Resumo
Este ensaio tem como objetivo tensionar as categorias meta-históricas propostas por Koselleck como antropológicas e universais, e que seriam centrais na composição do tempo histórico, e confrontá-las com o pensamento de Ailton Krenak. Nesse percurso, partimos da elaboração de Koselleck, passamos pela apropriação que realiza Ricoeur das categorias na proposição de uma Hermenêutica da consciência histórica e apresentamos ainda a concepção de Hartog de regimes de historicidade, na qual experiência e expectativa também se manifestam. Em um segundo momento, trabalhamos as temporalidades dos povos não historicizados e, portanto, excluídos do modo de existir eurocêntrico, para, ao final, nos dedicarmos ao pensamento de Krenak, que colhemos nos textos lançados nos últimos quatro anos e com o qual confrontamos a proposição universalista de Koselleck para espaço de experiência e horizonte de expectativas.
Palavras-chave: Reinhart Koselleck; Temporalidades; Tempo histórico
Abstract
This essay aims to stress the metahistorical categories proposed by Koselleck (2014) as anthropological and universal and that would be central in the composition of historical time, confronting them with the thought of Ailton Krenak. In this path, we start from the elaboration by Koselleck, go through the appropriation that Ricoeur (2010) performs of the categories in the elaboration of a Hermeneutics of the historical conscience and we also present Hartog’s conception (2015) of regimes of historicity, where experience and expectation are also manifested . In a second moment, we work with the temporalities of non-historicized peoples and, therefore, excluded from the Eurocentric way of existing, in order to, in the end, dedicate ourselves to Krenak’s thought that we gleaned from the texts of the last four years and with which we confront the universalist proposition of Koselleck for space of experience and horizon of expectations
Keywords: Reinhart Koselleck; Temporalities; Historical time
Introdução
Em um conhecido ensaio, Reinhart Koselleck (2014, p. 309) busca demonstrar que o tempo histórico não é apenas uma nomenclatura aleatória usada com grande frequência, mas uma “grandeza que se transforma com a história […]”, sendo que tal transformação pode ser observada nas divergências perceptíveis entre a experiência e a expectativa, conceitos que ele apresenta como sendo dotados de uma dimensão meta-histórica que, carregando dimensões antropológicos, “[…] são condição para as histórias possíveis”. É nesse sentido que as categorias espaço de experiência e horizonte de expectativas, situadas pelo autor como meta-históricas ou antropológicas, são postas em jogo como propostas metodológicas de tematização do tempo histórico, que pretendem “um grau de generalidade mais elevado”. Apresentando similaridade às categorias de espaço e tempo, espaço de experiência e horizonte de expectativas convocam a temporalidade do ser humano e, de um ponto de vista meta-histórico, também a da história (Koselleck, 2014, p. 309). A experiência é passado presente; a expectativa, por sua vez, é futuro feito presente (Koselleck, 2014, p. 338).
Para o pensador alemão, espaço de experiência e horizonte de expectativas, como categorias meta-históricas, não compreendem nenhum conteúdo específico e são utilizadas para apreender as configurações da história num dado momento, numa dada sociedade. Em seu ensaio, Koselleck é explícito ao afirmar que “[t]rata-se de categorias do conhecimento capazes de fundamentar a possibilidade de uma história”. Isso é dizer, então, que “todas as histórias foram constituídas pelas experiências vividas e pelas expectativas das pessoas que atuam ou que sofrem. Com isso, porém, ainda nada dissemos sobre uma história concreta - passada, presente ou futura” (Koselleck, 2014, p. 306). No uso dos termos dessas categorias, um cuidado é necessário, alerta ele: o de não os tomarmos como simétricos ou especulares, pois, afinal, “[p]assado e futuro jamais chegam a coincidir” (Koselleck, 2014, p. 311).
Os dois termos são particularmente úteis a Koselleck para caracterizar o regime temporal que se instaura no Ocidente, a partir da Europa, no chamado período moderno. Num esforço simultâneo de demonstrar a força das categorias meta-históricas e também de elucidar a modernidade europeia, tema de diferentes trabalhos seus, Koselleck inicial e brevemente a distingue da que foi estabelecida pela doutrina cristã e que predominou até mais ou menos o século XVIII. Naquele momento, diz ele, “[a] revelação bíblica, gerenciada pela Igreja, envolvia de tal forma a tensão entre experiência e expectativa que elas não podiam separar-se” (Koselleck, 2014, p. 315). Já no chamado período moderno europeu, uma outra dinâmica temporal se instala, marcada pelo surgimento e predomínio da noção de progresso. Com ele, o horizonte de expectativa passou a conter um elemento de novidade e de mudança que serviu ainda para esvaziar o espaço de experiência de sua capacidade de informar o presente, apreendido então como um lugar de ação, em que se rompe com o que já se foi, em nome do que virá. A configuração temporal ocidental moderna, assim, para Koselleck (2014, p. 320), “[s]empre se tratava de superar experiências que não podiam ser derivadas das experiências anteriores, e, portanto, de formular expectativas que antes ainda não podiam ser concebidas”.
As categorias meta-históricas elaboradas por Koselleck foram sem dúvida seminais para o pensamento sobre a história e o fazer historiográfico. Alguns de seus leitores mais atentos utilizam espaço de experiência e horizonte de expectativas não só para apreender com mais nitidez a temporalidade moderna ocidental como para demarcá-la em relação ao contemporâneo. É o caso, por exemplo, de Paul Ricoeur, que as retoma para refletir sobre a consciência histórica. Já François Hartog, por sua vez, as utiliza como apoio para a sua proposta acerca dos “regimes de historicidade”, voltando sua atenção para o que ele chama de “presentismo” contemporâneo. Em um texto anterior (Leal e Rêgo, 2023), investigamos essas categorias meta-históricas em diálogo estreito com Koselleck e Ricoeur, uma vez que buscávamos observar, especialmente em torno da categoria espaço de experiência (mas com implicações para horizonte de expectativas), dinâmicas de pertença, ação e movimento.
Reconhecendo a pregnância das categorias para a apreensão das dinâmicas temporais ocidentais, nos propomos aqui a outro desafio: pensar sua aplicabilidade a contextos e referentes a povos não incluídos na história ocidental. O desafio considera, como ponto de partida, pensamentos que se posicionam em outras perspectivas e se distanciam da eurocêntrica, mas são obrigados a se relacionar com ela, por força do passado colonial e das verticalidades globais. Nesse sentido, nos aproximamos dos artigos publicados por Ailton Krenak, pensador indígena brasileiro, cujos livros têm grande repercussão. Distantes de um pensamento acadêmico típico, seus textos são oriundos de palestras e registros de falas em diferentes fóruns. Em comum, esses artigos buscam oferecer tanto uma crítica ao modo de vida e ao pensamento ocidental como também registrar outros modos de experiência do mundo e do tempo, a partir da perspectiva da etnia Krenak e de outros povos originários. Para nós, a afirmação de um “futuro ancestral” (título de um de seus livros) (Krenak, 2022) opera uma concepção temporal em que espaço de experiência e horizonte de expectativas se articulam de modo peculiar e potente e que se contrapõem ao que seria, nos termos de Hartog, o presentismo ocidental. No entanto, nos perguntamos ainda se a “ambição universal” das categorias meta-históricas pode- ou mesmo deve - ser validada na aproximação a essas outras experiências culturais do tempo, dado seu estreito vínculo com o pensamento eurocêntrico. No desenvolvimento dessa reflexão, iniciamos com uma caracterização dos tempos ocidentais, moderno e contemporâneo, para, então, buscarmos uma leitura da dinâmica temporal, marcada pela ancestralidade, em Krenak, conscientes de que os tempos históricos dos povos originários talvez não se revele na fluidez das categorias koselleckianas. Afinal, neles, experiência e expectativas divergem da visada do regime de historicidade da modernidade, fazendo com que a possível compreensão do que seria tempo histórico se apresente de modo divergente ou mesmo não se verifique. Numa visada inicial, a ideia de ancestralidade corresponderia, na direção contrária do “presentismo” e da temporalidade moderna (“futurista”, segundo Hartog), à uma expansão do espaço de experiência, que se sobreporia ao presente e ao futuro. Tal percepção, à luz do que é entrevisto nos artigos de Krenak, nos parece que não poderia ser mais equivocada.
Entre o presente vivo e o presentismo
O caráter amplo, “universal”, de espaço de experiência e horizonte de expectativa é defendido e em certa medida precisado por Paul Ricoeur, em Tempo e narrativa. O filósofo francês, ao mesmo tempo que recupera e avança na aproximação das categorias meta-históricas à modernidade, delineia também algumas relações que possibilitam o “ser-afetado-pelo-passado” e a defesa do “presente histórico”. No interior da filosofia e da história europeias, Ricoeur busca, nesses movimentos, afirmar um presente vivo, no qual é possível a iniciativa, os vínculos com o passado e também a concepção de um futuro como fértil em possibilidades. Nesse sentido, conforme afirma, é preciso “renunciar a Hegel” e sua concepção da História, ao mesmo tempo que é necessário reconhecer, entre outros, os vínculos móveis com a tradição (tripartida em Tradição, tradições e tradicionalidade), com sucessores e predecessores. À distância da ideia moderna eurocêntrica de que a história está por fazer, Ricoeur defende um presente vivo, no qual ser afetado pelo passado, através de diferentes relações, é condição ética e política para a ação e a abertura de novas possibilidades de futuro.
Como observa Daniel Ovalle (2019, 2021), e também Reis (2013), o ser-afetado-pelo-passado é a principal categoria da formulação ricouericana acerca da consciência histórica. Isso não é dizer que, em Ricoeur, observa Ovalle, a consciência histórica se deixa circunscrever à relação presente-passado. Na direção contrária, a retomada das categorias meta-históricas de Kolleck serve, também, para o filósofo francês reivindicar o futuro - visto para além das lentes do progresso - como elemento de vivacidade do presente. Nesse sentido, a afirmação da consciência histórica, ao incorporar a crítica da experiência temporal moderna, está articulada, como se verifica em Tempo e narrativa, à afirmação ética e política de um presente, “[…] prenhe da iminência de um porvir próximo e da recência de um passado que acabou de escoar” (Ricoeur, 2010, p. 396). A noção de consciência histórica em Ricoeur, como acentua Ovalle (2019), se revela um fenômeno cultural, em que se articulam, a partir de um presente vivo, tensões - múltiplas - entre passado e futuro. Ovalle, assim, reitera a percepção de François Dosse (2013), que, em sua biografia intelectual do pensador francês, reconhece que a hermenêutica da consciência histórica ricoeuriana é “não está tecida somente com uma finalidade científica”, sendo estendida a um “fazer humano, a um diálogo a se instituir entre as gerações, a um atuar no presente” (Dosse, 2013, p. 522, tradução nossa).
Assim, espaço de experiência e horizonte de expectativas recebem uma defesa contundente de Ricoeur, que, num primeiro momento, as afasta de um enraizamento direto na dinâmica temporal moderna europeia, utilizando-as para identificar o que chama de “topoi” (as noções de “tempo novo”, “tempo acelerado” e da “história por fazer”) que configuram essa temporalidade particular. Com isso, as categorias meta-históricas são vistas como instrumentos que permitem vislumbrar criticamente esses topoi, sem se confundir com eles. O segundo momento ricoeuriano diz respeito especificamente ao estatuto dessas categorias. Para o filósofo francês, elas são, antes de mais nada, pertencentes ao pensamento sobre a história, ou seja, servem como recursos de investigação do que ele chama de uma “antropologia filosófica” e não constituem, portanto, realidades históricas particulares. Além disso, Ricoeur (2010, p. 364) acentua que “[…] a relação entre o horizonte de expectativas e o espaço de experiência é ela mesma uma relação variável”. É essa variabilidade de conteúdos e modos de articulação que garante a sua força heurística.
É no terceiro argumento desenvolvido por Ricoeur que aparentes contradições se manifestam. Por um lado, ele reconhece que a “transcendência”, a “ambição universal” de horizonte de expectativas e espaço de experiência “só se salvam” por suas implicações éticas e políticas, ou seja, “[…] sua tarefa é impedir que a cisão entre esses dois pólos do pensamento da história se torne cisma” (Ricoeur, 2010, p. 367). Uma tarefa ética e política para as categorias só pode se dar em uma realidade histórica específica e Ricoeur, nesse momento, faz referências explícitas ao pensamento e à experiência moderna europeia. Assim, por um lado, a associação direta das categorias meta-históricas à realidade europeia faz com que ou a transcendência aparentemente se perca, ou a “ambição universal” se revele vã, para não dizer imperialista e colonizadora. Ricoeur, assim circunscreve nas suas reflexões as categorias meta-históricas koselleckianas na realidade histórica em que vive e na qual desenvolve seu pensamento, apresentando então uma espécie de apelo ético e político, coerente com sua defesa da importância de uma consciência histórica. Nesse sentido, por outro lado, tendo como referência a modernidade europeia, entendida como um “projeto inacabado”, que depende de uma argumentação legitimadora na “prática em geral” e na “política em particular”, Ricoeur vincula as categorias koselleckianas a uma “razão prática”, que, essa sim, sustentaria sua ambição universal. Para Ricoeur, a descrição do horizonte de expectativas e do espaço de experiência é sempre uma “prescrição”. Com isso,
[…] caso se admita que não há história que não seja constituída pelas experiências e pelas expectativas dos homens que agem e sofrem ou, ainda, que ambas as categorias tomadas conjuntamente tematizam o tempo histórico, supõe-se que a tensão entre horizonte de expectativas e espaço de experiência deve ser preservada para que continue havendo história (Ricoeur, 2010, p. 366, grifos do autor).
Assim, em Ricoeur, podemos observar o que talvez não seja exatamente uma contradição, mas uma ambivalência. Horizonte de expectativas e espaço de experiência são categorias pensadas no âmbito da História tal como entendida e estudada na Europa e em países constituídos a partir de lá. Foram especialmente úteis na caracterização de uma experiência temporal específica, moderna e europeia. No entanto, apesar disso, são vistos e apresentados como “transcendentes”, pois ambicionam ser adequados a quem quiser pensar qualquer realidade histórica (resguardada a imprecisão do que seria uma “realidade histórica”). O acionamento de tais categorias, portanto, implica se não uma filiação acrítica ao menos uma intimidade teórica, pois elas não vêm do nada: respondem a demandas peculiares, num pensamento historicamente situado. Nesse sentido, a sua validade ampla é antes uma proposta que um dado. A própria ideia de uma “tensão” entre espaço de experiência e horizonte de expectativa deve ser vista com cuidado, pois parece trair sua origem específica, uma vez que os modos de articulação entre passado e futuro não envolvem necessariamente fricções, ansiedades ou angústias. Ao mesmo tempo, ao afirmar seu caráter prático e mesmo a prescrição contida na descrição que prometem, Ricoeur explicitamente localiza quem se utiliza das categorias meta-históricas: elas podem até ser vistas como transcendentais, mas quem as maneja certamente não o é.
A aproximação entre as categorias meta-históricas e experiência culturais do tempo não europeias ou eurocentradas exige assim um grande cuidado. Quando se tem em vista aquelas que se dão sob o jugo da globalização, face contemporânea do colonialismo ocidental, esse cuidado se redobra, pois não se pode perder de vista os modos como essa experiência temporal “global” se apresenta. Nesse sentido, a defesa ricoeuriana de um “presente vivo”, que se dá numa crítica à modernidade europeia, ganha outros contornos quando se considera que para pensadores como François Hartog esse tempo moderno já não é o contemporâneo, o que é vivido hoje na Europa. Hartog (2014, 2022) retoma as categorias meta-históricas koselleckianas para desenvolver o que chama de “regimes de historicidade” e, a partir dessa noção, caracterizar tanto a temporalidade moderna europeia quanto os modos como as temporalidades são vividas hoje, em particular no Ocidente. Enquanto modernamente, segundo ele, se vivia numa espécie de “futurismo”, contemporaneamente vive-se um presentismo, que organiza de outro modo as relações entre passado, presente e futuro, entre experiência e expectativas.
Definindo “regime de historicidade” como uma ferramenta heurística, que visa permitir um “questionamento historiador” sobre as relações com o tempo, Hartog entende que a noção não recusa ou supera as categorias meta-históricas de Koselleck. Para o pesquisador francês, assim como para Ricoeur, para pensar o tempo histórico é necessariamente lidar com tais categorias, uma vez que aquele resulta da distância, da tensão entre espaço de experiência e horizonte de expectativas. Assim, Hartog reconhece e valida a ambição universal das categorias, ao mesmo tempo que as utiliza para caracterizar e contrastar os regimes de historicidade moderno europeu e o contemporâneo. Na sua leitura, a dissimetria moderna entre espaço de experiência e horizonte de expectativas foi marcada pelo privilégio ao futuro, que assumiu o ônus de “iluminar” o passado e indicar o caminho a seguir (Hartog, 2020). Com o passar dos anos, essa dissimetria se amplia, a ponto de o “nosso” presente se desejar bastar a si mesmo.
Segundo Hartog (2020), nas últimas décadas do século XX e neste início do XXI, experiencia-se, a partir da hegemonia do regime de historicidade eurocêntrico e norte-atlântico, um presentismo que, por um lado, resulta do aprofundamento das relações temporais instauradas na modernidade e, por outro, se assemelha ao que estabelecido na cristandade, na Europa medieval e pré-moderna. Em sua leitura, esse presentismo desafia a própria ideia de tempo histórico, uma vez se institui no esvaziamento do passado e do futuro:
De fato, paradoxalmente, enquanto, por um lado, o presente, considerado como um instante, tende quase a ser abolido, por outro lado, ele não cessa de se estender tanto na direção do passado quanto do futuro se tornando uma espécie de presente perpétuo. A expectativa de vida aumenta e as populações ocidentais envelhecem, contribuindo então para que o presente amplie seus domínios. […] Onipresente, o presente canibaliza as categorias do passado e do futuro: fabrica-se diariamente primeiro, depois, a cada momento e continuamente, o passado e o futuro de que necessita. Saímos do telejornal das 20h para os canais de notícias 24 horas e Facebook e Twitter. Anúncios em todos os lugares anunciam que o futuro começa “Amanhã” ou, melhor ainda, “Agora” (Hartog, 2022, p. 144, tradução nossa).
No esforço de caracterizar esse novo e incômodo regime de historicidade, Hartog, num gesto próximo ao de Ricoeur, identifica não os topoi, mas um breve vocabulário do presentismo contemporâneo, composto, entre outras, pelas noções de aceleração, urgência, emergência, proteção, precaução e prevenção. Se o futuro, fundamental para o regime de historicidade moderno, se torna ameaçador, o presente agora se expande, esvaziando espaço de experiência e horizonte de expectativas. Para Hartog, esse presentismo é estabelecido pelas forças culturais, políticas e econômicas que regem a globalização, mas não existe sem variações ou resistência e se dá também em confronto com outras experiências temporais. Assim, por um lado, o presentismo abriga um “mosaico de guetos temporais”, o que implica que - apesar dos discursos da globalização - ele não seja homogêneo. Se há a escolha pelo presentismo realizada pelos “vitoriosos da globalização”, há sua imposição a outros grupos populacionais, como os que têm a vida precarizada, os que estão à margem, na periferia do capitalismo global e vivem cotidianamente com a ausência de perspectiva em relação ao futuro. Por outro lado, Hartog (2020, p. 151, tradução nossa) identifica outras temporalidades vinculadas a idade e classe social, por exemplo, de tal modo que “[…] os contemporâneos compartilham o mesmo presente, estando simultaneamente em outro tempo”.
O presentismo, portanto, não é homogêneo, não alcança todas as pessoas igualmente e envolve tensões entre forças hegemônicas, verticais, por assim dizer, e realidades específicas. Em que pesem a densidade e as provocações que as reflexões que Hartog trazem, é importante verificar que ele considera, inclusive quando se serve das categorias meta-históricas, o presentismo a partir de um lugar social e geográfico específico, de onde consegue até mesmo identificar discrepâncias, discordâncias e fraturas internas a um mesmo regime de historicidade. Quando muito, Hartog reconhece que países como a Índia ou a China não abrem mão de parâmetros (como uma noção de desenvolvimento) típicos da temporalidade moderna europeia. Não chega a alcançar, portanto, outras historicidades, outras experiências temporais que não aquela eurocêntrica. Esse olhar mais amplo, em Hartog, se dá no máximo quando adota a noção de Antropoceno e a vê organizando um regime de historicidade que se contrapõe ao presentismo.
Em Chronos: L’Occident aux prises avec le Temps, Hartog (2020, p. 155, tradução nossa) aborda a saída do presentismo como um paradoxo vivenciado a partir das proposições catastróficas que se têm como referência o Antropoceno, trazendo uma “ideia de fim que a catástrofe presentista desconhecia”. Para Hartog, enquanto na modernidade a “humanidade” empenhada na ideia de progresso mantinha a crença de libertação dos ditames da Natureza, no Antropoceno a intervenção do ser humano em Gaia, coloca a Natureza no centro da expectativa como potente força geológica que reage às intervenções do ser humano em seus ecossistemas. Nesse processo de saída de um presentismo para a incerteza, Hartog (2020, p. 155) coloca em confronto os que vislumbram grandes realizações científicas e tecnológicas, com os catastrofistas, colapsologistas, apocalíticos etc. No contexto sul-global, por sua vez, Krenak (2022) opõe a seu modo o que denomina de cenários apocalípticos com a potência de redenção que possui a “humanidade”; todavia a saída que projeta para a catástrofe moderna encontra-se na peculiar composição temporal da ancestralidade e em sua relação com a natureza.
As temporalidades dos povos não historicizados
As sofisticadas reflexões de Koselleck (2014), Ricoeur (2010) e Hartog (2014, 2020) não nos permitem esquecer que a história ocidental, que carrega os paradigmas de uma história geral, possui vinculações diretas ao modo de ser eurocêntrico e, por consequência, a uma empreitada colonialista realizada pela maioria dos países que compõem o continente europeu, autodesignado como centro do mundo. Como bem destacam Trzan e Mattar (2022), as existências do norte se colocam como signos do ser, enquanto as colonizadas não chegam a ser, nem quando se aproximam do mesmo-europeu a partir da religião, dos estudos ou dos modos de produção, tendo em vista que todo o seu modo de existir é considerado inferior. “Nos termos dos estudos decoloniais, pode-se dizer que, basicamente, a colonialidade promove dominação política (poder), epistemológica (saber) e ontológica (ser)” (Trzan e Mattar, 2022, p. 10), ao que acrescentamos que a colonização também promove a dominação econômico-financeira e a exploração capitalista.
Entre as(os) diferentes pensadoras(es) que refletiram e investigaram faces, características e desdobramentos do colonialismo europeu (e, a seguir, estadunidense), Aimé Césarie (2022), no hoje clássico Discurso sobre o colonialismo, publicado inicialmente na década de 1950, denuncia a dita civilização ocidental enfocando os traços do colonialismo e do racismo como bases do capitalismo e da modernidade. Para esse autor, a Europa é tanto imoral quanto espiritualmente indefensável, tendo em vista que em seus territórios de origem pregam a liberdade, a igualdade e a fraternidade, mas se permitem matar e escravizar nos territórios dominados. Diz Césarie (2022, p. 161):
O fato é que a civilização dita “europeia”, a civilização “ocidental”, tal como a moldaram dois séculos de regime burguês é incapaz de resolver os dois principais problemas aos quais sua existência deu origem: o problema do proletariado e o problema colonial; que essa Europa, submetida ao crivo da “razão”, assim como ao crivo da “consciência”, mostra-se indefesa ao se justificar; e que ela cada vez mais se refugia em uma hipocrisia tão mais odiosa por ser cada vez menos capaz de iludir.
As plurais formas de dominação exibem o gesto explorador do europeu e determinam as coexistências entre o colonizador e o colonizado, este último sendo invisibilizado e apagado pela modernidade e pela razão que teoricamente a guia. As existências foram assim, estratificadas em grupos e subgrupos, entre possuidores(as) e despossuídos(as) (Trzan e Mattar, 2022), de conhecimento, de poder, de dinheiro e de uma existência reconhecida. Essa dominação não se deu a partir do simples desconhecimento dos modos como outros povos, inclusive ameríndios, viam as formas de pensar e agir europeus. Em O despertar de tudo: uma nova história da humanidade, Graeber e Wengow (2022) destacam a crítica que os povos indígenas da América do Norte fizeram à civilização europeia já nos séculos XVII e XVIII, questionando o poder hereditário, o uso e o poder do dinheiro, a imposição da fé, como também os direitos das mulheres e as liberdades pessoais. Para os autores, a crítica dos indígenas tanto serviu de inspiração às ideias iluministas francesas, quanto teria despertado uma forte reação dos pensadores da modernidade europeia que por sua vez, teriam estruturado a história humana nos moldes que permanecem até os dias atuais. Eles observam que, ao conceber a história como um “relato de progresso material”, esse enquadramento dominante e dominador “[…] redefiniu os críticos indígenas como filhos inocentes da natureza, cujas concepções da liberdade, meros efeitos de seu modo de vida inculto, não constituíam um desafio sério ao pensamento social contemporâneo” (Graeber e Wengow, 2022, p. 469).
As relações entre o homem branco europeu e as comunidades ameríndias e africanas se deram sempre a partir de um patamar de exploração, quando não de escravidão e/ou extermínio. Os saberes e as culturas outras foram desprezadas. A história ocidental é uma história de desprezo pela dita humanidade que a civilização europeia tanto insiste em destacar a partir de uma teórica relação de igualdade. Aimé Césarie (2022) já havia notado que entre civilização e colonização há um grande hiato. A colonização desnuda a camada civilizatória europeia, reverbera o lado desumano da humanidade e o potencializa. Os traços civilizatórios da colonização vinculados à fé e à difusão de um pretenso Deus único, alinhados a um processo educacional que combateria um determinado tipo de ignorância, ou a difusão de direitos aos que se tornariam novos cidadãos, constituiu um fino véu, por trás do qual se posicionava “[…] a funesta sombra lançada por uma forma de civilização que, a um dado momento de sua história, se viu internamente compelida a estender à escala mundial a concorrência de suas economias antagônicas (Césarie, 2022, p. 162).
Há, portanto, entre a civilização moderna eurocêntrica, suas estruturas de poder político e econômica, sua dominação ontológica e sua estruturação dos saberes e as visões dos povos ameríndios e africanos colonizados e explorados, abismos diversos que atravessam as visões e relações entre humanos e não humanos. Isso influi diretamente no conceito ocidental europeu de humanidade, tensionando-o e desconstruindo-o, como também nas relações com o mundo, com o tempo e com o espaço.
Danowski e Viveiros de Castro (2022), em diálogo com Bruno Latour, chamam atenção para o fato de que há um despertar tardio, ainda que não unânime, da cultura contemporânea, em relação ao entendimento de que os principais atores da vida na terra, planeta e espécie, “humanidade” e “mundo”, “[…] entraram em uma conjunção cosmológica nefasta”. Para isso, termos como “Antropoceno” e “Gaia” têm um papel fundamental. Para os pesquisadores brasileiros, o Antropoceno é entendido como um tempo do tempo, uma experiência distinta de historicidade (algo reconhecido inclusive por Hartog), em que a história humana e as cronologias da biologia e geofísica se aproximam ou se invertem: “[…] o ambiente muda mais depressa que a sociedade, e o futuro próximo se torna, com isso, não só cada vez mais imprevisível, como, talvez, cada vez mais impossível” (Danowski e Viveiros de Castro, 2022, p. 111). Já “Gaia” é visto como uma nova experiência de espaço, antes tomada como frágil e suscetível e que se assume agora enquanto “potência ameaçadora que evoca aquelas divindades indiferentes, imprevisíveis e incompreensíveis de nosso passado arcaico” (Danowski e Viveiros de Castro, 2022, p. 111), o que pode vir a provocar uma nulidade de futuro, pelo controle perdido, pelo pânico desperto e pelos desafios que se colocam à modernidade e ao capitalismo.
Nas relações entre colonialidade, modernidade e capitalismo encontramos os caminhos de construção do conhecimento moderno tanto quanto da historiografia e os ditames da historicidade eurocêntrica que pretendeu estender a todos os continentes a relação de exploração do mundo e da natureza tomada tão somente como objeto. Entretanto, nas cosmologias ameríndias há muito mais do que uma relação de exploração entre humanidade e mundo. Há uma subsunção, uma inclusão que se opõe à exploração para técnica e tecnologias, como nos dizem Danowski e Viveiros de Castro (2022, p. 96):
A ênfase da práxis indígena é na produção regrada de transformações capazes de reproduzir o presente etnográfico (rituais de ciclo da vida, gestão metafísica da morte, xamanismo como diplomacia cósmica) e assim de impedir a proliferação regressiva e caótica de transformações. O controle é necessário porque o potencial transformativo do mundo, como o atestam os índices onipresentes de atividade de uma intencionalidade antropomorfa universal, manifesta uma perigosa, mas necessária remanência.
Essa remanência necessária, nos dizem os autores, se refere a uma atualização do presente etnográfico, uma revisitação de um estado de cosmologias anteriores, nos quais residem as diferenciações e as construções de sentido para uma outra humanidade, alargada. Para Danowski e Viveiros de Castro (2022, p. 97), “[o] multiverso antropomórfico, em sua virtualidade originária, é assim suscitado-conjurado, sob a forma de uma animalização do humano - a máscara teriomórfica do dançarino-espírito, o devir-fera do guerreiro - que é reciprocamente uma humanização mítica do animal”. Nesse contexto e, portanto, na relação contemporânea entre Antropoceno, como um novo tempo no tempo, e Gaia, como espaço que de tanto explorado se transforma em ameaça, residem diferentes formas de relação entre passado e futuro, entre a experiência e a expectativa que podem ser relacionadas às categorias meta-históricas koselleckianas e que tentaremos confrontar, em diálogo com o pensamento de Krenak, nas próximas páginas.
Um futuro ancestral
Ailton Krenak é percebido, por diferentes autores (Arraes, 2015; Portela, 2017; Danner, Dorrico e Danner, 2019; Franco Neto, 2022), como “filósofo”, “ativista”, “líder indígena”, “intelectual”, “pensador”. Independente do rótulo, seu pensamento é tido como dos mais importantes tanto em relação aos povos originários no Brasil quanto na crítica à globalização, à modernidade europeia e ao colonialismo. Para Franco Neto (2022), o pensamento de Ailton Krenak expressa o que ele define como “dupla consciência”, ou seja, se desenvolve tanto “de dentro” dos processos coloniais e globalizantes, responsáveis pela precarização das condições de vida que incidem e circunscrevem várias populações, inclusive os povos originários, quanto e especialmente “de fora”, ou seja, sem se identificar ou efetivamente integrar-se a tais dinâmicas e colocando-se sempre em relação de alteridade, como outro cultural, político e epistêmico, em meio a elas.
Esse posicionamento peculiar, de convivência irresolvida e cotidiana de temporalidades contraditórias - que remete à ideia de “ch’ixi” identificado e afirmada por Silvia Rivera Cusicanqui (2018) a partir e em relação aos povos andinos na Bolívia - se materializa na recusa à noção corrente, afirmada na modernidade europeia, de “humanidade”. Diz Krenak (2020, p. 10, grifo nosso):
Ao longo da história, os humanos, aliás, esse clube exclusivo da humanidade - que está na declaração universal dos direitos humanos e nos protocolos das instituições - foram devastando tudo ao seu redor. É como se tivessem elegido uma casta, humanidade, e todos que estão fora dela são a sub-humanidade. Não são só os caiçaras, os quilombolas e os povos indígenas, mas toda a vida que deliberadamente largamos pelo caminho.
Nesse trecho, como se vê, Krenak é explícito na recusa de uma ideia, moderna e eurocêntrica, de humanidade que se assenta na exclusão e sub-humanização de outros povos, cujo destino é ou integrar-se ou vivenciar diferentes formas de morte, por ausência de direitos, por genocídio, por deslegitimação, por guetização, por más condições de vida ou outros mecanismos necropolíticos. Ele continua:
A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível. Esse chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra, uma certa verdade, ou uma concepção de verdade, que guiou muitas das escolhas feitas em diferentes períodos da história (Krenak, 2020, p. 11).
Danner, Dorrico e Danner (2019) são explícitos em reconhecer a pertinência e a validade da percepção de Krenak a respeito da modernidade europeia, vista como a afirmação de “[…] um mundo completo, fechado, autorreferencial, autossuficiente e autossubsistente, que não precisa do outro da modernidade”, uma vez que “o minimiza, deslegitima e, por fim, o assimila exatamente com esse argumento de que ele representa um passo evolutivo a ser superado pelo processo de modernidade-modernização” (Danner, Dorrico e Danner, 2019, p. 77). Nessa perspectiva, os autores observam ainda o papel central do colonialismo, visto, para além da sua realidade histórica, como uma “teoria da modernidade”. Na direção contrária, Krenak é enfático em afirmar uma multiplicidade de modos de ser, habitar e experienciar o mundo, que se oferece como resistência, alteridade e alternativa aos processos coloniais e globalizantes:
O fato de podermos compartilhar esse espaço, estamos juntos viajando mão significa que somos iguais; significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que deveriam guiar nosso roteiro de vida. Ter diversidade, não isso de uma humanidade com o mesmo protocolo. Porque isso até agora foi só uma maneira de homogeneizar e tirar nossa alegria de estar vivos (Krenak, 2019, p. 160).
A forte e constante defesa da diversidade cultural, política e epistêmica realizada por Ailton Krenak pressupõe uma íntima conexão dos povos com o planeta e mesmo a extensão do “humano” ao que é considerado o “objeto”, “coisa” ou “outro ser”, como rochas, rios, animais, árvores. Sendo todos parte da Terra, filhos do planeta, somos diversos e ao mesmo tempo ligados, conectados, somos vinculados de alguma forma. Por um lado, essa percepção é, como o próprio pensador afirma, parte da cosmovisão Krenak e também de outros povos originários. Por outro, ela é base para uma escolha política de perceber alianças e diálogos entre culturas tão diferentes como a tibetana e a de etnias sul e norte-americanas. Essa “perspectiva de alianças” não se organiza em torno da ideia de que todos são iguais (o que é dizer que todos são o mesmo), e sim num reconhecimento dos diferentes modos de ser e existir que se assenta no entendimento de que todos somos igualmente parte do planeta - parentes, portanto -, sendo assim possível o diálogo e a convivência.
As relações dos Krenaks, como dos Yanomamis e de outros povos ameríndios, com o tempo e com a história se distanciam das que as sociedades ditas ocidentais têm mantido, tendo em vista que não se estruturam, como dito, em cima da exploração e da dominação. Há no modo de se relacionar com o mundo uma visada pautada no respeito aos seres que fazem parte de uma humanidade alargada, na qual se inserem a natureza e os animais. A montanha e o rio não são apenas objetos disponíveis para exploração, mas familiares que acolhem os povos em seu entorno e a eles disponibilizam o necessário para viverem, cujos limites, se respeitados, são importantes para a retroalimentação do ciclo da vida.
Nesse sentido, as reflexões de Krenak desenvolvem, entre outros temas, uma crítica à história tal como pensada na modernidade europeia, e também afirmam uma configuração da experiência temporal que se oporia a ela. Para Portela (2015), Krenak é um “pensador da contemporaneidade”, o que inclui ser um “pensador do passado” e também um “construtor de uma perspectiva do futuro”, que, porém, resiste à sua apreensão como um “historiador”, dada sua opção pela memória. Franco Neto (2022), por sua vez, observa que a opção conhecida de Krenak, de contar histórias como forma de adiar o fim do mundo é ela mesma uma recusa “[…] dos pretensos desejos de um tempo ‘chapado’, linear e de uma história única”, tal como sonhada, elaborada e imposta pelo pensamento europeu. A opção por “contar histórias” seria, na contramão, buscar
[…] a garantia da possibilidade de existência da diferença diante de um tempo que não se interessa por ser incomodado pelo seu avesso e suas margens. E, para isso, contar mais uma história parece fundamental. Mas não a mesma história. Aquela que, mais do que abrir a historicidade, parece aprisioná-la à “camisa de força” de uma narrativa já predefinida (Franco Neto, 2022, p. 11, grifo nosso).
A afirmação de uma outra experiência temporal, que se articula à memória e também sustenta a possibilidade de continuar contando outras histórias, surge, ao nosso olhar, como a defesa da ancestralidade frente às contradições e o poder destruidor do progresso e da globalização. Em momento algum, em suas obras, Krenak define cabalmente o que entende como ancestralidade, mas recorre frequentemente a ela, inclusive na imagem, aparentemente contraditória, de “futuro ancestral”. Diante da entronização do porvir (através da ideia de progresso) como conformador da ação do presente ou da anabolização do agora pelo esvaziamento do que se foi e na descrença no futuro, tornado ameaçador, Krenak recusa a própria imagem da “flecha do tempo”, entendendo que ela é base de um grande equívoco e propondo uma mudança de perspectiva: “Se, ao invés de olharmos nossos ancestrais como aqueles que já estavam aqui há algum tempo, invertermos o binóculo, seremos percebidos pelo olhar deles” (Krenak, 2020, p. 33).
Como é ser percebido pelo olhar dos ancestrais, dos que aqui estavam “já há algum tempo”? Essa mudança de perspectiva implica certamente o primado da experiência, da memória e da narrativa, uma vez que os velhos são aqueles que têm história para contar e quando o fazem nos conectam com diferentes seres, espaços, tempos, ou seja, nos situam e nos localizam. Nesse sentido, Krenak afirma que as crianças de seu povo desejam ser antigas, pois assim terão muitas experiências e histórias. Dois momentos, entre vários outros, em textos diferentes, explicitam a relação íntima, poética e potente, dessa ancestralidade. Num deles, Krenak (2022, p. 95) recupera uma canção dos povos Guarani, que diz: “Cantando, dançando/Passando por cima do fogo/Seguimos num contínuo/no rastro dos nossos ancestrais”. Referindo-se a um rito de iniciação, que envolve andar sobre brasas, a cantiga, conforme Krenak pede que tomemos a parábola, afirma a experiência “…como algo que você herdou e, portanto, não te dá medo, ao contrário, é reconfortante” (Krenak, 2022, p. 96). As experiências, as heranças, as vivências dos velhos, todas elas produzem uma imagem do passado não exatamente como “o que já foi”, mas o que ainda é, o que conforma o presente, o que torna o mundo conhecível e habitado. A herança não é um peso e sim a própria condição de pertencimento, de reconhecimento de si, do mundo e dos seres que a habitam. Para os povos Krenak, esse modo de convocar a ancestralidade é ele mesmo uma prática educativa e se coloca como um modo de perpetuação da memória.
Uma segunda história, aqui brevemente sintetizada, é dos povos Krenak e fala da vinda do criador à Terra para ver como suas criaturas estavam. Aqui neste planeta, ele assume a forma de um tamanduá, é capturado por caçadores e depois liberto por duas crianças. O criador então se revela às crianças, que perguntam: “Avô, o que você achou da gente, das suas criaturas?” E recebem a resposta: “Mais ou menos” (Krenak, 2019, p. 40-41). Essa outra história, aparentemente mais enigmática, tem ao menos duas implicações fundamentais. Por um lado, o criador é tomado como uma figura ancestral e nomeado pelas crianças como “avô”. Esse chamamento explicita então a articulação com a herança, que se dá para além de parentescos consanguíneos, e a afirmação de um vínculo, de um pertencimento e de uma continuidade, com o passado. Há uma relação de memória, de memória viva, que permite às crianças tomarem o criador como seu parente, seu avô, numa bela imagem.
Nesse sentido, o parentesco com o criador e com a própria história nos faz ver que a ancestralidade não se trata “[…] de um manual da vida, mas de uma relação indissociável com a origem, com a memória da criação do mundo e com as histórias mais reconfortantes que uma cultura é capaz de produzir” (Krenak, 2022, p. 104). Tais histórias conformam mitologias, que, por sua vez,
Seguem existindo sempre que uma comunidade insiste em habitar esse lugar poético de viver uma experiência de afetação da vida, a despeito de outras narrativas duras do mundo. Isso pode não ter um significado muito prático para concorrer com os outros em um mundo em disputa, mas faz todo o sentido na valorização da vida como um dom (Krenak, 2022, p. 104).
A ancestralidade se articula então à experiência, à memória e à narrativa, estabelecendo relações de diálogo, vínculo e pertencimento, tal como quando as crianças chamam o criador de “avô”. Ela diz respeito à valorização da vida e à conexão, à partilha com outros seres, com outros que também pertencem ao planeta. No entanto, a resposta do criador aos meninos, quando estes perguntam o que ele acha de suas criaturas, abre um outro conjunto de relações que também fazem parte da ancestralidade. Não é gratuito, nesse sentido, que a história tenha crianças como personagens importantes. Para Krenak, o “mais ou menos” que constitui a avaliação do criador sobre suas criaturas explicita o entendimento de seu povo de que os seres humanos não são predestinados a nada, “não têm certificado, podem dar errado” (Krenak, 2019, p. 41). Esse entendimento serve como defesa à arrogância, de achar que os seres humanos têm uma “qualidade especial” que os distingue dos outros seres (e que funda a ideia de humanidade tão criticada). É, assim, uma espécie de humildade que parece levar os Krenak, por consequência, a estabelecer alianças com outros seres, como animais, rios, montanhas etc.
Numa chave tipicamente eurocêntrica, esse “mais ou menos” colocaria o futuro sob a condição de incerteza e de insegurança. Afinal, nada garante que as coisas vão dar certo. Para Krenak, porém, a perspectiva é inteiramente outra. Se é a experiência e a memória que garantem o pertencimento e o vínculo, isso não é dizer que eles dizem como as coisas serão, que estabilizam o mundo. Ao contrário: a experiência informa o presente, mas não o aprisiona, permitindo então inovação e criatividade. O desejo das crianças Krenak em serem antigas se dá porque a experiência dos velhos é o que permite a segurança do presente e o exercício da liberdade de sonhar, de viver suas próprias aventuras. A velhice se torna um “lugar almejado”, de conhecimento, porque, por um lado, “questiona a hipótese de formatar pessoas para um outro mundo”, valorizando, em contrapartida, “o lugar onde cada um de nós experimenta o cotidiano” (Krenak, 2022, p. 117).
Criticando fortemente o modelo de educação vigente nas escolas “civilizadas”, Krenak observa que elas visam formatar as crianças para um futuro previsível, pré-definido e asfixiante. “Um jovem de vinte anos”, diz ele, “já tem um mundo formatado dentro de si” e as crianças são inseridas nesse mundo já constituído, competitivo e estável. Os adultos “civilizados”, observa Krenak (2022, p. 105), impõem às crianças a “sua aspiração de perfeição”, buscando dar forma, então, a “um sujeito campeão”. Esse agir, sob o olhar de Krenak, faz acelerar o tempo e implica roubar das crianças o seu futuro, a sua possibilidade, no presente e em conexão com o mundo e os mais velhos, de criar, abrir caminhos, de construir experiências. Um grande equívoco dessa formação está no esforço de organizar o presente em nome do futuro, na busca de “produzir futuros”. As crianças, as que chamam o criador de “avô”, são “seres inventivos”, capazes de trazer novidade ao mundo, de imantá-lo com novas subjetividades. Isso não é “fabricar futuros” e sim valorizar o presente, respeitar o seu vínculo com a experiência e, além disso, reconhecer que o futuro “[…] não existe - nós apenas o imaginamos. Dizer que alguma coisa vai acontecer no futuro não exige nada de nós, pois ele é uma ilusão” (Krenak, 2022, p. 96-97).
Não há que se preocupar com o futuro, diz Krenak, pois ele é ilusório e acontecerá sempre como presente, informado pelos velhos e suas experiências. A ancestralidade, tal como caracterizada por Krenak, não se esgota, portanto, no vínculo com o que passou, com aquilo que antecedeu à chegada dos “mais novos”. Compreende também o presente, lugar da ação e da criatividade, e o futuro, que pode ser vivido sem ansiedade ou tensão. A ancestralidade, pela memória e pelos vínculos com a experiência, torna o presente um lugar seguro, no qual o futuro deixa de ser uma preocupação. Nesse contexto, a expectativa se remete à experiência, o futuro aberto encontra abrigo na tradição, no passado, e não é visto como construção de um novo estágio para a uma pretensa humanidade tecnológica (que, então, após um momento de progresso, alcançaria um novo espaço). Assim, a ideia de um “futuro ancestral” não tem nada de contraditória: é a expressão poética de uma relação temporal fundada numa ancestralidade que abriga, no melhor sentido da palavra, o que já foi, o presente e o que virá.
Nesse “regime de historicidade” não-ocidental, espaço de experiência e horizonte de expectativas nem se fundem, nem estão tensionados. Há uma continuidade entre eles, uma articulação fundamental que torna o presente ao mesmo tempo vivo, aberto e informado. Se a experiência é bem-vinda, isso não significa lidar com o “peso da história”, tal como formulada por Nietzsche nas suas considerações intempestivas. Se o futuro é uma ilusão, não faz sentido organizar o presente a partir de uma expectativa fechada, projetada, delineada previamente. A ancestralidade, tal como postulada por Krenak, recusa a ideia de flecha do tempo e afirma um fluxo múltiplo constituído em diálogos, vínculos, pertencimentos e diferenças. Nesse sentido, o espaço de experiência não seria composto apenas por uma tradição ou na sedimentação de um único modo de ser. Elaborado na memória, ele articula temporalidades diversas, inclusive de outros seres, compreendidos pelas histórias diversas que se conta. Já o horizonte não é ele mesmo de expectativas “previsíveis”, mas um terreno aberto, presente, habitado por outros seres, com os quais vai se experimentar a liberdade. Tal ancestralidade não se reduz nem a um tempo linear e nem mesmo a um tempo circular, dada a sua multiplicidade.
Nesse sentido, a ancestralidade talvez dê um passo além à noção ricoeuricana de “ser-afetado-pelo-passado”. Elaborada em meio à crítica do filósofo francês à temporalidade moderna eurocêntrica, a afirmação de vínculos com o passado se articula também, como vimos, à premência ética de um “presente vivo”. Se a leitura que fizemos da ancestralidade em Krenak for pertinente, o passado, em seus vínculos íntimos com a memória, mais que “afetar” se torna uma condição de pertencimento e de morada, configurando então um presente ao mesmo tempo seguro e aberto à aventura. A reivindicação ética e política de Ricoeur tem como referência o esvaziamento do espaço de experiência, em nome do progresso, na temporalidade moderna. Em Krenak, vislumbra-se um passado que não foi esvaziado, que se torna condição de resistência potente e da riqueza do presente. A permanência das experiências, o vínculo familiar com os anciãos e os antigos, preenche o presente de histórias, abrindo-o à diversidade e, com isso, tornando viva a relação com o futuro. Nessa perspectiva, não haveria efetivamente uma tensão entre espaço de experiência e horizonte de expectativas e sim modos de articulação, variáveis e vitais. Tal como observa Portela (2015), parece que estamos diante de uma noção de história que não é constituída por rupturas e sim por continuidade. Uma permanência, como dissemos, que não recusa a mudança (como as reflexões de Krenak sobre as tecnologias explicitam), mas que definitivamente não a sobrevaloriza.
Considerações
As definições em torno das categorias meta-históricas, tendo como referência a Europa, assentam numa concepção de tempo histórico que emergiria na tensão entre espaço de experiência e horizonte de expectativas. Em Krenak, a tensão existe não na ancestralidade e sim na imposição sufocante e homogeneizadora da temporalidade englobalizante do colonizador. A ancestralidade, por sua vez, é apresentada como a condição de resistência a essa assimilação, pela articulação peculiar entre experiência, presente e ação, de abertura de novas subjetividades a partir do vínculo com o que já está e com a herança. Ela abriga então um campo de diálogo, de vínculo, de potências, de outras experiências possíveis, de aventuras. Alimentada pela memória, talvez ela seja mesmo a resistência a um certo sentido de história.
A aproximação das categorias meta-históricas à ancestralidade de Krenak é possível se tomarmos a sua “ambição universal” ou seu caráter “transcendente”. No entanto, pode ser vista como profundamente impertinente, por se tratar de uma tradução forçada, na linguagem e nos termos do colonizador, de um modo de vida que afirma como outro, que busca resistir à sua assimilação. Nesse sentido, talvez seja prudente deixar as categorias meta-históricas em seu lugar, se não as recusando totalmente, ao menos localizando sua ambição universal. Com isso, abre-se a possibilidade de respeito a dinâmicas temporais outras, para outras histórias, cujos termos estão em outra língua, à qual se deve buscar apreender, com a qual se deve aprender, dialogar e criar vínculos. E, com isso, nos renovarmos.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
05 Ago 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
22 Fev 2023 -
Revisado
01 Set 2023 -
Aceito
02 Fev 2024