Resumo
Este artigo analisa como o tema Educação aparece no I Congresso Sul-Americano da Mulher em Defesa da Democracia (CAMDE), ocorrido em 1967, no Rio de Janeiro. Pretendeu-se verificar de que modo as organizações femininas de direita, no Brasil, relacionaram-se com a agenda da ditadura civil-militar brasileira e como, a partir da divulgação pela imprensa escrita dos debates ocorridos no evento, as ideias, defendidas pelo grupo de mulheres, sobre os rumos da educação nacional se entrelaçaram ao contexto político. Para tal, foram analisadas noticias veiculadas em jornais da época e também documentos produzidos pela CAMDE sobre o evento. Como resultado, percebe-se que muitos dos tópicos defendidos pelas mulheres e pelas associações que representavam estavam em consonância com a política educacional conduzida pela ditadura.
Palavras-chave: Direita; mulheres; educação; ditadura civil-militar
Abstract
This article analyzes how the theme Education was debated in the 1st South American Congress of Women in Defense of Democracy (CAMDE), which took place in April 1967 in the city of Rio de Janeiro. In this work, it was intended to verify on how the right-wing women organizations of Brazil related to the agenda of the brazilian civil-military dictatorship. Based on the analysis of the written disclosure of the debates that took place at the event by the press, are examined the ideas defended by the women's group about the directions that national education intermingled with the political context. For this, news published in newspapers of the time and also documents produced by CAMDE about the event were analyzed. As a result, it can be seen that many of the topics defended by the women and the associations they represented were in line with the educational policy conducted by the dictatorship.
Keywords: Political Right; women; education; civil-military dictatorship
Resumen
Este artículo analiza cómo aparece el tema Educación en el I Congreso Sudamericano de la Mujer en Defensa de la Democracia (CAMDE), realizado en 1967, en Rio de Janeiro. Se ha pretendido verificar cómo las organizaciones femeninas de derecha, en Brasil, se relacionaban con la agenda de la dictadura cívico-militar brasileña y cómo, desde la divulgación en la prensa escrita de los debates que formaron parte del evento, las ideas defendidas por el grupo de mujeres sobre las direcciones de la educación nacional han entrelazado con el contexto político. Para ello se analizaron noticias publicadas en diarios de la época y también documentos producidos por CAMDE sobre el evento. Como resultado, se puede apreciar que muchos de los temas defendidos por las mujeres y las asociaciones a las que representaban estaban en consonancia con la política educativa impulsada por la dictadura.
Palabras clave: Derecha; mujeres; educación; dictadura cívico-militar.
Résumé
L’article analyse la forme dont le thème Éducation apparaît dans le I Congrès Sud-Américain de la Femme en Défense de la Démocratie (CAMDE), qui a eu lieu en 1967 à Rio de Janeiro. Nous voulons vérifier de quelle façon les organisations féminines de droite au Brésil se sont relationnées au programme de la dictature civile-militaire brésilienne et comment, à partir de la divulgation par la presse écrite des débats tenus à l’évènement, les idées soutenues par le groupe de femmes sur les cours que l’éducation nationale s’entremelent au cadre politique. Pour cela, les nouvelles publiées dans les journaux de l'époque ainsi que les documents produits par la CAMDE sur l'événement ont été analysés. De ce fait, on constate que nombre des thèmes défendus par les femmes et les associations qu'elles représentent s'inscrivaient dans la ligne de la politique éducative menée par la dictature.
Mots-clés: Droites; femmes; education; dictature civile-militaire
Introdução
O presente artigo aborda como o tema da Educação foi tratado no I Congresso Sul-Americano da Mulher em Defesa da Democracia, ocorrido na cidade do Rio de Janeiro em 1967, a partir da idealização de uma organização feminina de direita: a Campanha da Mulher pela Democracia, CAMDE. A análise de como o tema em destaque foi tratado no evento valeu-se de bibliografia produzida sobre o assunto e dos documentos resultantes do evento, tais como Anais e, em especial, notícias publicadas na imprensa escrita. Com isso, pretende-se dar visibilidade ao pensamento feminino conservador, vigente nos anos 1960, e como este se relacionava com os principais problemas nacionais do período, bem como as articulações existentes entre grupos de direita organizados por mulheres.
Se antes assistíamos quase que exclusivamente as ciências sociais, sobretudo a ciência política, analisando os segmentos sociais mais conservadores, hoje podemos dizer que a historiografia dedicou espaço significativo entre ensaios e/ou outras pesquisas de maior fôlego1. Em síntese, grande parte dos analistas buscou definições gerais sobre as direitas no mundo contemporâneo, bem como pretendeu situá-las historicamente, afinal elas nunca deixaram de existir. Acreditamos que o termo “direitas”, no plural, é o mais adequado tendo em vista a heterogeneidade de grupos e sujeitos situados à direita do espectro político. Sobre a categoria propriamente, acreditamos como Bobbio (2011), que seu entendimento se desenvolve de forma relacional. Ou seja, a própria luta contra a esquerda ajuda, em certa medida, a estabelecer os contornos das direitas, pois é no “combate” contra o “inimigo” que esse segmento se institucionaliza dentro campo político. Bobbio (2011, p. 51) ainda defende que as direitas, diferentemente das esquerdas, defendem que as desigualdades são naturais e, portanto, não elimináveis.
Dois outros estudiosos, François Sirinelli e Emmanuel Terray, discutiram a categoria direitas e trouxeram elementos importantes para sua compreensão. Para Sirinelli (1992), as direitas se caracterizam ainda pela sua inclinação para a permanência e a continuidade, seu apego às tradições e às convenções estabelecidas, pela persistência de estruturas, comunidades, hábitos e preconceitos. O antropólogo Emmanuel Terray (2012) persistindo nas considerações de Sirinelli e, aprofundando a análise, concluiu que nas ações e no pensamento das direitas o que é dado, o que existe, é fruto da providência divina, ou é resultado de tradições, desde sempre, e, portanto, deve ser aceito como tal.
As direitas latino-americanas empenhadas na luta anticomunista mantiveram-se organizadas desde o início do século XX. Com múltiplas facetas e agendas, as direitas entendiam que a real possibilidade de avanço político das esquerdas, que, por sua vez, apresentavam-se sob variados aspectos - anarquistas, anarcossindicalistas, socialistas e comunistas -, a depender dos contextos nacionais latino-americanos, era real e mobilizava setores conservadores das sociedades na luta contra o “comunismo”, os “vermelhos”, como popularmente ficaram reconhecidos.2 Com advento da Revolução Cubana de 1959, no seio da guerra fria, e o posterior alinhamento caribenho à órbita soviética, a partir de 1961, as direitas latino-americanas entenderam que era o momento de se organizar e frear as investidas daqueles que eles reconheciam como “comunistas”. O alarmismo, o sentimento de medo da “cubanização” da América Latina, empreendido pelos conservadores, fomentou, em grande medida, a formação de grupos, associações, partidos etc., com características marcadamente anticomunistas em praticamente todo o continente americano.
Exemplo dessa luta permanente foram as mulheres de direita que estavam inseridas nos mais diversos grupos femininos espalhados pelo Brasil. Podemos dizer que as mulheres de direita que analisaremos apresentavam-se no espaço público como mães, esposas e donas de casa, mulheres do espaço privado, voltadas para atividades “naturais” de feminino. Contudo, diferentemente de outros segmentos das direitas, para quem o espaço público era reservado exclusivamente aos homens, boa parte dessas mulheres compareceu ao espaço público com uma condição: para defenderem o espaço privado. Acreditavam que o comunismo não só estava presente no Brasil, com colocava em perigo a religião, a pátria e a família. Portanto, compareceram às ruas como mães e cristãs contra o comunismo que, segundo afirmavam, desagregaria suas famílias e transformaria seus filhos em soldados apátridas e ateus em nome do “bolchevismo”.
No entanto, muitas dessas mulheres tornaram-se profissionais, atuando principalmente na área educacional, fora do espaço privado3. Eram professoras, conhecidas por “normalistas”, que ensinavam as primeiras letras e números aos jovens brasileiros daquele período. Porém, a saída de casa para atuar em outros ambientes, como profissionais, não significava o rompimento com as outras funções que lhes competiam como prioritárias. Isto é, deveriam conciliar as atividades profissionais com aquelas do mundo privado, do lar, sem deixar que a primeira resultasse o descaso com a segunda. Aliás, suas atividades laborais externas, profissionais, ao ameaçarem aquelas tidas como “naturais” - atividades domésticas, educação dos filhos e cuidados com o marido - deveriam ser abandonadas. Não se buscava aqui a restauração de uma antiga ordem hierárquica, como as mulheres conservadoras do início do século XX, por exemplo, mas a manutenção desta ordem que se encontrava ameaçada.
Ligadas por laços de parentesco com militares, empresários e políticos, tais mulheres ficaram conhecidas pelo forte apelo anticomunista e pela atuação mobilizadora que desembocou na deposição de João Goulart, em março de 1964. Elas se organizavam principalmente nos centros urbanos do país e, muito embora fossem provenientes, em sua maior parte, de grupos medianos e altos da sociedade brasileira, inseriram-se nas periferias das cidades.4
A trajetória desses grupos teve início em fevereiro de 1962, com o surgimento da União Cívica Feminina (UCF), em São Paulo. A entidade, durante os anos de 1960, promoveu uma série de atividades ligadas ao espaço católico, alarmando a população sobre os “males” que o governo João Goulart e os comunistas representavam. Das inúmeras manifestações públicas realizadas pela UCF, a principal delas foi a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em 19 de março de 1964, em São Paulo5. As paulistas da UCF tiveram papel importante na fundação de núcleos em outras cidades de São Paulo (Santos, Santo André, São Vicente, São Carlos e Araraquara) e em outros estados (Paraná, Santa Catarina, Paraíba, Bahia e Goiás) e na constituição de outras organizações, como a Ação Democrática Feminina Gaúcha (ADFG), em Porto Alegre, o Movimento Democrático Feminino, em Fortaleza e a Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE), em Florianópolis.
Meses após a constituição da UCF surgiu, em junho de 1962, a Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE), no Rio de Janeiro. O movimento carioca logo se espalhou para outras cidades do estado e do país. A CAMDE organizou uma série de atividades com objetivo de alarmar a população sobre os perigos do comunismo e, consequentemente, do governo Jango que, segundo entendiam, estava à mercê dos comunistas. A principal manifestação organizada pela CAMDE e que contou com o apoio de outras entidades foi a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em 2 de abril de 1964, em apoio ao recém-inaugurado regime, ocorrida na cidade do Rio de Janeiro. A trajetória da CAMDE ultrapassou os anos de 1960, indo até o ano de 1974. Como afirmou Cordeiro (2008, p.19); nesse período, as mulheres cariocas militaram sempre em defesa da família e da Igreja, compartilhando muitos dos seus valores com as propostas de saneamento social e expurgo da ameaça comunista, frequentemente, encontradas nos discursos militares.
Outra organização feminina que surgiu naquele mesmo contexto foi a Liga da Mulher Democrata (LIMDE), de Belo Horizonte. As mineiras, muito embora tenham aparecido publicamente somente em janeiro de 1964, já haviam participado anteriormente de campanhas contrárias ao governo Goulart. Conforme Starling (1986), a LIMDE ficou marcada por diversas ações anticomunistas em Minas Gerais, sobretudo, as de rua, como comícios, caminhadas e protestos contra o que elas entendiam como “infiltração comunista” em curso no Brasil.
A região Nordeste brasileira não ficou de fora das organizações femininas de direita. Da mesma maneira que a LIMDE, as pernambucanas atuaram, em um primeiro momento, de forma discreta, principalmente em palestras, campanhas de alistamento eleitoral e em atividades contrárias às manifestações de trabalhadores rurais. Segundo Simões (1985), orientadas pela CAMDE, foi somente nas vésperas do golpe, em 9 de março de 1964, que se formou a Cruzada Democrática Feminina de Pernambuco (CDFP).
Mais ao sul, na cidade de Porto Alegre, sob a orientação da UCF-SP, foi lançada, em 30 de março de 1964, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), a Ação Democrática Feminina Gaúcha (ADFG). Da mesma forma que a LIMDE e a CDFP, as gaúchas estavam atuando muito antes de sua fundação, sobretudo, em escolas, promovendo palestras e cursos com vistas a discutir os “problemas nacionais”. De acordo com Chaves (2017), a ADFG defendia fortemente a “Revolução de 1964” e os “Governos Revolucionários”, atuando, mormente, no âmbito do assistencialismo com vistas a eliminar a “infiltração comunista” que entendiam que estaria a tomar o país.
Sabe-se da continuidade de atividades desses diversos grupos após o golpe de 31 de março de 1964, quando entendiam que seus papéis eram de colaborar com a ditadura e continuar a formar redes políticas com outras mulheres do continente americano. Cabe notar que as paulistanas da UCF, a convite do governo dos Estados Unidos (EUA), acompanharam as eleições de Lyndon Johnson em 1964. A comitiva viajou aos EUA com objetivos de “exportar” a experiência da UCF e acompanhar a participação das mulheres norte-americanas no processo eleitoral (SESTINI, 2008, p.37). Como as eleições ocorreram em novembro de 1964, a comitiva formada pela UCF, CAMDE e LIMDE procurava demonstrar às norte-americanas a maneira pela qual as brasileiras “defenderam a democracia” contra a tirania comunista que se aproximava. Na ocasião, participaram da preparação de debates de televisão e outras atividades com vistas a preparar as mulheres norte-americanas. Ainda nos EUA, a UCF receberia o convite para ir à Venezuela participar de uma série de programas de rádio. Segundo Sestini (2008, p.37), foi na Venezuela que ocorreu o encontro entre brasileiras e chilenas, essas últimas interessadas em “aprender” com as brasileiras. Conforme apontou Power (2002, p. 210), no Chile, anos mais tarde, precisamente no governo de Salvador Allende, as mulheres de direita chilenas organizaram as “Marchas das Panelas Vazias”, inspiradas no caso brasileiro.
Como se pôde verificar, as redes políticas estabelecidas pelas organizações femininas, após o golpe de 1964, procuraram espalhar-se pelo continente americano. Era preciso continuar a luta contra os “vermelhos”, os “comunistas”, aqueles que atacavam a família, a religião e a pátria.
O Congresso Sul-Americano em Defesa da Democracia
Três anos após golpe civil-militar de 1964, em plena ditadura civil-militar, as entidades femininas, precisamente a CAMDE, a UCF, a LIMDE, a CDFP e a ADFG, sob a liderança da primeira, organizaram o I Congresso Sul-Americano da Mulher em Defesa da Democracia. O evento ocorreu nas dependências do Hotel Glória, na cidade do Rio de Janeiro, entre 16 e 22 de abril de 1967. Segundo suas organizadoras, o congresso nasceu como um movimento de reação à I Conferência Tricontinental de Havana, Cuba, ocorrida em janeiro de 1966, e tinha como objetivo principal a conscientização cívica e política da mulher e a “[...] defesa dos princípios sagrados do lar, da família, da nação e da fé divina” (MACHADO, 2006, p. 189).6
As fontes utilizadas na pesquisa que embasou este artigo fazem parte do fundo documental Campanha da Mulher pela Democracia localizado no Arquivo Nacional. As fontes estão digitalizadas e é possível acessá-las remotamente, facilitando sobremaneira o trabalho dos pesquisadores. Dos documentos disponíveis, optou-se, pela profusão de informações ali contidas, pela análise dos anais sobre o evento e, em grande parte, pelas fontes da imprensa escrita.
Cumpre registrar que o exame do material documental escolhido para a pesquisa foi realizado de forma crítica, pois entendemos que tanto os anais do Congresso, como as matérias publicadas nos jornais da época, traduzem uma certa visão dos eventos e dum determinado pensamento vigente na época. Em especial sobre as fontes produzidas pela imprensa, atualmente, na historiografia, há um entendimento de que:
os diversos materiais de imprensa [...] não existem para que os historiadores e cientistas sociais façam pesquisa. Transformar um jornal ou revista em fonte histórica é uma operação de escolha e seleção feita pelo historiador e que supõe seu tratamento teórico e metodológico (CRUZ; PEIXOTO, 2007, p. 258).
Assim, com a precaução devida que o pesquisador deve ter com qualquer fonte, procuramos compreender as ideias propostas no Congresso e de que forma elas dialogam com um projeto de sociedade defendido pelas mulheres envolvidas, especialmente em relação à educação nacional.
Em grande medida, as brasileiras, em sintonia com a ditadura, procuravam organizar a luta anticomunista na América Latina, entendendo que as “democracias” estavam em perigo em face dos avanços dos “vermelhos”. Esses, seguidores dos ideais socialistas ou comunistas, segundo acreditavam, ao destruir as nações, precisavam ser eliminados. Um ano antes da realização do Congresso, a CAMDE, afirmava indignadamente que era necessária uma reação mais enérgica aos comunistas.
A Campanha da Mulher pela Democracia, CAMDE constata que, políticos inescrupulosos e forças estranhas ao nosso país exploram, neste momento, o excesso de inquietação natural da juventude, na mais triste e revoltante aliança, a fim de atingir, através da falsidade e do engodo, diabólicos propósitos. Sente-se, no desvario destes inimigos da pátria, a sede de uma vítima: a vida de um jovem. Diante deste ultraje, ergue-se a mulher brasileira em defesa de seus filhos e reclama com veemência que o governo mostre ao povo, clara e inequivocamente, a traição existente em tantas manobras, sem dúvidas comandadas por resoluções da Conferência Tricontinental de Havana. Que faça público e patente as ligações desta traição com elementos desmascarados nos IPMs. Quanto aos jovens, se os seus impulsos os levam a reivindicações, sejam estas justas e objetivas, tais como a melhoria de suas escolas e a Reforma Universitária, tão almejadas e urgentes. Nunca permitam sejam a sua energia e idealismo desviados para criar clima de tensão e desordem. Empreguem-nos antes contra as maquinações daqueles que jamais os ouviriam em caso de vitória do regime pelo qual lutam às escondidas (JORNAL DO BRASIL, 24/05/1966, s/p).
Diante das estreitas relações estabelecidas com a ditadura, as entidades femininas conseguiram organizar um congresso internacional com ampla repercussão na imprensa da época. Os periódicos divulgavam o dia a dia das entidades organizadoras, os preparativos e a programação detalhada do evento, demonstrando alinhamento político e ideológico entre essas mulheres e os grandes grupos da imprensa brasileira nesses primeiros anos da ditadura. Vale lembrar que tais “amizades” datavam de anos anteriores, pois, conforme apontou Cordeiro (2017, p.15), em 1964 Amélia Molina Bastos, diretora e fundadoras da CAMDE, “[...] foi escolhida pelo jornal O Globo como uma das dez personalidades do ano. Em 1965, o mesmo jornal a escolhia como 'mãe do ano'”.
Em 30/3/1967, a CAMDE lançou o programa do congresso:
Com um coquetel a CAMDE lançou ontem o programa do I Congresso Sul-Americano da Mulher em Defesa da Democracia, a ser realizado de 16 a 22 de abril, no Hotel Glória, com a participação de representante das entidades cívica nacionais e de toda a América do Sul. Na ocasião, D. Amélia Molina Bastos, presidente da entidade, explicou as finalidades e agradeceu a valiosa colaboração que vem recebendo da imprensa. Foram também apresentados os trabalhos executados pelos diversos núcleos assistenciais da CAMDE, bem como suas atividades no ano de 1966, com a distribuição de 377 665 quilos de alimentos, do Setor "Alimentos Pela Paz", na Guanabara [...].
Promovido pela CAMDE, o Congresso terá como presidente de honra o Presidente Costa e Silva, que participará da abertura, no dia 16. Será dirigido por uma Mesa composta de quatro membros: presidente, vice-presidente e duas secretárias - que será eleita em sessão preparatória dirigida pela presidente da CAMDE, auxiliada pela comissão executiva (O GLOBO, 31/03/1967, s/p).
As reportagens sobre o Congresso apresentavam com grande entusiasmo os patrocinadores do evento, como o Hotel Glória, a companhia aérea Braniff, o Bateau Mouche e o Joquei Clube Brasileiro. O Hotel Glória sediou o evento em suas dependências sem custo algum para as organizadoras e a Braniff custeou as passagens áreas das delegações.
A comissão organizadora do congresso ficou definida por: Amélia Molina Bastos (Presidente), Lúcia Peixoto Jobim (Secretária Executiva) e Mavy D’Aché Assunpção Harmon (Diretora de Planejamento), antigas sócias e fundadoras da CAMDE. O evento contou com a presença das demais organizações femininas brasileiras, como consta abaixo, além das 13 filiais da CAMDE:
Ação Democrática Feminina Gaúcha, Cruzada da Mulher Democrática, Movimento Cívico da Mulher Cearense, Cruzada Democrática Feminina de Pernambuco, União Cívica Feminina, Liga da Mulher Democrática, Leste Um, Movimento Brasileiro de Correspondência, Rearmamento Moral, Associação Cristã Feminina, Movimento de Arregimentação Feminina a e Liga Feminina Israelita do Brasil (O GLOBO, 11/04/1967, s/p).
Além das brasileiras, organizações femininas latino-americanas de oito países participaram do encontro. Eram participantes da Venezuela, Equador, Colômbia, Chile, Bolívia, Argentina, Uruguai, Peru, Paraguai e República Dominicana, que representavam associações femininas de características conservadoras semelhantes às brasileiras. A presença dessas mulheres, em grande parte, sul-americanas, demonstrava a tentativa, por parte das organizações brasileiras, da constituição de redes políticas femininas de direita pelo continente. O evento expressava os diálogos entre essas mulheres, provavelmente desde o golpe de 1964. Portanto, o congresso serviria como amplo espaço para pautar uma agenda conservadora feminina anticomunista, com linhas de ação por parte dos grupos que estiveram presentes.
Nove organizações estrangeiras foram representadas no encontro: Consejo de Mujeres de Ia República Argentina, Confederación Nacional de Instituciones Femininas, Acción Mujeres de Chile, Unión de Ciudadanas de Colômbia, Comitê Central de Ayuda Social, Consejo de Mujeres de Peru, Ateneo de Montevidéu, Acción de MujeresVenezoalanas, Asociación de Mujeres Democratas da República Dominicana.
Das organizações, chama atenção a participação da venezuelana Magdalena Pícon Rodrigues, representante da Acción de Mujeres Venezoalanas e eleita vice-presidente do congresso, a embaixatriz do Uruguai e os embaixadores da República Dominicana, Peru, Colômbia, Paraguai e México. Compareceu à abertura do congresso o presidente da Associação Comercial do Rio de Janeiro, Carlos Antônio Osório, representantes do governador Negrão de Lima.
O temário do congresso estava dividido em quatro grupos. O Grupo I - Valores morais e espirituais da família- compreendia “[...] o valor da comunicação entre gerações, processos para a unificação da família e integração da família na comunidade” (O GLOBO, 11/04/1967, s/p). Como se pôde observar, um dos grandes desafios dos grupos femininos, ainda durante a ditadura, era a vigília anticomunista. Para esses grupos, o comunismo, as esquerdas, significavam o esfacelamento da família, sua desintegração. Elas entendiam que o comunismo arruinava as relações entre pais e filhos, pois os jovens serviriam apenas ao Estado, como soldados em uma constante guerra (MOTTA, 2002). Portanto, era iminente a organização de frentes de combate nas quais as mulheres latino-americanas, como mães, esposas e donas de casa, seriam fundamentais.
O Grupo II - Orientação e preparação para a cidadania na escola; conscientização e politização do homem moderno, características da democracia representativa - apontava, assim como no grupo III, para a preocupação das mulheres conservadoras com a educação. Elas defendiam uma educação cívica, patriótica, sem as orientações “ideológicas esquerdizantes” que tomavam os espaços escolares e universitários. Para tanto, tais iniciativas anticomunistas deveriam ultrapassar os espaços escolares, conquistando os meios de comunicação. Aliadas à ditadura, elas preconizavam a defesa da educação moral e cívica “[...] alicerçada nos princípios dos valores patriarcais difundidos historicamente pela família e pela Igreja Católica tradicional, imprescindível à conservação da sociedade em questão [...]” (MACHADO, 2006, p. 193). Nesse sentido, fica clara também a defesa da religião, ou melhor, do ensino religioso como disciplinador e fundamental para o que elas consideravam como “consciência cívica”.
De nada servirá instruir os escolares sobre seus direitos e deveres para com a pátria, sem inspirar-lhes o sentimento de pátria, e só uma formação religiosa, na sua expressão viva e humana, é que cria duradouro e fecundo esse sentimento. Sem religião, o estudante aceitará as monstruosas doutrinas que rejeitam a ideia de pátria, ou a exacerbam até o ponto de pretender, para ela, a supremacia sobre todos os povos (CAMDE), 1967. p. 58).
O Grupo III - Guerra psicológica: o comportamento do estudante no mundo atual; a responsabilidade do intelectual na juventude; a importância e a influência dos grupos femininos - demonstrava preocupação com o comportamento da juventude em diversos países latino-americanos, buscando caminhos para conter a “subversão”. Na verdade, as organizadoras entendiam a urgência em se implantar um ensino em conformidade com um ambiente repressivo, como se verificava no Brasil. Para tanto, elencaram algumas recomendações que consideraram fundamentais:
Urgência em formar mentalidade de Pátria nos meios Civis, por meio da Educação Cívica; investir na formação do magistério, para qualquer nível, convicto da responsabilidade de sua missão; tornar obrigatório o ensino de Educação Moral e Cívica em todos os níveis; garantir a obrigatoriedade de que todos os estabelecimentos de ensino público e particulares, de todos os níveis, de manterem hasteada a Bandeira Nacional das 8 às 18 horas; fazer o congraçamento da juventude civil com a juventude militar; manter a igualdade de responsabilidade do civil e do militar quanto à segurança nacional e quanto à defesa do nosso patrimônio; incluir nos cursos superiores a cadeira de Ética Profissional ((CAMDE), 1967, p. 72).
Muitos dos pontos supra elencados traduziam o medo que parcela da sociedade sentia diante das inquietações juvenis dos anos de 1960. Seja na política e/ou nos costumes, grande parte dos jovens dessa época rompiam antigas tradições e invertiam papéis que até então eram inimagináveis a essas mulheres. A rebeldia juvenil, provavelmente, constituía-se em ameaça a esses setores conservadores das sociedades latino-americanas, pois contestavam ideias e práticas consideradas intocadas. Por conseguinte, uma formação cívica e religiosa, de adoração aos símbolos nacionais e religiosos católicos, era uma saída encontrada por esses grupos para livrar os jovens da propagação do marxismo, do comunismo, na América Latina:
O marxismo pode oferecer a um mundo atônito uma filosofia fácil, materialista e englobadora de fenômenos; um poder de controle forte, que exerce certo fascínio sobre as massas, uma coligação no ódio, objetos para a revolta e uma nova religião ((CAMDE), 1967, p. 77).
O Grupo IV - O papel do empresário no rumo social da coletividade: a liderança operária autêntica através de sindicatos livres ao fortalecimento da classe média - procurava novamente lançar mão da pregação anticomunista entre os trabalhadores urbanos. Certamente, as crescentes mobilizações de trabalhadores organizados em sindicatos, nos anos de 1960, foram entendidas como a clara “infiltração comunista” nesses organismos que, manipulando seus filiados, promoveriam greves, manifestações e outros atos contrários à “democracia”. Dessa forma, elas entendiam que era preciso sindicatos “livres” das ideologias de esquerda.
O congresso demonstrou a preocupação das organizadoras na condução da luta anticomunista na América Latina. O lema Deus, Pátria e Família, amplamente defendido pelos grupos de direita nos anos de 1960, precisava avançar sobre as sociedades do continente, sobretudo, a partir da educação cívica, como pôde ser observado. Portanto, era fundamental a construção de uma rede política feminina de direita com uma agenda pautada em ações que neutralizariam a “ameaça comunista”. A presença das “hermanas” latino-americanas no evento sinalizava, em certa medida, tratativas de grupos conservadores dispostos a golpear regimes democraticamente eleitos.
No que se refere às brasileiras, organizadoras do congresso, é preciso pontuar que, ao elaborar o evento, pretendiam “homenagear” a ditadura e ressaltar a importância dos grupos femininos em 1964. Diziam-se defensoras da “democracia”, do “regime democrático” instalado em 1964, em plena cassação de mandatos e repressão aos movimentos sociais. Isto é, assim como a ditadura brasileira, as organizadoras do congresso procuravam utilizar a expressão “democracia” para defender os atos arbitrários da “ditadura” como forma de coibir o avanço comunista; e uma das grandes “armas” para se atingir esse objetivo foi a educação.
A CAMDE e a Educação
A democracia defendida pelas mulheres que integravam a CAMDE, e pode-se inferir que pelas demais organizações de mulheres conservadoras também, incluía um discurso sobre os rumos que a educação nacional deveria tomar. O debate sobre o tema fora incluso nas discussões suscitadas nos Grupos II e III do congresso, já apontado anteriormente.
A ideia que essas mulheres tinham sobre a educação vinculava-se aos seus preceitos conservadores sobre a sociedade brasileira e, certamente, refletia o que uma boa parcela dos brasileiros acreditava como sendo o ideal.
Comumente, ao voltar-se para a história da educação no Brasil, percebe-se o quão atrelada às elites e a uma pauta conservadora estiveram as políticas públicas educacionais. A agenda defendida pela CAMDE, nesse sentido, não era uma novidade. Ocorre que os anos 60 do século passado demonstraram, de forma mais clara, as disputas sociais presentes na sociedade daquele período, tendo em vista que “as contradições [sociais] chegam a um impasse com a radicalização das posições de direita e esquerda” (ROMANELLI, 2016, p. 199) O medo de que o “fantasma do comunismo” atacasse à sociedade brasileira estava bastante presente na disputa sobre o tipo de educação que se desejava para os jovens estudantes.
A CAMDE, como uma organização civil que trabalhava em parceria com outras organizações de maior vulto como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais - IPES7, procurava agir na sociedade a partir de seu pequeno núcleo, por meio de palestras com as quais se objetivava corroborar e disseminar sua percepção social para um público maior. Nessa visão de sociedade ideal, incluía-se a preocupação com os rumos da educação nacional, o que consistia num desejo de mudanças, mas que conservasse um determinado tipo de sociedade e de educação que lhe era correlata, ou seja, uma mudança conservadora.
De acordo com Braga (2019), a partir da segunda metade dos anos de 1950, a diversificação populacional crescente do meio urbano no Brasil (migração para os grandes centros urbanos, incremento do operariado) ocasionou uma profusão de demandas sociais vindas “de baixo”, ou seja, de segmentos sociais que poucos espaços tinham na cena política. Essas reivindicações incluíam a pauta educacional. Segundo essa autora,
Foi nesse cenário de efervescência das lutas sociais que a necessidade de ampliação das oportunidades educacionais foi pautada como um dos problemas nacionais a ser enfrentado. As tensões giravam em torno da construção de um sistema nacional de educação que respondesse às necessidades de maior participação política da classe trabalhadora e das camadas populares nos rumos do país, e da possibilidade de edificação de uma imbricação íntima entre a escola pública em todos os níveis e o desenvolvimento soberano e nacional, que pudessem sair do controle das camadas sociais mais conservadoras (BRAGA, 2019, p. 47-48).
Como mencionado na introdução deste artigo, a CAMDE, a exemplo de outras entidades de mulheres, surge no início dos anos 60 do século passado, justamente em um contexto de efervescência política no país, em que se contrapunham, basicamente, dois polos ideológicos e suas nuanças, reproduzindo o contexto da Guerra Fria. Como refere Saviani, esse era um momento em que
a sociedade se polarizou entre aqueles que, à esquerda, buscavam ajustar o modelo econômico à ideologia política e os que, à direita, procuravam adequar a ideologia política ao modelo econômico. No primeiro caso, tratava-se de nacionalizar a economia; no segundo, o que estava em causa era a desnacionalização da ideologia (SAVIANI, 2008, p. 293).
Nessa perspectiva, grupos conservadores se articularam para fazer frente à mobilização popular e de setores progressistas da sociedade. E, no campo da educação não foi diferente, pois foi nesse contexto que surgiram “novas ideias e práticas pedagógicas voltadas para a Educação Popular, tendo papel de destaque os Movimentos de Cultura Popular (MCPs), os Centros Populares de Cultura (CPCs)8 e Movimento de Educação de Base (MEB)9” (BRAGA, 2019, p. 65). Aliado a essas iniciativas, não se pode esquecer que o governo de João Goulart, tão combatido pelo movimento de mulheres conservadoras, adotou o método de Paulo Freire de alfabetização que, por sua vez, vinculava-se a uma concepção revolucionária e libertadora de educação popular.10 A esse movimento, as mulheres da CAMDE, e das outras agremiações do mesmo tipo, vão responder, por um lado, com ações assistencialistas, interagindo com grupos sociais mais vulneráveis, e, de outro, envolvendo-se no debate político sobre os rumos da educação nacional, como se observa nas palestras que promoviam e nos discursos e debates que ocorreram durante o congresso.
A organização tinha como objetivo trabalhar pelo bem-estar social, desde que se voltasse para a defesa dos valores propostos por elas. O trabalho educacional, dentro e fora da escola, era, portanto, uma importante chave para alcançar tais objetivos, algo que teve início antes mesmo do congresso que a CAMDE promoveu em 1967, como se pode depreender da notícia abaixo, publicada no jornal O Globo 11:
Esse plano-pilôto importou na seleção de 300 menores cujas condições humanas, psicológicas e sociais eram das mais dolorosas, pois que, subnutridas, desassistidas de tudo e, por força do próprio ambiente em que viviam, tendiam fatalmente para o marginalismo social. Com uma ajuda em dólares da Fundação Ford, complementada pela cooperação do governo da Guanabara, o plano-pilôto conseguiu, posto em execução, recuperar as 300 crianças, a custo de 487 cruzeiros por dia, custo extremamente baixo em face da magnitude da empresa. Tudo foi dado às crianças - desde a alimentação racional, ao estudo disciplinado, além da educação, no mais amplo sentido da palavra. Animadas com os resultados da experiência, as executoras do plano desejam, agora, continuá-lo, estendendo-o a todas as crianças faveladas, em idade escolar. Para isto é necessário, porém, que a Fundação Ford e o Governo da Guanabara ampliem sua a ajuda, no que confiam (O GLOBO, 13/8/1964 - s/p).
A interlocução que a CAMDE tinha com diversas instituições, públicas e privadas, conferia a essa organização um caráter de maior confiabilidade, como se observa do apoio recebido pela Fundação Ford, no trecho transcrito supra, ou até nos contatos e participações de agentes públicos:
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO NA CAMDE - A professora Maria Teresinha Tourinho Saraiva, secretária de Educação da Guanabara, passou em revista, ontem, na CAMDE, os principais aspectos da educação na Guanabara, ocasião em que foi homenageada por mais de trezentas professoras do Estado, que ali compareceram em massa. Partiu das senhoras da CAMDE o convite à Secretária de Educação para abordar o problema educacional, dentro do programa da entidade, que visa a mantê-la atualizada com tôdas as questões de interesse nacional. Saudando a professora Maria Teresinha falaram o general Luiz Gomes Regadas e a professora Josefina Ribas dos Santos, que fez entrega de uma corbelha de flores simbolizando a admiração de suas colegas pela homenageada. A sra. Olga Lacerda, mãe do governador Carlos Lacerda, na foto, ao centro, tomou assento à mesa enquanto a sra. Alice Flexa Ribeiro, mãe do sr. Flexa Ribeiro, esteve presente mas foi forçada a se retirar por ter sido acometida de um mal-estar (O GLOBO, 2/9/1965 - s/p).
Destaca-se que, ainda que se tratasse de uma organização civil de mulheres, a presença de militares era uma constante nos eventos promovidos pela CAMDE, deixando clara a associação que a organização tinha com setores das forças armadas e seu alinhamento ideológico. Cumpre ressaltar que essa associação, em muitos casos, derivava de contatos pessoais que suas associadas mantinham.12
O interesse que essas mulheres despendiam ao tema da educação se dava desde, como já mencionado, dos espaços escolares não formais, em uma concepção ampla sobre formação, à educação básica e superior. Nesse sentido, também se interessavam pelo ensino universitário, na década de 1960, bastante elitizado e também foco de resistência que se estabeleceu após a instituição da ditadura militar. Assim, a preocupação dessas mulheres extrapolava a mera questão do ensino:
D. Irineu Pena: O jovem está cego culturalmente
Universidade é tema de palestra na CAMDE
Contra Massificação Acentuando o sentido de pesquisa e criatividade, inerente ao ensino superior, o Sr. Oscar de Oliveira manifestou-se contrário à sua massificação. - Por isso não aprovo as grandes universidades - frisou o professor. - Acho que o melhor, para a realidade brasileira, é a criação de um número cada vez maior de pequenas universidades, onde um número limitado de alunos, bem assessorados pelos mestres, receba uma atenção mais específica e desenvolta com mais liberdade às suas aptidões. Disse, porém, o professor Oscar de Oliveira que o maior problema do ensina brasileiro não se localiza nos estabelecimentos superiores, mas sim no curso secundário, ainda insuficiente para atender todas as crianças que terminam o primário (O GLOBO, 28/6/1967, s/p).
Essa preocupação com os temas educacionais, por certo, não poderia ficar fora dos temas tratados no Congresso Sul-Americano e, ainda que a atividade tenha contado com um número limitado de delegadas, essas mulheres que participaram do evento levaram as discussões para suas respectivas organizações. Sobretudo, eram o reflexo de uma boa parcela da sociedade brasileira e de como enxergavam os rumos da educação nacional no novo regime instituído, imbuídas do firme propósito de rechaçar qualquer concepção antidemocrática, leia-se, ideais que se contrapunham a uma moral conservadora e que mantinha a hierarquia social. Também é importante destacar, ainda que pareça óbvio, o fato de que essas mulheres percebiam seu lugar na sociedade como agentes de manutenção do status quo, em especial, do papel que era atribuído às mulheres. Sintomático que a organização do Congresso Sul-Americano tenha se preocupado em bem acolher suas delegadas, lembrado do “fornecimento de guarda-chuvas, estojos de emergência e caixas de costura" (JORNAL DO BRASIL, 16/4/1967, s/p). Essa noção do papel que ocupavam na sociedade e que, certamente, refletia no ideal de educação para a nação, é muito bem expressa pela delegada representante da associação do Rio Grande do Sul:
“O nosso movimento é feminino, não feminista” disse ao DN a delegada gaúcha do 1º. Congresso Sul-americano da Mulher em defesa da Democracia, em realização no Hotel Glória, “e assim não há perigo que nos confundam com as mulheres que já tentaram implantar o matriarcado como forma ideal de sociedade (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 19/4/1967, s/p).
Diante da salvaguarda de determinado tipo de sociedade, defende-se também um determinado tipo de cidadão. Para tal, a educação é central para que se atinja esse tipo ideal. Assim, as discussões levantadas no Congresso iam ao encontro de uma “máxima nacional” de que os males do país residiam na educação, e, de forma mais específica, na educação de base, uma vez que o ensino universitário, historicamente, destinava-se a uma camada bastante restrita da sociedade brasileira. A educação que propunham deveria manter, nesse sentido, a hierarquia “natural” existente na sociedade, seja ela de classe, seja de gênero. Dessa forma, as associações de mulheres atuavam nessa direção.
[...] a delegada da Ação Democrática Feminina, professora e advogada Íris Pothoff Correia Lopes entende que se deve dar importância ao ensinamento através inicialmente de cursos de formação e liderança. O ano passado - disse a líder - realizamos em Porto Alegre 66 cursos gerais com o apoio da Secretaria de Educação que reconhecia o valor de seus diplomas. - A obrigação do ensino de Educação Cívica no País teve origem, através do nosso movimento - ressaltou, apontando ainda os ensinamentos que ministraram sobre corte e costura, manicure, cozinha, tricôs e outras atividades domésticas. Como professora mostrou-se a sra. Iris Lopes adepta da juventude, defendendo inclusive o uso da mini-saia e dos cabeludos “desde que não sejam exagerados”, - mas nos colégios acho que deve haver proibição (JORNAL DO COMMERCIO, 21/4/1967, s/p).
O exame das notícias sobre o congresso indica que as discussões que ali tiveram lugar resultaram em algumas diretrizes para sanar o “grande mal” que assolava o país: a educação de base:
Mulheres recomendam união da juventude para acabar preconceito contra militar
Recomendações do Congresso para “salvaguarda” da formação para a cidadania:13
Outro ponto que veio à tona nessas discussões, e algo que marca o ensino pós-ditadura militar, era a educação cívica defendida pelas congressistas. A educação cívica, nesse contexto, além de “inculcar nos jovens” determinada moral e noção de sociedade, contrapunha-se a uma visão “materialista” de sociedade, que, segundo essas mulheres, eram pressupostos comunistas, o que deveria ser constantemente combatido. Interessante notar, que elas admitiam que as concepções socialistas e/ou comunistas eram muito atrativas aos jovens e levavam vantagem na retórica de convencimento.
Congresso Feminino Reclama Mais Dedicação Aos Jovens
Medo
Diante do quadro sombrio que a professora Aida Gomes deu do mundo moderno, onde há predominância de valores materialistas e ateu} a Sra. Alcina Espinasa, representante da Bolívia, exortou os responsáveis pelo ensino a escolherem professores capazes de cativar as simpatias dos estudantes.
- Ao vermos a capacidade com que certos intelectuais de esquerda sabem manter um diálogo com os jovens - continuou Dona Alcina -, sentimos a urgência com que a eles devemos contrapor educadores que com a mesma eficiência saibam inculcar a amor e o desejo da liberdade (O GLOBO, 21/4/1967, p.8).
Analisando o comportamento do estudante na América do Sul, concluíram as participantes do Congresso promovido pela CAMDE que os jovens vêm ouvindo a mensagem marxista "justamente devido a uma série de fatôres positivos e negativos próprios da sua idade e condição". Segundo o relatório da Professora Aila Gomes, da Faculdade de Filosofia da UFRJ, "os estudantes são, por um lado, idealistas e amantes da liberdade e, por outro, imaturos, inseguros e dados à rebeldia pela rebeldia, sendo esses os fatôres que facilitam o trabalho dos agentes comunistas". Ao examinar a influência de professores esquerdistas nas Universidades, concluíram as congressistas que não basta substituí-lo, mas promover concursos que possibilitem a ascensão de "outros professores democratas que sejam tão competentes quanto eles, pois é preciso reconhecer que os comunistas geralmente são mais dedicados e preparados". O plenário apoiou uma sugestão para que se procure ressuscitar, na América Latina, os movimentos de estudantes primários e secundários conhecidos como Clubes Pan-Americanos, que procuram unir os jovens através de uma formação cívica baseada no lema "Paz pela Escola" (JORNAL DO BRASIL, 21/4/1967, s/p).
Segundo as participantes do congresso, outra forma de “combater a influência marxista”, em especial, quanto aos estudantes universitários, era a “despolitização das universidades”, o que poderia ser alcançado com o empenho das associações de mulheres, transformando esse espaço “estritamente como instituições culturais, servindo essa medida como obstáculo a infiltração dos agentes comunistas” (JORNAL DO BRASIL, 23/4/1967, s/p).
A Sra. Amélia Molina Bastos disse, no encerramento do congresso, que "urgem medidas educacionais, desde a erradicação do analfabetismo até o aprimoramento de técnicos; todavia as respectivas autoridades não devem permitir que permaneçam estas medidas em planejamentos lentos e fastidiosos, nem sejam absorvidos por máquinas burocráticas completamente obsoletas". As conclusões referentes à educação recomendam ainda a máxima facilitação e incentivo para ingresso no ensino médio e fácil acesso de todos os candidatos, "com prova de capacidade para ingresso no nível universitário". Com relação aos intelectuais, decidiu o congresso que as entidades femininas, a bem da democracia deve promover encontros com os intelectuais de todos os setores que, de um modo ou outro, liderem moços, empenhando-se ao mesmo tempo para maior aproximação com a juventude (JORNAL DO BRASIL, 23/4/1967, s/p).
Algumas conclusões
O Congresso Sul-Americano da Mulher pela Democracia significou, no entendimento deste estudo, o ápice da atuação da CAMDE. Um momento no qual puderam organizar e dar visibilidade ao trabalho que vinham desenvolvendo até aquele momento, além de perceber o apoio que recebiam de determinados segmentos e organismos sociais, como a imprensa, por exemplo. Além disso, é exemplar para pensar sobre a construção social dos regimes autoritários, que parcela importante das sociedades latino-americanas esteve disposta a defender e/ou fazer parte.
Nesse sentido, foi possível compreender a ação e os discursos das mulheres da CAMDE, em especial aqueles proferidos no congresso, como uma reação a um estado de coisas com as quais essas agentes não concordavam. Sendo possível, inclusive, entender seus posicionamentos como contrarrevolucionários, na medida em que se alinhavam a outros interesses, até mesmo internacionais, para impedir que elaborações progressistas sobre a educação, e a própria ampliação de seu alcance, saísse do plano das ideias e fosse levado a termo. Dessa forma, compreende-se que as disputas do campo político também se materializaram nas disputas em torno dos rumos da educação nacional. Nessa empreitada, a CAMDE não agia isoladamente, mas fazia parte de diversos organismos que respaldaram o golpe de 1964 e o regime que o sucedeu, destacando-se o IPES, que foi fundamental para a própria criação da CAMDE.
Muitos dos tópicos sobre educação discutidos no congresso e divulgados pela imprensa escrita acabaram por pautar algumas políticas educacionais dos governos militares: reforma universitária, ensino profissional na educação básica, exames vestibulares para ingresso na universidade e a educação moral e cívica. Ainda que se tenha individuado pontos convergentes entre aquilo que a CAMDE defendia como propósito a ser perseguido e o que foi implantado nas políticas públicas educacionais do período, esse é um estudo que ainda precisa ser aprofundado. Porém pôde-se detectar que essas mulheres de direita auxiliaram na disseminação de um ideal de democracia e justiça social que estava estritamente vinculado à emergência de um regime autoritário que aprofundou as desigualdades sociais e educacionais já existentes no país.
Referências
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1
Destacamos, como exemplo, a obra “Pensar as direitas na América Latina”, de 2019. O livro é resultado do Terceiro Colóquio “Pensar as direitas na América Latina no século XX”, realizado em 2018 na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e reúne 24 textos de estudiosos que se debruçaram em analisar as direitas sob os mais variados aspectos (MOTTA, 2002; BOHOSLAVSKY; BOISARD, 2019).
-
2
A expressão “comunista” foi largamente utilizada para acusar e/ou identificar indivíduos, grupos e partidos situados à esquerda do espectro político, inclusive, setores progressistas liberais e/ou nacionalistas.
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3
Podemos citar como exemplo, Amélia Molina Bastos, fundadora da CAMDE. Amélia foi professora primária e quando da realização do congresso, em 1967, estava com 61 anos de idade e encontrava-se aposentada.
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4
Exemplo é o núcleo de um desses grupos na favela da Rocinha, no Rio Janeiro, bem como a mobilização de setores populares na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, na cidade de Santos, em 23 de março de 1964. Sobre esses aspectos, ver: Cordeiro (2009. p. 52); Sestini (2008, p. 83); Presot (2004).
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5
A manifestação foi convocada em nome da primeira-dama do estado de São Paulo, Leonor Mendes de Barros, cuja liderança foi crucial para a realização do evento (SESTINI, 2008, p. 88-91).
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6
A I Conferencia Tricontinental de La Habana, Cuba, ocorreu entre 3 e 15 de janeiro de 1966. O evento reuniu cerca de 500 delegados procedentes de mais de 80 países da África, Ásia e América, com o objetivo principal de formar uma aliança contra o colonialismo e o imperialismo.
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7
O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) foi muito importante para o sucesso do golpe civil-militar que derrubou o presidente João Goulart, atuando, inclusive, na criação de organizações que combateram o governo de João Goulart, como a CAMDE. Esse órgão também voltou seus interesses para a educação nacional, realizando, em dezembro de 1964, poucos meses depois da instituição da ditadura, um simpósio para discutir a Reforma Educacional (SAVIANI, 2008). Para entender melhor a atuação do IPES no golpe civil-militar ver o estudo clássico de René Armand Dreifuss "1964: a conquista do Estado" (1981).
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8
Iniciativa da União Nacional dos Estudantes (UNE) com o apoio do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
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9
Vinculado a setores progressistas da Igreja Católica.
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10
Conforme Braga, a partir do decreto 53.456/62, foi criado o Plano Nacional de Alfabetização e “o MEC designou o educador Paulo Freire para coordenar o PNA, que teve a adoção de seu método como instrumental de trabalho e estabelecia carga horária de 40 horas iniciais para alfabetização, sendo o restante destinado à realização de atividades que envolviam organizações políticas de massa.” (BRAGA, 2019, p. 71)
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11
O jornal O Globo, tendo apoiado o golpe civil-militar de 64 e o regime que ele impôs, foi grande divulgador das ações promovidas pela CAMDE, enaltecendo a atuação social de suas fundadoras como se percebe na concessão de prêmios mencionados em páginas anteriores neste artigo.
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12
Em 12 de junho de 1962, em reunião na casa de Amélia Molina Bastos no bairro de Ipanema, Rio de Janeiro, foi criada a CAMDE. Naquela ocasião, Amélia Bastos reuniu 22 famílias vizinhas, o engenheiro e economista Glycon de Paiva e seu irmão, general Antonio de Mendonça Molina. A presença de militares nas demais organizações femininas foi comum, tendo em vista as relações familiares entre as associadas e membros das forças armadas.
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13
Marilia Mariani, de acordo com a reportagem do Jornal do Brasil, não era associada da CAMDE ou de outra entidade feminina, mas sim técnica do Ministério da Educação convidada para o congresso.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Jul 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
10 Maio 2021 -
Aceito
05 Jun 2021