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Memórias de mulheres em combate: mulheres nas escritas de si de quem lutou na Guerra de Independência de Moçambique (1964-1974)

Memories of Woman in Combat: Woman in the Self-Wirtings of those who Fought in the Mozambique War of Independence (1964-1974)

Resumo

Guerras são vistas, de forma generalizada, como espaços masculinos de atuação, o que silencia a presença e a atuação de milhares de mulheres que se envolvem direta ou indiretamente em conflitos armados. O objetivo deste artigo é explorar as memórias sobre a presença e a atuação das mulheres na Guerra de Independência de Moçambique, por intermédio das biografias, autobiografias e histórias de vida daqueles que lutaram e que se tornaram presidentes do país, além da biografia de Josina Muthemba Machel, personagem elevada à condição de ícone da mulher moçambicana ainda no período de guerra. A metodologia parte da leitura de pesquisadores da História Oral que discutem a produção e a análise da memória. As análises permitem observar a reafirmação de perspectivas masculinas sobre a guerra e a reprodução de estereótipos de inferiorização do papel da mulher soldado, que reforçam discursivamente a exemplaridade de Josina Machel, pois esvaziam a participação feminina efetiva e o protagonismo das mulheres em diferentes frentes de atuação.

Palavras-chave:
escritas de si; Moçambique; mulheres; Josina Machel

Abstract

Wars are widely seen as male spaces of action, which silences the presence and action of thousands of women who are directly or indirectly involved in armed conflicts. The purpose of this article is to explore the memories about the presence and role of women in the Mozambican War of Independence, through the biographies, autobiographies, and life stories of those who fought the conflict and who became presidents of the country, in addition to the biography about Josina Muthemba Machel, a character who became an icon for Mozambican women during the Independece War. The methodology starts from the reading of researchers from Oral History who discuss the production and analysis of memory. These analyzes allows us to observe the reaffirmation of male perspectives on war and the reproduction of stereotypes and the inferiorization of the role of the female soldier, which discursively reinforce the exemplarity of Josina Machel, emptying effective female participation, at the same time, the protagonism of women, in different fronts of action, emerges from female voices.

Keywords:
self writing; Mozambique; women; Josina Machel

Não te encontrei na casa, mas no rosto de toda a gente [...]

A tua vida continua nos continuadores da Revolução

(Samora Machel1 1 Poema “Josina tu não morreste”, escrito em 7 de maio de 1971, MOZAMBIQUE HISTORY NET. Disponível em: https://www.yumpu.com/pt/document/view/52341691/here-mozambique-history-net. Acesso em: 30 de dezembro de 2020. )

A História, aquela com “H” maiúsculo, ainda disseminada na literatura didática, em alguns manuais historiográficos e que povoa o imaginário coletivo é tradicionalmente associada com o fazer político-econômico, branco-europeu, masculino. A América Latina e a África não ficaram ausentes do processo de exclusão das mulheres, tendo a historiografia sobre o sujeito feminino emergido somente nos anos 1980, pela renovação da ciência ou por influência dos movimentos feministas (Silva, 2010SILVA, Tânia Maria Gomes da. Trajetória da historiografia das mulheres no Brasil. Politeia - História e Sociedade, Salvador, v. 8, n. 1, 2010, p. 223-231. Disponível em: https://periodicos2.uesb.br/index.php/politeia/article/view/3871 . Acesso em: 15 abr. 2022.
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; Casimiro, 2014CASIMIRO, Isabel Maria. Paz na Terra, Guerra em Casa. Série Brasil & África - Coleção Pesquisas 1. Pernambuco: Editora da UFPE, 2014.).

Igualmente, uma perspectiva que assumisse o protagonismo dos africanos é recente no Brasil. Ganhou fôlego com a aprovação da Lei nº 10.639, em 2003, e com o consequente aumento de pesquisas historiográficas, produção bibliográfica e ensino da História da África. Os pesquisadores e educadores de hoje colhem o fruto dessa virada epistemológica, que realiza um esforço para descentralizar o conhecimento e ampliar os sujeitos históricos.

Contudo, há ainda uma dificuldade entre nós: admitir e compreender a participação das mulheres em conflitos armados, para além da figura da vítima. Essa “dificuldade” aparece não somente para pesquisadores brasileiros, pois é evidente também na produção acadêmica de africanos e sobre a África. Majoritariamente, as narrativas dos eventos se fazem por uma perspectiva masculina, seja em tempos de guerra seja em tempos de paz.

Isto posto, apresenta-se aqui uma análise das memórias sobre a presença e a atuação das mulheres na Guerra de Independência de Moçambique, buscando evidenciar a reprodução de discursos tradicionais e, ao mesmo tempo, questionar e romper com uma narrativa exclusivamente masculina do processo em questão. As fontes são as escritas de si2 2 O uso do termo “escritas de si” para as fontes tem por referência as características apresentadas por Lígia Pereira (2000, p. 118). Para a autora, as escritas de si podem ser divididas em 3 categorias: a autobiografia, que consiste na narrativa da própria existência; a biografia, constituída da história do indivíduo contada por outro, que pode contar ou não com a narrativa do sujeito narrado; e, a história de vida, um relato de um narrador sobre sua existência através do tempo, com a intermediação de um intérprete. Em todos os casos não é ignorado o caráter seletivo, exemplar, construído e interpretativo das memórias narradas. , como categorizadas por Lígia Pereira (2000PEREIRA, Lígia Maria Leite. Algumas reflexões sobre histórias de vida, biografias e autobiografias. História Oral, v. 3, p. 117-127, 2000. Disponível em: https://revista.historiaoral.org.br/index.php/rho/article/view/26. Acesso em: 27 nov. 2021.
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), dos líderes da FRELIMO que alçaram a condição de presidente, portanto, Samora Machel, Joaquim Chissano e Armando Guebuza, e a biografia de Josina Muthemba (Machel, por casamento). Metodologicamente, esses documentos são analisados por intermédio das considerações dos teóricos da História Oral, representados ao longo do artigo por Pierre Bourdieu (1988BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In: FERREIRA, Marieta; AMADO, Janaína. Usos & Abusos da História Oral. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 1988. p. 183-191.), Michael Pollak (1992POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992. Disponível em: http://www.pgedf.ufpr.br/memoria%20e%20identidadesocial%20A%20capraro%202.pdf . Acesso em: 30 dez. 2020.
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; 1989) e Alessandro Portelli (1993PORTELLI, Alessandro. Sonhos Ucrônicos: memórias e possíveis mundo dos trabalhadores. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 41-58, 1993. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/12103 . Acesso em: 30 dez. 2020.
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; 2010PORTELLI, Alessandro. Como se fosse uma história: versões do Vietnã. In: PORTELLI, Alessandro. Ensaios de História Oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010. p. 185-208. ). O esforço é um recorte de um projeto mais amplo que a autora vem realizando no pós-doutoramento em História.

As análises aqui efetivadas buscam se aproximar do entendimento sobre as formas de compreender e de estar no mundo próprias dos moçambicanos e das moçambicanas. A discussão reconhece críticas importantes sobre a imposição de categorias ocidentais como universais e atemporais.3 3 Nesse sentido, sugere-se a leitura de Oyèrónké Oyêwúmi (2021). Para a pesquisadora, o tráfico escravista e o processo colonial produziram interpretações sobre as populações africanas que elevavam categorias ocidentais à condição de universais. É o caso da noção de gênero como organizador fundamental das sociedades e da submissão das mulheres. Sobre a cultura iorubá, por exemplo, a autora afirma que “[...] o gênero não era um princípio organizador na sociedade iorubá antes da colonização pelo Ocidente. As categorias sociais homens e mulheres eram inexistentes e, portanto, nenhum sistema de gênero esteve em vigor” (Oyêwúmi, 2021, p. 69). Por esse motivo, a autora recorreu à leitura de moçambicanos(as) e africanistas atentos às especificidades dessa sociedade e percebeu que em Moçambique existe uma construção, diferenciação e subordinação pautada no gênero, como determina Isabel Casimiro (2014CASIMIRO, Isabel Maria. Paz na Terra, Guerra em Casa. Série Brasil & África - Coleção Pesquisas 1. Pernambuco: Editora da UFPE, 2014., p. 150-167); no entanto, entende que cabe investigar como e quanto esse conjunto de elementos se faz presente nas experiências narradas.

Caracterização das fontes

O processo de busca por fontes moçambicanas se deu pela oportunidade de realização de um trabalho de campo na cidade de Maputo, capital de Moçambique, em 2016 (Processo: 2013 / 14210 - 7). Naquele momento, entre as atividades acadêmicas realizadas, buscou-se obter as biografias, autobiografias e histórias de vida em circulação que tomassem por objeto sujeitos que lutaram na guerra pela independência do país.

De pronto, foi possível observar a ausência de produções em circulação que explorassem a vida das lideranças da RENAMO - oponente histórico frelimista - ou de dissidentes da FRELIMO. A hipótese para essa ausência, depois ratificada pela análise de parte do acervo obtido, é que ela ocorreu devido à influência do contexto de produção dessas obras, o pós-guerra civil, portanto, quando RENAMO e FRELIMO atuam no campo da política partidária. As escritas de si, nesse caso, são parte de um projeto de legitimação no presente de mitos da origem de uma Moçambique independente, ou da própria moçambicanidade. Este termo aparece com frequência como forjado na experiência da guerra (1964- 1974), como exemplifica texto de Cabaço e discurso de Samora Machel:

Para que a vitória fosse possível, para que a independência fosse real, tornava-se indispensável uma nítida demarcação entre os comportamentos, os hábitos, a linguagem e os valores dos patriotas moçambicanos e os defendidos pela sociedade colonial. Para tal, era imperativo encorajar - e dirigir - a convergência das várias experiências numa experiência comum. E o núcleo desse processo só poderia ser a luta armada de libertação nacional e, em particular, o treino político-militar ([Cabaço]Sopa4 4 Quando o texto citado integra o corpo das fontes, opta-se por apresentar o sobrenome do autor do texto em colchetes, seguido do sobrenome do editor/autor da fonte. Nesse caso, por exemplo, a autoria do texto é de José Luís Cabaço, em colchetes, publicado como capítulo na fonte biográfica de Samora Machel, coordenado por Antonio Sopa. , 2001SOPA, Antonio (coord.). Samora: homem do povo. Maputo: Maguezo Editores, 2001., p.111, grifos da autora). O treino político-militar era a forja da unidade nacional, do pensamento comum, da consciência patriótica e de classe. Entrávamos lá macondes, macuas, nianjas, nhúngués, manicas, changanas, ajáuas, rongas ou senas, saíamos moçambicanos. Entrávamos pretos, brancos, mulatos, indianos, saíamos moçambicanos. (Samora, 1981 apud [Cabaço]Sopa, 2001SOPA, Antonio (coord.). Samora: homem do povo. Maputo: Maguezo Editores, 2001., p. 111, grifos da autora).

Dessa forma, a autora compreende essas narrativas, eleitas como fonte, como parte do projeto nacional que se institucionalizou com a independência, portanto ligadas à FRELIMO, ou como define o teórico do campo da História Oral, Michel Pollak, como “[...] tentativas mais ou menos conscientes de definir e reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades” (1989, p. 9). Da mesma forma, as fontes estão atadas ao projeto frelimista de reafirmação do seu papel como fundador da Nação depois da “guerra dos dezesseis anos”.

Segundo Macagno:

A partir da década de 1990, o país experimenta algumas transformações fundamentais: o fim da guerra civil, a implantação da democracia partidária e reformas no campo socioeconômico. Entretanto, e diante das incertezas do presente, a imagem de Machel era evocada como uma garantia de segurança. Mas isso assumia muitas vezes a forma de uma narração mítica. (2009MACAGNO, Lorenzo. Fragmentos de uma imaginação nacional. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 24, n. 70, p. 17-35, 2009. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/X8X68Zc6vm4G7STJgNnKYkR/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 15 abr. 2021.
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, p. 27).

Ao total foram recolhidas 12 obras, cuja baliza cronológica das publicações variam entre 1995 e 2015, este último limitado ao ano em que ocorreu o trabalho de campo e a recolha das fontes. Para este artigo, as fontes selecionadas são as dos presidentes Samora Machel, Joaquim Chissano e Armando Guebuza e a biografia de Josina Muthemba (Machel, por casamento). A ordem cronológica das publicações, a modalidade de escrita de si e as características gerais das fontes estão indicadas no Quadro 1.

Quadro 1-
Características gerais das fontes

Simbolicamente, as duas primeiras obras biográficas publicadas encontradas no período de recolha das fontes são de Eduardo Mondlane e de Samora Machel, respectivamente. Além de serem lideranças centrais na formação e condução da FRELIMO, reforçando o que especialistas em memória tem alertado, que “[...] a biografia, é sustentada pela ênfase na participação individual em eventos históricos” (Portelli, 2010PORTELLI, Alessandro. Como se fosse uma história: versões do Vietnã. In: PORTELLI, Alessandro. Ensaios de História Oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010. p. 185-208. , p. 186), ambos faleceram em nome ou a serviço da Nação, o que os coloca na categoria de mitos nacionais. Essa condição aplica-se também a Josina Machel, mas não lhe garantiu estar entre as primeiras memórias publicadas. Ademais, como indica Omar Thomaz (2006THOMAZ, Omar Ribeiro. “Raça”, nação e status: histórias de guerra e “relações raciais” em Moçambique. Revista USP, São Paulo, n. 68, p. 252-268, 2006. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/13496 . Acesso em: 01 jun. 2022.
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), no contexto moçambicano existe uma construção da nacionalidade pautada na atuação da guerra e dos sofrimentos dela oriundos, sentidos de formas diferentes na cidade e no mato, e de acordo com o grupo racial ao qual se pertence, o que resulta inclusive numa certa hierarquização do pertencimento nacional e do direito sobre os rumos do país. No caso destes três personagens, o relevo, uma vez mais, ocorreu em virtude de seu fim trágico em nome da Nação.

A biografia de Samora Machel aqui analisada é uma organização composta por 16 capítulos, escritos por pesquisadores, por frelimistas e/ou sujeitos que conviveram com ele. Os textos estão nas páginas 5 a 150, e as páginas 151 a 296 apresentam uma fotobiografia. Para analisar a biografia de Samora Machel o historiador encontra alguns entraves metodológicos. Se é fato que História Oral lida com a produção do escrito - e do ocultado -, carregado de elementos que fazem parte da construção coerente e sequencial, da “imagem” que o biografado desejou tornar público (Bourdieu, 1988BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In: FERREIRA, Marieta; AMADO, Janaína. Usos & Abusos da História Oral. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 1988. p. 183-191.), o livro fonte para as memórias de Samora lidam ainda com um outro “filtro”: o dos autores dos textos.

Portanto, as memórias apresentadas na fonte estão condicionadas, não apenas à relação ao que é possível rememorar, mas também à proximidade do acesso a dados, ou da própria perspectiva do sujeito que escreve a narrativa. Há, por exemplo, um capítulo escrito pela socióloga e especialista em gênero Isabel Maria Casimiro que analisa as relações entre homens e mulheres “no tempo Samora” ([Casimiro]Sopa, 2001SOPA, Antonio (coord.). Samora: homem do povo. Maputo: Maguezo Editores, 2001.) - termo presente no título do capítulo e usado ainda hoje pelos moçambicanos de forma recorrente, como saudosismo. Neste capítulo, a autora apresenta questões fundamentais para a discussão de gênero que ultrapassam e questionam aspectos da condução do tema por parte do sujeito Samora Machel, pois ao longo do texto a crítica é feita ao “guerrilheiro”, ao “combatente”, às “políticas de Estado”, à “FRELIMO”, mas não diretamente narrada às posições de Samora Machel. Em contraste, muitos outros capítulos silenciam sobre abordagens que poderiam contemplar as mulheres ou as tratam como secundárias, caso de Fernando Ganhão (Sopa, 2001THOMAZ, Omar Ribeiro. “Raça”, nação e status: histórias de guerra e “relações raciais” em Moçambique. Revista USP, São Paulo, n. 68, p. 252-268, 2006. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/13496 . Acesso em: 01 jun. 2022.
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), que se verá adiante.

A história de vida de Armando Guebuza, integrante da FRELIMO desde sua formação e parte do Governo Provisório (1986), foi lançada exatamente no ano em que ele concorria pela primeira vez ao cargo de presidente. Ou seja, o documento foi produzido e lançado no ano de disputa eleitoral, evidenciando o uso político das memórias da guerra e a importância dos contextos de publicação. O fato não é ocultado na obra, como mostra o prefácio:

Se posso, por um breve momento, reenquadrar esta iniciativa editorial no calendário político do país e colocar-me na perspectiva do cidadão eleitor, penso que esta revelação do lado humano e sensível de Armando Emílio Guebuza, até aqui segredo dos que lhe são próximos, não é contributo menor deste livro que é essencialmente um livro de história. (Honwana, 2004HONWANA, Luis Bernardo. Armando Guebuza - um pouco de si. Fotobiografia. Maputo: Moçambique Editora; Lisboa: Texto Editora, 2004., p. 8).5 5 Sobre as estratégias políticas em períodos eleitorais, ver Lourenço (2009), e a respeito das mudanças e permanências das estruturas oficiais de poder de Moçambique, ver Macuane (2009).

Fica evidente o poder político das memórias, fato reforçado também pelo autor:

É de louvar que um candidato, nestas ou em quaisquer outras eleições, se dê a conhecer àqueles que se propões servir - as suas origens, as suas vivências, o seu ambiente familiar - e os valores que aí se cultivam - os seus interesses, as suas preocupações, enfim, as suas convicções profundas e os ideais onde se filia, o seu pensamento e acção política. Este conhecimento (ou a avaliação dos elementos que a ele possam conduzir) devia sempre enformar uma escolha política, o acto pessoalíssimo de votar, para além dos programas e manifestos que o jogo democrático exige e os partidos fornecem. (Honwana, 2004, p. 8, grifos do autor).

O entrevistador e organizador das memórias de Guebuza, como se observa na citação e na tabela, é Luís Bernardo Honwana, um importante intelectual e reconhecido escritor moçambicano, autor da obra Nós matamos o cão-tinhoso. Honwana, que foi preso devido a suas atividades políticas e anticoloniais, de 1964 a 1967, integrou a FRELIMO durante a guerra de independência e ocupou cargos políticos nomeados pelo partido (Conceição, 2018CONCEIÇÃO, Vércia Gonçalves. A escrita anticolonialista de Luís Bernardo Honwana. Fólio - Revista de Letras. v. 10, n. 2, p. 297-312, 2018. Disponível em: https://periodicos2.uesb.br/index.php/folio/article/view/4476/3777 . Acesso em: 01 fev. 2023.
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, p. 297-300). Portanto, infere-se que, assim como Guebuza, é um herdeiro da memória vitoriosa da guerra.

Semelhante à organização das memórias de Samora Machel, a história de vida de Guebuza é apresentada em uma fotobiografia. Aqui, porém, são as fotos que conduzem a narrativa e se tornam centrais. É necessário considerar que, em um país cuja taxa de alfabetização era de aproximadamente 48%, em 2004 (Indexmundi, 2019INDEXMUNDI. Moçambique - Taxas de Alfabetização - Dados Históricos Gráficos. Disponível em: https://www.indexmundi.com/g/g.aspx?c=mz&v=39&l=pt . Acesso em: 03 de dez. 2019.
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), uma fotobiografia do candidato da situação com imagens suas com as lideranças centrais da FRELIMO (entre elas Mondlane, Machel e Chissano) e de lideranças de outros países garantia prestígio e votos.

Por sua vez, ainda que Joaquim Chissano tenha ocupado a presidência antes de Guebuza, sua obra é a mais recente das aqui selecionadas. Provavelmente porque é o próprio Joaquim Chissano o escritor de suas memórias, o que o faz parte de um projeto pessoal que pretende estender para outros dois volumes, como informa em seu prefácio. É possível sugerir que, no caso de Chissano, publicizar sua trajetória não é projeto de obtenção de cargo político, mas de reafirmação da condição de herói no panteão nacional, após permanecer 18 anos como presidente.

Ainda sobre a autobiografia de Joaquim Chissano, é válido indicar também que, mesmo que ele aponte como recorte temporal o período de sua infância à chegada a Dar-es-Salam, nesse primeiro volume a narrativa muitas vezes aborda o contexto da guerra e do pós-guerra. Chissano, como os demais presidentes, também integrou altos cargos frelimistas, desde o período da luta anticolonial, e integrava o Comitê Central e Executivo da FRELIMO, por ocasião da independência.

Já a fonte produzida sobre a trajetória de Josina Machel é de autoria de Renato Matusse, doutor em Sociolinguística, e Josina Malique, licenciada em Relações Internacionais. Em comum, em 2007 ambos eram membros do Conselho do Presidente para Assuntos Políticos, na época Armando Guebuza. Na introdução, os autores afirmam terem acessado documentos oficiais da FRELIMO e entrevistado com o rigor da História Oral diferentes sujeitos que conviveram com Josina Machel. Informam que a obra foi “encorajada” por Armando Guebuza, a quem apresentam um agradecimento. O próprio Guebuza assina o prefácio, no qual afirma: “Rememorar o percurso político de Josina é folhear algumas das páginas do nacionalismo moçambicano, [...] é também reviver essa nossa empolgante epopeia libertária” ([Guebuza]Matusse; Malique, 2007MATUSSE, Renato; MALIQUE, Josina. Josina Machel: ícone da emancipação da mulher moçambicana. Maputo: Editora ARPAC, 2007., p. VII). Assim, sujeito histórico e construção da nacionalidade entrecruzam-se.

A obra contou com o patrocínio do Ministério da Cultura e Turismo e do Fundo de Desenvolvimento Artístico e Cultural, o que não é nenhum ineditismo dentro do corpo documental, visto que o livro sobre Samora Machel também contou com apoio financeiro de empresas estatais. Já o de Armando Guebuza indica iniciativa de particulares (sem os identificar) e da Imprensa Universitária, ligada à Universidade Eduardo Mondlane, instituição pública, e a obra de Joaquim Chissano contou com patrocínio de uma empresa privada de telefonia, uma concessão estatal.

Memórias de mulheres nas escritas masculinas

As escritas de si dos sujeitos masculinos analisados pouco apresentam sobre o papel das mulheres na guerra de independência moçambicana. Ainda assim, é importante indicar em que contextos e tons o feminino é mencionado, para em seguida apresentar as memórias sobre Josina Muthemba Machel. Mulher soldado que lutou na guerra e faleceu durante o conflito e teve sua memória alçada à condição de ícone, sendo a data de sua morte, 7 de abril, celebrada como “Dia da mulher Moçambicana” a partir de 1972, um ano após sua morte, por determinação do Comitê Central da FRELIMO.

Quando não se refere a familiares, colegas ou professoras, a biografia de Armando Guebuza aborda a presença ou o papel da mulher em três diferentes momentos, dois deles a respeito de seu casamento. No primeiro é feita a narrativa do matrimônio com Maria da Luz ainda no centro de treinamento, celebrado por Marcelino dos Santos e tendo por padrinho Samora Machel e Francisca Dlakhama (ambos homens do alto escalão frelimista). No segundo momento, Guebuza elogia a esposa:

Eu posso dizer que tenho sorte, pelo facto de haver uma grande compreensão entre nós mas, também, pelo facto de termos sido criados durante algum tempo no mesmo ambiente facilitou que ela compreendesse certas coisas que seria difícil para outras mulheres entenderem. É que desde a proclamação da independência eu raramente estou muito em casa. ([Guebuza]Honwana, 2004HONWANA, Luis Bernardo. Armando Guebuza - um pouco de si. Fotobiografia. Maputo: Moçambique Editora; Lisboa: Texto Editora, 2004., p. 50).

Fica evidente aqui que a experiência de guerra é o que permite a Maria da Luz obter a compreensão necessária sobre as ocupações do esposo.6 6 As páginas 20 e 21 apresentam breve narrativa da trajetória de Maria da Luz e fotografias dela no Instituto Moçambicano em Dar-es-Salam. Fora o matrimônio, os únicos momentos nos quais as mulheres são mencionadas são: o trecho em que narra o envolvimento no NESAM (Núcleo de Estudantes Secundários Africanos de Moçambique) e a prisão pela PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado). Nesse trecho, elenca homens e mulheres com os quais dividiu a militância e o cárcere, entre eles Josina Muthemba (p. 29). Há nesta página três fotografias: um retrato da família Azarias Chichava, uma foto do rosto de Josina e outra de Cristina Tembe (na época, Primeira Secretária do NESAM). Os três permaneceram presos com Guebuza em 1964 por cinco meses.

Joaquim Chissano coloca-se como “testemunha do seu tempo” (Pereira, 2000PEREIRA, Lígia Maria Leite. Algumas reflexões sobre histórias de vida, biografias e autobiografias. História Oral, v. 3, p. 117-127, 2000. Disponível em: https://revista.historiaoral.org.br/index.php/rho/article/view/26. Acesso em: 27 nov. 2021.
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, p. 124) quando, por exemplo, afirma: “[...] eu sou hoje, falando dos que estão ligados à FRELIMO, à luta de Libertação, talvez um dos depositários mais privilegiados das experiências daquele tempo, o tempo que eu vivi” (Chissano, 2014CHISSANO, Joaquim Alberto. Vidas, lugares e tempos. 2. ed. Maputo: Texto Editores, 2014., p. 19). No que diz respeito às mulheres, esse testemunho rememora relações pessoais, a violência dos portugueses durante a colonização (estupros de mulheres), embates sobre racismo (se seria correto ou não se casar com mulheres brancas e a necessidade de “proteger” as mulheres negras dos homens brancos), e em outros dois momentos, quando as mulheres deixam de ocupar esse espaço do pessoal (namorada/esposa) ou do lugar de vítima e quando se apresentam considerações sobre os papéis femininos.

Sobres esses papéis femininos, uma primeira narrativa é sobre a vida nas missões (responsáveis pela educação no contexto colonial) experienciadas por seus pais. De acordo com Chissano, “[...] enquanto no internato se comia razoavelmente bem (porque as mulheres africanas são ‘feitas’ para donas de casa, para produzirem filhos, alimentos na machamba e para cozinharem), os rapazes tinham uma vida muito difícil (havia pouca higiene, comida estragada, etc.)” (Chissano, 2014CASIMIRO, Isabel Maria. Paz na Terra, Guerra em Casa. Série Brasil & África - Coleção Pesquisas 1. Pernambuco: Editora da UFPE, 2014., p. 40). O escritor vale-se aqui do uso das aspas, colocando-se como contrário a essa concepção, ainda que arraigada em sua sociedade.

A segunda vez em que mulheres são abordadas refere-se a uma viagem de Chissano do Marrocos para Paris, com destino à Dar-es-Salaam, quando duas mulheres - em momentos distintos - o abordam no avião, com convites para conhecer a cidade. Joaquim Chissano indica desconfiança sobre o comportamento delas, afirma que elas pareciam ser “armadilhas” da PIDE, chama-as de “tentação” e define uma delas como possuidora de “olhos de serpente encantadora” (p. 372-273). Nesse trecho, ainda que lide com o inimigo - a polícia portuguesa -, os atributos femininos corroboram ideias pré-concebidas da mulher lasciva, sedutora e perigosa.

Esse “perigo” feminino pode ser visto por outros prismas. É o caso do trabalho de Luiz Passador (2010PASSADOR, Luiz Henrique. “As mulheres são más”: pessoa, gênero e doença no sul de Moçambique. Cadernos Pagu, p. 177-210, 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cpa/a/HtsnqWxynkbbzCmgb8Xg7nc/abstract/?lang=pt . Acesso em: 27 nov. 2021.
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, p. 185), que aborda a questão das relações estabelecidas socialmente sobre as doenças e o gênero, informando de um consenso socialmente existente no sul de Moçambique referente à capacidade das mulheres para atribuir malefícios direta (feitiços) ou indiretamente (por meio de um espírito dono), a fim de “causar rupturas, produzir agressões e desintegrar campos de solidariedade” (p. 202). Seu estudo se dá no século XXI, portanto indica reminiscências de visões estabelecidas sobre essas categorias.

No caso da biografia de Samora Machel, assim como nas demais, as mulheres aparecem na narrativa como interesses afetivos, familiares, e, em menor volume, como companheiras de luta. Contudo, alguns momentos chamam mais atenção do que outros, pelo dado que se apresenta ou pelo tom específico com qual a mulher é retratada.

O primeiro dado de interesse são os casamentos de Samora Machel. O capítulo de abertura, escrito por Fernando Ganhão, narra a biografia política (e heroicizada) de Machel, menciona um casamento e três filhos (sem nomear os indivíduos)7 7 Em outro capítulo, o nome da primeira esposa é mencionado, Sorita Chaiankomo, mas os nomes dos filhos e o desfecho do casamento permanecem incógnitos (p. 26). antes da entrada na guerra; nada fala sobre a existência de Josina Machel; e cita Graça Machel (última esposa) ao final, a fim de ilustrar uma preocupação dela com o efeito da política sobre o seu marido. Por sua vez, Hélder Martins, médico no período da guerrilha e Ministro da Saúde de 1975 a 1980,8 8 Intervalo de tempo no qual o presidente era Samora Machel. narra passagens de sua vivência com Samora e afirma que ele lhe confidenciara que:

[...] tinha filhos de várias mulheres, que nunca tinha casado com nenhuma e que dois dos seus filhos tinham poucos meses de diferença de idade, o que significava que ele tinha estado envolvido com duas mulheres ao mesmo tempo. Samora não estava nada satisfeito com isso. Ele considerava que ele tinha tido um comportamento incorrecto com as mães desses filhos e com os próprios filhos, que ele tinha deixado ao cuidado das mães. Ele lamentava que não pudesse voltar atrás [...] Ele achava que tinha sido na FRELIMO que, não só ele tinha ganho consciência política, mas que também tinha ganho consciência que as mulheres não podiam ser assim tratadas. [...] é de conhecimento público, que no fim da Luta da Libertação, Samora assumiu a responsabilidade e a educação de todos seus filhos. Esta estória mostra bem que o seu firme engajamento pela libertação da mulher era muito sincero e que tinha raízes na sua própria vivência ([Martins]Sopa, 2001SOPA, Antonio (coord.). Samora: homem do povo. Maputo: Maguezo Editores, 2001., p. 90, grifos da autora).

No texto, a infidelidade e a falta de preocupação com filhos são vistas como aprendizado para a compreensão dos problemas experienciados pelas mulheres. Ainda assim, é no campo de batalha que o próprio Samora indica meios para não “desmoralizar os combatentes” homens. Neste sentido, o mesmo Hélder Martins narra que a esposa de um combatente teria ficado grávida de um caso extraconjungal e teria sido ideia de Samora dar férias ao combatente para que pudesse estar com a esposa, nascendo a criança de oito meses, sem suspeita da paternidade. Segundo Hélder Martins, o caso e as soluções de Samora para eles não seriam isolados (p. 81-82).

Se, de forma positiva, Martins afirma que a FRELIMO tinha sido um dos primeiros movimentos nacionalistas a defender a participação feminina, inclusive com as primeiras mulheres já integrando frentes de lutas em 1962 ([Martins]Sopa, 2001SOPA, Antonio (coord.). Samora: homem do povo. Maputo: Maguezo Editores, 2001., p. 88), mesmo ano de criação da LIFEMO (Liga Feminina de Moçambique), ele próprio aponta os limites dessa integração, ao informar que a Liga ia se tornando, progressivamente, “um clube de mulheres de dirigentes que se digladiavam por contribuírem para a promoção de seus maridos” ([Martins]Sopa, 2001SOPA, Antonio (coord.). Samora: homem do povo. Maputo: Maguezo Editores, 2001., p. 88). Essa visão é destoante da apresentada por Isabel Casimiro, que também afirma o pioneirismo da inclusão da mulher na luta pela independência por parte da FRELIMO (2014, p. 186), mas aponta que o limite da participação feminina estava muito mais na conduta masculina em relação a elas do que por qualquer outra coisa:

As mulheres que se juntavam à luta funcionavam, muitas vezes, como produtoras e reprodutoras de prazer sexual para os guerrilheiros que, sob a direção de alguns chairmen (chefes tradicionais homens), organizavam o controle de sua força de trabalho, e o controle dos homens, ao seu acesso. Alguns homens afirmavam que as mulheres eram um ser fraco, que não aguentavam os treinos militares, e que era perigoso aproximar o fogo do capim. Havia homens que não encaravam com bons olhos que as mulheres fossem guerrilheiras, chegando mesmo a impedi-las de participar. Alegavam que as mulheres eram as principais responsáveis pelos actos de corrupção e pela gravidez, uma vez que suas actividades como guerrilheiras as impediam de casar, castigando-as mais que aos homens. ([Casimiro]Sopa, 2001SOPA, Antonio (coord.). Samora: homem do povo. Maputo: Maguezo Editores, 2001., p. 101).

Para as mulheres não era fácil conciliar as tarefas domésticas - no âmbito da divisão de trabalho - com as militares - treinar, participar dos combates, mobilizar a população, participar na defesa das Zonas Libertadas, transportar material. Um outro impedimento era o facto de as mulheres não se poderem casar, enquanto estavam no DF, o que agudizou as contradições entre mulheres ‘do interior’ e ‘do exterior’. Sentiam-se equiparadas aos homens guerrilheiros (Agora vejo-me em posição idêntica à de um homem e não a de uma mulher simples como era), que entretanto insistiam na sua inferioridade, sem reconhecimento das suas especificidades como mulher. ([Casimiro]Sopa, 2001SOPA, Antonio (coord.). Samora: homem do povo. Maputo: Maguezo Editores, 2001., p. 101).

O que os excertos evidenciam é que a mulher em combate era em parte compreendida como inferior aos homens. Servia para satisfazer prazeres e realizar as atividades domésticas. Não era compreendida em suas especificidades de gênero, como o desejo de constituir casamento e, implicitamente, de produzir descendência, eventos fundamentais no processo de aceitação social na sociedade moçambicana (e não somente nela).

Isabel Casimiro (2014CASIMIRO, Isabel Maria. Paz na Terra, Guerra em Casa. Série Brasil & África - Coleção Pesquisas 1. Pernambuco: Editora da UFPE, 2014.), contudo, afirma ter havido uma guinada no sentido de integração feminina após a criação do Destacamento Feminino e, em especial, pós-Independência, ainda que muitas vezes o compromisso firmado se distancie da prática, segundo a autora e especialista de gênero em Moçambique. Ainda assim, a participação da mulher na guerra é compreendida por ela como responsável pela ruptura simbólica das relações de gênero: “É de salientar que as mulheres utilizaram as mudanças nas ideologias de gênero, que tiveram lugar durante a luta, para renegociar as relações e os papéis na esfera doméstica” (Casimiro, 2014CASIMIRO, Isabel Maria. Paz na Terra, Guerra em Casa. Série Brasil & África - Coleção Pesquisas 1. Pernambuco: Editora da UFPE, 2014., p. 186).

As memórias de Josina Machel por intermédio da biografia

Na biografia de Josina Muthemba os temas mais recorrentes - em ordem decrescente - são: PIDE, Armando Guebuza, NESAM, Eduardo Mondlane e os trabalhos realizados por ela durante a luta pela libertação.

Samora Machel - de quem recebe o sobrenome por casamento - aparece somente na página 123, quando, em reunião com a cúpula da FRELIMO, apresenta intenções de matrimônio, oficializado em maio de 1969. Samora Machel Filho, nascido seis meses depois, também é poucas vezes mencionado. Desperta interesse especial o momento em que afirma que o casamento e a maternidade não representaram seu afastamento das obrigações com a guerra:

O casamento de Josina, longe de tirá-la da luta da libertação nacional, como alguns receavam, a princípio foi um factor que embutiu nela novo alento [...] Pouco depois, a 23 de Novembro de 1969, nascia o primeiro, e único, filho de Josina e Samora a quem se deu o nome de Samora Machel Júnior ou Samito, para os mais chegados. Porém, como se disse antes, a experiência da maternidade não afastou Josina do seu trabalho. (Matusse; Malique, 2007MATUSSE, Renato; MALIQUE, Josina. Josina Machel: ícone da emancipação da mulher moçambicana. Maputo: Editora ARPAC, 2007., p. 127).

Os autores afirmam que o amor ao filho teria, inclusive, aumentado o cuidado e a preocupação de Josina Machel com as crianças moçambicanas, resultando em políticas para amparo às crianças órfãs ou atingidas pela guerra.

A biografia destaca que a politização de Josina tem amparo na própria família, desde seus avós. O avô escrevia ao jornal Brado Africano e a família teria, por exemplo, organizado uma recepção a Eduardo Mondlane em 1961, atitude esta que foi seguida por seus pais e por seus irmãos. Seu irmão Mateus Sansão Muthemba, por exemplo, morreu pela causa frelimista:

[Mateus Sansão] Muthemba fora violamente e barbaramente agredido pelos inimigos da revolução moçambicana nos escritórios centrais da FRELIMO, em Dar-es-Salaam, em Maio de 1968. Parte dos seus agressores eram indivíduos marginais à luta, que tinham sido mobilizados por infiltrados na FRELIMO para frustrar o avanço vitorioso dos moçambicanos. (Matusse; Malique, 2007MATUSSE, Renato; MALIQUE, Josina. Josina Machel: ícone da emancipação da mulher moçambicana. Maputo: Editora ARPAC, 2007., p. 94).

Nesse trecho observa-se não só a participação de outros integrantes da família na guerrilha, como também a caracterização dos “inimigos” da libertação. Afinal, Mateus Muthemba é assassinado por infiltrados que tiveram o propósito de impedir avanços dos “moçambicanos” e assim os assassinos de Muthemba são discursivamente excluídos, não apenas da honra, posto serem infiltrados, como também da própria nacionalidade. Afinal, a vitória, sim, era “moçambicana”.

A personalidade de Josina é narrada como marcante. Reconhecida desde a infância como “[...] responsável e organizada, metódica, solidariedade em pessoa, afável, trato fácil, conselheira, alegria contagiante” (Matusse; Malique, 2007MATUSSE, Renato; MALIQUE, Josina. Josina Machel: ícone da emancipação da mulher moçambicana. Maputo: Editora ARPAC, 2007., p. 24-25), não se abalou nem mesmo quando, presa durante meses, sofreu a ausência de comunicação com a família, como afirma sua biografia: “Na primeira visita à Josina, sua mãe e sua irmã encontraram-na calma e serena, mas determinada e não denunciando qualquer pavor, arrependimento ou recriminação pela causa que tinha abraçado” (Matusse; Malique, 2007MATUSSE, Renato; MALIQUE, Josina. Josina Machel: ícone da emancipação da mulher moçambicana. Maputo: Editora ARPAC, 2007., p. 46). Esse caráter predestinado do sujeito é previsto pelos intelectuais da História Oral. Michel Pollak (1992POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992. Disponível em: http://www.pgedf.ufpr.br/memoria%20e%20identidadesocial%20A%20capraro%202.pdf . Acesso em: 30 dez. 2020.
http://www.pgedf.ufpr.br/memoria%20e%20i...
), por exemplo, alerta sobre o caráter seletivo, linear e construído da memória narrada.

Portanto, “predestinada” ao envolvimento político, Josina Muthemba, após mudanças de local de moradia ocasionadas pelo trabalho do pai, ingressou, em 1958, na Escola Comercial Dr. Azevedo e Silva, hoje Escola Comercial de Maputo, reconhecida instituição de efervescência estudantil, na época.

A estudar na Escola Comercial, Josina viria a iniciar-se politicamente no Núcleo dos Estudantes Secundários de Moçambique (NESAM), organização fundada em 1949 por Eduardo Mondlane. Mondlane viria a ser Presidente da FRELIMO e o NESAM, um dos viveiros de dirigentes do nacionalismo moçambicano. (Matusse; Malique, 2007MATUSSE, Renato; MALIQUE, Josina. Josina Machel: ícone da emancipação da mulher moçambicana. Maputo: Editora ARPAC, 2007., p. 31).

A princípio, frequentar o NESAM significava ter a possibilidade de lazer e de estar em um lugar de sociabilidade de alunos negros, além de compensação de explicações escolares. Contudo, são as discussões e o envolvimento político, segundo a fonte, o grande interesse de Josina Muthemba. Vale mencionar que sua relação com Armando Guebuza aparece na narrativa a partir dessa presença no Núcleo, posto que na época ele era seu presidente.

[...] para estes jovens, a escola ou o emprego eram simples salas de espera, que serviam para despistar a PIDE enquanto arquitetavam o próximo passo para sair de Moçambique. Com efeito, Josina continuou os estudos apenas para distrair as atenções desta tenebrosa organização, enquanto amadurecia a próxima tentativa de se juntar à FRELIMO. (Matusse; Malique, 2007MATUSSE, Renato; MALIQUE, Josina. Josina Machel: ícone da emancipação da mulher moçambicana. Maputo: Editora ARPAC, 2007., p. 54).

É sobre essa dinâmica NESAM/GUEBUZA/PIDE que o foco da narrativa incide. Guebuza aparece, ora no envolvimento político, ora como autoridade do contexto histórico, em virtude de sua figura também de personagem entrevistado para a construção da obra sobre Josina. É no mínimo intrigante que a biografia de Josina Machel tenha se ocupado com muito mais atenção da trajetória de Guebuza do que Guebuza a Josina, e isso em comparação a qualquer outro sujeito, incluindo o marido, Samora Machel. Quando se refere a Samora, a narrativa da biografia de Josina enfatiza que o enlace não se fez às custas da “causa maior”, ou seja, a prioridade de Josina, mulher/mãe/soldado, era a Libertação Nacional.

Logo na sua primeira tentativa de fuga para juntar-se à guerrilha, em 1964, Josina e companheiros são presos pela PIDE. A Polícia Internacional e de Defesa do Estado aparece repetidas vezes na biografia, citada por suas tentativas de persuasão, viabilizando estudos ou cargos, pela violência psicológica e física sobre os capturados, pelo uso estratégico de infiltrados no movimento de libertação e por despertar uma insegurança constante.

Quanto à atuação de Josina Muthemba, a biografia reforça sua tentativa de tornar capitais as mulheres, no processo de luta, “nas mais diversas áreas”. Reforça também sua preocupação com os órfãos atingidos pelos combates e sua figura como afirmação do caráter integrador da mulher na Luta e na Pátria. A despeito de problemas levantados anteriormente neste artigo, aqui os biógrafos Renato Matusse e Josina Malique são bastante positivos quanto ao papel da mulher na guerra: “Quer na frente clandestina, quer na frente do fogo libertador, a mulher moçambicana foi sempre parte do processo de libertação da Pátria e dos Homens” (2007, p. 79).

O crescimento da participação de Josina Machel na luta é descrito como natural e sem percalços, o que é difícil de compreender, diante das informações apresentadas na seção anterior, sobre o fato de o papel da mulher ser considerado, por parte significativa das narrativas, como secundário, inferior e constituir um obstáculo. Só se compreende essa “predestinação” se houver reconhecimento de que se trata da memória celebrada daquela que foi alçada à condição de exemplo de mulher moçambicana, ou seja, aquela cuja história de abnegação e dedicação à Luta de Libertação deve inspirar todas as mulheres/esposas/mães.

De sua biografia extrai-se que, em contexto de guerra, Josina atua especialmente na formação das mulheres e no cuidado com as crianças órfãs. É neste sentido, por exemplo, que se tem o envio de mulheres do Instituto Moçambicano, já formadas em artes de guerra, para palestrar a jovens em Moçambique, servindo como difusão do movimento, e que, em 1969, agora ocupando o cargo de Chefe do Departamento dos Assuntos Sociais, ela organizou o infantário em Tunduro, na Tanzânia (Matusse; Malique, 2007MATUSSE, Renato; MALIQUE, Josina. Josina Machel: ícone da emancipação da mulher moçambicana. Maputo: Editora ARPAC, 2007.).9 9 “Nesta função, ela contribuiu muito para a resolução de problemas sociais difíceis, decorrentes da guerra. Foi uma das grandes promotoras e organizadoras de infantários, tendo tomado parte na reestruturação e desenvolvimento do Centro Educacional de Tunduro, na Tanzânia. Ela levou a cabo várias missões nas províncias onde, ao mesmo tempo, promovia a luta pela emancipação da mulher e sua total integração na revolução.” (Matusse; Malique, 2007, p. 112).

Josina não teria escapado, portanto, da atenção de Eduardo Mondlane e da FRELIMO, como reforçam as citações:

Impressionado pela vivacidade, determinação, coragem e espírito patriótico de Josina, o Presidente Eduardo Mondlane encarregou-a de uma missão no Niassa Oriental, frente aberta por Samora Machel. Tal missão consistia em organizar e educar politicamente as mulheres. Nestes e noutros trabalhos subsequentes, Josina deu provas das suas qualidades de líder e de combate de primeira linha. (Matusse; Malique, 2007MATUSSE, Renato; MALIQUE, Josina. Josina Machel: ícone da emancipação da mulher moçambicana. Maputo: Editora ARPAC, 2007., p. 106).

No II Congresso, mais uma vez, jogou papel importante, particularmente [...] Como delegada, ela assumiu papel de grande destaque, ao defender o conceito de luta popular e de participação da mulher como factor fundamental para a sua libertação e emancipação. (Matusse; Malique, 2007MATUSSE, Renato; MALIQUE, Josina. Josina Machel: ícone da emancipação da mulher moçambicana. Maputo: Editora ARPAC, 2007., p. 106).

As determinações formais da FRELIMO e de suas lideranças indicam o protagonismo que Josina Machel, e potencialmente outras mulheres, exerciam dentro dos discursos da FRELIMO; contudo, as práticas, como afirma Isabel Casimiro ([Casimiro]Sopa, 2001SOPA, Antonio (coord.). Samora: homem do povo. Maputo: Maguezo Editores, 2001., p. 101), muitas vezes contradisseram essas determinações. As próprias atividades exigidas ou propostas por Josina não são efetivamente descritas na biografia; a importância da mulher no conflito e na construção de Moçambique é reconhecida, mas não é descrita com precisão. Tal fato pode ser novamente observado na seguinte descrição:

O Comitê Central da FRELIMO decidiu que a mulher moçambicana deveria participar mais activamente na Luta de Libertação Nacional, a todos os níveis. Decidiu-se ainda que ela devia receber mais preparação político-militar, de modo a torná-la mais capaz de cumprir quaisquer tarefas que a revolução exigisse. Assim, a 4 de Março de 1967, um grupo de jovens de Cabo Delgado iniciava os treinos político-militares no Centro de Preparação Político Militar de Nachingweya, introduzindo na história de Moçambique os primeiros marcos da forja da mulher na frente do folgo libertador. Este facto desafiou todos os tabus e tradições de secundarização do papel da mulher na sociedade e, em parte, por essa razão, essa data é celebrada como Dia do Destacamento Feminino. (Matusse; Malique, 2007MATUSSE, Renato; MALIQUE, Josina. Josina Machel: ícone da emancipação da mulher moçambicana. Maputo: Editora ARPAC, 2007., p. 81, grifos da autora).

Percebe-se que os termos “todos os níveis” e “quaisquer tarefas” nada dizem efetivamente dos trabalhos esperados e desempenhados pela mulher soldado. As tarefas atribuídas às mulheres foram mais bem sistematizadas e explicadas por Alda Saide (2014SAIDE, Alda Saúte. As Mulheres e a Luta de Libertação Nacional. In: TEMBE, Joel das Neves. História da Luta de Libertação Nacional. Vol. 1. Maputo: Ministério dos Combatentes; Direcção Nacional de História, 2014. p. 553-601.), cujas fontes são entrevistas de combatentes. Essas tarefas consistiam em: obtenção de aliados e novos guerrilheiros, transporte de materiais de guerra e de mantimentos, cuidados de enfermagem para tratar de doentes e de feridos, criação de orfanatos, cuidado com os órfãos ou atingidos pelo conflito e produção de alimentos. Situações de combate não são descritas, mas aparecem como existentes em narrativas das mulheres entrevistadas.

Corrobora com descrição semelhante o texto de Isabel Casimiro:

A divisão sexual do trabalho não sofreu alterações nas zonas libertadas, continuando as mulheres a preparar a alimentação e a realizar o trabalho doméstico. Aliás, o seu trabalho foi acrescido das tarefas ligadas à participação na luta - alimentar os guerrilheiros, ocupar-se da segurança das zonas libertadas, escolas, infantários, centros de saúde, treinar e participar em combates. Eram, sobretudo, as mulheres e as crianças que viviam nas zonas libertadas, enquanto os homens se ocupavam da actividade militar. Com a criação oficial do Destacamento Feminino, em 1966, as mulheres passaram a realizar treino militar, bem como tarefas de segurança e, por vezes, chegaram mesmo a participar em combates. (2014, p. 190, grifos da autora).

Ademais, cabe aqui a questão: esses “marcos da forja” foram capazes de resultar na superação da inferiorização feminina? O texto tende a outra possibilidade, a da configuração da FRELIMO como lugar da “Família Alargada”:

Na tradição africana pode-se identificar a família nuclear e a família alargada. A primeira é constituída pelo marido, pela esposa pelos filhos e a segunda, pelo conjunto de diferentes familiares nucleares ligados por um antepassado ou ascendente comum. Os membros da FRELIMO conseguiram transformar a sua organização numa família alargada na qual os unia a resistência e luta contra o invasor, herdada de seus antepassados. Assim, nesta organização, Josina encontrara uma grande família, uma família alargada cujos membros também se entrelaçam numa única causa: a causa da libertação de Moçambique e do seu Povo. (Matusse; Malique, 2007MATUSSE, Renato; MALIQUE, Josina. Josina Machel: ícone da emancipação da mulher moçambicana. Maputo: Editora ARPAC, 2007., p. 130).

E na biografia de Josina Muthemba Machel que a família constituída por Samora, Josina e Samito é elevada à condição de “família FRELIMO”. Longe de recusar as possibilidades de solidariedade e de amor forjadas na guerra, o texto silencia as dissidências, os conflitos e as disputas internas, em especial as de gênero. O fato dialoga com a ideia expressa na citação que segue:

Toda organização política, por exemplo - sindicato, partido, etc. - veicula seu próprio passado e a imagem que forjou para si mesma. Ela não pode mudar de direção e de imagem brutalmente a não ser sob risco de tensões difíceis de dominar, de cisões e mesmo de seu desaparecimento, se os aderentes não puderem mais se reconhecer na nova imagem, nas novas interpretações de seu passado individual e no de sua organização. O que está em jogo na memória é também o sentido da identidade individual e do grupo. (Pollak, 1989POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989. Disponível em: https://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.pdf . Acesso em: 30 dez. 2020.
https://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memor...
, p. 10).

Vistos pelas concepções de Michael Pollak, os reforços constantes para imputar à FRELIMO diferentes formas de união nacional fazem parte da necessidade de permanecer como narrativa homogênea e vitoriosa. Essa perspectiva é corroborada por Omar Thomaz (2006THOMAZ, Omar Ribeiro. “Raça”, nação e status: histórias de guerra e “relações raciais” em Moçambique. Revista USP, São Paulo, n. 68, p. 252-268, 2006. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/13496 . Acesso em: 01 jun. 2022.
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), já mencionado, que indica a participação na guerra de independência como essencial para o reconhecimento coletivo de direito sobre os rumos políticos.

Ademais, pouco tempo depois do matrimônio e do parto, a protagonista sente fisicamente as exigências da luta:

As extenuantes marchas que Josina empreendera depois do seu regresso de tratamentos, em Moscovo, as carestias porque passava no interior e todas as sobrecargas que se impunha fisicamente, não estavam na linha das recomendações médicas [...] Porém, Josina não conseguia desassociar-se da luta e do povo do interior. Ela tinha recebido como prescrição médica uma dieta alimentar condizente com a sua doença. Os médicos tinham-na alertado para não realizar trabalhos que exigissem muito seu esforço físico. Porém, Josina não sabia ficar sem trabalhar, violando as prescrições médicas [...] Apesar da doença, Josina era uma combatente tenaz e uma mãe atenciosa. [e no último comício, fraca com febre, após falar para mais de mil pessoas] tirou a pistola e disse “Entreguem-na ao Camarada dirigente da Província para que sirva de salvação do Povo Moçambicano [...] Camaradas, eu já não avanço mais, mas estou preocupada com a revolução e com as crianças”. (Matusse; Malique, 2007MATUSSE, Renato; MALIQUE, Josina. Josina Machel: ícone da emancipação da mulher moçambicana. Maputo: Editora ARPAC, 2007., p. 143 e p. 146-147).

Configura-se, assim, o sacrifício final de Josina Machel à Nação Moçambicana. Como determina Alessandro Portelli: “A biografia é sustentada pela ênfase na participação individual em eventos históricos” (2010, p. 186). Nesse sentido, o destino de Josina Machel, que como Eduardo Mondlane e Samora Machel morre em serviço da Nação ou em nome dela, eleva-a à categoria de mito e heroína nacional.

Não se deseja com tal afirmação negar o valor de quem deixou o seio familiar para dispor-se a uma guerra na qual as mulheres eram subvalorizadas, tampouco diminuir os esforços de Josina Machel para o treinamento e uso adequado das mulheres nos esforços de guerra. Sua exemplaridade e o fato de ter morrido prematuramente, aos 25 anos de idade, em nome da Luta pela Libertação, favorecem uma visão de mulher idealizada, destaque que foi dificultado a outras combatentes, em grande medida por conta do tratamento dado a elas pelos companheiros de luta, no treinamento ou a na divisão dos trabalhos.

Memórias em combate: considerações finais

Mesmo que tenha prevalecido socialmente uma história da mulher como vítima (Moura et al., 2009MOURA, Tatiana et al. Invisibilidades da guerra e da paz: Violências contra as mulheres na Guiné-Bissau, em Moçambique e em Angola. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 86, p. 95-122, 2009. Disponível em: https://journals.openedition.org/rccs/240 . Acesso em: 15 abr. 2022.
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) ou como algoz (Passador, 2010PASSADOR, Luiz Henrique. “As mulheres são más”: pessoa, gênero e doença no sul de Moçambique. Cadernos Pagu, p. 177-210, 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cpa/a/HtsnqWxynkbbzCmgb8Xg7nc/abstract/?lang=pt . Acesso em: 27 nov. 2021.
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), emergem, progressivamente, perspectivas sobre a atuação feminina em guerra como agente do processo. Isabel Casimiro ([Casimiro]Sopa, 2001SOPA, Antonio (coord.). Samora: homem do povo. Maputo: Maguezo Editores, 2001. p. 52-54; Casimiro, 2014CASIMIRO, Isabel Maria. Paz na Terra, Guerra em Casa. Série Brasil & África - Coleção Pesquisas 1. Pernambuco: Editora da UFPE, 2014., p. 228), por exemplo, aponta que a iniciativa de formação de um exército feminino partiu das próprias mulheres camponesas que, em 1965, solicitam à FRELIMO treinamento para defender as populações das zonas conquistadas, o que deu origem ao Destacamento Feminino atuante na guerrilha. Jacimara Santana (2009SANTANA, Jacimara Souza. A participação das mulheres na luta de libertação nacional de Moçambique em notícias (Revista Tempo 1975-1985). Sankofa, São Paulo, v. 2, n. 4, p. 67-87, 2009. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/sankofa/article/view/88746 . Acesso em: 15 abr. 2022.
https://www.revistas.usp.br/sankofa/arti...
, p. 73), por sua vez, destaca que a ausência da população masculina no sul do país, em trabalho migratório nas minas da África do Sul, acentuou a necessidade da atuação das mulheres como chefes de família e como combatentes de guerra.

A combatente Filomena Likune, em entrevista à revista Tempo, em 1983, afirma que, apesar das dúvidas que pairavam sobre a capacidade das mulheres em guerra, o Partido (leia-se FRELIMO) teria decidido pela formação de grupos femininos e que “[...] os resultados foram excelentes. Nenhuma de entre nós caiu durante os treinos, corríamos grandes distâncias sem problemas, conseguimos convencer sobre a nossa capacidade” (Likune, 1983 apudSantana, 2009SANTANA, Jacimara Souza. A participação das mulheres na luta de libertação nacional de Moçambique em notícias (Revista Tempo 1975-1985). Sankofa, São Paulo, v. 2, n. 4, p. 67-87, 2009. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/sankofa/article/view/88746 . Acesso em: 15 abr. 2022.
https://www.revistas.usp.br/sankofa/arti...
, p. 74). Relato semelhante é o de Mônica Chituplila, de 1982, no qual afirma que em um primeiro momento as mulheres dedicaram-se à mobilização popular e produção de alimentos, mas, após treinamento em 1967, 40 mulheres, dentre as quais estava ela, começaram também a desempenhar os trabalhos de base, isto é, no conflito armado (Likune, 1983 apud Santana, 2009SANTANA, Jacimara Souza. A participação das mulheres na luta de libertação nacional de Moçambique em notícias (Revista Tempo 1975-1985). Sankofa, São Paulo, v. 2, n. 4, p. 67-87, 2009. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/sankofa/article/view/88746 . Acesso em: 15 abr. 2022.
https://www.revistas.usp.br/sankofa/arti...
, p. 74). Isso não significou, segundo as combatentes e a pesquisadora, a aceitação unânime dos homens (combatentes ou não), mas não impediu que a FRELIMO compreendesse a organização feminina como importante para o sucesso da luta e construção do país, ainda que sob pressão das próprias mulheres e que o discurso oficial nem sempre reverberasse em ações concretas.

De acordo com Maria Francisca Dlakhama, dentro do Comité Central da FRELIMO havia líderes e camaradas que não concordavam com a formação de mulheres militares por causa do preconceito de que que o Destacamento Feminino seria utilizado para atender “as necessidades sexuais do sexo masculino, as mulheres seriam amantes dos comandantes da guerra”. A maioria dos homens não estava preparada para ver as mulheres realizarem atividades de guerra como eles. Foi um debate duro no seio da FRELIMO e a decisão não foi aceite de ânimo leve. Isto exigia das mulheres comprovarem a sua capacidade e foi uma tarefa difícil. (Saide, 2014SAIDE, Alda Saúte. As Mulheres e a Luta de Libertação Nacional. In: TEMBE, Joel das Neves. História da Luta de Libertação Nacional. Vol. 1. Maputo: Ministério dos Combatentes; Direcção Nacional de História, 2014. p. 553-601., p. 575).

O próprio discurso frelimista, incluindo pronunciamentos de Samora Machel, era ambíguo e tendia à reprodução da subordinação feminina.10 10 Ao analisar os discursos de Samora Machel proferidos de 1973 a 1980, a historiadora Júlia Rocha (2018) ratifica as ambiguidades no desenvolvimento de seu projeto político e ideológico e, por conseguinte, da própria FRELIMO, em relação às mulheres (combatentes ou não). Ainda que oficialmente as mulheres fossem tidas como o elemento agregador para o sucesso da revolução, os discursos reforçavam os papeis tradicionais atribuídos a elas, como mães e responsáveis pelas atividades domésticas e morais da família, e controlavam a emancipação feminina, ao impossibilitar outros meios de organização que não os sancionados pelo Partido (p. 93). Mesmo quando entram em cena as mulheres combatentes, as ambiguidades permanecem. Segundo Rocha, é assim que se explica a fixação de Josina Machel à imagem de “mulher nova”, correta e revolucionária, em oposição a de Joana Simeão. Esta, que fez parte da articulação política de oposição à FRELIMO (Grupo Unido de Moçambique - GUMO, fundado em 1974, pouco antes da independência do país), foi considerada e propagada como “inimiga da Revolução”, neocolonialista, racista, o que resultou no seu envio aos campos de reeducação de M’telela (Rocha, 2018, p. 142). Assim, como indica Maiara Cagliari (2017CAGLIARI, Mariara Cemin. Vozes femininas da Revolução: mobilização de mulheres na Frente de Libertação Nacional de Moçambique (1962-1975). 2017. Tese (Graduação em História) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017., p. 36), “[...] a moral revolucionária da FRELIMO demonizava também a sexualidade das mulheres, vendo-as com devassidão [...] o padrão generalizante das relações de gênero é incorporado e compreende-se que a subordinação da mulher é universal”. Ainda assim, a participação das mulheres na guerra ocorreu em diferentes esferas: da produção de alimentos, mobilização de novos guerrilheiros à manutenção das áreas libertadas e ações de guerrilha (Cagliari, 2017CAGLIARI, Mariara Cemin. Vozes femininas da Revolução: mobilização de mulheres na Frente de Libertação Nacional de Moçambique (1962-1975). 2017. Tese (Graduação em História) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017., p. 29). As análises das fontes aqui apresentadas ratificam a ambiguidade presente nos discursos e nas práticas frelimistas sobre a mulher combatente.

Em Maputo ouvi um silêncio rumoroso sobre as guerras. Como que uma afasia coletiva e aparentemente consentida que mais do que silêncio produz muito ruído e desconforto [...]. Os discursos sobre as guerras em Maputo, sempre que envolvem as violências da guerra, são sempre indiretos, ou seja, são sobre outras mulheres, outras experiências, outras mortes, outros sofrimentos. Como se apenas nos corpos e vidas das outras mulheres se pudessem inscrever as memórias, quiçá intoleráveis e indizíveis na primeira pessoa. (Cunha, 2012CUNHA, Teresa. As memórias das guerras e as guerras de memórias. Mulheres, Moçambique e Timor Leste. Revista Crítica de Ciências Sociais, v. 96, 2012. Disponível em: http://journals.openedition.org/rccs/4825 . Acesso em: 15 abr. 2022.
http://journals.openedition.org/rccs/482...
, s/d).

Teresa Cunha, por intermédio das narrativas de mulheres combatentes, reforça que a presença feminina na guerra se fez, mesmo que as mulheres fossem desvalorizadas em combate e não reconhecidas posteriormente. Sua defesa principal, porém, está em outro campo de batalha: a necessária narrativa da “valentia” da mulher na guerra, possível quando se permite ouvir as sujeitas dessa história que, longe de se verem como subalternas, descrevem-se a si mesmas como centralidades.

As fontes mobilizadas neste artigo indicam caminhos semelhantes aos das reflexões historiográficas. As narrativas masculinas sobre a guerra, também chamadas por quem lutou e se coloca como produtor da nação como “Luta de Libertação Nacional”, tendem a apresentar o feminino como subalterno, às vezes como obstáculo. Ainda assim, não conseguem silenciar a presença e a atuação das mulheres na articulação e na luta pela independência. Contudo, ao operar uma ritualização da vida de Josina Machel, o que se concretiza é a transformação da vida/conduta/atuação dela como exceção, o que dificulta a atribuição de créditos merecidos às mulheres moçambicanas que atuaram nas diferentes frentes de luta existentes na guerra, fosse em campo de batalha ou não.

Referências

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    » https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/13496
  • 1
    Poema “Josina tu não morreste”, escrito em 7 de maio de 1971, MOZAMBIQUE HISTORY NETMOZAMBIQUE HISTORY NETDisponível em: https://www.mozambiquehistory.net/ . Acesso em: 30 dez. 2020.
    https://www.mozambiquehistory.net/...
    . Disponível em: https://www.yumpu.com/pt/document/view/52341691/here-mozambique-history-net. Acesso em: 30 de dezembro de 2020.
  • 2
    O uso do termo “escritas de si” para as fontes tem por referência as características apresentadas por Lígia Pereira (2000PEREIRA, Lígia Maria Leite. Algumas reflexões sobre histórias de vida, biografias e autobiografias. História Oral, v. 3, p. 117-127, 2000. Disponível em: https://revista.historiaoral.org.br/index.php/rho/article/view/26. Acesso em: 27 nov. 2021.
    https://revista.historiaoral.org.br/inde...
    , p. 118). Para a autora, as escritas de si podem ser divididas em 3 categorias: a autobiografia, que consiste na narrativa da própria existência; a biografia, constituída da história do indivíduo contada por outro, que pode contar ou não com a narrativa do sujeito narrado; e, a história de vida, um relato de um narrador sobre sua existência através do tempo, com a intermediação de um intérprete. Em todos os casos não é ignorado o caráter seletivo, exemplar, construído e interpretativo das memórias narradas.
  • 3
    Nesse sentido, sugere-se a leitura de Oyèrónké Oyêwúmi (2021OYÊWÚMI, Oyèrónké. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.). Para a pesquisadora, o tráfico escravista e o processo colonial produziram interpretações sobre as populações africanas que elevavam categorias ocidentais à condição de universais. É o caso da noção de gênero como organizador fundamental das sociedades e da submissão das mulheres. Sobre a cultura iorubá, por exemplo, a autora afirma que “[...] o gênero não era um princípio organizador na sociedade iorubá antes da colonização pelo Ocidente. As categorias sociais homens e mulheres eram inexistentes e, portanto, nenhum sistema de gênero esteve em vigor” (Oyêwúmi, 2021OYÊWÚMI, Oyèrónké. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 69).
  • 4
    Quando o texto citado integra o corpo das fontes, opta-se por apresentar o sobrenome do autor do texto em colchetes, seguido do sobrenome do editor/autor da fonte. Nesse caso, por exemplo, a autoria do texto é de José Luís Cabaço, em colchetes, publicado como capítulo na fonte biográfica de Samora Machel, coordenado por Antonio Sopa.
  • 5
    Sobre as estratégias políticas em períodos eleitorais, ver Lourenço (2009), e a respeito das mudanças e permanências das estruturas oficiais de poder de Moçambique, ver Macuane (2009).
  • 6
    As páginas 20 e 21 apresentam breve narrativa da trajetória de Maria da Luz e fotografias dela no Instituto Moçambicano em Dar-es-Salam.
  • 7
    Em outro capítulo, o nome da primeira esposa é mencionado, Sorita Chaiankomo, mas os nomes dos filhos e o desfecho do casamento permanecem incógnitos (p. 26).
  • 8
    Intervalo de tempo no qual o presidente era Samora Machel.
  • 9
    “Nesta função, ela contribuiu muito para a resolução de problemas sociais difíceis, decorrentes da guerra. Foi uma das grandes promotoras e organizadoras de infantários, tendo tomado parte na reestruturação e desenvolvimento do Centro Educacional de Tunduro, na Tanzânia. Ela levou a cabo várias missões nas províncias onde, ao mesmo tempo, promovia a luta pela emancipação da mulher e sua total integração na revolução.” (Matusse; Malique, 2007MATUSSE, Renato; MALIQUE, Josina. Josina Machel: ícone da emancipação da mulher moçambicana. Maputo: Editora ARPAC, 2007., p. 112).
  • 10
    Ao analisar os discursos de Samora Machel proferidos de 1973 a 1980, a historiadora Júlia Rocha (2018ROCHA, Júlia Tainá Monticeli. Do “vento da Emancipação” à “força motriz da Revolução”: a mulher nos discursos de Samora Machel (Moçambique) (1973-1980). 2018. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.) ratifica as ambiguidades no desenvolvimento de seu projeto político e ideológico e, por conseguinte, da própria FRELIMO, em relação às mulheres (combatentes ou não). Ainda que oficialmente as mulheres fossem tidas como o elemento agregador para o sucesso da revolução, os discursos reforçavam os papeis tradicionais atribuídos a elas, como mães e responsáveis pelas atividades domésticas e morais da família, e controlavam a emancipação feminina, ao impossibilitar outros meios de organização que não os sancionados pelo Partido (p. 93). Mesmo quando entram em cena as mulheres combatentes, as ambiguidades permanecem. Segundo Rocha, é assim que se explica a fixação de Josina Machel à imagem de “mulher nova”, correta e revolucionária, em oposição a de Joana Simeão. Esta, que fez parte da articulação política de oposição à FRELIMO (Grupo Unido de Moçambique - GUMO, fundado em 1974, pouco antes da independência do país), foi considerada e propagada como “inimiga da Revolução”, neocolonialista, racista, o que resultou no seu envio aos campos de reeducação de M’telela (Rocha, 2018ROCHA, Júlia Tainá Monticeli. Do “vento da Emancipação” à “força motriz da Revolução”: a mulher nos discursos de Samora Machel (Moçambique) (1973-1980). 2018. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018., p. 142).

Editado por

Editores:

Karina Anhezini e Eduardo Romero de Oliveira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    09 Jun 2022
  • Aceito
    28 Mar 2023
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