Resumo
Esse artigo orienta-se pela constatação de uma ausência na história intelectual e na história da historiografia: a de se pensar o corpo dos historiadores. A corporeidade, paralelamente ao gênero, é recalcada na maioria dos trabalhos historiográficos, excluindo-se um dos elementos fundantes das relações de poder que permanecem marginalizando aqueles que escapam às normas de gênero, raça, sexualidade (entre outros marcadores), seja da produção do saber ou como objetos de investigação. Para adentrar tal discussão, a proposta deste artigo é investigar as memórias da historiadora paulista Alice Canabrava a fim de compreender o papel do gênero e das performances corporais na formulação de identidades historiadoras por ela. Seja na reflexão que Alice faz de sua própria trajetória acadêmica ou na caracterização de certos historiadores como tipo ideal, gênero e corpo são reiteradamente evocados. A historiadora, por meio de suas memórias e na elaboração de si à imagem de certos historiadores canonizados, como Fernand Braudel, reafirmou modelos culturais que estabeleceram normas de gênero aos historiadores ao final do século XX.
Palavras-chave: Gênero; História do corpo; Alice Piffer Canabrava
Abstract
This paper is driven by the observation of an absence in intellectual history and the history of historiography: that of thinking about the body of historians. Corporality, along with gender, is repressed in most historiographical works, thus excluding one of the founding elements of the power relations that continue to marginalize those who escape from the norms of gender, race, and sexuality (among other markers), whether in the production of knowledge or as objects of research. The proposal of this work is to investigate the memories of the brazilian historian Alice Canabrava in order to understand the role of gender and corporal performances in her formulation of historian identities. Whether in Alice’s reflection of her own academic trajectory or in the characterization of certain historians as ideal types, gender and body are repeatedly evoked. The historian, through her memories and in shaping herself in the image of certain canonized historians like Fernand Braudel, reaffirmed cultural models that established gender norms for historians at the end of the 20th century
Keywords: Gender; Body’s history; Alice Piffer Canabrava
O corpo da historiadora: uma provocação
Posando no primeiro plano de uma paisagem composta por morros, árvores e arbustos de médio a alto porte, a confundir pela distância, uma mulher figura no centro da fotografia (Figura 1). Recostada em uma cerca de madeira, repousando as mãos sobre o tronco mais alto, ela esboça um sutil e tímido sorriso. Cabelos curtos, óculos arredondados, branca. No corpo, uma calça de alfaiataria, acompanhada por uma camisa social bem abotoada até o pescoço. Destaca-se um botão, ou apetrecho mais visível, que adorna o colarinho. Sobre a camisa, um casaco claro. Completando o visual, ela porta, nos pés, um sapato fechado, de aparência formal. Essa mulher é Alice Canabrava.
Historiadora brasileira nascida em 1911 na pequena cidade de Araras, no interior do estado de São Paulo, Alice1 cresceu e concluiu as etapas iniciais de sua educação nos campos arenosos daquela cidade. Na adolescência, acompanhada de sua irmã Clementina Canabrava, mudou-se para São Paulo, capital do estado, onde cursou o famoso Colégio Stafford, seguido da Escola Normal da praça Caetano de Campos, estabelecimento que lhe concedeu o diploma de magistério. Anos depois, favorecida pela política de comissionamento do estado, ingressou na segunda turma do recém-criado curso de geografia e história da Universidade de São Paulo, que lhe garantiu o título de historiadora e a levou a percorrer a trajetória que será explorada neste trabalho.
Cada vez mais Alice Canabrava tem se tornado um nome conhecido no campo da história da historiografia e da história intelectual brasileira. A historiadora é frequentemente lembrada por ter sido uma mulher que, apesar de preterida no polêmico concurso da cadeira de História da Civilização Americana da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL/USP), superou uma série de constrangimentos impostos às mulheres na estruturação dos cursos universitários no Brasil e construiu uma carreira de destaque e sucesso na Faculdade de Economia e Administração da mesma universidade.
A descrição de sua fotografia, no entanto, extrapola as intenções de apresentar ao leitor a imagem daquela de quem falarei ao longo das próximas páginas. Trata-se mais de um convite à reflexão sobre corpos e signos que adornam os corpos, simbolizando os gêneros e as identidades historiadoras.2 Tal provocação emerge de um incômodo, fruto da compreensão de que a história se formou como uma narrativa desencarnada, que tende a descorporificar os sujeitos/objetos de análise (LE GOFF; TRUONG, 2006). Desse mesmo modo, a história intelectual e a história da historiografia centram suas preocupações nas filiações e diálogos intelectuais dos historiadores, afastando o gênero, o corpo e as performances corporais de seus trabalhos.3 Na contramão desse movimento, busco neste texto me atentar também a essas outras dimensões na formação das múltiplas identidades de Alice Canabrava, elaboradas por ela ou sobre ela, e também às identidades que ela atribuiu a outros sujeitos.
Essas inquietações, no entanto, não vieram de um vazio. Ao final do ano de 2019, viajei a São Paulo para percorrer os arquivos de Alice dispostos no Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Na ocasião, entrei em contato com Lúcia Carvalho, querida sobrinha-neta de Alice responsável pelos seus direitos autorais. Desse contato, fez-se um encontro. Entre ricas trocas de experiências e relatos sobre Alice, Lúcia me presenteou com a fotografia que abre este trabalho. Por algum tempo olhei frequentemente para essa imagem buscando entender mais de Alice Canabrava e de sua trajetória. Nesse percurso, de mais de dois anos de diálogo, perpassado por variadas leituras e debates, formulei algumas questões que reproduzo aqui: o que o corpo de Alice, sua aparência e suas roupas podem dizer sobre sua trajetória e os espaços acadêmicos em que transitou? O que eles conseguem dizer sobre os regimes de verdade que constituíram as cenas de reconhecimento que estabelecia quem seria ou não historiador naqueles lugares? O que se desloca e se esconde nas imagens de seu arquivo?
Uma das leituras que me provocou essas reflexões foi a do manifesto “Mulheres e Poder” de Mary Beard. No texto, a autora indaga ao leitor sobre as formas como aprendemos a enxergar as mulheres que exercem poder. Usando da fotografia de Alice para ensaiar alguma resposta, eu diria que a formalidade das roupas da historiadora e um certo caráter masculinizado das peças que porta (calça alfaiatada, camisa social) nos fornece algumas pistas.4 Mary Beard me auxilia nessa formulação: “não temos modelo para a aparência de uma mulher poderosa, a não ser que ela se pareça bastante com um homem” (BEARD, 2018, p. 23). Em suas reflexões ensaísticas, a historiadora sugere que frequentemente as mulheres que adquirem poder lançam mão de uma série de atitudes “andróginas” para se fazer ouvir, seja na tentativa de tornar a voz mais grave - como ela discorre sobre o caso de Elizabeth I - ou no uso de terninhos e calças compridas - tática visível em diversas líderes políticas do Ocidente, como Angela Merkel, Hilary Clinton, e mesmo Dilma Rousseff. Essas estratégias, reflete Mary Beard, cumprem a função de fazer com que as mulheres pareçam mais adequadas ao papel do poder.
Nos sentidos dessa provocação, me pergunto: estariam os signos que cobrem o corpo de Alice dotados dessas táticas de legitimação?
Nesta outra imagem (Figura 2), Alice aparece mais uma vez com aquela formalidade da vestimenta. Os mesmos óculos arredondados e cabelos curtos. Dessa vez, portando uma espécie de blazer e camisa social, com um lenço que adorna o conjunto da roupa. Como a carta anexa à fotografia informa, essa imagem foi registrada na ocasião de uma cerimônia de homenagem a Alice na Faculdade de Economia, em 1984. Nessa cena, Alice está cercada não por uma paisagem natural como aquela da primeira fotografia, mas humana, composta exclusivamente por colegas homens. Um cenário certamente corriqueiro em sua trajetória profissional. Mesmo nos anos 1980, momento de uma presença mais expressiva de mulheres nas universidades, a congregação da faculdade de economia, como aparece na imagem, permanecia majoritariamente composta por homens. A história e a produção intelectual de conhecimento não deixaram de ser, mesmo ao longo do século XX, um mercado masculino (LIBLIK, 2017). A ausência de mulheres nessa fotografia é um sintoma5 e nesse caso, portanto, chama ainda mais atenção a escolha das vestimentas de Alice.
O que pretendo nessa instigação inicial não é chegar a conclusões sobre as intenções pessoais de Alice Canabrava ao escolher seus vestuários, mas provocar uma reflexão sobre as performances corporais dos historiadores: sobre as cenas de reconhecimento que prescrevem certas performances relacionadas aos gêneros na conformação das identidades historiadoras.
Na esteira da teoria e crítica feminista, compreendo ser cada vez mais necessário trabalhos que não apenas almejem às mulheres lugar nas estruturas de poder, mas que se disponham a investigar como essas estruturas funcionam e são reafirmadas de modo a promover um questionamento mais transformador e subversivo de suas engrenagens.
Para além do próprio corpo de Alice exposto nas imagens de seu arquivo, outros corpos apareceram em suas memórias e serão eles os objetos da reflexão a seguir.
Uma breve análise da presença das mulheres na universidade
“Quando acabei o curso não desejava outra coisa a não ser, ser [...]” (CANABRAVA, 1981). É nas reticências da fala de Alice Canabrava que a análise a seguir se formula. Na ocasião da entrevista ao Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS/SP), em 1981, ao ser interpelada inicialmente a elaborar uma breve autobiografia de sua vida, Alice deixou escapar uma dúvida quanto a esse “ser” que ela tanto desejava ao final do curso de geografia e história. A incerteza estava entre ser historiadora ou geógrafa, e como sua trajetória profissional deixa ver, a opção foi pela história.
Ainda que essas reticências comportem duas possibilidades específicas e localizadas de “ser”, elas também abrem espaço para um questionamento sobre os regimes de verdade que definiram quais maneiras de “ser” historiador eram inteligíveis ou não dentro de cenas específicas de reconhecimento nas quais Alice transitou ao longo de sua trajetória acadêmica. Foi nesses espaços que Alice foi interpelada a relatar a si mesma e que elaborou memórias de si e de seus pares em uma tentativa de se fazer legível ao outro (BUTLER, 2019).
Para compreender quem “era” historiador sob a ótica de Alice, investigarei três textos de memória da intelectual elaborados ao final de sua trajetória acadêmica. As condições de enunciação e as cenas interpelativas de cada um desses textos comportam especificidades que influíram nas autoimagens que Alice forjou de si.
Na entrevista de 1981, Alice Canabrava foi uma dentre os vários entrevistados do projeto Estudos Brasileiros, do MIS/SP, que tinha como objetivo a gravação de depoimentos de intelectuais brasileiros que se destacaram na pesquisa em humanidades voltadas ao estudo da realidade nacional. Além de Alice, Florestan Fernandes, Gilberto Freyre, Rubens Borba de Morais e Sérgio Buarque de Holanda são alguns nomes que também figuram entre o corpo de entrevistados. É importante ressaltar que Alice foi a única mulher convidada. O texto autobiográfico de 1984, por outro lado, foi fruto de um projeto de Alice Lang e Eva Blay que buscava reunir depoimentos de mulheres que fizeram sua carreira na USP desde a graduação até a atuação profissional. Nesse projeto, Alice esteve exclusivamente ao lado de mulheres.
Por fim, há a entrevista de 1997, organizada pelo ex-orientando de Alice Canabrava, Flávio Saes. Não se tem acesso às perguntas feitas a Alice, mas pela relação entre ela e o entrevistador, o tom da conversa foi orientado pela consideração da historiadora como mestre e a entrevista constituiu-se como uma tentativa de reconstruir os caminhos que a levaram ao lugar de destaque que alcançou ao final de sua trajetória.
Esses textos comportam duas temporalidades distintas: o momento de sua produção, mas também os períodos sobre os quais falam. Ou seja, são sintomas da década de 1980 e 1990, quando foram elaborados, mas há neles também memórias sobre os anos 1930 e 1940, quando Alice iniciou sua trajetória acadêmica. Compreender como as mulheres estiveram presentes na academia nesses momentos é fundamental para a análise dessas memórias.
Nos anos iniciais de estruturação do curso de Geografia e História da FFCL/USP a universidade se abriu às mulheres. A política de comissionamento decretada pela secretaria de educação do estado de São Paulo em 1935, pela qual Alice Canabrava ingressou no curso de geografia e história da faculdade, promoveu uma expressiva mudança do perfil dos alunos, possibilitando a presença significativa de mulheres na instituição, visto que estas compunham a maioria dos egressos das escolas normais do Estado (BLAY; LANG, 2004, p. 53).
Apesar da abertura desses caminhos, uma série de constrangimentos estava colocada a elas. A compreensão compartilhada da existência de uma “missão da mulher dentro do lar” desviou algumas mulheres da carreira universitária. Em carta à amiga Maria Celestina, Alice relatava, por exemplo, que a colega de curso Ruth de Alcantara “casou-se com Décio de Almeida Prado e desapareceu, submergida nas lides de mãe e esposa” (CANABRAVA, 1983). Em uma sociedade na qual o trabalho doméstico era entendido fundamentalmente como atribuição das mulheres, o cuidado dos filhos e da casa pode ter interferido no andamento da carreira de muitas delas. Essas intelectuais apresentam trajetórias possíveis, mas que não foram fruto de uma simples escolha.
Havia, de acordo com Alice, certo entendimento compartilhado de que as mulheres, de maneira geral, não estavam aptas ao exercício de funções intelectuais. Nenhuma hostilidade, contudo, manifestava-se a elas “no exercício de algumas funções administrativas: ‘revelam-se excelentes datilógrafas’” (CANABRAVA, 1984).
Eduardo d’Oliveira França, na década de 1990, rememorava, referenciando Alice Canabrava, a posição dos primeiros professores da FFCL em relação ao trabalho das mulheres:
havia, como foi declarado por Alice Canabrava, um machismo consciente nos primeiros professores de História - não acreditávamos no trabalho intelectual da mulher. Chegam a certo ponto e estacionam ou se dedicam à vida pessoal. Sou machista e na minha experiência minha intuição não foi negada. Mulher pode ser tão inteligente quanto homem, mas a partir de certo momento, as que não casam tornam-se pessoas desagradáveis e ásperas e as outras param ou são absorvidas pelos filhos, como é de direito. As assistentes mulheres que tive só confirmaram a regra (FRANÇA, 1990 apudCOSTA, 2018, p. 52).
Em uma carta de 1945 enviada por Cruz Costa a Eurípedes Simões de Paula, percebemos como esse machismo confessado por França se manifestava no contexto:
Naturalmente nós todos preferimos que a futura vaga do Gagé seja preenchida pelo França. É homem, é amigo. Isso de faculdade com catedráticos femininos não me parece coisa séria. Salvo para as exceções e, - aqui entre nós - a Olga nada tem de excepcional (COSTA, C., 1945 apudCOSTA, 2018, p. 51).
O “nós” utilizado por Costa revela um coletivo não exatamente identificado, mas que permite conjecturar que a posição fortemente contrária à presença de mulheres em postos mais altos da hierarquia universitária não era exclusiva do historiador, ele compartilhava com outros intelectuais a ideia de que os homens estavam mais aptos às funções de chefia na universidade. A seriedade não constava na ocupação de cátedras por mulheres, salvas raras exceções. Essa colocação de Costa é um indício interessante do que se esperava das mulheres no campo intelectual, ou melhor, do que não se esperava: produções acadêmicas de qualidade, sérias. A universidade não escapava à lógica da divisão sexual do trabalho, neste caso, do trabalho intelectual (LIBLIK, 2017, p. 71). O preterimento de Alice no concurso à cátedra de História da Civilização Americana é um forte indício dessa hostilidade latente.
A segunda temporalidade presente nesses relatos refere-se ao momento em que essas memórias foram elaboradas. No texto autobiográfico de 1984, Alice Canabrava constatava o silenciamento imposto às mulheres na narrativa histórica, mantendo-as como figuras sem voz própria. Mas reconhecia que nos últimos anos várias iniciativas estavam “procurando resgatar a memória feminina do passado, antes que a perda [...] [fosse] irreparável” (CANABRAVA, 1984, p. 86). A historiadora compreendia que seu testemunho fazia parte das estratégias de “resgate” desse movimento intelectual emergente na década de 1970: a História das Mulheres.
Os primeiros estudos sobre a mulher na USP, resultado de iniciativas isoladas de Helleieth Saffioti e Eva Blay, foram produzidos entre o final da década de 1960 e início da seguinte. Contudo, foi em meados dos anos 1970 que esse campo, fundamentalmente interdisciplinar, começou a desenvolver-se. As mulheres, suas narrativas e suas memórias, ainda que timidamente e num espaço restrito e pouco prestigiado, passaram a ter lugar como objeto de investigação da pesquisa universitária brasileira (COSTA; BARROSO; SARTI, 1985).
O livro Mulheres na USP: horizontes que se abrem, no qual consultei o depoimento de Alice de 1984, mesmo que publicado em 2004, segue na direção desse movimento intelectual em ascensão nos anos 1970. Desde o princípio, reconhecendo o papel de “pioneira” das convidadas, as autoras visavam retirar essas mulheres do silêncio, dando a conhecer suas trajetórias intelectuais.
Tal esforço é sem dúvidas necessário se quisermos desestabilizar o cânone institucionalizado no qual raras vezes encontra-se espaço para os sujeitos subalternizados. Mas em certo ponto, essa leitura do pioneirismo conduz a uma simplificação ou sacralização dessas figuras e limita a compreensão das nuances das experiências e posicionamentos desses sujeitos através da produção de identidades pretensamente estáveis.
Três anos antes da produção desse depoimento de 1984, na entrevista ao MIS/SP, Alice, ao fim de sua reposta à pergunta que lhe demandava uma reflexão sobre a dificuldade de ser mulher na universidade no início de sua institucionalização, afirmava categoricamente: “eu não sou de maneira nenhuma uma feminista, [...] não me intitulo nessa categoria”. Para ressaltar sua não articulação ao feminismo, ela mantinha a preocupação de afirmar o valor exclusivamente sociológico e histórico de seu depoimento. Enfatizando a utilidade de seu testemunho “para a época”, sugeria que a resistência às mulheres na universidade estaria, de certa forma, superada quando da elaboração de suas memórias: “aparentemente creio que não há preconceito contra a mulher hoje na universidade, mas divergem completamente daquelas que eu encontrei” (CANABRAVA, 1981).
Sua recusa ao feminismo foi bem recebida por um dos entrevistadores. Logo após a fala de Alice, José Ribeiro de Araújo Filho, professor da antiga cadeira de Geografia do Brasil na USP, afirmou: “fiquei contente quando você disse que você não é feminista”. No excerto, chama atenção algumas assertivas do geógrafo: “a mulher vale pelas qualidades que possui”; “mulher mais capacitada das suas condições de mulher”; “mulher sabida que leva o homem no bico sem brigar, sem discutir”. Em seus não-ditos, José Araujo Filho elabora uma contra-imagem da mulher ideal: a da feminista. Aquela que almeja qualidades que não possui, que não lhes são suas por direito e natureza e que quer extrapolar sua condição de mulher. Aquela que fala, que discute e não se silencia. Atitudes inadequadas à feminilidade e aos papeis sociais estabelecidos para homens e mulheres num sistema binário de gênero (SCOTT, 1990). Ainda que alguns estudiosos nesse momento estivessem questionando a diferença sexual naturalizada e os estudos sobre mulheres e de gênero estivessem alcançando cada vez mais espaço na academia, muitos intelectuais pontuavam e defendiam ainda a existência de uma óbvia diferença das condições naturais de cada sexo.
Essa imagem da feminista raivosa definida por José Araújo Filho não é exclusiva de suas reflexões. Rachel Soihet, em análise do jornal alternativo O Pasquim, entre as décadas de 1960 e 1980, observava recorrentemente a formulação de um estereótipo da feminista: vistas como viragos, perigosas e feias. Noções que, não poucas vezes, levava (e ainda leva) mulheres a rejeitar sua aproximação ao feminismo e até a combatê-lo, se distinguindo do ideal feminino constantemente reavivado de delicadeza, beleza, paciência e, claro, heterossexualidade. Esse ideal prescreve às mulheres uma estética, uma atitude comportamental e uma sexualidade específicas, sem brechas. Não à toa, Alice recusou-se a ser reconhecida enquanto tal. Focando nesses textos, e motivada pelas reflexões teóricas já levantadas, surgem algumas questões que orientam este trabalho: como Alice elaborou a si mesma enquanto historiadora? Quais vieses de gênero estiveram envolvidos na construção da imagem do historiador ideal? O relato que Alice fez de si mesma contribuiu para a consolidação dos regimes de verdade que definiam uma forma ideal de ser historiador? Ou provocou questionamentos e uma revisão dessas formas de reconhecimento?
De antemão ensaio uma hipótese: a elaboração de uma identidade historiadora ideal por Alice ocorreu em paralelo e dialeticamente à construção de si como historiadora. Desse modo, ela se reconheceu em uma identidade historiadora que elaborou com o intuito de ser reconhecida pelos seus pares. Mas então quem seria o historiador ideal para Alice? A quem ela se buscou fazer imagem e semelhança? Comecemos por quem ela não era.
Caricaturas de Capistrano de Abreu: o contraponto do historiador ideal
A imagem do historiador, divulgada nas caricaturas de Capistrano de Abreu, falecido em 1924 - um estudioso arcado pelo peso dos anos, as lentes grossas a denunciar-lhe a miopia, os olhos sempre voltados para os velhos papéis, indiferente ao mundo que o cerca - é um estereótipo inteiramente falso (CANABRAVA, 1985, p. 237).
A caricatura de Capistrano de Abreu, historiador brasileiro da primeira metade do século XX, constituía, segundo Alice, um estereótipo inteiramente falso do historiador da década de 1980. Para ela, a imagem do pesquisador de história como um homem idealista, solitário em seu gabinete, “mergulhado em livros e com enormes óculos grossíssimos de míope” (CANABRAVA, 1981) era coerente até a década de 1960, depois disso, um novo modelo, dotado de uma performance intelectual a qual ela buscava se associar, se formava.
O distanciamento em termos de performance que ela travava com Capistrano de Abreu é fruto de uma problemática mais ampla. Capistrano, como se sabe, foi um intelectual fronteiriço. Ele transitou entre as perspectivas tidas como “modernas” - associadas aos recém-fundados cursos universitários de história - e aquelas que tendenciosamente foram taxadas de “ultrapassadas” - relacionadas aos estudos produzidos no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. No entanto, sua atuação é marcadamente localizada neste Instituto.
Alice, por outro lado, fez parte da segunda turma do curso de geografia e história da FFCL/USP, instituição que teve um papel determinante no estabelecimento dessa dicotomia “moderno” versus “ultrapassado” em termo de historiografia. Os cursos universitários, como esse novo lugar de produção do saber historiográfico, buscavam legitimar-se sublinhando a diferença com o que havia até então (CAPELATO; FERLINI; GLEZER, 1994). Diferença essa que se manifestava discursivamente em memórias uspianas das décadas de 1980 e 1990 sobre esse período, na prática, na gênese dos cursos universitários era expressivo o intercâmbio entre esses dois lugares. Uma certa memória fundamentada na ruptura entre os Institutos e a universidade foi fruto de um esforço da historiografia uspiana que buscou estabelecer “fronteiras entre o antigo e o novo em termos de escrita da história” para se validar como o centro da produção historiográfica brasileira (VENÂNCIO, 2016, p. 437). A Associação Nacional de História (ANPUH), apresentada como herdeira das universidades, se sustentava como uma associação que colocaria em diálogo os especialistas formados nesses novos cursos de história, buscando, justamente, superar uma característica que Alice insistia em atribuir a Capistrano: a solidão da pesquisa.6
Por outro lado, paralelamente à crítica à caricatura de Capistrano de Abreu, Alice elaborou a imagem de um outro historiador. Dono de “aulas maravilhosas de História, cheias de vida”, ele organizava o conteúdo de forma admirável, “a exposição oral acompanhava o esquema que ia sendo apresentado no quadro negro; os eventos e a interpretação, sempre que possível, associavam-se ao quadro geográfico apresentado em rápidos ‘croquis’”. A nova perspectiva que o professor trazia era fascinante aos alunos, que “acostumados a conhecer as grandes figuras da História apenas pelos seus nomes, datas e alguns eventos, sobretudo guerras e batalhas” se encantavam com a nova abordagem que prezava pela interpretação dos eventos com o apoio de estudos especializados. Mas era a leitura desses estudos por ele que despertava o maior deslumbramento:
A leitura destes, pelo Mestre, constituía-se em inesquecível mostra de uma faceta de ator - a dicção perfeita, as variações da voz, a expressão da fisionomia. Ao se despedir, ao término de cada aula, com o indefectível la suíte, à la prochaine fois, desolávamos a interrupção. Vivíamos em permanente estado de encantamento, todos os estudantes, sem distinção, a justificar o designativo que, muito depressa, firmou-se com respeito ao professor de História: le prince charmant (CANABRAVA, 1984, p. 92).
O nome próprio do sujeito que Alice descreve nessa cena é dispensável ao leitor que se envereda pelas memórias da historiadora. Sua onipresença é inquestionável nesses relatos, talvez por isso ela não tenha se preocupado em efetivamente nomear esse tal príncipe encantado em toda a longa cena narrada (assim como nos parágrafos seguintes). Havia para ela um único Mestre historiador, assim mesmo, com a primeira letra em maiúsculo, quase um nome próprio com potencial de substituir aquele outro mais corriqueiro: Fernand Braudel.
A “nova perspectiva” descrita por Alice, caracterizada como uma história mais atenta à interpretação e ao diálogo com a geografia, se aproximava em muito dos valores associados pela historiadora (e por grande parte de seus pares) aos Annales. Não à toa, apenas os franceses aparecem em suas lembranças acompanhados do pronome mestre, responsabilizados por promover uma verdadeira mutação na historiografia brasileira, mas também (e talvez especialmente) no ensino da história. Ainda que essa noção do pioneirismo de Braudel no ensino de história associada aos Annales seja contestável (COSTA, 2018),7 é inegável que inovação e Braudel se transformaram em sinônimos nas memórias da historiadora.
A forma de ser historiador de Braudel, suas performances corporais, assim como as práticas cotidianas de produção e ensino da história se tornaram o foco das narrativas de Alice. E é nesse apreço da historiadora por Braudel que buscarei demonstrar como maneiras arquetípicas de ser historiador, dotadas de marcadores de gênero, raça, cor, sexualidade, entre outros, estão prescritas nas identidades que são concebidas pelos e concedidas aos sujeitos.
O historiador ideal: caricaturas de Fernand Braudel
Quando comecei a escrever, tinha letra muito grande. Braudel disse-me que deveria usar letra pequena pois assim perdia-se menos tempo para escrever. A letra dele parecia um grão de areia de tão pequena. O Prof. Braudel dizia sempre que um bom artigo requer várias ‘edições’ para sair numa linguagem correta. O Prof. Braudel sempre repetia: ‘penir dans les archives’. Eu pessoalmente sempre repousei em documentos. Creio que o gosto que adquiri pela História Econômica possa ter sido influência de Braudel. Nunca fui à aula sem ter um plano. Sempre segui as recomendações do Prof. Braudel: deve-se abordar três pontos fundamentais ou no máximo quatro em cada aula, reservar um espaço ao término da aula para um resumo final (CANABRAVA, 1997, p. 157-162).
Das estratégias corriqueiras do cotidiano da produção intelectual, passando por aspectos fundamentais à metodologia de pesquisa e chegando ao ensino, Alice tinha Fernand Braudel como modelo de professor e historiador, a quem ela atribuía a origem de suas práticas intelectuais. Se o nome próprio do historiador é um sujeito quase oculto no texto de 1984, na entrevista de 1997 há outra marca interessante: Braudel é certamente o nome mais citado, como fica nítido nos trechos acima. Não são suas obras, contudo, as personagens centrais dessas memórias, mas sim sua prática historiadora no cotidiano: o estímulo à escrita em letra miúdas; a insistente permanência nos arquivos; a releitura constante dos textos; o gosto pela Economia; o planejamento das aulas.
Além dos pormenores da prática historiadora de Braudel descritos por Alice, chama atenção a expressiva adjetivação da experiência que teve com o francês: “aulas maravilhosas de História, cheias de vida, ricas de substância, nenhuma palavra inútil”. A valorização da figura de Braudel não se restringia a essas frases. O historiador, além de apreciado por práticas cotidianas da pesquisa e do ensino da história, era rememorado por sua existência corporal, seus gestos, sua desenvoltura seu trato e tudo o que cobria seu corpo historiador:
sim, encantador, não apenas pelo magnetismo das aulas, mas também pelo trato e aparência. Chegava às aulas com luvas de couro na mão, jogadas com naturalidade sobre a mesa, o terno sempre escuro de linhas perfeitas, a gravata em harmonia, todo o conjunto se coadunava em elegância sóbria. O refinamento no trato conjugava-se com a atitude espontânea e afável de nos deixar à vontade, sem um tanto inibidas, a tropeçar em nosso francês malfalado. Vencíamos aos poucos o formalismo das relações entre aluno e professor, mas este perseverava no vestir, fiel ao padrão convencional: comparecíamos às aulas de luvas e chapéu, meias e sapatos de salto alto, os rapazes de terno completo com colete, gravata e o chapéu, que, respeitosamente, depositavam na cadeira ao lado. O professor invariavelmente gentil, sempre com uma palavra afetuosa e amiga para cada aluno, ansioso para conhecê-lo mais de perto (CANABRAVA, 1984, p. 92).
O corpo, sem dúvida, ocupou um lugar de destaque nessas memórias. De Braudel em primeiro lugar, vestido com terno escuro de linhas perfeitas, com a gravata em harmonia e que, em um ato final de consagração da sua imagem quase sublime, retirava suas luvas com naturalidade jogando-as sobre a mesa. E depois dos alunos, projetos de historiadores que se vestiam à altura do Mestre. Os atributos que Alice garante ao francês nessa narrativa estão diretamente ligados à sua performance corporal e de gênero.
Quando naturalizamos os corpos a partir de signos que os cobrem, desconsideramos a maneira pela qual narrativamente reiteramos formas apropriadas de “ser”, naturalizando “corpos-homens” e “corpos-mulheres” que acabam por legitimar certos regimes de verdade excludentes (BUTLER, 2020, p. 69).
Concordo com Mary Beard quando ela afirma que “o modelo mental e cultural de uma pessoa poderosa continua a ser absolutamente masculino”. Efetivamente quando “fechamos os olhos e tentarmos conjecturar a imagem de um presidente ou - para passarmos ao âmbito do conhecimento - um professor, o que a maioria de nós vê não é uma mulher” (BEARD, 2018). O que esses textos memorialísticos de Alice permitem presumir é que, talvez, se fosse pedido também a Alice que fechasse os olhos e descrevesse a imagem de um historiador, possivelmente a caricatura imaginada seria a de Braudel.
É evidente que a importância de Braudel para a historiografia é um fator decisivo para ele figurar frequentemente nas memórias de Alice, mas o que me chama atenção é o sentido mais amplo por trás da ênfase que ela dá ao corpo de Braudel em suas memórias. Pois, sendo a materialidade do corpo efeito de um poder, ao falar sobre a aparência de Braudel, estilizar suas vestimentas, sustentada em uma caricatura masculina e também europeia, Alice produz indiretamente uma imagem generificada e colonialista do historiador ideal (BUTLER, 2019).
Fernand Braudel não é somente homem, mas também francês, le prince charmant. O status histórico de centralidade da Europa como o lugar do saber e do conhecimento foi construído e legitimado ao longo do processo colonialista. Essa relação de poder, gestada no século XV, se manteve, no entanto, mesmo após o rompimento político expresso nas independências da América Latina. A colonialidade continua prescrevendo no início do século XXI (e certamente no século XX) o padrão hegemônico do poder e do conhecimento: branco, europeu e masculino (QUIJANO, 2005, p. 117). Além disso, a França no início do século XX figurava expressamente como a nação das luzes, do saber e da modernidade. Valores como elegância e polidez estavam diretamente associados aos gauleses. É sintomático, portanto, que esse historiador ideal seja francês. Como sugere o filósofo africano Paulin Hountondji a atitude dos “trabalhadores do conhecimento” (intelectuais) da periferia global é sempre fundamentada na mobilização de categorias e teorias dos teóricos da metrópole, a fim de autorizar e legitimar o que se produz no Sul (HOUNTONDJI, 1997). As dinâmicas de gênero, como aponta Lugones (2008), tomam formas específicas em contextos coloniais e pós-coloniais, pois estão entrelaçadas às dinâmicas de colonização e globalização.
Portanto, elaborar a imagem desse historiador ideal sustentada na caricatura de Braudel é promover uma certa manutenção de regimes de verdade que fomentam a colonialidade do saber e a noção da produção intelectual como atributo masculino. Alice certamente transitou em espaços nos quais os regimes de verdade compartilhados associavam razão e produção do saber à masculinidade. Lembro ao leitor deste texto que os historiadores contemporâneos à Alice na FFCL não poupavam esforços em afirmar que não acreditavam no trabalho intelectual da mulher, com raras exceções, ou que a cátedra, posto de destaque intelectual na hierarquia acadêmica, quando ocupado por mulheres não parecia coisa séria (COSTA, 2018, p. 51).
Alice narrou-se a fim de ser reconhecida pelo outro e se o reconhecimento nesse espaço passou pela necessidade de se aproximar mais do polo masculino e europeu, então é coerente que ela assim o tenha feito. Relações de poder estão invariavelmente imbricadas no processo de relatar a si mesmo. E as cenas de reconhecimento, que se constituem como lugares de poder, não se dão somente no plano discursivo, mas também na dimensão corporal. Pois, como sugere Adriana Cavarero (2000), nós só vemos e percebemos o outro que nos constitui porque ele existe corporalmente exposto. Assim, quando Alice diz a verdade sobre si ancorada em uma imagem masculinizada do historiador, ela também exerce poder no discurso, legitimando certos regimes de verdade e tornando-se replicadora desse discurso. Processo complexo no qual ela reproduz um regime de verdade que a exclui. No entanto, se Alice tivesse optado por questionar essas formas de reconhecimento, perguntar o que elas deixavam de fora, ela estaria correndo o risco de não ser reconhecida como historiadora, estaria colocando em questão a verdade de si mesma (BUTLER, 2019, p. 35).
Porém, Alice enfrentava um impasse: ainda que elaborasse a si mesma como próxima à Braudel, havia algo que socialmente a marcava como fundamentalmente distinta de seu mestre: ela permanecia sendo uma mulher, seu corpo era socialmente generificado.8 Portanto, se não era possível a Alice se desassociar dessa sua exposição singular, o que ela fez para ser mais bem aceita nesses regimes de verdade que regiam quem seria ou não reconhecido como historiador? A reflexão inicial desse texto já nos fornece algumas pistas. Olhemos agora para a forma como Alice narrou a si mesma em suas memórias para investigar essa questão.
As possibilidades de “ser historiadora”: Alice Canabrava relatando a si mesma
O esforço tornou-se palavra-chave nas memórias de Alice. Na tentativa de legitimar-se enquanto historiadora, partindo do modelo ideal ancorado em Braudel, ela relatou a si mesma a partir da tópica do esforço e da excepcionalidade frente a outras mulheres. O contexto no qual Alice se formou foi relevante à essa construção memorial. No cenário da política de comissionamento, que possibilitou a entrada de um grande contingente de mulheres na USP, incluindo Alice Canabrava, o trabalho assíduo e disciplinado foi tratado como a única chance dessas mulheres se remediarem nos recém-fundados cursos universitários (RODRIGUES, 2020, p. 36). Compostos principalmente por homens que não rompiam com padrões patriarcais pretéritos, esses cursos se estruturaram a partir desses padrões, especialmente no que diz respeito à compreensão de que a tarefa de produção de saber era masculina por excelência (FRANÇA, 1990 apudCOSTA, 2018). Portanto, questões de gênero são estruturantes nesse relatar a si mesmo engendrado por Alice.
No intuito de marcar o esforço despendido para chegar ao nível que exigiam os professores franceses - responsáveis por estruturar o curso de geografia e história da USP -, Alice Canabrava construiu sua narrativa a partir de descrições dicotomizadas que diferenciavam sua formação educacional, e sua carreira docente interiorana, da educação universitária que adquiriu ao frequentar a USP: “a professorazinha do interior vivia empolgada pelo universo intelectual em que mergulhava, pela nova visão do mundo que ia assimilando, que implicava profunda revisão de valores” (CANABRAVA, 1984, p. 96).
Lembrar e narrar sua experiência pretérita sob o signo da excepcionalidade (especialmente em relação a outras meninas), não se tratava de “narrativa vã”, como exortou Alice (1984, p. 97). Essa escolha tinha um propósito no sentido que Alice buscou atribuir à sua trajetória intelectual. É comum, segundo Leonor Arfuch (2010), o resgate e a elaboração de mitos de origem sobre si em autobiografias, no intuito de construir um devir predestinado. Nesse sentido, tendo Alice se formado em uma universidade estruturada por padrões patriarcais, é coerente que a elaboração que ela fez de si mesma tenha se sustentado na ideia da excepcionalidade. Mas quais elementos ela utilizou para fundamentar essa exceção?
Em seu relato de 1984, Alice se apresentou como uma “criança destemida, travessa, transbordante de energia e saúde. Pouco afeita às bonecas”. Aluna exemplarmente dedicada aos estudos, mas também astuta, que nos momentos de descanso investia nas brincadeiras com “as turmas de meninos”, com quem escalava muros dos quintais desocupados para apanhar fruta madura, construía diques e apostava corrida pelas ruas ermas: “sempre boa aluna, mas travessa e inquieta, a comandar equipes e disputas de jogos, a organizar festinhas literárias à margem dos horários de aulas e de estudos” (CANABRAVA, 1984, p. 100-101).
Destemida, travessa, enérgica, inquieta são atributos social e historicamente associados à masculinidade. A filosofia clássica tendeu a considerar a emoção uma fraqueza. De Platão a Kant, a razão assume o papel do que há de melhor, a ela são associadas a ação, a energia, a inquietude (DIDI-HUBERMAN, 2016). Essa dicotomia razão versus emoção foi significada por uma série de hierarquias, sendo o gênero uma delas, a partir do qual a polarização entre masculino e feminino foi incessantemente utilizada para alicerçar a diferença e significar as relações de poder (SCOTT, 1990).
Alice, ao escolher narrar suas origens aproximando-se do universo masculino, em um esforço de se fazer legível e reconhecível como historiadora pelos outros que a cercavam, reiterou e compartilhou um certo modo de “ser” historiador excludente. O que chama atenção são as formas como, sutilmente, nesse relato de si é possível vislumbrar os regimes de verdade que Alice compartilhou e reproduziu. Extrapolando uma visão determinista que a enxerga como uma historiadora à frente de seu tempo, mas também evitando o olhar historicista que toma o anacronismo como maior risco do trabalho do historiador, busquei até aqui demonstrar como as cenas de reconhecimento compartilhadas por Alice estiveram orientadas por uma visão patriarcal da produção do conhecimento como tarefa dos homens, que a levou a elaborar modos coloniais e masculinos de ser reconhecida como historiadora.
Considerações finais
Alice, portanto, reiterou certas matrizes culturais que prescreviam normas de gênero coerentes aos historiadores ao final do século XX. Isso se torna nítido no relato que faz de si ancorada no modelo ideal de historiador por ela elaborado. A historiadora, para ser aceita entre seus pares, lançou mão de uma estilística e de uma performance reconhecível nos espaços em que transitou. Alice elaborou um corpo, um gênero e uma nacionalidade a esse historiador ideal, a quem ela posteriormente buscou se apresentar de maneira semelhante.
Nos textos memorialísticos em debate neste trabalho, o gênero foi insistente e implicitamente mobilizado por Alice para fundamentar seus relatos: quando se referia à sua infância, buscando representar-se como mais afeita às atividades tidas como masculinas; no ato de vestir o seu corpo; ou na produção da imagem de Fernand Braudel.
Em síntese, o que busquei demonstrar no rápido vislumbre dessa trajetória é a maneira pela qual o corpo e as performances corporais também compõem as disciplinas, as identidades e os modos de ser historiador. Ainda assim, ele se constitui uma das grandes lacunas da história e, consequentemente, da história da historiografia também.
É preciso dar corpo à história, à história intelectual e à história da historiografia, aos historiadores e às suas performances que, para além das práticas intelectuais, engendram corpos-homens ou corpos-mulheres capazes de promover a manutenção ou o questionamento de certos regimes de verdade. É preciso dar corpo àqueles que corporalmente também escrevem a história.
Agradecimento:
Agradeço ao meu orientador Douglas Attila Marcelino pela ajuda em todo o processo de escrita da dissertação que me possibilitou a escrita deste texto.
Referências
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1
Optei por utilizar o nome próprio, quando não referenciada como Alice Canabrava, por entender que a tendência acadêmica de empregar o sobrenome esconde inúmeras identidades - ainda que complexas e em alguns casos conflitantes - presentes no nome próprio.
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2
Entendo identidades como unidades provisórias, estados adquiridos e transitórios (BUTLER, 2019; 2020).
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3
Quando muito, o gênero aparece como preocupação complementar. E, mesmo nos trabalhos que o consideram, isso se dá mais frequentemente quando se fala de mulheres. As questões de gênero, englobando as masculinidades, raramente são abordadas quando as pesquisas dizem respeito a homens.
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4
Especialmente em uma sociedade que frequentemente recorre às dicotomias de gênero para significar diferenças, o fato de Alice dispor de roupas masculinizadas certamente passa uma mensagem (SCOTT, 1990).
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5
Segundo Oliveira (2021, p. 64), “textos e imagens solicitam um olhar crítico daqueles que se põem a observar tais movimentos, um modo de vagabundos nestas zonas de imagens, a ponto de que tais lugares pouco a pouco fazem com que os próprios campos se tornem campos de batalhas”.
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6
Essa visão é controversa. Os próprios institutos, organizados no modelo dos seminários do final do século XIX, se sustentaram como lugares onde o saber científico encontrava a comunicabilidade tão fundamental ao advento da ideia da história como ciência moderna (DASTON, 2017).
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7
Além disso, a própria noção de “escola” dos Annales é fortemente discutida na historiografia. De modo geral, compartilho a compreensão de que a constituição dessa ideia se trata da invenção de uma tradição a posteriori (ROIZ; SANTOS, 2012, p. 37).
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8
Segundo Butler as pessoas só se tornam inteligíveis “ao adquirir seu gênero de acordo com padrões reconhecíveis de inteligibilidade do gênero”. Essas identidades de gênero, são produtos de práticas discursivas reguladoras que definem normas de gênero coerente (BUTLER, 2020, p. 42).
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Endereço para correspondência:
Rua Jataí, número 538, Belo Horizonte, MG, 31140190, Brasil.
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Financiamento:
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
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Aprovação no comitê de ética:
Não se aplica
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Modalidade de avaliação
Duplo-cega por pares.
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Contexto de pesquisa
O artigo deriva da dissertação “Haverá forças mais construtivas do que o pensamento e a imaginação? Um debate sobre identidades em Alice Canabrava”, orientada por Douglas Attila Marcelino, na Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de pós-graduação em História, defendida no ano de 2021.
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Preprint
O artigo não é um preprint.
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Disponibilidade de dados de pesquisa e outros materiais
Não se aplica
Disponibilidade de dados
Não se aplica
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Maio 2024 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
30 Jun 2022 -
Revisado
26 Ago 2022 -
Revisado
06 Set 2022 -
Aceito
23 Set 2022