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012., p. 66).

Nesse ponto, a liberdade apresentada por Martins e que está muito impregnada da concepção jacotista contrasta com a valorização da autoridade no trato com os professores por Castilho, que sugeria a fiscalização por parte dos inspetores e uma vigilância policial constante no cotidiano escolar.

Castilho teceu críticas ao Ensino Universal de Jacotot que, para ele, era recheado de aforismos e carecedor de explicações pontuais que envolviam o cotidiano escolar e a materialização do método proposto (ALBUQUERQUE, 2019ALBUQUERQUE, Suzana Lopes. Análise de impressos no Brasil Império a circulação do Ensino Universal de Jacotot na pedagogia e homeopatia. History of Education in Latin America - HistELA, v. 2, p. 1-12, 2019.). Sobre essa questão,

Se o português Castilho vislumbrava uma escola seriada, ritmada, com ensino simultâneo, arquitetonicamente projetada e regida por um professor, para o francês Jacotot, a destruição de toda essa estrutura e a presença de um mestre ignorante, porém emancipado e com a capacidade de emancipar seu aluno, salvaria o processo educativo de todos os métodos embrutecedores desenvolvidos em seu tempo histórico (BOTO; ALBUQUERQUE, 2018BOTO, Carlota; ALBUQUERQUE, Suzana Lopes. Entre idas e vindas: vicissitudes do método Castilho no Brasil do século XIX. Hist. Educ. , Porto Alegre, v. 22, n. 56, p.16-37, 2018., p. 18).

No que tange à escolarização de crianças, Martins (1854a) reiterou sobre o papel que um método tem para ensinar a ler e escrever, mas também defendeu que os preceitos religiosos façam parte da rotina diária de uma aula, o que era organizado lição a lição com a menção a orações, passagens bíblicas, histórias de cunho religioso e moralizante etc. Nesse ponto, o autor explicitou uma rotina de aula, que, diferente do método Castilho, menciona em cada uma das lições cânticos religiosos e orações dominicais, que deveriam ser proferidos para principiá-las e concluí-las. Castilho (1853) chega a recomendar músicas e invocações a Deus e ao trabalho em seu método, porém Martins (1854a, p. V) especificou que projetava sua cartilha para “aprender-se a ler brincando, louvando a Deus”.

Segundo Ferreira (1977FERREIRA, Orlando da Costa. Imagem e Letra: Introdução à bibliografia brasileira: a imagem gravada. São Paulo: Melhoramentos, Ed. da Universidade de São Paulo, Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1977.), Martins faleceu no mesmo ano do lançamento da cartilha, em 1854, “provavelmente atingido pela terrível epidemia de cólera-morbo que literalmente dizimou a cidade, nem bem sua cartilha chegava às mãos do Rio” (FERREIRA, 1977FERREIRA, Orlando da Costa. Imagem e Letra: Introdução à bibliografia brasileira: a imagem gravada. São Paulo: Melhoramentos, Ed. da Universidade de São Paulo, Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1977., p. 116). Seu falecimento antecedeu um ano a vinda de Castilho ao Brasil e, portanto, os dois educadores não se encontraram em solo brasileiro.

CONCLUSÃO

Uma história como essa tem por mérito, em primeiro lugar, a recuperação de aspectos do debate pedagógico, a partir de uma chave histórica, sobre o ensino da leitura e da escrita no Brasil. Essa é uma primeira dimensão fundamental. A descoberta de quais foram as polêmicas e os projetos engendrados para essa primeira escolarização do povo é fundamental para compreender como se deram em nosso país as querelas a propósito da tão seminal questão sobre alfabetização.

Além disso, a história dessa cartilha repõe, em outra chave, a própria concepção de plágio, posto que o autor não tem qualquer prurido em apresentar como plágio sua proposta de ensino. Por seu turno, como se viu, tratava-se de uma releitura muito específica da proposta de Castilho, havendo, então, todo um movimento de apropriação e reinvenção daquilo que se supunha plagiar.

Finalmente uma história como essa nos transporta à realidade contemporânea e nos leva a indagar onde foram parar as preocupações com os procedimentos mais recomendados para ensinar as crianças do Brasil a ler e a escrever. Cabe indagar se o abandono da discussão sobre os métodos de alfabetização não foi um equívoco de nosso atual debate educacional. Não seria hora de retomarmos a discussão sobre as maneiras pelas quais ensinamos ou nos propomos a ensinar as crianças a ler e a escrever? Como diria, entretanto, Monteiro Lobato, “essa é uma outra história, que fica para uma outra vez”.

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SOURCES

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  • 7
    Esse periódico está digitalizado e disponibilizado no site da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
  • 8
    “A gillographia, ou paniconographia, como lhe chama Gillot, é a arte de transformar em tipo metálico (ou em relevo como os de madeira) qualquer transporte de uma gravura, estampa ou desenho, ou qualquer desenho feito já expressamente para ser transformado em tipo, como os da imprensa ordinária” (MARTINS, 1854bMARTINS, João Vicente. Gillographia ou paniconographia-Gillot. In: Illustração Brasileira, v. 1, n. 3, Rio de Janeiro, abril de 1854b. 1854b. <Available at: https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=758370&pasta=ano%20185&pesq=&pagfis=626 >. Accessed on: Jan. 25, 2023.
    https://memoria.bn.br/DocReader/docreade...
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Editora responsável:

Terciane Ângela Luchese

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    28 Jun 2023
  • Aceito
    04 Jan 2024
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