Open-access Atuação e crise em Mefisto: o teatro como romance, a política como teatro

Acting and crisis in Mephisto: theater as a novel, politics as a theater

Resumo

A partir da capacidade multidiscursiva própria do gênero romanesco conforme Bakhtin, este artigo buscou aproximações entre os usos do teatro defendidos pelo personagem Höfgen no romance Mefisto, de Klaus Mann, e o entendimento do contexto político do nazifascismo como um palco para o qual o ator deva se preparar. Nesse sentido, considerando algumas discussões de Sarrazac sobre o drama moderno, mapearam-se os métodos de atuação de Höfgen, observando-se a crise ética desse personagem no contexto político e estético do nazismo.

Palavras-chave: Mefisto; teorias do drama; nazismo; crise ética

Abstract

Considering the multi-discursive capacity inherent to the Romantic genre according to Bahktin, this essay focus on establishing approximations between the uses of theater supported by Höfgen in the novel Mephisto, by Klaus Mann, and the Nazifacist political context as the stage to which the actor must prepare. Thus, considering Sarrazac’s discussions about modern drama, we map Höfgen’s acting methods, considering his ethical crisis in the aesthetic and political context of Nazism.

Keywords: Mephisto; dramatic theories; Nazism; ethical crisis

Teoria do romance ou teoria do drama em Mefisto?

Bakhtin (2010), em seus estudos sobre o romance, afirma que o caráter autocrítico desse gênero está intrinsecamente relacionado à sua situação de permitir um espaço discursivo sempre em formação, parodiando, com frequência, outros gêneros literários ou experimentando-se em demais formas discursivas. Essa foi uma das principais características para que ele apontasse o romance como instrumento de maior poder de renovação e de influência sobre outros gêneros literários. Por uma necessidade de questionamento de valores sociais e não mais se reconhecendo em formas narrativas monológicas tradicionais, o escritor realiza a sua elaboração romanesca testando conteúdos e formas ao ponto em que a contínua assimilação de características discursivas distintas e o frequente desenvolvimento de inovações sobre demais variantes literárias podem ser observados como principais derivações da propriedade de inconclusibilidade do gênero romanesco. Ao contrário do passado absoluto (acabado), com lições morais exemplares e ilustrações de valores sociais fechados, o tempo presente e inacabado do romancista sugere mudança, revisionismo, inovação e crítica persistente - e isso acontece por meio da experimentação formal e de conteúdo a desorganizar e reorientar o discurso literário.

Interessantemente, Jean-Pierre Sarrazac (2017) constata, no gênero dramático, desde os fins do século XIX, a expansão dessa dimensão dialógica e múltipla que Bakhtin vislumbrava a partir do gênero romanesco. O que Bakhtin chamaria de romancização do drama, permitindo à arte teatral um efeito regenerador ao proporcionar uma constante reconfiguração das formas adquiridas e um questionamento permanente a libertar o gênero das convencionalidades consagradas, Sarrazac chamou de pulsão rapsódica. Essa pulsão foi descrita como um princípio que fez alternar os modos dramático, épico, lírico, discursivos ou outras expressões extratextuais, acarretando dramas com formas abertas à experimentação a partir de cruzamentos discursivos sucessivos e desterritorializações constantes de gêneros. O drama-da-vida, termo cunhado por Sarrazac que traduz um conjunto dessas novas manifestações do teatro a partir de 1880, rompe a tradicional organicidade, linearidade ou causalidade de um teatro apoiado nos moldes aristotélico-hegeliano - que Sarrazac denominou de drama-na-vida - e o faz por meio de uma relação intrassubjetiva e fantasmática de seus personagens ao interromper a ação para repensar o mundo ao seu redor.

O caso Mefisto (1980), de Klaus Mann , nessa perspectiva, pode ser observado como uma proveitosa oportunidade para analisar o comportamento e as ideias do personagem Hendrik Höfgen a partir da discussão das teorias do drama. A própria composição e o desenvolvimento do caráter de Höfgen no romance, por meio de seu histórico de ator e diretor de teatro, mostram já indícios de como a crítica e o aparato teórico associados ao gênero dramático foram assimilados e redefinidos por um suporte nascido da instabilidade e do experimentalismo (o romance). Os comentários a respeito das encenações, das falas, da coreografia dos gestos, da preparação para o palco e do estudo de cenas aparecem no âmbito da narrativa de modo a ampliar a discursividade da crítica teatral e a absorver as inovações do teatro autocrítico como potências narrativas, proporcionando mais uma variante a contribuir com o gênero romanesco.

Por outro lado, no romance Mefisto (1980), existe uma outra discussão bastante produtiva: a relação entre ética e arte. No contexto de elevação do nazifascismo, tanto a arte teatral aparece como possibilidade de ascensão social para o personagem Höfgen, como também esse protagonista surge como uma espécie de leitor dos rituais de acesso aos privilégios do regime político por meio da chave do teatro. Entender o nazifascismo tal como um palco para o qual as encenações devam se dirigir, esvaziando-se a própria personalidade com frequência a fim de corresponder com a melhor atitude do caráter oportunamente eleito, coloca Höfgen numa posição vantajosa - ele é ator, e a sua ambição artística, somada à sua compreensão estética da realidade, justifica o ajustamento do seu caráter, ainda que isso seja o mesmo que agir em cumplicidade com um governo de violenta perseguição antissemita. Entretanto, mesmo para Höfgen, existe um limite em que a estética não mais o consegue isentar de um julgamento ético. Nesse momento, a sombra de uma crise avança sobre os disfarces de Höfgen - a ética cobra da arte os crimes encobertos por sua cenografia.

Inspirado na trajetória artística do ex-cunhado Gustaf Gründgens, que, na juventude, defendeu o comunismo e, posteriormente, fez carreira artística de sucesso na Alemanha hitlerista impulsionada sob a proteção do marechal de campo Hermann Göring, Klaus Mann levanta, em seu tempo, uma questão aberta e urgente de atenção. Esse é o momento em que o romance passa a ser um estudo e uma resposta sobre a ambiência política do nazismo: o romancista, já em 1936 e em exílio da Alemanha, publica uma narrativa que, em sua advertência final, antecipa um gigantesco rescaldo de crise ética a não só apenas assolar a Alemanha, mas também, conforme Cohen (1992), o resto da Europa Continental de uma forma geral.

Se considerarmos a trajetória biográfica do ator Gustaf Gründgens (que inspirou o protagonista Hendrik Höfgen), ou ainda do próprio Klaus Mann, entender-se-ão, em considerável parte, algumas das urgências e motivações por trás da obra Mefisto (1980). As correspondências entre o célebre ator Gründgens e o personagem Höfgen são por demais evidentes: nos anos 1920, como Gründgens, Höfgen modifica o primeiro nome; como Gründgens, Höfgen entusiasma-se com um teatro mais engajado e vanguardista - o oposto do que viria a defender quando foi integrado ao quadro de atores afamados e bem-sucedidos na época da ascensão do nazismo. Nesse sentido, é preciso afirmar que, em 1925, Gründgens escreve a Klaus Mann para propor a produção da sua peça, Anja e Esther, na cidade de Hamburgo. Por fim, Gründgens assumiu a direção da peça e interpretou o papel de Jakob enquanto Klaus Mann fez Kaspar, Erika Mann (irmã de Klauss e futura esposa de Gründgens um ano após) fez Anja e Pamela Wedekind (noiva de Klauss) fez Esther - nesse momento, é interessante comentar que Klaus e Gustaf desenvolveram um relacionamento amoroso assim como Erika e Pamela igualmente assim o fizeram. Em 1927, Erika e Gustaf separam-se e se divorciam oficialmente em 1929 - mesmo período em que Gustaf e Klaus terminam o relacionamento. Entretanto, mais que um desentendimento no campo amoroso, as posições ideológicas e políticas dos irmãos Mann e do ator Gründgens tornam os seus destinos irreconciliáveis. Enquanto os irmãos Mann tiveram que se exilar em diferentes países, como Suíça, Estados Unidos e Reino Unido, por causa do regime nazifascista alemão, Gründgens galgou sucesso em meio ao âmbito da ascensão de Hitler ao poder. Em 1932, Gründgens tornou-se membro do conjunto do Teatro Estatal Prussiano - no qual se destaca na representação de Mefistófeles, da peça Fausto, de Goethe (como relata na narrativa com o personagem Höfgen); em 1934, é eleito como diretor artístico do Teatro Estatal Prussiano e, em 1936, é nomeado por Herman Göring para o Conselho de Estado Prussiano, também se tornando membro do Conselho Presidencial da Câmara de Teatro do Reich, que era instituição da Câmara de Cultura do Reich.

Os irmãos Mann tiveram uma trajetória completamente distinta. Klaus Mann sofreu por sua homossexualidade e pela ausência de afeto do pai Thomas Mann; na Alemanha, fez parte do grupo de teatro Die Pfefermühle, o cabaré político-literário da irmã Erika, que se propunha a ridicularizar os nazistas na Bonbonniere em Munique. Por causa da perseguição política, em 1933, quando Hitler chega ao poder, junta-se à família no exílio na Suíça. Erika Mann, divorciada de Gründgens e exilada da Alemanha, destaca-se como jornalista, atriz e ativista dos direitos humanos e da liberdade de expressão, desenvolvendo diversas atividades antifascistas, como palestras e leituras públicas em diversos países no decorrer de sua vida. Ainda que os destinos entre os inicialmente amantes Klaus Mann e Gustaf Gründgens tenham sido diametralmente opostos, a similaridade entre as suas mortes é demasiadamente assustadora. Klaus Mann faleceu em Cannes em 1949 com uma sobredose de comprimidos para dormir (indício de suicídio); Gustaf Gründgens, em Manila, morre igualmente por uma overdose de remédios para dormir - o que provocou igual ideia de suicídio. Se tais mortes foram potencializadas pelos traumas dos anos de perseguição política ou da culpa prolongada pela cumplicidade com o regime nazifascista, são hipóteses plausíveis que podem ser pressentidas pelo romance Mefisto (1980), de Klaus Mann.

O romance Mefisto (1980), uma obra que se divide em um prólogo e mais 10 capítulos, pode ser entendido como derivado dos questionamentos que se fazem sobre a relação entre a arte e a vida, considerando-se até que ponto a ficcionalização interfere na realidade, ou ainda, quais são os limites em que a estética pode atuar nesse sentido. A obra fundamenta-se na história de Hendrik Höfgen, um ator de um pequeno grupo teatral que, inicialmente, mesmo possuindo elevados dotes artísticos, não detinha fama nem prestígio. Posteriormente, ele passa a fazer muito sucesso, principalmente logo após o seu desempenho como Mefistófeles, personagem da obraFausto, de Goethe, a ponto de se tornar uma grande referência artística da Alemanha nazista. A identificação entre a trajetória de Höfgen (personagem do romance) e a de Gründgens (celebridade artístico-histórica) alimenta ainda mais a discussão entre arte e vida.1 O debate a respeito dessa correspondência entre o personagem do romance e a personalidade histórica proliferou-se entre os anos de 1960 e 1970 por meio de tribunais acionados pelo filho de Gustaf Gründgens, Peter Gorski. Ele alegou ser o romance difamatório em relação a seu pai e, durante esse período, as sentenças judiciais deram-lhe razão, contrariando as defesas sobre a liberdade de criação.

Pelo fato de Höfgen apresentar uma facilidade para trocar de máscaras e de assumir a composição dos personagens pretendidos com habilidade incomum, a sua personalidade é complexa; seus atos cênicos são plurais e movem-se, no plano real, para atingir o reconhecimento social. Sua subjetividade é constantemente refeita em meio à oportunidade e ao pragmatismo. A partir dessa constatação, para tornar o estudo a respeito do comportamento de Höfgen mais racionalizável, optou-se, neste artigo, pela seguinte divisão: a primeira seção apresenta, brevemente, o palco cultural para o desenvolvimento da política antissemita do Estado de Hitler e apropria-se da leitura do nazismo por meio de uma interpretação estética, inspirada em Cohen (1992), com intuito de fornecer o cenário de atuação de Höfgen; a segunda seção, concentrada mais no material de análise, comenta como a utilização do conhecimento teatral de Hendrik Höfgen, aplicada aos rituais da política nazifascista, favoreceu a sua carreira e identifica a metodologia por trás da construção cênica de Höfgen como uma forma de denunciar a sua cumplicidade com os crimes decorrentes da política nazista; e a terceira seção descreve e analisa a trajetória de Hendrik Höfgen para a obtenção de sucesso em sua carreira artística no contexto da Alemanha de Hitler.

Abrindo as cortinas: a Alemanha hitlerista como palco

Boa parte do debate que atravessou a história cultural da Alemanha entre a segunda metade do século XIX e início do século XX está profundamente ligado ao processo de construção de sua identidade nacional e de sua representatividade territorial. Após ser unificada, a Alemanha precisava de um imaginário nacional que abrangesse e desse coerência a diferentes crenças religiosas, tradições populares e práticas sociais. De modo inicial, pode-se afirmar que personalidades como Johann Wolfgang von Goethe - e suas ideias políticas coligidas a partir de seu secretário Eckerman (2016) - inspiraram uma visão de unidade do espírito alemão, mas sem dispensar uma perspectiva liberalista, federalista e não centralista para o Estado. No entanto, com o decorrer da trajetória germânica em participação de guerras e as imediatas consequências a partir delas, como o revanchismo galopante após a Grande Guerra e as cobranças por uma resolução rápida e radical da crise econômica do pós-guerra (com altíssimos índices inflacionários), um Estado Alemão intervencionista, totalitário, centralista e bélico começou a ganhar contornos mais nítidos como defesa de um discurso político cada vez mais hegemônico. Ademais, a interpretação histórica a respeito da atuação do povo judeu em território alemão e a elevação do sentimento antissemita deram início a um Estado Alemão não tolerante às imigrações (justificado pela defesa do arianismo e do risco de envenenamento do sangue).

Por um lado, já havia uma tradição de fala entre importantes intelectuais alemães a difundir o antissemitismo. Ainda que haja certos exageros ou distorções nas apropriações dos escritos de Richard Wagner pela política hitlerista, a base de raciocínio a respeito da qualidade estética e dos conceitos de cultura e de povo é inegavelmente antijudaica.2 Richard Wagner condenava o isolamento do povo judeu tal como uma sociedade fechada (sem capacidade de entendimento do pensamento germânico) que não permite aos alemães maior interação, apesar de os judeus terem assumido a maior parte das trocas no sistema financeiro alemão e ameaçarem a cena artística e cultural da Alemanha. Ademais, a construção de uma identidade e de uma ideologia nacionalista em Wagner (2020) foi pensada em torno do elogio da essencialidade e pureza do homem alemão ariano. Outro exemplo pode ser notado com o filósofo Friedrich Nietzsche. A sua aclamada Genealogia da moral (2007), em sua primeira parte, já trazia conceitos como envenenamento do sangue e rebaixamento da raça ariana (considerada a raça forte) ou ainda de uma caracterização do povo judaico como elemento corruptor da Natureza - assuntos que encontrariam largo desenvolvimento em “Povo e raça”, capítulo-base das concepções racistas da obra Minha luta (1983), de Adolf Hitler. Nietzsche (2007, p. 44), como exemplo, defende uma hierarquia entre povos, atribuindo, por vezes, uma qualificação extremamente negativa aos judeus: “Basta comparar os judeus com outros povos similarmente dotados, como os chineses e os alemães, para sentir o que é de primeira e o que é de quinta ordem”. Afirmações provindas da obra de Schopenhauer, como outra ilustração de peso na cultura alemã, foram usadas pelo próprio Hitler (1983, p. 198) em Minha luta a fim de corroborar com a tese racista: “Na vida do judeu, incorporado como parasita no meio de outras nações e de outros Estados, existe um traço característico no qual Schopenhauer se inspirou para declarar: ‘O judeu é o grande mestre na mentira’”.

Por outro lado, dois acontecimentos ampliaram ainda mais o antissemitismo no território alemão. O primeiro está relacionado à imensa massa de refugiados judeus que imigraram da Rússia para a Alemanha a partir da perseguição étnica entre os anos de 1880 e 1890; e o segundo provém de narrativas que circularam após a Primeira Grande Guerra, culpabilizando os judeus pelo desfecho trágico da participação alemã no conflito. Quanto ao primeiro acontecimento, pode-se afirmar que, ao chegarem aos milhares do Leste Europeu, os judeus encontraram uma Alemanha despreparada para as ondas de imigração e, por consequência, problemas relacionados à pobreza, ao desemprego, à falta de moradia, à ausência de condições sanitárias ou educacionais suficientes foram se agigantando em território alemão. A partir disso, a formação de um pensamento preconceituoso foi associada ao povo judeu, acusando-os de serem esses os maiores causadores das condições precárias de higiene e da derrocada cultural da Alemanha. Tal preconceito agravou-se ainda mais após a crise econômica advinda da Primeira Guerra: a comparação do povo judeu com ratos ou a aproximação das obras artísticas judaicas com casos de perturbações mentais a degenerarem a autêntica arte alemã puderam ser estimuladas nesse contexto. Quanto ao segundo acontecimento, tanto os judeus menos abastados, advindos das ondas migratórias do Leste Europeu, foram acusados de ausência de coragem e de sentimento patriótico para a defesa da Alemanha, como também se criou uma interpretação de que a elite judaica financeira teve grande interferência nas desvantajosas negociações de rendição para a Alemanha no contexto da Primeira Grande Guerra. Essas narrações estimularam ainda mais o antissemitismo europeu que, em território alemão, encontrou seu ambiente favorável aos excessos de caracterização dos judeus como um povo parasita de território alheio.

No caso da ascensão do pensamento hitlerista e da sua associação à tradição antissemítica de determinados grupos da intelectualidade alemã e ao contexto de intolerância e preconceito formado para o povo judaico após a Primeira Guerra, pode-se afirmar que, desde jovem, o ideal racista e de elogio do homem ariano povoou a cabeça do jovem Hitler ao se aproximar da obra de Richard Wagner. John Toland (1978), por exemplo, descreve a descoberta da ópera Rienzi como um momento de revelação para o futuro líder nazista. Segundo Peter Cohen (1992), além de toda a vinculação com o ideal romântico nacionalista germânico, baseado principalmente nas considerações de Richard Wagner sobre a formação do Estado e a capacidade do povo alemão, os conceitos filosóficos e estéticos acerca do arianismo, que serviram para unificar o território alemão inicialmente, migraram para as áreas da saúde pública e da política do Estado - o que potencializou as práticas nazifascistas e implicou um ideal estético segregacionista, antissemítico e contrário às vanguardas modernistas europeias da época. A arte moderna, conforme a interpretação do partido nazifascista, apresentava sinal de doença e imperfeição, pois estava marcada pelo seu elogio à deformação do real, à deformidade dos sentidos ou ainda das formas humanas. Para a política hitlerista, se o povo alemão contaminasse o seu gosto com esse tipo de arte, ocorreria uma degeneração da raça ariana alemã.

Com uma justificativa baseada em um conceito de garantia de preservação da raça e da pureza do povo ariano, em 1933, uma nova lei foi sancionada. Ela obrigava a esterilização do doente devido à hereditariedade; a partir dessa lei, médicos-chefes entraram como líderes da política racial, justificando o discurso sobre a eugenia e a manutenção do sangue puro. Em pouco tempo, a doença, por deslize semântico da política nazista, encontrou um inimigo principal: o judeu. As políticas hitleristas confirmaram o desejo de eliminar os doentes e incuráveis e de elevar um novo homem alemão, livre das contaminações (judaicas) que o rodeiam e fragilizam.

No campo artístico, tal como comenta Hans Belting (2012), realizaram-se exposições que relacionavam fotos de pessoas doentes ou com deformidades a obras da arte moderna - sugerindo, por semelhança, o risco de degeneração que essa arte (dita judaica) representava para a cultura alemã. Hitler, em um de seus discursos, afirmou que o modelo de arte é a escultura do Discóbolo3, ou seja, uma arte que inspira o auge da força física de um atleta. Para Hitler, a escultura do atleta é o modelo típico a espelhar a supremacia da raça alemã. A partir do conceito clássico dessa escultura, dois artistas acabaram por ser eleitos para a reprodução desse modelo: Arno Breker e Josef Thorak. Tais artistas, além de retomarem o modelo clássico, elevaram o conceito de obra monumental. Eles esculpiram verdadeiros gigantes, com características que significavam fertilidade e vigor. Com dimensões gigantescas, o modelo clássico incorporou-se a um discurso de poder e de elogio da raça ariana por meio desse conceito de monumentalidade.

Nesse sentido, Peter Cohen (1992) faz um julgamento do nazismo, definindo-o não como um regime político propriamente, mas como um cenário propiciado pelo pensamento estético europeu. Cohen investe na ligação do regime nazifascista por meio do saber estético e declara que é impossível definir o nazismo se não compreendermos a visão artística a partir dos mitos elevados pelo Romantismo Alemão. O programa de aniquilação de pessoas que não se encaixavam com o referencial defendido pelo programa político de Hitler derivou-se de um prisma estético (uma interpretação sobre a arte wagneriana), alargou-se para os programas de higienização racial e justificou a política de confisco dos bens dos chamados “parasitas judeus”.4 O conceito tradicional de estética apropriado por Hitler e derivado da cultura aristocrática europeia caracterizou-se por um desejo de universalidade (imposta pela violência e pelo elogio à pureza) no contexto nazifascista. Embora estivesse em oposição ao circuito paralelo da arte moderna pujante das vanguardas europeias, não se pode negar que o acento de universalidade estética advinha da mesma Europa, das suas tradições estéticas - assim como o antissemitismo fora muito estimulado por esse próprio continente. O palco estava montado e a política nazista assumiu o protagonismo das ações nas cenas que se seguiram.

Entretanto, mesmo em exílio devido à perseguição étnica, ideológica, política ou sexual, alguns artistas e intelectuais alemães criticaram, ao mesmo tempo que o regime nazifascista ganhava forças, a violência e os crimes institucionalizados. Klaus Mann, tendo fugido para a Suíça após a elevação de Hitler à condição de chanceler do Reich em 1933, tornou-se um bom exemplo desse artista alemão exilado que contestou o nazismo. Como registro artístico a denunciar o cenário propiciado para a ascensão do nazifascismo e as violências por esse regime praticadas, o romance Mefisto (1980), de Klaus Mann, destaca diferentes nuances do sentimento antijudaico na Alemanha e as variadas ligações entre intelectualidade e nazismo, tendo por base o intervalo de tempo de 1923 a 1936. O personagem Hans Miklas, por exemplo, é um jovem ator que, contaminado pelo ódio à atmosfera política e econômica da Alemanha, adere à ideia de que o povo judeu é o motivo dos males vivenciados pela nação e, a partir dessa interpretação, apresenta um manifesto preconceito de raiz antissemita contra certos colegas de profissão ao utilizar o epíteto judeu para o desmerecimento alheio. Na visão de Otto Ulrichs, outro ator, colega de profissão de Höfgen, Miklas seria um exemplar dos milhões de rapazes que, seduzido pelo discurso nazifascista, canalizou sua fúria - inicialmente útil para transformar a situação da Alemanha - contra o povo judeu, desperdiçando-se, portanto, a oportunidade para criação de uma massa crítica necessária a uma real revolução. Ainda sobre esse mesmo personagem Miklas, é interessante notar como a reprodução da oratória nazifascista por esse personagem impressiona Barbara, uma personagem representante dos tradicionais círculos da cultura burguesa alemã e primeira esposa de Höfgen, ao transportá-la a uma dimensão estranha, selvagem, distinta das bases civilizatórias por ela admiradas - denunciadas por Miklas como fruto da “corja judaica” - e entusiasmando-a por um grau de paixão e irracionalidade antes não presenciado por ela. Ironicamente, Höfgen, antes de colaborar com o regime nazifascista, condenou as conversas empreendidas entre Barbara e Miklas.

Acompanhados de Theophil Marder, Barbara e Miklas são alguns dos personagens que, inicialmente, representam uma certa quantidade de artistas e intelectuais cúmplices da ascensão do nazifascismo que posteriormente serão vitimados pelo próprio regime. Marder, contraditoriamente, critica as explorações do sistema capitalista e a burguesia, mas goza de todos os benefícios resultantes de tal exploração. Ademais, ele, com um radical discurso reacionário, elogia o Exército Alemão como aquele capaz de fazer seu povo recuperar o senso de ordem e de disciplina. Tal como Cronos, o regime nazista precisou violentamente sacrificar alguns de seus filhos que, por algum motivo, poderiam ameaçar a infalibilidade do seu controle: Marder foi perseguido por suas ideias consideradas próximas ao bolchevismo cultural; Barbara foi perseguida e obrigada a divorciar-se de Höfgen por não ser considerada de raça pura ariana; Miklas foi assassinado pelo próprio regime nazista que ele antes elogiara até à chegada ao poder por críticas proferidas ao Führer, ou seja, a narrativa (totalitarista e opressora) do nazismo não permite crítica ou autocrítica. Por outro lado, Lotte Lindenthal e Hendrik Höfgen representam a intelectualidade e a classe artística que, protegidos por altas patentes militares, são capazes de ignorar a proximidade da violência e dos assassinatos empreendidos pela política nazista e de fortalecer a ideologia antijudaica no âmbito da arte. Em 1936, era rotineiro a atriz Lotte Lindenthal, com um sorriso maternal, visualizar sentenças de morte expedidas pelo primeiro-ministro, seu marido. Hendrik Höfgen, além de ter consciência de colegas atores que foram exterminados (como Miklas e Ulrichs) e calar-se, conduziu, como diretor do Teatro Estatal, a “limpeza” (retirada) de todas as peças de autores que tivessem, a contar da quarta ou quinta geração da árvore genealógica, cruzamento com algum sangue judeu.5 Uma cena ilustrativa conta com um diálogo entre Höfgen e Lindenthal em que o próprio propaga a concepção de degeneração da qualidade artística como fruto da contaminação judaica e ataca uma das colegas atrizes que antes costumeiramente elogiara e da qual já obtivera alguns favores: “Dora Martin estragou as atrizes alemãs pelo mau exemplo do seu estilo desvairado. Aquilo já não era dicção teatral, e sim uma histérica algaravia judaica” (Mann, 1980, p. 166).6

No prólogo intitulado “1936”, Klaus Mann tenta desvelar os atores que, por autointeresse, sustentam as encenações cobradas pelo palco nazifascista, fornecendo-lhe uma lógica para o funcionamento de uma engrenagem (irracional) de massacre e de genocídio - o brilho das riquezas ou das honrarias ofuscava a visão para os crimes, os perfumes parisienses ou dos arranjos de flores ou o cheiro dos caros charutos camuflavam o odor de sangue. Nesse sentido, o estudo da formação do cenário político nazista por meio da nomeação dos agentes envolvidos é uma forma de denúncia que responsabiliza diversos setores da sociedade alemã e alguns partícipes estrangeiros pela cumplicidade e pelo desprezo ao rotineiro assassinato em massa. Dessa forma, no baile em homenagem ao 43º aniversário do primeiro-ministro alemão, em 1936, são apresentados industrialistas, jovens seduzidos pela autoridade das fardas, membros da nobreza real europeia, autoridades militares, colunistas sociais, estrelas de cinema, professores de universidades e até mesmo banqueiros judeus cuja influência internacional era demasiada.

Não se podia dizer o que brilhava mais, as joias ou as estrelas das comendas. A luz profusa dos lustres brincava e dançava nas costas alvas e decotadas e nos rostos lindamente maquilados das damas; nos peitos engomados das camisas ou nos agaloados uniformes de corpulentos senhores; nos rostos suados dos lacaios, que corriam de lá para cá, oferecendo refrescos. Exalavam seu perfume as flores, cujos formosos arranjos se encontravam cuidadosamente distribuídos pelo recinto; exalavam-no também os extratos parisienses de todas essas mulheres alemãs; exalavam seu cheiro os charutos dos industriais e a brilhantina dos esbeltos efebos em suas fardas da SS, muito justas e elegantes; exalavam os mais diversos odores os príncipes e as princesas, os chefes da Gestapo, os colunistas sociais, as estrelas de cinema, os professores da universidade, detentores de cátedras de etnologia ou ciência militar, e uns poucos banqueiros judeus, cuja riqueza e relações internacionais eram tão importantes que convinha admitir sua participação até mesmo num evento exclusivo como esse. Todo esse mundo espalhava nuvens de odores artificiais, como se fosse necessário ocultar um odor diferente: o cheiro doce de sangue, tão apreciado e tão presente no país, mas do qual se envergonhavam um pouco, especialmente numa festa tão fina e na presença de diplomatas estrangeiros (Mann, 1980, p. 14).

Nesse mesmo prólogo, que, ao mesmo tempo, é uma antecipação para o ano final do romance, Klaus Mann evita a centralidade da narrativa no protagonista Hendrik Höfgen, como se, nesse momento, ele fosse mais uma peça a preservar o cenário do nazismo - importante para a construção do ambiente, mas sem poder de, ao se integrar plenamente à narrativa de elevação do nazismo, promover uma visão particular da história.7 Ainda que seja constante aos romances naturalistas a técnica de gerar ênfase ao ambiente em que os homens atuam para que ocorra uma compreensão mais detalhada a respeito dos acontecimentos, afastando-se de uma visão construída a partir do protagonista, tal metodologia encontra um correspondente histórico nos estudos de Bertolt Brecht (2005) para a montagem do teatro épico em seu texto Teatro recreativo ou teatro didático?8 por haver, ao mesmo tempo, uma discussão política e ética embutida no próprio uso da técnica e uma emergência em reconhecer como essa mecânica existente no ambiente (explicitada pela própria técnica) pode ou deve ser alterada (longe de ser determinista). No teatro épico de Brecht, o ambiente pode se manifestar independentemente das ações ou falas do protagonista quando se entende que tais são frutos dos gestos sociais, ou seja, expressões mímicas e conceituais das relações sociais entre os homens de uma determinada época. Quando o ator mostra o gesto social, conforme Brecht, em seu Pequeno órganon para o teatro, torna-se evidente a sua relatividade histórica e a sua localização em um tempo, em uma sociedade e em uma cultura específicos, rompe-se a ideia de um caráter eterno (imutável) e, consequentemente, apresenta-se a efemeridade e a diversidade das épocas. Nesse sentido, Brecht apresenta, por meio do seu teatro, uma consciência dinâmica do processo histórico, apresentando estruturas sociais que moldam indivíduos e, concomitantemente, convidando o seu público a repensá-las e a refazê-las. É por isso que Brecht, no texto A nova técnica da arte de representar, comenta o objetivo do efeito de distanciamento do teatro épico por meio da atribuição de uma atitude analítica e crítica ao espectador durante o desenrolar dos acontecimentos encenados. Para isso, deve ser neutralizada a entrega do público ao campo ilusório, tal como uma hipnose que o deixa passivo e sem poder de reação social.

Quando Klaus Mann, no prólogo “1936”, retira o foco das ações vivenciadas pelo protagonista Höfgen e distancia-se de modo a promover para o seu leitor um entendimento mais estrutural das engrenagens sociais que permitiram a consolidação do regime nazifascista, ele dialoga com as finalidades do efeito de distanciamento propagadas por Bertolt Brecht. De um modo bastante peculiar, Klaus Mann reconstrói a responsabilidade histórica que alguns artistas tiveram ao se aliar ao regime nazista. Esse registro literário de denúncia é necessário pois, como foi afirmado por Brecht (2005, p. 205-206), “A rápida corrupção da arte, sob o nazismo, ocorreu de forma quase imperceptível”. Dessa forma, na perspectiva de Klaus Mann, é preciso cortar o estado de transe hipnótico promovido pelo palco nazista que fez com que muitos concordassem com uma arte cúmplice de crimes; é preciso que a arte, ao invés de servir, possa delatar e mudar o cenário.

O teatro do nazismo, o teatro de Höfgen

A política nazifascista possui uma qualidade teatral; seus momentos de comício promovem verdadeiras catarses aos espectadores que ali se encontram. Sua cenografia sugere uma intensa carga simbólica: a posição e a composição dos estandartes promovem uma ideia de elevação dos valores nazistas, motivada pela altura e pelo tamanho desses estandartes, ao mesmo tempo que se insinua uma característica de proteção por causa da disposição enfileirada em que se encontram nos grandes comícios políticos. Ademais, a maior parte dos estandartes é composta por três cores primárias: o vermelho, de fundo, indica um pathos associado ao primitivo sentimento da necessidade de se alimentar após a captura da caça - uma cor que, em concomitância, traduz um desejo arrebatador em meio a uma essencial satisfação do corpo ao ver o sangue do animal abatido;9 o contraste da cor preta da escrita da suástica em relação à cor branca associado ao segundo fundo em forma de alvo sugere a certeza e a confiança do destino político já prenunciado em uma simbologia de tempos remotos.10 As massas são conduzidas pelos sons produzidos pelos exércitos ali dispostos como uma grande orquestra a acompanhar a performance e as falas de um grande líder em destaque; o cumprimento coletivo advindo da antiga reverência romana dá a impressão do surgimento de um império tal como havia ocorrido em Roma. Por fim, a política nazista contava com uma arquitetura estética como estratégia de convencimento das massas; a realização dos seus comícios para o público, concebida em seus mínimos detalhes de sonorização, cenografia e atuação, mais se parecia com o conceito wagneriano de arte-total - que arrebata e cerca o espectador pela sobreposição do teatro-música-ópera-e-cenário em estágios de máxima intensificação catártica - do que um evento para a exposição de motivos políticos baseada na mera organização de discursos e frases de ordem. Conforme Wilhelm Reich (1988, p. 78), a inteligência hitlerista por trás dos comícios buscava atingir o aspecto emocional do público ao invés de dotá-lo de raciocínios que fortalecessem a causa nazista: “[...] os discursos nos comícios nacional-socialistas distinguiam-se pela habilidade em manejar emoções dos indivíduos nas massas e de evitar ao máximo uma argumentação objetiva”.

A teatralidade do regime nazista é, concomitantemente, uma estratégia de persuasão (como retórica de sedução das massas) e o seu próprio modus operandi (como encenação ritual de uma ideologia entre pares). O protagonista do romance Mefisto (1980), Hendrik Höfgen, tanto é reconhecido como uma ferramenta de valor para a continuação do projeto estético-retórico do regime nazista, como também reconhece o teatro que se desenrola pelos bastidores da cena político-cultural. É por isso que a sua forma de atuação irá modificar-se continuamente em busca de novos personagens. Novos personagens possibilitarão a Höfgen testar variações de caráter a fim de alimentar um conceito ampliado de palco do espetáculo-em-si para o espetáculo-da-vida-real. A ambição de ser afamado e de estar em evidência social torna-o um ser dinâmico para as flexões de caráter, realizando encenações de personalidades em sua vida prática e buscando o sucesso pessoal em meio à cumplicidade com a catástrofe e com a tragédia cotidianas impulsionadas pelo regime nazifascista.

Se considerarmos o caso das variações das encenações que Hendrik Höfgen realiza continuamente para atender a fins práticos de metas de prestígio social dentro do próprio espetáculo do nazifascismo, o estudo desse caráter ou desses caracteres torna-se mais complexo. O paroxismo e a ambiguidade que constituem sua personalidade constantemente mutável, não linear ou verdadeiramente contraditória provêm de uma ausência de base convictória ou ideológica a lhe fornecer um mínimo de coerência. Seu caráter, portanto, é de difícil tradução até mesmo entre os que convivem ou conviveram com maior proximidade com Höfgen: “- Acho que o entendo - disse Sebastian. - Ele mente sempre e não mente nunca. Sua falsidade é sua autenticidade. Isso soa complicado, mas é perfeitamente simples. Ele crê em tudo. É um ator” (Mann, 1980, p. 132).

Inicialmente, Hendrik Höfgen é associado à causa comunista e vive prometendo estreias de peças do teatro revolucionário de vanguarda. Entretanto, com o passar dos tempos, essa promessa nunca se cumpriria, sendo atrasada deliberadamente ao máximo pelo próprio Höfgen. Ao invés de inaugurar o teatro revolucionário, Höfgen proferiu a palestra “O teatro atual e as suas obrigações morais”, que agregou tanto as posturas liberais do diretor Kroge como a terminologia socialista do colega de atuação Otto Ulrichs, satisfazendo a mentalidade dos liberalistas e, ao mesmo tempo, conquistando a simpatia dos jovens marxistas por meio de seus chavões revolucionários.11 O sucesso unânime da palestra de Höfgen estampou-se nos jornais do dia seguinte, que elogiaram as suas honestas intenções artístico-políticas. Por motivos táticos, Höfgen não escolhe a peça radical que o conjunto de atores havia indicado um ano antes para estrear o teatro revolucionário; ao contrário dela, Hendrik Höfgen decide por apresentar uma tragédia de guerra ambientada na Alemanha de 1917 e cujo caráter era imprecisamente pacifista e nada socialista. Após algum tempo, Höfgen tornou-se preferido dos periódicos de esquerda, elogiado pela parcela progressista da burguesia e ídolo nos grandes salões judaicos. Por outro lado, os jornais da direita radical acusavam-no de ser um bolchevique cultural e de ter desvirtuado as obras do maior de todos os mestres alemães, Richard Wagner, com suas reencenações. Em 1933, quando o nazismo ganha plenos poderes com a chancelaria de Hitler e com a condição de partido único, Höfgen, compreendendo os riscos reais da perseguição étnica e política, começa a se apresentar como o louro da Renânia, sem quaisquer ascendências judaicas e sem filiação partidária - o que o coloca numa posição privilegiada diante da manutenção do poder pelos nazistas. Com a metamorfose de Höfgen para se ajustar às necessidades do projeto político-estético do nazismo, em pouco tempo, de detrator da autêntica cultura germânica e de deformador das intenções de Richard Wagner, o artista louro da Renânia, com a encenação de Hamlet, foi considerado pelos jornais como aquele que compreendeu a peça de Shakespeare de forma primorosa, como um protótipo do drama germânico. Höfgen encenou o personagem Hamlet como uma correspondência àquilo que o nazifascismo esperava que ele assim o fizesse: como um vingador do pai ou um tenente prussiano com manias neurastênicas. A partir disso, a elevação de Shakespeare à condição de “grande germano” ou de “gênio da raça por excelência” começou a se propagar pela crítica abalizada de arte na Alemanha.

Considerando a experimentação que Klaus Mann realiza ao mesclar teoria do drama e teoria do romance no tocante à construção do personagem na narrativa, pode-se afirmar que as ações de Hendrik Höfgen e suas falas não correspondem a um caráter classicamente definível, pois ele modifica continuamente as suas atitudes e varia continuamente suas ideias, não podendo existir aqui um reconhecimento de um único caráter ou ainda um caráter hegemônico que traduza sua personalidade. Propriamente, poder-se-ia sustentar que Höfgen varia o seu caráter, assim como varia suas falas. Para a conceituação da poética aristotélica, a multiplicidade de caracteres contida em Höfgen estaria mais próxima do erro acidental para a composição do personagem por causa da sua evidente contradição e, em alguns momentos, irracionalidade. Em verdade, a concepção clássica não pôde prever como o contexto nazista de aposta na captura emotiva por meio da estética deu vazão à irracionalidade como potência. Nesse sentido, pode-se testar a hipótese de que a constatação do comportamento contraditório em Höfgen é, além de uma tentativa de atuar dentro do regime hitlerista, a experimentação do próprio efeito estético promovido pela política nazista.

Essa hipótese, no entanto, deve considerar uma construção estética já anterior à elevação do nazifascismo como regime político. Sarrazac (2017), ao comentar a definição de drama-da-vida, mapeado em peças desde os fins do século XIX, apresenta, como um dos nortes para o entendimento dessa discussão, o conceito de impersonagem. Ao contrário do personagem com um caráter uno, coeso e coerente a fortalecer a apresentação de um plano de ações de base causalista e linear (conforme a perspectiva aristotélico-hegeliana), o impersonagem é fruto do deslocamento da ideia do personagem em ação, do drama-na-vida, para o personagem em questão, do drama-da-vida, em que as ações aparecem interrompidas pela permanência das interrogações do personagem a respeito de suas identidades e motivos. Desse modo, o impersonagem, em seu constante autoquestionamento, apresenta as falhas da lógica causal dos acontecimentos encenados e acaba por contestar uma visão monolítica (baseada na coerência entre ideias e atitudes) dos personagens. A partir dessas incertezas ou assimetrias constatadas entre valores e ações, o impersonagem esvazia o caráter e, de forma camaleônica, assume a autonegação da identidade como uma capacidade de multiplicar as formas de atuação no palco - por ele ser ninguém é que ele pode ser todos. O impersonagem, portanto, torna-se um personagem-experimento derivado do confronto sucessivo de máscaras superpostas; nesse sentido, seu caráter carrega uma transpessoalidade em si que permite ser um papel que encena diversos outros papéis.

Observando-se a evolução do protagonista em Mefisto (1980), pode ser deduzido, por um lado, como o aspecto da desorientação de valores (enfatizado na teoria benjaminiana do romance) contribuiu para a construção de Höfgen como um impersonagem, ou seja, como um personagem que interrompe a coerência entre ideias e ações. Por outro lado, é possível também afirmar que as características apontadas para o impersonagem, conceito extraído da teoria do drama de Sarrazac a ser notado como tendência progressiva de peças desde os anos de 1880, potencializaram as experimentações da forma romance adotada por Klaus Mann ao introduzir a multiplicidade das máscaras como uma condição para a existência do protagonista Hendrik Höfgen. Mais que uma mera condição para a construção do personagem Höfgen, a variância de caráter e a habilidade para atuação em diversos planos em meio à consolidação da política nazifascista tornam-se um dos pontos centrais para o entendimento da narrativa. Isso porque, ainda que o hibridismo entre as experiências do romance e do drama sejam constatadas na narrativa Mefisto (1980), de Klaus Mann, é preciso trazer o significado de tais procedimentos quando se discute a relação entre arte e vida, ou seja, como o personagem-ator Hendrik Höfgen atua como um impersonagem a reinterpretar seus movimentos e decisões de modo a se conduzir em direção a um pacto com o nazifascismo alemão. Desse modo, mais que tentar compreender a discussão a respeito da flutuação do caráter em Höfgen como uma familiaridade com o conceito de impersonagem provindo de peças desde o final do século XIX, é necessário investigar se tal conceito pode ser testado na narrativa de forma a proporcionar uma variação específica de impersonagem que se integre à ambiência que estava se formando (também esteticamente) por meio da política do nazifascismo ou se tal conceito, como operador estético para se instrumentalizar a concordância do personagem Höfgen com o nazismo, foi sendo, paulatinamente, eliminado em sua propriedade de multiplicação de papeis no decorrer do romance.

Um dos momentos-chave que podem trazer norte a essas questões é a interpretação que o protagonista da narrativa realiza da peça Hamlet, de Shakespeare. A partir da sua encenação como o príncipe dinamarquês, uma crise começa a imperar em Hendrik Höfgen. Se considerarmos que Sarrazac (2017) considera o príncipe Hamlet como uma antecipação histórica do impersonagem do drama-da-vida no tocante a ser o principal elemento a desenvolver o processo de quebra da estrutura linear da peça, pode-se compreender que tal conceito é tensionado no capítulo final do romance de Klaus Mann a partir do instante em que Höfgen, como protagonista, interrompe seu plano de ação de multiplicidade de papéis em benefício próprio e em apoio ao regime nazista para uma autointerrogação ética e estética. Por um lado, ainda que a incoerência entre ideias e atitudes, que permite a proliferação de diversas assimetrias de caráter a um só personagem, seja a característica básica do impersonagem, no caso exemplificado em Mefisto (1980), ela é, com o efeito da peça Hamlet dentro do romance, desmascarada como estratégia da irracionalidade político-estética que alimenta o nazifascismo. Por outro lado, o exercício da irracionalidade como fruto desse desequilíbrio entre comportamentos e ideias, movido pelo personagem Höfgen no âmbito do regime nazista, não promove, ao contrário da noção de impersonagem expressa por Sarrazac, um congelamento das ações por um questionamento que interrompa a sequência dos acontecimentos - isso somente irá ocorrer (e temporariamente) quando Höfgen interroga a sua própria atuação como príncipe Hamlet.12

Nesse sentido, fica evidente que, mesmo para um mestre no uso dos disfarces e da atuação, existe uma armadilha da qual não se pode escapar, ou melhor, existe um fracasso artístico do qual Hendrik Höfgen não consegue se desvencilhar. A arte teatral forneceu a Höfgen sua maior habilidade retórica e performática para ascender socialmente no regime nazista, mas a mesma arte também lhe pregou uma peça. Embora Hendrik Höfgen tenha obtido sucesso de público e de crítica na sua interpretação de Hamlet, essa sua atuação já não pode mais vir associada à busca do príncipe dinamarquês por alguma verdade possível (a circunstância da morte do rei e pai ou o motivo da existência humana em meio a tanto sofrimento). Nesse ponto, a autocrítica do ator devasta-o porque não pode reviver fielmente uma emoção a qual ele já não mais tinha capacidade de reconhecer: a emoção de uma pessoa que acredita ainda no poder da verdade.

O personagem Hamlet teatraliza os seus atos para a conquista de uma verdade, que vai desde descobrir quem matou o rei (seu pai) até investigar o significado da existência em meio a tantos infortúnios. Esse objetivo da encenação não é similar ao adotado por Hendrik Höfgen, que encena para conquistar poder e reconhecimento - essa teatralidade se aproxima da atuação do conselheiro Polônio da peça Hamlet.13 De imediato, existe uma contradição entre o personagem Hamlet, que Höfgen busca encenar, e a atuação do ator que acredita na verdade como uma montagem - uma versão para favorecer um poder, sendo importante ele participar dessa farsa da verdade a fim de se obter prestígio junto aos círculos de decisão. Ao contrário do personagem-ator Höfgen, o personagem Hamlet busca a teatralidade à procura da verdade (versão única e factual ou metafísica a desmascarar a farsa e o teatro social). Por fim, o sentimento de Höfgen é de que ele engana o público por meio da sua representação como Hamlet. O autoquestionamento do ator denuncia uma interpretação que esvazia o conceito do personagem Hamlet, ainda que a crítica especializada de arte no período do nazifascismo esteja a seu favor por causa da sua adaptação (cumplicidade) com o contexto político: “Os jornais vão me assegurar que sou o príncipe dinamarquês por excelência. Mas será mentira. O que fiz foi falso” (Mann, 1980, p. 257).

Embora Hendrik Höfgen encontre-se disfarçando sobre si para si e para todos e assumindo os seus disfarces de acordo com as conveniências do regime nazista, ele não consegue enganar a si mesmo. Enquanto o fantasma de Hamlet-pai cobra do príncipe vingança e justiça para o reino da Dinamarca, Hendrik Höfgen perturba-se com um delírio: o “fantasma” do príncipe Hamlet denuncia suas atitudes e cobra-lhe responsabilidades.

Você se parece com o gênio a quem serve, mas não comigo! O comediante esbravejou contra o príncipe: - Tenho de interpretá-lo! Se eu fracassar com você, meu fracasso será total. Você é a prova de fogo a que quero me submeter. Toda a minha vida, todos os pecados que cometi, minha grande traição e toda a minha ignomínia só se justifica graças a minha arte. E só serei artista se puder ser Hamlet. (Mann, 1980, p. 254).

Höfgen já não consegue mais alcançar uma representação fidedigna das emoções do príncipe Hamlet em sua atuação, pois este acredita em uma verdade, em um conceito de justiça do qual aquele já não mais participa. Hendrik Höfgen, nesse sentido, não consegue absorver o personagem Hamlet em seu disfarce devido ao distanciamento e a oposição que os dois possuem. Um sofre e se autoquestiona em busca de uma sabedoria distante e não aparente; o outro se delicia com as conquistas advindas da sua própria capacidade de se metamorfosear. Além disso, o fantasma do príncipe revela que, dos vários caracteres que Höfgen possa ter experimentado no palco da obediência ao sucesso, todos esses podem ser reduzidos a um único caráter: o de joguete a distrair criminosos. Isso equivale a dizer que a multiplicação de máscaras como prática recorrente do protagonista Hendrik Höfgen esconde uma única face, e essa é a do cúmplice da violência e da intolerância.

- Você não é Hamlet - respondeu-lhe o príncipe. Não tem aquela nobreza que só se adquire mediante o sofrimento e a sabedoria. Não sofreu o bastante, e o que chegou a saber não lhe valeu mais que um título bonito e um salário polpudo. Você não tem distinção, pois não passa de um macaco do poder, um palhaço que diverte os assassinos. [...] Não tenho qualquer relação com você. Você não é meu igual. (Mann, 1980, p. 254-255).

Ao se considerar a experimentação conceitual entre teoria do drama e teoria do romance notada em Mefisto (1980), é possível afirmar que, ainda que se baseie no camaleonismo das trocas de caracteres e na assimetria entre ações e ideias, o personagem-ator Hendrik Höfgen aparece como uma variação de impersonagem apresentado por Klaus Mann no palco político do nazifascismo que se distanciou enormemente do protótipo reconhecido por Sarrazac (2017) no príncipe dinamarquês Hamlet de Shakespeare. A incoerência entre valores e atitudes em Höfgen, ao contrário de questionar a ordem dos acontecimentos, não interrompe o plano de ações políticas no qual a sua vida vai se encaixando aos poucos. Ela alimenta a base irracional do regime nazifascista como espetáculo de atração de público.14 De outro modo, a multiplicidade de máscaras, conforme o “fantasma” de Hamlet no romance, não amplia as possibilidades de reapresentar e representar o palco-mundo sob uma ótica questionadora dos acontecimentos e autoquestionadora de identidade. Ela, em verdade, oculta uma face: a de parceiro solidário dos crimes do regime nazista. Nesse caso, a multiplicação de caracteres, paradoxalmente, é redução.

Outro ponto importante se pode observar nessa relação do livro Mefisto (1980) com a peça Hamlet. Em Hamlet, existe outra peça, apelidada pelo príncipe dinamarquês de “A ratoeira” e encenada para capturar o rei Cláudio por meio do efeito catártico, ao fazê-lo liberar a tensão de culpa de regicídio e de fratricídio. Interessantemente, essa função da peça-armadilha continua no romance Mefisto (1980): a peça Hamlet vai liberar a culpa de Höfgen por ser demasiado cúmplice dos crimes praticados pelo nazismo. Nessa perspectiva, a peça Hamlet é o espelho que denuncia a culpa, o pecado de Hendrik Höfgen - tal como “A ratoeira” o foi para Cláudio. A peça-armadilha Hamlet desperta em Hendrik Höfgen a sensação de fracasso; a autocrítica do ator fará com que ele compreenda o caráter ilusório dos elogios da crítica e a condução do gosto do público montados pelo regime nazista. A teatralidade do nazismo engloba a teatralidade do próprio Höfgen, e, dessa vez, o ator entende que ele não tem o controle sobre sua própria atuação - o regime nazista o fez com a seleção e eleição dos disfarces apropriados que Höfgen pudesse usar para servir à política de Estado. A partir disso, no último capítulo do livro, Hendrik Höfgen tende a não mais suportar suas atuações, nenhuma delas o deixa satisfeito, e seus crimes começam a sair da escuridão e a transbordar de si. Entretanto, mesmo com essa crise ética promovida pelo efeito Hamlet, Höfgen, como se ilustra no prólogo 1936, assumirá, em definitivo, a sua posição de cúmplice e encenará de acordo com o teatro nazista em troca da fama e do sucesso.

O sucesso de Höfgen

Como uma forma de deixar evidente o cruzamento entre os gêneros literários do teatro e do romance, Klaus Mann, já no primeiro momento da obra Mefisto (1980), cruza duas técnicas advindas deles: o prólogo, nascido do antigo teatro clássico grego, que introduz o tema da peça a fim de antecipar e contextualizar os eventos a ser encenados; e o flashforward, nascido das experimentações do romance (principalmente da literatura de tradição distópica), que desloca o tempo da narração para cenas futuras. A intenção de fazer os gêneros dialogarem na obra Mefisto (1980) condiz com a escolha do suporte romance que, na concepção de Bakhtin (2010), ao realizar uma parodização sistemática de outros gêneros, contribui para a renovação deles. Dessa maneira, Klaus Mann alimenta a narração da história do ator Hendrik Höfgen como uma forma de, concomitantemente, incitar uma cobrança ética e testar procedimentos estéticos do gênero dramático dentro do gênero romance.

Em relação a essa metodologia de apresentação da narrativa eleita por Mann, pode-se afirmar que o cruzamento do prólogo e do flashforward atribui um uso peculiar tanto de um como de outro. No âmbito das características intrinsecamente experimentais do gênero romance, conforme Bakhtin (2010), o uso especializado do prólogo por Mann, de um modo, ao invés de facilitar a exposição do tema, complexifica o nível das ações ao recortar uma cena futura que precisará ser remontada no desenrolar da leitura dos capítulos seguintes; o uso do flashforward nessa narrativa, de outro modo, multiplica os tempos, fazendo ser o futuro antecipado da narrativa o mesmo presente da escrita do romance - não é à toa que o prólogo vem com o ano de 1936 na composição do subtítulo. Por um lado, Mann, no decorrer da narrativa, mostra como a cena inicial de 1936 foi montada; por outro, o romancista cobra de seus leitores uma outra continuidade para o momento presente da sua escrita e que coincide com o futuro da narrativa exposta. A cobrança ética de Mann inicia-se desde a primeira passagem do romance: o prólogo-flashforward é a cena a que chegamos pelo passado que permitimos acontecer e, ao mesmo tempo, a cena atual que merece uma correção presente.

Quanto à contextualização da narrativa e à caracterização do protagonista, em 1936, o nazismo já estava consolidado na Alemanha e a carreira de Hendrik Höfgen estava em seu ápice. No introito, as falas a respeito de Höfgen surgem como comentários iniciais de interlocutores; o ator até então não aparece, entretanto, a sua fama e o seu sucesso, nesse momento, já o precedem. Hendrik Höfgen esforça-se bastante, ao ponto de adquirir o reconhecimento do público e a inveja de alguns de seus colegas de trabalho. Em muitas passagens da obra, nota-se o elogio dado a Höfgen como um ator extremamente talentoso que cativa públicos de diferentes idades.

Sem esse ator e diretor de cena, o teatro dificilmente poderia manter-se. Sua produção era enorme. Höfgen mostrava-se incansável e cheio de ideias. Fazia todos os papéis que podia - dos de jovens aos de anciãos. - Höfgen conquistava os corações da criança como o belo e faceiro príncipe de um conto de fadas natalino. As damas achavam-no irresistível em peças de bulevar francesas e na comédia de Oscar Wilde. Höfgen sabia ser tão elegante quanto trágico. (Mann, 1980, p. 61).

A ascensão de Höfgen em Berlim e sua colocação como presidente do Teatro Estatal, entretanto, vão além da qualidade ou competência artísticas. O jogo de bastidores e a encenação de Höfgen a fim de seduzir poderosos padrinhos em meio aos rituais sociais do regime nazifascista também entram na fórmula de seu sucesso. Para entender o sucesso de Höfgen, é necessário identificar as dinâmicas sociais do ambiente nazista.

A sociedade elitista alemã no nazismo possuía a seguinte hierarquia em sua organização: no topo da cadeia de relações, estava o Führer, abaixo, por ordem de importância, existiam os membros das altas patentes militares, os amigos (apadrinhados) próximos a esse círculo militar alemão bastante restrito, aqueles que pertenciam à nova sociedade alemã, os militares de patentes medianas ou rasas e os que desejavam fazer parte dessa sociedade. Para isso, estes últimos tiveram que passar a frequentar os mesmos ambientes prestigiados por algum membro do círculo militar alemão, pelo apadrinhado ou pela nova sociedade alemã, pagando por eles, como fica claro nesse trecho do livro:

Mais de dois mil convites tinham sido enviados, dentre os quais cerca de mil entradas de cortesia, que autorizavam o destinatário a saborear a festa gratuitamente, ao passo que os recebedores dos demais deviam desembolsar cinquenta marcos cada um. Assim, uma parcela das enormes despesas seria recuperada. O resto ficava a cargo dos contribuintes, que não pertenciam ao círculo de amizades do primeiro-ministro, muito menos à elite da nova sociedade alemã. (Mann, 1980, p. 11).

A elite alemã do regime nazista foi composta sob influência militar. As altas patentes militares tanto validavam os membros da tradicional aristocracia ou da burguesia emergente como elevavam aqueles que conseguiam ser apadrinhados no âmbito do regime. Para tais patentes, os privilégios também foram garantidos por meio do gasto público, considerado necessário pelo regime para destacar o mérito e o exemplo de importantes personalidades, mas que ampliava ainda mais a desigualdade social. Hendrik Höfgen, em 1936, figura entre os protegidos do primeiro-ministro do Führer - o que lhe coloca numa posição de destaque para a nova sociedade alemã em formação pela política nazista.

Quanto à conquista do sucesso de Höfgen, pode-se afirmar que a primeira ascensão de Höfgen deu-se na cidade de Hamburgo - seu talento artístico deu-lhe uma visibilidade local. Com uma fama maior na capital alemã, sua segunda ascensão em Berlim já se apresenta como uma concessão para quem, no passado, discursou a favor de um teatro revolucionário - o fato de permitir-se à encenação de comédias de costumes colocou-o como aliado de uma arte de entretenimento para a classe burguesa. Sua terceira ascensão como presidente do Teatro Estatal, principal representante da arte dramática na nação alemã, ocorre em meio ao pacto com o regime nazista e em cumplicidade com a política de extermínio aos judeus.

Nas circunstâncias da segunda ascensão, Hendrik Höfgen, ainda que, no seu íntimo, não acredite na qualidade artística de Dora Martin, elogia a carreira da atriz.15 Com isso, consegue o privilégio almejado de se aproximar do círculo administrativo de decisões para projetos artístico-culturais na Alemanha - isso fica explícito nessa passagem: “Vou dizer ao professor que ele deve dar a você uma oportunidade para atuar em Berlim” (Mann, 1980, p. 132). Sendo esse e alguns outros privilégios futuros atendidos por meio do cortejo aos apadrinhados das altas patentes militares e, posteriormente, aos próprios poderosos, Hendrik Höfgen consegue o reconhecimento do público em Berlim:

E conseguiu - como logo ficou claro. Primeiro foi apenas um pequeno papel com o qual se fez notar, dada a sua habilidade. Os jornais começaram a falar do “talentoso Sr. Hendik Höfgen”; depois veio uma peça russa em que apareceu brevemente como um jovem campônio bêbado, que entra no palco cambaleando e balbuciando alguma coisa para si mesmo, mas logo se põe a dançar. - O público berlinense fica fascinando pelo aplicado aluno da princesa Tebab. Aplaude-o demoradamente, logo ao fim da dança. (Mann, 1980, p. 137).

No momento iminente à terceira ascensão de Hendrik Höfgen, o ator já é extremamente conhecido pelo seu talento em Berlim; mas, com o personagem Mefisto, ele é aplaudido pelo Ministro da Aeronáutica e, após a sua apresentação, é convidado a falar com o próprio. Eles conversam, e Hendrik Höfgen aproveita a oportunidade e deixa uma ótima impressão. Ao fim do encontro, o ministro levantou-se e estendeu a mão para o ator como se quisesse selar um pacto. Nesse instante, Hendrik Höfgen tortura-se com as consequências desse pacto, contudo sua ambição e sua vaidade o fazem passar por cima dessas condenações: “agora me sujei, pensou Hendrik perplexo. Na minha mão surgiu uma mancha que jamais conseguirei limpar... acabo de me vender... estou marcado!” (Mann, 1980, p. 179). Dessa forma, o ator cativa o poder e se torna também cativo dele. Tal como Fausto, na obra de Goethe, vendeu sua alma a Mefisto para obter o pleno conhecimento, Höfgen entrega a sua em troca de prestígio social e reconhecimento artístico contínuos.

Muito diferente, Höfgen encontrava-se no primeiro capítulo da obra quando, no início do movimento nazista, entre os anos de 1923 e 1926, ele discutia o futuro do Teatro de Arte de Hamburgo. Nesse período, existia a fala de Hendik Höfgen defendendo uma arte genuína que seria inspirada no modelo bolchevique. Dois personagens marcavam esses embriões da sociedade na obra analisada: Hans Miklas, o ascendente ao nazismo, e Otto Ulrichs, o defensor do comunismo. Ambos perpassam a vida de Hendrik Höfgen. Inicialmente, ele estava próximo a Ulrichs e lhe fez promessas, nunca cumpridas, de auxiliar na construção de um teatro revolucionário. A todo tempo, Höfgen fala da criação de um teatro experimental, um teatro de esquerda, o qual sempre o ator posterga:

Frequentemente acontecia que, depois de alguns ensaios, Ulrichs puxava o colega de lado e lhes implorava: -Hendrik, quando vamos começar? Então Höfgen discursava, rápida e apaixonadamente, sobre a natureza abjeta do capitalismo, o teatro como instrumento político e a necessidade de uma ação vigorosa, bem elaborada, na área político-artística, e terminava prometendo que, logo após a estreia de Mariquinha Faz Tudo, iniciaria os ensaios do Teatro Revolucionário (Mann, 1980, p. 63).

Hendrik Höfgen fala da criação desse teatro, diz que tal estética irá conduzir o teatro alemão na direção certa, mas passa o tempo todo adiando essa inauguração. Por causa disso, desde essa passagem, uma interrogação (uma desconfiança) a respeito da determinação do caráter de Höfgen começa a pairar no romance.

Em verdade, é notória a facilidade que Hendrik Höfgen tem em mudar de personalidade em vários períodos da obra. Ele vive um jogo de cenas de acordo com o estudo das conveniências sociais e a reformulação constante do caráter para atender a tais conveniências. Por exemplo, em muitos momentos, Höfgen faz críticas ao capitalismo, porém desfruta das benesses desse sistema. Por fim, o que se tem nesse personagem é um artista que finge ideologias e que se vale dos confortos.

Hendrik não objetou coisa alguma. De resto, sentia-se um tanto inseguro e intimidado neste ambiente aristocrático. Sob o olhar avaliador do elegante garçom, Hendrik recordou-se, fugidia mas intensamente, da sua ideologia revolucionária. Estou deslocado neste ambiente de exploradores capitalistas, pensou com raiva, enquanto observava encherem sua taça com vinho branco. Arrependeu-se de ter adiado tantas e tantas vezes a inauguração do teatro revolucionário (Mann, 1980, p. 70).

Nessa passagem, é perceptível um ambiente elitizado. Marder, também crítico da sociedade burguesa (tal como Höfgen), sempre implacável e perspicaz, revelava-se um homem de tendência reacionária. Os dois, Marder e Höfgen, por fim, usufruem das benesses do capitalismo ao mesmo tempo que o criticam. Ainda que Hendrik Höfgen declare o seu protesto, continua bebendo vinho branco em um restaurante caro. De outro modo, o seu discurso de incitação de uma estética revolucionária de esquerda com a finalidade de atropelar a exploração capitalista é algo meramente da sua vaidade pessoal - mais para se vingar dos benefícios que ele inveja outros terem do sistema do capital do que, necessariamente, para colocar em prática uma crença política. Sua ideologia revolucionária é, desse modo, uma exibição vaidosa da sua personalidade em contextos em que tal discussão política é valorizada. Com a ascensão do regime nazista, de imediato, tal ideologia é retirada do sistema de crenças do ator tal como fosse uma peça do vestuário que já não mais será usada para a continuidade da encenação.

Desse modo, a forma com que Hendrik Höfgen aparece na obra mostra que é um ator na palavra mais vil: ele exime-se da culpa das mortes causadas pelo sistema nazista, sistema esse que ele passa a apoiar. Ele é extremamente hábil para pedir favores: pede favores para ascender em sua carreira em Berlim; posteriormente, ele vai pedir favores à atriz Dora Martin, que ele afirma ser de péssima qualidade, mas finge para ela que é a rainha da encenação; pede favores também para a amante do ministro e depois ele vai diretamente pedir favores ao ministro. É difícil negar favores a Hendrik Höfgen; ele sabe mover-se entre as esferas do poder; ele sabe, tranquilamente, no meio dos bastidores, bajular e conquistar a confiança das pessoas. Consegue até mesmo convencer o colega comunista dos velhos tempos, Otto Ulrichs. Ainda que Höfgen esteja na posição ao lado do nazismo, ele convence Ulrichs que está infiltrado a maquilar para a revolução. Ou seja, ele consegue conquistar a simpatia até mesmo das pessoas que sofrem com o regime que ele apoia.

Fechando as cortinas: o custo do aplauso

Para um grande espetáculo, o ator nutre-se da peça, mas é ele quem empresta plenitude física e espiritual à simples liberdade concebida pelo dramaturgo. Voz, expressão, autoridade cênica, tudo ele conjuga para alimentar o público. Pensando na formação de um ator e na caracterização de uma personalidade ao criar ou ser apresentado ao personagem, o ator passa a vivê-lo diariamente, suas manias, jeito de andar e vestir. A arte de atuar permite ao ator recriar-se, viver outra pessoa em seu próprio corpo, embeber-se numa caracterização. Hendrik Höfgen, nesse sentido, é um exímio ator, sabe apropriar-se dos disfarces e o faz alterando o sentido da realidade, ainda que cruel, do regime nazifascista. O próprio nome Hendrik, por exemplo, é encarado por esse ator como uma máscara necessária a negar a sua origem.

Há duas cenas somente em que ele vai ter o nome verdadeiro autorizado. A primeira é quando a Juliette, sua amante e professora de dança, chama-o - e ele aceita: “No mesmo murmúrio sinistro, que não deixava prever boa coisa, exortou-o: - Não quer se aproximar um pouco, Heinz? Só um pouquinho! Mas antes acenda a luz!” (Mann, 1980, p. 52). Juliette é uma negra forte, seu pai foi um engenheiro de Hamburgo - sendo esses traços problemáticos no contexto do nazifascismo. Hendrik Höfgen e Juliette possuem uma dinâmica peculiar de relacionamento: ela bate nele e ofende-o muito, porém ele aprecia isso. Hendrik Höfgen sente como se aquilo o libertasse das culpas (de abusar da farsa e tirar vantagem das pessoas); ela o ameaça dizendo que irá contar sobre os encontros deles ao Reich, e Höfgen muito se satisfaz com tudo isso. Essa dinâmica oferece catarse a Höfgen como uma forma de libertar sua alma de todas as mentiras. Em seu sentido psicológico, a catarse funciona para aliviar o espírito, libertando-o dos distúrbios que o agitam. Essa encenação leva a uma revelação: Höfgen sabe que tudo que Juliette está discorrendo naquele momento é mentira (mas soa como uma verdade necessária que o distensiona). Ele tem uma pessoa para desmascará-lo, e isso faz bem para ele; o seu caráter, pela vida toda, foi construído em cima de mentiras. Esses momentos com Juliette é como se fossem os intervalos, como se houvesse uma válvula de escape, até porque não se consegue mentir o tempo todo - é necessário, em alguns momentos, a fim de evitar ficar doente, ser verdadeiro consigo mesmo (ou fingir tal verdade para acomodar o ego). A fala de Juliette para Höfgen é dita porque ele deseja que ela o desmascare, isso faz parte do ritual, de um teatro que o liberta da culpa. Essa interpretação se confirma quando a culpa retorna a Hendrik Höfgen à medida que Juliette vai se afastando dele. Até mesmo aceitar o cargo de diretor do Teatro Estatal foi difícil para ele pois teria que se desfazer do seu ritual de purgação. Ele se questionava se deveria aceitar esse cargo, pois ouvia vozes na sua consciência denunciando que o seu nome e o seu comportamento já estariam atrelados ao assassinato em massa. Porém sua vaidade e ambição levam-no a aceitar a direção do Teatro Estatal.

A segunda cena em que o nome Heinz é proferido encontra-se nas últimas linhas do romance, quando, em meio a uma crise ética e estética após a interpretação de Höfgen do personagem Hamlet, a mãe, ao consolá-lo, acaba por dizer o seu verdadeiro nome. Nesse momento, a mãe compreende a carga da culpa que o filho carrega, entretanto, escolhe a cumplicidade e a divisão dessa culpa para alívio do filho. Tal instante revela mais uma das denúncias de Klaus Mann: o nazismo não apenas se perpetuou como uma política de Estado, mas também como um mecanismo de condescendência ampla nos ambientes domésticos alemães. Depois dessa cena, Hendrik Höfgen começa a recuperar, aos poucos, seu antigo vigor como artista aclamado, e a tensão também, paulatinamente, vai se desfazendo. Na última fala ilustrada no romance, Klaus Mann preserva ainda a ambiguidade do caráter de Höfgen de modo que não se sabe se, ao estar parcialmente recomposto, Hendrik Höfgen está expressando uma emoção verdadeira de alívio ou se escolheu o momento para teatralizar o seu próprio sofrimento tal como se não o pertencesse verdadeiramente. Tal ambiguidade é preservada pela equivalência de a falsidade de Höfgen ser sua própria autenticidade (e vigor). De todo modo, é após a sua mãe chamá-lo pelo verdadeiro nome e afirmar que não há nada para ser levado a sério que Höfgen encontra a catarse suficiente para começar a sair da crise imposta pela interpretação de Hamlet e que se torna o exemplar de celebridade artística apontada pelo Reich no prólogo “1936”.

Com um gesto violento, Hendrik estendeu os braços em direção ao pescoço da mãe, como se quisesse agarrar-se a ela. A permanente da Sra. Bella ficou desarrumada. Hendrik ofegava e gemia. O coração materno encheu-se de compaixão. Partilhando seu sofrimento, a mãe compreendia tudo. Dava-se conta da dimensão da culpa do filho, de seu grande fracasso, de seu arrependimento desesperado, insuficiente. Percebia os motivos por que ele jazia ali, soluçando. - Mas Heinz! - sussurrou. - Mas Heinz... Calma! Não há de ser nada, Heinz... Ao som desse nome, o nome de seus anos de juventude, o nome rejeitado por sua ambição e seu orgulho, o pranto tornou-se ainda mais veemente, porém em seguida amainou. Os ombros já não tremiam. O rosto conservava-se imóvel, apoiado nos joelhos da mãe. Alguns minutos se passaram, antes que Hendrik lentamente se endireitasse. Em suas pestanas ainda luziam lágrimas, e lágrimas continuavam a lhe umedecer o rosto, os lábios sempre vitoriosos, acostumados a cativar todo o mundo, e o nobre queixo, que ele sabia erguer com tamanha altivez. Enquanto o semblante exausto e molhado se inclinava lentamente para trás, Hendrik exclamou, abrindo os braços num belo e lamentoso gesto de desamparo e busca: - Que é que todos eles querem de mim? Por que me perseguem? Por que são tão duros comigo? Afinal, sou apenas um ator! (Mann, 1980, p. 70).

Pela sua sagacidade, o protagonista não pode alegar ingenuidade perante o processo social que o envolve. Sabe das mortes, das torturas, da repressão e de tantos outros horrores praticados pelo regime nazifascista. Mas, ainda que seja intimamente contrário a essas práticas, não consegue se postar contra elas, pois não almeja realizar uma ação corajosa e despojada de egoísmo. Dedicar-se a uma causa social seria, para ele, uma práxis improvável, pois ele está perpassado por uma obsessiva vaidade artística e, sob uma manipulada defesa da qualidade estética, intenta acomodar-se à sombra dos poderosos.

Vimos, no decorrer deste artigo, a forma como o personagem Hendrik Höfgen executou a arte da atuação. O que ele fez foi justamente utilizar os mecanismos aprendidos na arte teatral para manipular as pessoas à sua volta e, com isso, ganhar reconhecimento e prestígio junto ao público e à crítica. A vivência de Höfgen é toda forjando papeis para conseguir alcançar seus objetivos. Como foi observado, ele não teve dificuldades para vestir vários caracteres, uma vez que conseguiu apagar sua própria vida. O esvaziamento da personalidade é também um esvaziamento de princípios éticos, e, ao fazer isso, Höfgen pode ser qualquer personagem que lhe seja conveniente. Sendo assim, Hendrik Höfgen conseguiu ser o que sempre desejou: tornou-se o diretor do Teatro Estatal, reconhecido e respeitado por todos.

Nesse ponto da discussão, buscou-se testar o conceito de impersonagem - derivado da teoria do drama moderno de Sarrazac (2017) e identificado por ele em peças desde os fins do século XIX - no próprio protagonista do romance, Höfgen, ou seja, como um conceito dos estudos do teatro poderia dialogar, mesmo que se ajustando nesse transporte entre gêneros, com a perspectiva da construção de um personagem do romance que é ator e diretor de teatro e que lida com a vida como se estivesse a desenvolver técnicas de encenação a todo momento. Nesse sentido, diferente do caráter uno e orgânico a sustentar ações e ideias simétricas apoiadas em coerência e causalidade, o impersonagem paralisa a presunção pela linearidade dos fatos, combinando interrogações sobre identidades e tornando fluidas posturas morais. Inicialmente, o esvaziamento do caráter em Höfgen é uma técnica de potencialização das formas de atuação no palco nazifascista e, ao mesmo tempo, um escudo moral a se proteger da culpa pela cumplicidade com os crimes - sendo ninguém e sendo todos, ele pode desfazer seu passado, inventar seu presente e descomprometer-se de seus valores éticos. As máscaras superpostas do impersonagem mapeado por Sarrazac (2017), ainda que possam ser pensadas dentro da perspectiva de um teatro que denuncia as narrativas transparentes ou as morais cristalizadas como se lineares e coerentes assim fossem, sofrem uma inversão quando alimentadas pela experimentação da subjetividade de Höfgen. Se tal conceito pode desafiar e promover dúvidas na marcha do discurso de qualquer totalitarismo político (como o nazismo), no uso de Höfgen, ele promove uma inversão em seus efeitos tornando a subjetividade elástica e flexível o suficiente para aceitar crimes em nome da arte.

Entretanto, mesmo para um artista do quilate de Höfgen, é preciso afirmar que o uso hábil da técnica teatral não o protege da realidade por muito tempo. É a própria arte que o reconduz para um momento em que esse esvaziamento já não é mais possível. As manchas de seus crimes por cumplicidade com o regime nazifascista surgem em sua memória a partir da encenação de Hamlet - o príncipe apresenta-se como um fantasma a cobrar-lhe respostas. Desse modo, a aplicabilidade do conceito de impersonagem em Höfgen para atuar no palco nazifascista é aparente; Hendrik Höfgen imagina dotar-se de diversas faces para escapar de suas apreensões morais ao mesmo tempo que exercita o seu sucesso artístico advindo dessa capacidade de isenção, entretanto a face que lhe sobrou é única e perigosa e é a de um assassino (face sólida, inflexível, imoral e cúmplice com o genocídio).

Ainda que Bakhtin (2010) afirme que um dos principais temas interiores do romance seja a inadequação de um personagem ao seu destino ou à sua situação, Klaus Mann parece, nessa obra, apresentar-nos o conflito sob uma ótica diferente. A tensão está exatamente no ajustamento do protagonista a um mundo que adoeceu por meio das lições de intolerância política e de antissemitismo. Além disso, Klaus Mann testa diversos funcionamentos da arte teatral no decorrer de Mefisto (1980), gerando, nessa obra, uma ambiguidade que, por fim, coloca em relevo um questionamento ético para o exercício da arte. O teatro como arte responsável pela incitação do terror pode surgir por meio do teatro-espetáculo dos comícios realizados pela política nazista, do aproveitamento do conceito de arte-total de Wagner ou ainda da eleição do Fausto de Goethe como uma marca do nacionalismo alemão; o teatro experimental é apresentado no romance como uma virtualidade a ser sempre atrasada e nunca apresentada ao mundo; o teatro como arte responsável pela ilusão e pela anestesia ocorre em meio aos dramas e comédias de costumes em que Höfgen esteve atuando por certo tempo em Berlim; o teatro como estudo de padrões e de dinâmicas sociais é utilizado por Höfgen a fim de cumprir o seu projeto de ascensão; o teatro como liberação de culpa surge quando Höfgen e Juliette encenam verdades inconvenientes.

Neste artigo, buscou-se responder a esse questionamento de Klaus Mann confrontando-se o pensamento de Höfgen a respeito da função do teatro. Apresentando-se semelhanças e diferenças, vislumbramos que a própria conceituação da arte teatral perpassa por uma decisão teórica (que também se reflete eticamente) a respeito de seu funcionamento e finalidade. Por fim, o próprio Klaus Mann também propõe uma reflexão que merece ser ampliada quando o acaso shakespeariano aparece no capítulo final do romance. Partindo-se da declaração de Paz (2012) de que, nas tragédias de Shakespeare, o acaso elimina a necessidade, pode-se afirmar que o teatro também serve para desequilibrar o planejamento e a certeza do sucesso ou a própria anestesia ilusória que, em alguns momentos, ajuda a criar; o teatro, nesse sentido, desnorteia e, por nos desnortear, acaba também por nos obrigar a pensar um mundo de um modo diferente. Sob essa ótica, o teatro, embora não apresente uma proposta ou um plano ético de ação, pode fazer derreter a presunção de um mundo doente.

Referências

  • ARQUITETURA da destruição. Direção: Peter Cohen. Produção: Peter Cohen. Estúdio Versátil Filmes. Narradores: Rolf Arsenius (narrador versão original); Bruno Ganz (narrador alemão); Sam Gray (versão em inglês). Suécia, 1992. 1 DVD (121 min.), fullscreen 1.33:1, preto & branco e colorido.
  • BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec Editora, 2010.
  • BELTING, Hans. O fim da história da arte São Paulo: Cosac Naify, 2012.
  • BRANDÃO, Jack; SERGL, Marcos Júlio. Richard Wagner e Adolf Hitler: política, música e antissemitismo. Revista Lumen et Virtus, v. IX, n. 22, p. 235-260, ago. 2018.
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  • PAZ, Octavio. O arco e a lira São Paulo: Cosac Naify , 2012.
  • PRADO, Thiago Martins. A teatralidade em Hamlet e suas consequências. Revista Philologus, Rio de Janeiro, v. 26, n. 76, p. 117-135, jan./abr. 2020.
  • PRADO, Thiago Martins. Esboços para um complexo de Polônio. Bakhtiniana - Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, v. 11, n. 3, p. 132-153, set./dez. 2016.
  • REICH, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo São Paulo: Martins Fontes, 1988.
  • SARRAZAC, Jean-Pierre. Poética do drama moderno: de Ibsen a Koltès. São Paulo: Perspectiva, 2017.
  • TOLAND, John. Adolf Hitler v. 1. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978.
  • WAGNER, Richard. O judaísmo na música. O sentinela, Brusque, 22 nov. 2020. Disponível em: https://www.osentinela.org/o-judaismo-na-musica-um-ensaio-por-richard-wagner-traducao-de-j-o-bilda/#_ftn1 Acesso em: 30 mar. 2021
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  • 1
    A caracterização tão próxima da biografia de Gründgens fornece-nos a impressão de Hendrik Höfgen ser um personagem ficcional baseado na análise empírica, com uma metodologia de atuação e de formação como ator bastante explícitas e determinadas.
  • 2
    Richard Wagner elevou os mitos germânicos e privou os não-alemães (especialmente os judeus) de uma lógica de unidade nacional por meio da competência no campo da cultura e da arte. Também atribuiu aos judeus uma caracterização baseada na ganância excessiva que acaba por afetar a qualidade artística, quando, por exemplo, acusa as óperas judaicas de apenas visarem ao lucro (sem paixão) e ofertarem tão-somente entretenimento para pessoas desinteressadas de assuntos mais sérios. Quanto aos exageros ou distorções do pensamento de Richard Wagner nas apropriações da política nazista, Brandão e Sergl (2018) defendem que a ideia de renascimento por autoextermínio implacável do povo judeu encontra-se mais na dimensão cultural e espiritual (por meio da negação das crenças judaicas) que o seu aniquilamento físico; tais pesquisadores também afirmam que a concepção de raça de Wagner não era definida biologicamente e que a dita pureza era concebida como aproximação dos elos culturais da tradição e da história a dar coerência ao homem ariano alemão.
  • 3
    Escultura grega da Antiguidade Clássica, de Míron, cujo tema é um atleta pronto para lançar um disco de práticas desportivas - o discurso é citado pelo documentário “Arquitetura da Destruição”, de Peter Cohen (1992).
  • 4
    Alguns teóricos tentam reabilitar a obra de Richard Wagner com uma interpretação que a dissocia da formação do pensamento político do nazismo. Sarrazac (2017, p. 292), por exemplo, afirma que Wagner foi precursor em relação a uma concepção ampliada de drama cênico: “Wagner foi o primeiro a querer religar, de modo atualizado, a concepção de um drama que, a exemplo do teatro grego antigo, abraçaria a cena e as diferentes artes cênicas. A partir de Wagner, poder-se-ia dizer que há drama e drama. O primeiro, definitivamente enfeudado numa concepção restrita e sufocante da literatura dramática. O segundo, resolutamente moderno, aberto às evoluções da encenação, lançando uma ponte em direção ao que Wagner chamava de ‘obra de arte do futuro’”.
  • 5
    De forma ilustrativa, “O Pacto com o Diabo” e “Caminhando sobre cadáveres”, respectivamente, são os dois títulos dos capítulos sete e oito, em que Höfgen inicia seu contato e a sua colaboração com o regime nazifascista (que coincide com o sucesso da sua atuação com o personagem Mefistófeles, do Fausto, de Goethe). A partir desse momento, Höfgen tem consciência da escalada da violência, e prefere não se manifestar.
  • 6
    Como contraponto a esses grupos de personagens, Otto Ulrichs, um ator de ideias socialistas, representa a parca dissidência artística que em momento algum concordou com a galopante ascensão do regime nazista. Quando seu colega Höfgen o convence de se disfarçar como membro artístico simpático ao nazismo, Ulrichs somente aceita por acreditar que é uma estratégia revolucionária de infiltração arquitetada por Höfgen. Entretanto, quando Ulrichs deixa de se iludir com Höfgen e reconhece a farsa do colega para se preservar entre os favorecidos do regime, em pouco tempo cumpre tarefas demasiadamente arriscadas, que foram repassadas por seus contatos políticos, como uma demonstração de ousado desafio que, por fim, seria coroado com o seu sacrifício ao ser assassinado pelos agentes da Gestapo.
  • 7
    No capítulo IX, o primeiro-ministro da Alemanha pensa em Höfgen como “uma espécie de bobo da corte, um moleque brilhante, usado como se usa um brinquedo engraçado” (Mann, 1980, p. 200).
  • 8
    Ainda que seja destacada a influência do romance para a arte do teatro, tal como Sarrazac (2017) discute, o teatro também forneceu elementos que foram experimentados pela forma romance. O texto de Brecht Teatro recreativo ou teatro didático? afirma que o romance burguês do século XIX cultivou uma característica dramática ao intensificar a concentração da fábula pela ligação interdependente e causal com as partes, ao enfatizar um tom emocional ou dar realce ao entrechoque das forças em curso.
  • 9
    É dessa perspectiva da cor vermelha que advém a simbologia de sangue, luta e morte registrada por Lurker. (1997)
  • 10
    A suástica, conforme Lurker (1997), aparece em diferentes tempos e culturas, adquirindo variados significados - na Índia budista ou jainista, na Europa desde o período Neolítico, na América pré-colombiana, na África, na Polinésia, etc. Especialmente, para os germanos, a suástica surgiu em meio a ritos mágicos com características apotropaicas. É importante destacar também que, em ordens finlandesas e letãs, em meio a movimentos nacional-revolucionários, a suástica torna-se distintivo de ligas antissemitas. Estudos de Reich (1988) apontam que, notando as inscrições da suástica encontradas na Espanha, na Jordânia, na Grécia e na Índia, existe um forte conteúdo de apelo sexual em todas essas. Com isso, Wilhelm Reich afirma que a suástica provoca uma forte excitação em estratos profundos do organismo - excitação essa que será tanto mais forte quanto mais insatisfeita - ao mesmo tempo que esse símbolo reproduz, em nível consciente, uma concepção de respeitabilidade e de fidelidade, satisfazendo as tendências de defesa do ego moralista.
  • 11
    Embora convivendo sem grandes conflitos, a diferença de posturas políticas entre Kroge e Ulrichs fica evidente quando o diretor repreende o ator por suas idas a reuniões comunistas. A síntese camaleônica a partir do discurso de Kroge e de Ulrichs na palestra proferida por Höfgen tanto satisfaz a mentalidade de um como de outro sem que, a partir disso, haja um nítido comprometimento político-ideológico.
  • 12
    A crise ética de Höfgen fica bem evidenciada no último capítulo chamado A Ameaça. A ambiguidade do título do capítulo leva aos leitores a impressão de que ocorre um grande risco ao próprio Hendrik Höfgen após uma consciência ética e estética ter sido despertada a partir da encenação da peça Hamlet, entretanto, como o prólogo é uma projeção para o ano futuro de 1936, fica nítido que a ameaça (já consolidada como acontecimento futuro) era que Höfgen, mesmo atravessando a crise, consolidasse a sua integração como um artista cúmplice da política de violência do nazifascismo em nome do sucesso.
  • 13
    “O personagem Polônio, na peça de Shakespeare, constitui-se em torno de certos paradoxos. Primeiro, seu caráter é esquivo, volúvel e disfarçado para seguir as leis da atração da conveniência social e da autoridade real - seu comportamento varia de acordo com os preceitos que dão estabilidade ao teatro social. Segundo, embora a personalidade de Polônio esteja apta à variabilidade para que ocorram participação e domínio das cenas sociais, a sua perspectiva de que as ações humanas podem ser totalmente enquadradas e previstas torna seu caráter menos atento ao desenvolvimento performático e circunstancial das outras personagens. Terceiro, o seu estudo sobre a natureza humana tenta deduzir as ações empreendidas pelas personagens de forma universal, entretanto o seu modo volúvel de operar com o teatro-mundo é incompatível à sustentação de qualquer verdade que possa conter o homem. Em síntese, o conselheiro real Polônio, de Shakespeare, tenta anular a contradição, embora seja isso que o forme como personagem” (Prado, 2016, p. 135). A fim de consultar os diferentes conceitos de teatralidade existentes entre os personagens Hamlet e Polônio, consultar Prado (2020).
  • 14
    A admiração da personagem Barbara, primeira esposa de Höfgen e formada nos tradicionais círculos da burguesia alemã, pela oratória de Miklas, o jovem artista de retórica feroz e antissemita, é mais um dos momentos em que a base irracional do regime nazifascista parece cativar um público diverso.
  • 15
    Num primeiro momento, Hendrik Höfgen, dominado pela inveja do sucesso de Dora Martin, critica-a por suas qualidades artísticas; num segundo momento, quando a conhece e começa a depender de seus favores para subir na carreira, elogia-a exageradamente por suas atuações; num terceiro momento, em que Lotte Lindenthal, atriz e esposa do primeiro-ministro, eleva-o à condição de apadrinhado do marido e que, a partir daí, Hendrik Höfgen não precisaria mais da influência de Dora Martin, ele passou a criticá-la por suas péssimas interpretações porque estavam associadas à sua inclinação ao mau gosto da arte judaica.
  • A pesquisa que resultou neste artigo contou com o seguinte financiamento do CNPq: processos 405218/2021-4 e 309433/2022-3.

Editado por

  • Editores:
    Karina Anhezini e Eduardo Romero de Oliveira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2022
  • Aceito
    04 Set 2023
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