RESENHAS
Les larmes de Rio. Le dernier jour d'une capitale (20 avril 1960)
Fernando Lobo Lemes
Doutorando em História. IHEAL - Institut des Hautes Études de l'Amérique Latine Université Sorbonne Nouvelle/Paris 3 fernandolobolemes@gmail.com
VIDAL, Laurent. Les larmes de Rio.Le dernier jour d'une capitale (20 avril 1960). Paris: Éditions Flammarion, 2009, 254p.
Constantinopla, Bizâncio e Istambul. Nomes diferentes para uma mesma cidade que ocupou, sucessivamente, a posição de capital de três grandes impérios: o romano, o bizantino e o otomano. Guardadas as devidas especificidades, a cidade do Rio de Janeiro também atravessou o tempo, através de um percurso que lhe emprestou uma feição muito particular: capital e ponto de convergência no centro-sul da América, no contexto do Império português, posteriormente, capital do Império e, mais tarde, capital e espaço de gestação da nova ordem republicana. Preservando sempre o mesmo nome, atravessou três grandes momentos da história do Brasil, sempre na posição privilegiada conferida pelo status de cidade-capital. Contudo, em 20 de abril de 1960, o Rio de Janeiro vive um acontecimento decisivo: a partir deste dia, não será mais a capital do Brasil. Os elementos que lhe conferem a condição de capital abandonam a cidade para se instalar em Brasília, novo símbolo da modernidade brasileira.
É sobre este evento particular que mergulha Laurent Vidal. Tomando o acontecimento como uma espécie de cruzamento de itinerários possíveis, o autor delineia uma narrativa que revela de forma surpreendente as expressões e os gestos dos atores que viveram aquele momento na cidade do Rio de Janeiro: as encenações elaboradas pelas elites políticas, os testemunhos dos cidadãos comuns e as palavras dos poetas, marcados por sentimentos e emoções que compunham a crônica de uma despedida anunciada.
A mobilidade das capitais ou sedes de governos foram registradas com certa frequência na história das cidades. Assim, desde os Impérios da Antiguidade às dinastias medievais europeias, o nomadismo de imperadores e monarcas sempre dificultou a identificação de suas capitais a uma cidade específica. Na história do Brasil, a transferência de capitais de uma cidade para outra, foi uma constante. Basta lembrar a mudança da capital, sede do vice-reinado, da cidade de Salvador para o Rio de Janeiro, em 1763. Mais tarde, seguindo uma tendência cada vez mais rara, este fenômeno se multiplica sobre o território nacional: as capitais das províncias do Piauí e Sergipe são transferidas, respectivamente, da cidade de Oeiras para Teresina, em 1852, e de São Cristóvão para Aracajú, em 1855. Em Minas Gerais, Ouro Preto perde seu estatuto de capital para Belo Horizonte, em 1897. Em Goiás, a capital é transferida de Vila Boa para Goiânia, inaugurada em 1942.
Embora frequente na história, a transferência do poder político (e das instituições que o acompanham) de uma cidade para outra nunca foi objeto de uma encenação especial. Da mesma forma, mesmo que alguma manifestação tenha sido organizada nestas ocasiões, jamais foi singular o suficiente para atrair a atenção dos contemporâneos ou de historiadores. Reside aqui um dos méritos da obra de Laurent Vidal: sua originalidade.
Les larmes de Rio constitui-se, certamente, na primeira referência, na historiografia das cidades, que não se detém apenas na avaliação da transferência institucional dos poderes políticos de uma cidade para outra. Mais que isso, trata-se de um estudo inédito que elege como objeto o momento da retirada dos aparatos políticos institucionais, lançando luzes sobre as estratégias utilizadas para a transferência das instituições que legitimam e revestem a cidade de sua condição de capital. Por meio de uma análise refinada pelos recursos metodológicos que utiliza, Laurent Vidal traz à superfície de suas reflexões os efeitos e as especificidades que fazem deste fenômeno um acontecimento singular e excepcional.
O interesse e o ponto de vista adotados pelo autor têm implicações mais amplas para a historiografia, pois fazem deste episódio um caminho privilegiado para observar as relações entre cidade e poder, a partir de um viés absolutamente inovador: abandonando a perspectiva positiva que aproxima cidade e poder, comumente associada às narrativas de fundação de cidades e das entradas triunfais (que já mobilizaram vasta literatura), Laurent Vidal lança um outro olhar sobre o tema, privilegiando o aspecto do distanciamento entre a cidade e o poder, consagrando como ponto de inflexão o momento em que o poder deixa a cidade. O maior mérito, contudo, desta perspectiva, que insiste em desvendar os laços e as conexões que se desfazem, pondo em evidência um processo fatal de separação, é apresentar a cidade como espaço de predileção do político, reatando, ao mesmo tempo, o seu vínculo indissolúvel, pois é no espaço real e virtual da cidade que se afirma o poder político.
Mas esta separação entre o político e a cidade implica sobretudo numa passagem: o poder federal deixa o Rio de Janeiro e, ao mesmo tempo, o antigo Distrito Federal deve desaparecer para dar nascimento a uma nova capital. A passagem do poder do Rio a Brasília. Não se trata, no entanto, de um simples traslado das instituições existentes no Distrito Federal. Afinal, a capital não é apenas o lugar de concentração dos órgãos da administração que constituem a natureza visível do poder político, é também um reservatório de forças de ordem espiritual. Neste sentido, a autoridade e a natureza do poder que legitima a cidade enquanto capital informa, antes de tudo, a existência de elementos e dados imateriais. É isto, exatamente, que estimula o esforço de Vidal.
Para além das provas materiais da transferência da capital, é necessário apontar os indícios e os efeitos do deslocamento deste poder imaterial, promovendo uma imersão no mundo dos sentimentos e emoções, perseguindo a ressonância dos acontecimentos no universo afetivo e sensível dos protagonistas. Em meio a uma confusão de sentimentos, as lágrimas são perceptíveis nos olhos da população do Rio. Assim, para emergir à superfície da história, o acontecimento deve se realizar no interior de percepções diversificadas e simultâneas que reenviam ao domínio dos afetos. Na narrativa de Laurent Vidal, a emoção parece constitui-se em um dos componentes da inteligência, onde os afetos assumem papel fundamental
Mas passagens deste tipo, como lembra o autor, são sempre acompanhadas de cerimoniais bem definidos. Na Roma Antiga, por exemplo, havia mesmo um deus que as governava: Janus, o deus de duas faces, uma voltada para o futuro e outra para o passado, deus dos começos e das passagens, da mudança e da transição, guardião dos cruzamentos, que abre e fecha as portas, vigia as entradas e as saídas. Coincidentemente, ao presidir a passagem do poder do Rio para Brasília, é esta a função que deve assumir Juscelino Kubitschek. É por isso que a despedida do Rio de Janeiro não poderia se limitar a um simples adeus. A morte de uma capital federal implica um luto cuja dimensão pouco banal o grande maestro da mudança tinha perfeita consciência. Era preciso velar pela passagem, afastando os fantasmas das incertezas e preencher os vazios deixados pela partida anunciada do poder.
Assim, a morte iminente da capital nacional seria acompanhada pelo anúncio do nascimento de outra capital: a do Estado da Guanabara. À ausência de um poder corresponderia a emergência de novas instâncias políticas. Contudo, como o destino não tem a pretensão de submeter rigorosamente os acontecimentos, deixa sempre um espaço vazio, uma margem de indefinição entre os episódios
Fazendo do drama um mecanismo que permite compartimentar a trama vivida naquele 20 de abril, Vidal não despreza as dimensões sociais e a diversidade dos grupos existentes. De fato, percebe que o drama vivido pelos atores é entrecortado por uma situação de conflito que opõe, na malha dos tempos múltiplos da experiência coletiva, as várias figuras da vida social a um obstáculo comum
As variadas leituras do evento presentes nos discursos, nas falas e testemunhos, revelam, por outro lado, um outro recurso inovador utilizado pelo autor: uma sociologia da espera
Do nosso ponto de vista, é a arquitetura do acontecimento que parece sustentar o empreendimento de Laurent Vidal. Sua narrativa parte do pressuposto que o acontecimento tem uma duração que ultrapassa a simples temporalidade dos fatos que o constituem, como se o olhar do autor atravessasse longitudinalmente a cena, expondo o acontecimento em toda a sua riqueza e complexidade, pensando "através" das coisas e dos casos. Deixando nas estantes toda uma bibliografia que prega que a história é uma continuidade que se desdobra num tempo homogêneo, o autor parece denunciar o tempo vivido na história enquanto uma catarata de tempos
Neste caso, num primeiro momento, o acontecimento aparece carregado de percepções e sensibilidades gestadas antes mesmo de sua plena efetivação. Em seguida, no interior do tempo peculiar ao evento propriamente dito, os agentes que o produzem ou a ele estão submetidos o fazem num contexto temporal e histórico que contém ao mesmo tempo seu passado, sua genealogia, sua forma presente e suas visões do futuro. Desta forma, seguindo a trilha deixada por Laurent Vidal e inspirados pelas ponderações de Arlette Farge, vemos que o acontecimento apenas pode ser definido a partir de um sistema complexo de temporalidades
Proposta de tal envergadura será, certamente, muito apreciada entre historiadores europeus e brasileiros que assistem, atualmente, ao advento de novas vias que se abrem à história social das cidades. Os novos trilhos para história urbana do Brasil devem provocar estudos mais atentos à multiplicidade dos tempos e dos ritmos sociais, colocando no centro das atenções dos pesquisadores os pontos e contrapontos das identidades e as incertezas das configurações socioespaciais na cidade
Esta saída do poder político da cidade é narrada em duas partes principais. A primeira, "Quando o poder deixa a cidade", divide-se em oito capítulos que, após apresentar os atores principais, eleva as cortinas para descrever o cenário de uma separação dramática. Em quatro atos, desvenda a profundidade dos gestos e palavras utilizados por Juscelino Kubitschek, agentes políticos e a grande imprensa, cujo objetivo visa desfazer os laços complexos que ligam a cidade aos organismos que lhe conferem o estatuto de capital. Na segunda parte, intitulada "Poétique de L'événement", dividida em quatro capítulos, o autor dialoga com as fontes históricas e os protagonistas da época buscando pôr em evidência as diversas leituras realizadas pelos contemporâneos. Oferecendo a palavra aos poetas, explora seus testemunhos e suas imagens, mesclando suas intuições com as emoções suscitadas pela proximidade do evento anunciado. Assim, procura esboçar o que denomina poétique de l'événement, método ou maneira para se construir um caminho o mais próximo possível do acontecimento, visando desvelar não o seu sentido, mas o modo como ele nos afeta. Se é da obra dos poetas que nascem as primeiras lágrimas do Rio, após a partida da capital serão eles os profetas que anunciarão a ressurreição de uma cidade renovada. Mas esta é apenas uma entre as leituras possíveis do livro de Laurent Vidal. Les larmes de Rio certamente vai estimular outras interpretações na medida em que o leitor aceitar o desafio de revisitar este momento crucial para a história da cidade maravilhosa.
Notas
Recebido em: 08/02/2011
Aprovado em: 30/03/2011
- 1 Arlette Farge, « Penser et définir l'événement en histoire ». In: Terrain, nş 38, Qu'est-ce qu'un événement ? (mars 2002), [En ligne], mis en ligne le 06 mars 2007. URL : http://terrain.revues.org/index1929.html Consulté le 11 octobre 2010, p. 6.
- 2 Yves-Marie Berce, "Conclusion : vide du pouvoir. Nouvelle légitimité". In: Histoire, économie et société 1991, 10e année, nş 1. Le concept de révolution. pp. 23-25.
- 3 Jean Duvignaud, Introduction à la sociologie, Gallimard, Paris, 1966, p. 77.
- 4 Laurent Vidal, Mazagão, la ville que traverssa l'Atlantique. Du Maroc à l'Amazonie (1769-1783). Aubier, Paris, 2005.
- 5 Arlette Farge, « Penser et définir l'événement en histoire », op. cit., p. 6.
- 6 Expressão que emprestamos de Siegfried Kracauer. Siegfried Kracauer, L'histoire. Des avant-dernières choses. Stock, Paris, 2006, p. 272.
- 7 Arlette Farge, « Penser et définir l'événement en histoire ». In: Terrain, nş 38, Qu'est-ce qu'un événement ? (mars 2002), [En ligne], mis en ligne le 06 mars 2007. URL : http://terrain.revues.org/index1929.html Consulté le 11 octobre 2010.
- 8 Laurent Vidal, "Os 'trilhos' da história do Brasil urbano". In: Ler História, nş 48, 2005, pp. 75-85. Aqui, p. 85.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Ago 2011 -
Data do Fascículo
Jun 2011