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Navegando pelo Turiaçu: a reprodução cosmológica do rio Amazonas e o mito da cobra-canoa e sua relação com as estearias do Maranhão* * Declaração de financiamento: A pesquisa contou com financiamento da FAPEMA (Proc. ACERVOS-02637/17 Edital 12/2017) e Bolsa de Produtividade em Pesquisa CNPq nível 2 (Processo 308271/2018-1).

Navigating the Turiaçu: A Cosmological Reproduction of the Amazon River and a Canoe Snake Myth and Its Relationship with the Stilt Villages from Maranhão

RESUMO

As fontes indígenas amazônicas, em especial de sua porção Noroeste, como entre os Tukano, dão conta de uma transmissão oral acerca da criação do mundo por uma anaconda que se locomove no rio Amazonas e, ao serpentear as águas do grande rio, vai povoando suas margens, dando origem às aldeias primevas. Este mito aparenta ser de longa duração e foi compartilhado por vários povos amazônicos ao longo da calha amazônica por conta de uma mensagem simbólica eficiente e amplamente aceita entre eles, e desta forma aparecendo em áreas diametralmente opostas dentro da Amazônia, tanto em sua porção noroeste até a região estuarina do Maranhão. Este artigo apresenta estas evidências utilizando a cerâmica arqueológica das estearias do Maranhão.

Palavras-chave:
mito da cobra-canoa; anaconda; xamanismo; cerâmicas arqueológicas; estearias

ABSTRACT

The indigenous Amazonian sources, especially in the Northwestern side, such as among the Tukano, report an oral transmission on the creation of the world by an anaconda that moves inside the Amazon River whose shores the serpent populates as it meanders through the waters of the great river, giving rise to primitive villages. This myth seems to be very ancient and it has been shared by various Amazonian peoples along the Amazon trough because of an efficient culturally symbolic message widely accepted among them, and therefore it appears in opposed areas within the Amazon, both between the Northwestern portion and the estuary of Maranhão. This paper presents this evidence using Amazonian archaeological ceramics from the stilt villages of Maranhão.

Keywords:
snake canoe myth; anaconda; shamanism; archaeological ceramics; stilt villages in Maranhão

Era linda, coberta de padrões, como uma pulseira de contas.”

(Relato de uma mulher Piro sobre uma jararaca, Peru. In:GOW, 1999GOW, P. A geometria do corpo. In: NOVAES, A. (org.). A outra margem do Ocidente. São Paulo: Cia. das Letras, 1999. p. 299-315., p. 303.)

Este artigo tem duas propostas. A primeira é retomar o estudo do motivo iconográfico da serpente entre os povos amazônicos pré-coloniais a partir da revisão do tema na literatura, a saber: a mitologia presente na tradição escrita comparada com o suporte cerâmico das culturas arqueológicas. Se estivermos falando de uma História Antiga da Amazônia, ou uma história de longa duração amazônica, todos estes elementos culturais precisam estar presentes no discurso a ser construído. Para isso, alguns autores consagrados no estudo da Etnologia indígena, como Reichel-Dolmatoff (1971REICHEL-DOLMATOFF, G. Amazonian Cosmos. Chicago: University of Chicago Press, 1971.), Roe (1982ROE, P. The Cosmic Zygote: Cosmology in the Amazon Basin. Rutgers U.: New Brunswick, 1982.), Van Velthem (2003VAN VELTHEM, L. H. O Belo é a Fera: estética da produção e da predação entre os Wayana. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003.) e Cabalzar (2000CABALZAR, Aloísio. Descendência e aliança no espaço Tuyuka : a noção de nexo regional no noroeste amazônico. Revista de Antropologia, vol. 43, n. 1, p. 61-88, 2000.) são discutidos. A partir deles, perceber-se-á a permanência do mito da anaconda ao longo do tempo e em regiões distintas dentro da calha amazônica. O segundo objetivo trata de verificar se resquícios desta longa tradição ou ancestralidade mítica aparece na cerâmica arqueológica das estearias maranhenses, sítios pré-coloniais de palafitas situados na região estuarina do Maranhão. Apesar da busca de interdisciplinaridade do texto, escrita por um arqueólogo que pensa numa visão holística para interpretar as sociedades indígenas pré-coloniais e, portanto, as diversas e diferentes faces das Ciências Humanas devem enriquecer os resultados da análise, o suporte cerâmico é, de todas as fontes de estudo, a menos utilizada para o estudo do mito. Ademais, este artigo chama a atenção para que se os arqueólogos utilizam o conceito de longa duração para as sociedades indígenas, é necessário que suas análises também evidenciem os aspectos simbólicos presentes na materialidade, uma vez que os artefatos estão carregados de mensagens simbólicas que podem ser interpretadas à luz das teorias arqueológicas (FUNARI, 1999aFUNARI, P. P. A. Historical archaeology from a world perspective. In: FUNARI, P.P.A.: HALL, M.; JONES, S. (Org.). Historical archaeology, back from the edge. Londres: Routledge, 1999. p. 37-66., 1999bFUNARI, P. P. A. A importância da teoria arqueológica internacional para a Arqueologia sul americana: o caso brasileiro. In: FUNARI, Pedro Paulo A.; NEVES, E.G.; PODGORNY, I. (Org.). Anais da I Reunião Internacional de Teoria Arqueológica na América do Sul. 1. ed. São Paulo: MAE-USP/FAPESP, 1999. p. 213-220., 2004FUNARI, P. P. A. Arqueología latinoamericana. In: HABER, A. (Org.). Hacia una Arqueología de las Arqueologías Sudamericanas. Bogotá: Uniandes, 2004. p. 83-90.; GOMES, 2001GOMES, D. M. C. Santarém: symbolism and power in the tropical forest. In: McEWAN, C.; BARRETO, C.; NEVES, E. (Eds.). The Unknown Amazon. Culture and Nature in Ancient Brazil. Londres: The British Museum Press, 2001. p. 134-155.; FUNARI e RAGO, 2008RAGO, L. M.; FUNARI, P. P. A. Apresentação. In: RAGO, M; FUNARI, P. P. A. (orgs.). Subjetividades antigas e modernas. 1. ed. São Paulo: Annablume, 2008. p. 9-12.; FUNARI et al. 2009FUNARI, P. P. A.; ZARANKIN, A.; STOVEL, E. South American Archeology. In: CUNLIFFE, B.; GOSDEN, C.; JOYCE, R. A. (Org.). The Oxford Handbook of Archaeology. 1. ed. Oxford: Oxford University Press, 2009. p. 958-997.).

O motivo ofidiano: as serpentes estão por todos os lados

As serpentes foram um tema profícuo nas mitologias pré-colombianas, e registrado com frequências nos diversos tipos de suportes materiais: cerâmica, papel, escultura em pedra e até mesmo formando a arquitetura de edifícios. Entendemos como mito a definição dada por Lévi-Strauss, de “história relatada” através da linguagem, sendo uma norma de cosmovisão de uma determinada sociedade (LÉVI-STRAUSS, 1969LÉVI-STRAUSS, C. The Raw and the Cooked: Introduction to a Science of Mythology 1. John Weightman and Doreen Weightman, trans. Nova York: Harper & Row, 1969.).

Vejamos alguns exemplos na América Pré-Colombiana: em Cahokia, uma cultura mississipiana do século X ao XIV, as serpentes estão associadas ao mundo aquático ou inframundo e à fertilidade, sendo representadas de forma fantástica, com chifres de veado, asas de pássaros e cabeças de felino. Serpentes seriam animais protetores. Montículos cerimoniais também têm a forma deste réptil (EMERSON, 1997EMERSON, T. E. Cahokia and Archaeology of Power. Tuscaloosa: The University of Alabama Press, 1997. ).

Na Mesoamérica as serpentes se proliferaram, sendo a mais conhecida delas a serpente emplumada, sempre do gênero Crotalus, i.e., cascavéis. É muito provável que suas características ecológicas específicas, como a letalidade do veneno, agressividade, motivos da pele e dimorfismo sexual tenham feito com que as sociedades tivessem predileção em sua representação cultural. Associadas a uma miríade de significados, as serpentes emplumadas estiveram associadas ao sacrifício humano e animal em Teohituacán (1-650 d.C.), além do calendário; à guerra durante o Epiclássico e Clássico Terminal da área maia (800-1000 d.C.) e em Chichén Itzá, sítio emblemático com a representação do símbolo. Também estiveram vinculadas ao poder político, sendo que eram vistas como uma das principais insígnias de poder do governante (RINGLE et. al. 1998RINGLE, William; GALLARETA NEGRÓN, Tomás; BEY III, George. The Return of Quetzalcoatl. Evidence for the Spread of a World Religion during the Epiclassic Period. Ancient Mesoamerica, v. 9, n. 2, p. 183-232, 1998. ; NAVARRO, 2007NAVARRO, A. G. Las serpientes emplumadas de Chichén Itzá: distribución en los espacios arquitectónicos e imaginería. Tese (Doutorado em Antropologia) - Instituto de Investigaciones Antropológicas. México: UNAM, 2007.). Somente em Chichén Itzá, na península do Iucatã, México, eu cataloguei mais de 150 tipos de serpentes emplumadas na praça principal do sítio, a Grande Nivelação, o local de máximo poder da cidade durante os séculos IX e XI d.C., que serviu de paisagem de memória para os diversos reis-Kukulcáns que a urbe legitimou (NAVARRO, 2007NAVARRO, A. G. Las serpientes emplumadas de Chichén Itzá: distribución en los espacios arquitectónicos e imaginería. Tese (Doutorado em Antropologia) - Instituto de Investigaciones Antropológicas. México: UNAM, 2007.; NAVARRO e FUNARI, 2009NAVARRO, A. G.; FUNARI, P. P. A. Un estudio de caso en Arqueología Histórica: organización espacial y memoria colectiva en Chichén Itzá. In: FOURNIER, P.; TARGA, J. (orgs.) Arqueología Colonial Latinoamericana. Modelos de estudio. Oxford: Archaeopress, 2009. p. 163-186.).

Nas civilizações andinas, o motivo serpentiforme também se faz presente. Na sociedade mochica, por exemplo, datada entre 100 a.C. a 800 d.C., o mundo sagrado é representado através de uma iconografia que privilegia o mundo zoomorfo, uma vez que os animais têm um papel importante na ordem cósmica. A divindade noturna ou deus da via Láctea é um ser antropomorfo que carrega a abóbada celeste cuja forma vem a ser de uma serpente bicéfala, ou seja, o motivo ofidiano está associado, dentre vários significados, à criação (GOLTE, 2015GOLTE, J. M. Cosmología y sociedad: una interpretación iconográfica. Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 2015.).

A serpente nas fontes orais e etnográficas da Amazônia

As serpentes que povoam o imaginário indígena amazônico são as Anacondas, também chamadas de Sucuris, serpentes do gênero Eunectes, da família Boinae, sendo quatro as espécies existentes: E. murinus, E. notaeus, E. beniensis e E. deschauenseei, sendo a E. murinus a espécie mais comum na Amazônia (MATTISON, 2007MATTISON, C. The New Encyclopedia of Snakes. Princeton: Universidade de Princeton, 2007.) (ver Figura 1).

Figura 1 -
Cobra anaconda na Amazônia. Fonte: Wikipedia.

Algumas características ecológicas peculiares destas serpentes conseguiram chamar a atenção dos indígenas, pois os exemplares podem chegar até 10 metros de comprimento e pesar 230 quilos, sendo, deste modo, consideradas os animais mais pesados da Amazônia; sua pele pálida com desenhos em preto serviu de orientação iconográfica para os desenhos indígenas; camuflagem eficiente; rapidez de ataque dentro da água e letargia na terra; poderosos dentes e músculos e as fêmeas são maiores e mais agressivas que os machos; predador de outros mamíferos como onças, veados e antas (COLTHORPE, 2009COLTHORPE, K. Eunectes notaeus Yellow Anaconda. Animal Diversity Web, University of Michigan Museum of Zoology, 2009. Disponível em: https://animaldiversity.org/accounts/Eunectes_notaeus/ . Acesso em: 15 out. 2019.
https://animaldiversity.org/accounts/Eun...
; ROOSEVELT, 2014ROOSEVELT, A. C. The great anaconda and woman shaman: A dangerous and powerful ancestral spirit from creation to today. In: BARONE-VISIGALI, D. (org.). Colocataires d’Amazonie: Hommes, animaux et plantes de part et d’autre de l’Atlantique. Paris: Parution, 2014. p. 1-20.).

No que tange aos aspectos cosmológicos, as características acima descritas puderam contribuir para a associação deste animal com um rígido sistema cultural de cosmologia, com destaque para os mitos da criação do mundo e da humanidade, uma vez que os mitos contam histórias sagradas, “ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio” (ELIADE, 2013ELIADE, Mircea. O mito do eterno retorno. Lisboa: Edições 70, 2013., p.11). Por exemplo, segundo os Desana, da família linguística Tukano oriental, a humanidade foi formada por seres sobrenaturais chamados Trovão, ditos “Homens de Quartzo Branco” ou Avôs do Mundo (LANA e LANA, 1995LANA, F. A.; LANA, L. G. Antes o mundo não existia. Mitologia dos antigos Desana-Kehíripõrã. São João Batista do Rio Tiquié: UNIRT; São Gabriel da Cachoeira: FOIRN, 1995. . O Terceiro Trovão incumbiu-se de criar a humanidade, gerando primeiro um grande lago (o oceano) que foi alcançado por ele na forma de uma jiboia, sendo sua cabeça como a proa de uma lancha, metáfora da “Canoa da Futura Humanidade” ou “Canoa da Transformação”, sendo que o chefe dos Desana veio como líder dessa embarcação, a chamada cobra-canoa (LANA e LANA, 1995LANA, F. A.; LANA, L. G. Antes o mundo não existia. Mitologia dos antigos Desana-Kehíripõrã. São João Batista do Rio Tiquié: UNIRT; São Gabriel da Cachoeira: FOIRN, 1995. ). Este ser sobrenatural carregava consigo riquezas materiais que, ao passar por cada maloca ao longo do Rio Amazonas, transformava qualquer aldeia em pessoas (ver Figura 2). Uma informação importante é que as primeiras malocas estão na beira do Lago de Leite, isto é, próximas ao oceano e ao todo foram criadas 56 aldeias pelo Terceiro Avô do Mundo:

A futura humanidade tornava-se gente e crescia maloca por maloca, assim como uma criancinha que cresce ano por ano. Assim mesmo acontecia com eles. A embarcação vinha debaixo da água, como submarino. As malocas também estão debaixo das águas. Tanto é que a humanidade veio como “Gente de Peixe” (LANA e LANA, 1995LANA, F. A.; LANA, L. G. Antes o mundo não existia. Mitologia dos antigos Desana-Kehíripõrã. São João Batista do Rio Tiquié: UNIRT; São Gabriel da Cachoeira: FOIRN, 1995. , p. 31).

Ribeiro (2000RIBEIRO, B. A mitologia pictórica dos Desãna. In: VIDA, L. (org.). Grafismo indígena. São Paulo: Studio Nobel/FAPESP/Edusp, 2000. p. 435-452. ) ao retomar seu trabalho com os Lana registrou:

Partindo do lago do leite, uma embarcação que era ao mesmo tempo a Cobra Grande (e de fato era o avô-do-mundo, o trovão-do-alto) subiu rio acima, viajando como um submarino. Os velhos chamam-na mupúru, talvez querendo dizer ‘vapor’, porque o navio subiu sem ninguém remar. Em sua trajetória, a embarcação parava nas Casas que eram colocadas à beira do rio. As pessoas entravam nas Casas, realizavam as cerimônias e continuavam sua viagem rio acima (RIBEIRO, 2000RIBEIRO, B. A mitologia pictórica dos Desãna. In: VIDA, L. (org.). Grafismo indígena. São Paulo: Studio Nobel/FAPESP/Edusp, 2000. p. 435-452. , p. 40).

Figura 2 -
A cobra-canoa com seres humanos em seu interior.

Reichel-Dolmatoff (1971REICHEL-DOLMATOFF, G. Amazonian Cosmos. Chicago: University of Chicago Press, 1971.) também relata a presença da cobra-canoa entre os Desana. Ela teria sido utilizada pelo criador Sol, Pamurí-mahsë, Senhor do Inframundo - mundo celestial - chamado Ahpikondiá, para enviar as pessoas à Terra. A cobra-canoa recebeu um nome, pamurí-gahsíru, e foi pintada de amarelo com manchas negras. O interior da canoa, onde estavam os Desana, foi pintado de vermelho. A viagem foi longa porque em cada nascente do rio o criador Sol ia criando as aldeias e colocando os Desana para viver nelas. Reichel-Dolmatoff (1971REICHEL-DOLMATOFF, G. Amazonian Cosmos. Chicago: University of Chicago Press, 1971., p. 41) assinala que o Sol foi, portanto, “an organizer and legislator” e que a canoa se refere a uma anaconda, em que é possível vislumbrar uma associação sexual da embarcação, considerada como sendo o útero.

Ainda com relação à cobra-canoa, Ribeiro (1989RIBEIRO, B. G. Arte Indígena: linguagem visual. São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1989.) relata que em suas anotações de campo dentre os Desana, a mitologia é povoada por animais predadores da terra, água e ar, como o gavião-real (Harpyia harpyia), a onça-pintada (Panthera onça) e a sucuri (Eunectes murinus). Estes são mediados pela ação mítica perpetrada pelo xamanismo, cuja cobra-canoa simboliza a ontogênese humana, a criação e a evolução para a humanidade. O processo pode ser de condução humana no réptil (pinlun gahsilu em Desana) ou de transformação, que se refere ao processo de socialização humana com a fundação de novas aldeias (pahmelin gahsilu).

Ainda sobre os Tukano, Hugh-Jones (1979HUGH-JONES, C. From the Milk River: Spatial and Temporal Processes in Northwest Amazonia. Cambridge: University of New York, 1979.) chama a atenção para o fato de que os cantos entonados pelos xamãs fazem alusão ao rio Amazonas, a saber a Anaconda terrestre e a Via Láctea, e a Anaconda sobrenatural e criadora. Muitos povos amazônicos comparam o leite sobrenatural da Anaconda criadora com a seiva de cor leitosa das plantas alucinógenas do gênero Banisteriopsis, cujo tronco da árvore é a metáfora do corpo da Grande Anaconda criadora (HUGH-JONES, 1979HUGH-JONES, C. From the Milk River: Spatial and Temporal Processes in Northwest Amazonia. Cambridge: University of New York, 1979.). Desse modo, enquanto o rio Amazonas possui um sedimento que faz suas águas serem mais claras durante a estação chuvosa, a Via Láctea contém o leite sobrenatural da Mulher Xamã que espremeu seus seios quando criou a Amazônia (ROOSEVELT, 2014ROOSEVELT, A. C. The great anaconda and woman shaman: A dangerous and powerful ancestral spirit from creation to today. In: BARONE-VISIGALI, D. (org.). Colocataires d’Amazonie: Hommes, animaux et plantes de part et d’autre de l’Atlantique. Paris: Parution, 2014. p. 1-20.).

Em recente artigo, Hugh Jones (2017HUGH-JONES, S. Body tubes and Synaesthesia. Mundo Amazónico, v. 8, n. 1, p. 27-78, 2017. , p. 41) afirma que o mito da cobra-canoa é como uma “árvore com muitos galhos”, pois pode ter várias versões. Por um lado, o mito explicaria a criação do rio Negro e seus afluentes, por outro, a origem da humanidade e, por extensão, dos próprios Tukano. Ao discutir o conceito de “formas tubulares do corpo”, como os cabelos e intestinos, por onde passa o fluxo da energia vital, o autor associa, deste modo, a anaconda com um “tubo sinestésico”, pois suas aberturas (boca, vagina, ânus) permitiriam o fluxo da própria vida. Aliás, “peixes, cobras, pássaros, palmeiras, e corpos humanos são todos tubos” (HUGH-JONES, 2017HUGH-JONES, S. Body tubes and Synaesthesia. Mundo Amazónico, v. 8, n. 1, p. 27-78, 2017. :26).

Ainda com relação aos cantos, segundo Barcelos (2011BARCELOS NETO, A. A serpente de corpo repleto de canções: um tema amazônico sobre a arte do trançado. Revista de Antropologia, v. 54, n. 2, p. 981-1012, 2011., p. 1003), as cobras fazem parte de um repertório mito-musical entre os Wauja, em que se destaca a Kamalu Hai, “a gigantesca cobra-canoa que carrega em seu dorso uma longa série de panelas cantoras”. Estas panelas, de cerâmica, são de diversos tamanhos e possuem uma polifonia variada de acordo com sua função. Como este personagem mítico fez uma única aparição, na lagoa dos Wauja, causando muito barulho, Barcelos (2011BARCELOS NETO, A. A serpente de corpo repleto de canções: um tema amazônico sobre a arte do trançado. Revista de Antropologia, v. 54, n. 2, p. 981-1012, 2011., p. 1003) atribui ao mito a função de explicar que somente esta sociedade indígena “sabe fazer todos os tipos de artefatos cerâmicos”. Nesse sentido, a cobra-canoa poderia insinuar a origem da atividade ceramista entre os Wauja, um mito prístino, portanto. Por fim, Barcelos (2011BARCELOS NETO, A. A serpente de corpo repleto de canções: um tema amazônico sobre a arte do trançado. Revista de Antropologia, v. 54, n. 2, p. 981-1012, 2011., p. 1004) vê a importância da cultura material para a Etnologia, uma vez que “essa ênfase na materialidade é outro modo amazônico de marcar o caráter fundamentalmente musical da alteridade” (grifos do autor).

Reichel-Dolmatoff (1978REICHEL-DOLMATOFF, G. El Chamán y el jaguar. Estudio de las drogas narcóticas entre los indios de Colombia. México: Siglo XXI, 1978. ), em seu clássico estudo “El Chamán y el jaguar. Estudio de la drogas narcóticas entre los indios de Colombia”, propõe que as visões provocadas pelas plantas alucinógenas entre os povos Tukano levem a percepções subjetivas chamadas de fosfenos e que estas experiências seriam comuns a todos os índios, revelando vivências do mundo onírico associadas à arquétipos mitológicos, como o Mestre dos animais, a primeira dança da humanidade e o próprio mito da cobra-canoa. Logo, esta visão sobrenatural, habitada pelo mundo mitológico, se incorpora ao mundo real dos indivíduos que participam desta experiência narcótica.

Na Amazônia, a anaconda está associada tanto ao universo masculino, como se viu entre os Tukano, como também ao feminino. A associação da Anaconda com uma mulher xamã e divindade criadora é comum nas tradições orais da Amazônia segundo Roosevelt (2014ROOSEVELT, A. C. The great anaconda and woman shaman: A dangerous and powerful ancestral spirit from creation to today. In: BARONE-VISIGALI, D. (org.). Colocataires d’Amazonie: Hommes, animaux et plantes de part et d’autre de l’Atlantique. Paris: Parution, 2014. p. 1-20.). Os povos indígenas conceberiam a Anaconda como um espírito ancestral perigoso até os diais atuais. Ela seria um mestre que governa a parte feminina dos cosmos: as águas e o inframundo (ROOSEVELT, 2014ROOSEVELT, A. C. The great anaconda and woman shaman: A dangerous and powerful ancestral spirit from creation to today. In: BARONE-VISIGALI, D. (org.). Colocataires d’Amazonie: Hommes, animaux et plantes de part et d’autre de l’Atlantique. Paris: Parution, 2014. p. 1-20.). Schoumatoff (1990SCHOUMATOFF, A. In Southern Light. Vintage: Nova York, 1990.) complementa que a Mulher-Xamã foi a criadora da Terra prístina e da civilização. Esses pontos de vista também podem ser abordados sob a manifestação artística que Fénelon Costa (1988FÉNELON COSTA, M. H. O mundo dos Mehináku e suas representações visuais. Brasília: UnB, 1988., p. 14) chama de “Visão de Mundo” entre os índios altoxinguanos, ou seja, um “reflexo na arte do que entendem constituir o real, os portadores de uma cultura em determinado momento de sua história”.

Para os Wayana, um grupo Karib do norte do Pará, o mundo sobrenatural é habitado por seres aquáticos, cujo ancestral comum é uma anaconda arquetípica, chamada de Okoiwuimë, ou seja, cobra descomunal (VAN VELTHEM, 2003VAN VELTHEM, L. H. O Belo é a Fera: estética da produção e da predação entre os Wayana. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003.). Esta autora sublinha que uma das principais características desta serpente predadora é a grande quantidade de pintura corporal do animal, utilizada na fabricação dos corpos humanos e na cestaria em rituais pelos Wayana. Para os Wayana, as cores da anaconda, sobretudo àquelas localizadas em seu ventre, tratam-se de uma metáfora das pinturas espirituais, incorporada principalmente pelo ser Tuluperê, e se destinam aos artefatos utilizados em rituais xamânicos (VAN VELTHEM, 2003VAN VELTHEM, L. H. O Belo é a Fera: estética da produção e da predação entre os Wayana. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003.).

Entre os Tariano, habitantes do alto e médio Rio Uaupés, falantes da língua Arawak, a cobra grande teria a mesma função da cobra-canoa, qual seja a de povoar o rio Amazonas, uma vez que “essa canoa foi-lhes fornecida pela Oakho (divindade protetora desses viajantes) e na proa tinha a forma de cabeça de cobra, sendo as paredes da canoa pintadas com ornamentos que lembravam cores da cobra” (TARIANO, 2002TARIANO, I. Mitologia tariana. Manaus: IPHAN/Valer, 2002.: 19).

Ainda segundo Roosevelt (2014ROOSEVELT, A. C. The great anaconda and woman shaman: A dangerous and powerful ancestral spirit from creation to today. In: BARONE-VISIGALI, D. (org.). Colocataires d’Amazonie: Hommes, animaux et plantes de part et d’autre de l’Atlantique. Paris: Parution, 2014. p. 1-20.), muitos povos amazônicos associam o rio Amazonas com a Anaconda pelo fato destas serpentes dominarem a paisagem aquática e aos meandros dos rios imitarem o movimento destes répteis. Assim, é comum que desenhos de Anacondas sejam representados nas casas comunitárias entre os Tukano, por exemplo (CABALZAR, 2010). Lopes da Silva (1994LOPES DA SILVA, A. Mitos e cosmologias indígenas no Brasil: breve introdução. In: GRUPIONI, L. D. B. (org.). Índios no Brasil. São Paulo: Global Editora, 1994. p. 75-828., p. 78) menciona que a cosmologia dos povos Tukano está baseada na crença de uma anaconda ancestral que percorria o rio Amazonas, de cujas entranhas “saíram, em pontos precisos daquele percurso, os antepassados primeiros de cada um dos vários povos da região, determinando, assim, seus respectivos territórios, as atribuições específicas de cada um e um padrão hierarquizado de relacionamento entre eles”.

Roe (1982ROE, P. The Cosmic Zygote: Cosmology in the Amazon Basin. Rutgers U.: New Brunswick, 1982.), em seu livro clássico “The Cosmic Zygote”, relatou entre os Shipibo a associação mitológica da criação do mundo com as Anacondas, estando associada, também, aos rituais de cura, à adivinhação, às danças cerimoniais e à criação dos instrumentos musicais. Roe (1982ROE, P. The Cosmic Zygote: Cosmology in the Amazon Basin. Rutgers U.: New Brunswick, 1982.) argumenta que a Anaconda também foi um animal dual, representando os componentes masculino e feminino como metáfora opositora do dia e da noite ou do Sol e da Lua, um dos mais importantes aspectos mitológicos dos povos amazônicos. Os aspectos masculinos da Anaconda seriam: a ordem; a agressividade; o mundo terrestre; as regras matrimoniais; a cultura; as cores vermelha, amarela e branca e o Sol; já as características femininas da serpente seriam o caos, a morte, o mundo aquático, o incesto, a natureza, as cores preta, azul e verde e a Lua.

Entre outros grupos, como os Tupi-Gavião e Panare, a Anaconda é um animal gigante associado com o arco-íris (DUMONT, 1977DUMONT, J.-P. Musical Politics: On Some Symbolic Aspects of the Musical Instruments of the Panare Indians. In: Anthropology and the Climate of Opinion. S. A. Freed, ed. Annals of the New York Academy of Sciences, 1977, n. 293, p. 206-214. ) ou um fenômeno celestial entre os Timbira em que as extremidades do réptil repousam na boca de duas Sucuris (NIMUENDAJÚ, 1946NIMUENDAJÚ, C. The Eastern Timbira. American Archaeology and Ethnology, n. 41. Berkeley: University of California Press, 1946.). O arco-íris seria um símbolo de doença (BASSO, 1973BASSO, E. B. The Kalapalo Indians of Central Brazil. Nova York: Holt, Rinehart & Winston, 1973. ) e para Weiss (1975WEISS, G. Campa Cosmology: The World of a Forest Tribe in South America. Anthropological Papers, v. 52, n. 5. Nova York: American Museum of Natural History, 1975.:273) representaria “algo demoníaco, repulsivo e detestável, assim como a anaconda” (tradução do autor). A Anaconda, portanto, povoa uma quantidade muito grande de mitos amazônicos, tendo como características principais a criação cosmológica, sob os aspectos celestiais, e propriedades culturais associadas a transformações naturais da vida aquática e o mundo das águas, predicados estes típicos da floresta tropical.

O que a Arqueologia tem a dizer?

Os esforços de reconstrução de mitologias na Arqueologia baseiam-se na repetição de padrões observáveis que resulta em traços repetidos da atividade. Um ritual é, muitas vezes, uma ação repetitiva, e seus vestígios materiais podem criar padrões (KYRIAKIDIS, 2007KYRIAKIDIS, E. Finding ritual: calibrating the evidence. In: KYRIAKIDIS, E. (ed.) The Archaeology of Ritual. Los Angeles: University of California, 2007. p. 9-22. ).

Segundo Roosevelt (2014ROOSEVELT, A. C. The great anaconda and woman shaman: A dangerous and powerful ancestral spirit from creation to today. In: BARONE-VISIGALI, D. (org.). Colocataires d’Amazonie: Hommes, animaux et plantes de part et d’autre de l’Atlantique. Paris: Parution, 2014. p. 1-20.), os mitos envolvendo a anaconda aparecem com maior destaque na iconografia da Tradição Polícroma da Amazônia, cujos símbolos serpentiformes seriam evidência de atividades culturais, como as cerimônias de xamãs, rituais de iniciação, danças e cantos. A Tradição Polícroma da Amazônia foi proposta por Howard (1947HOWARD, G. Prehistoric Ceramic Styles of Lowland South America: their distribution and History. New Haven: Yale University Publications in Archaeology, v. 37, 1947. ) e depois melhor caracterizada por Meggers e Evans (1957MEGGERS, B. J.; EVANS, C. Archaelogical Investigations on the Rio Napo, Eastern Equador. Washington D.C.: Smithsonian Institution Bulletin, Washington D.C., n. 1967, 1957. ). Os elementos materiais que a caracterizam são a pintura em preto e vermelho sobre fundo branco, sendo uma Tradição de ampla dispersão territorial, desde a foz do rio Amazonas até os Andes, de 400 AD até um pouco antes do período colonial (BARRETO et al., 2016BARRETO, C.; LIMA, H. P.; BETANCOURT, C. J. Novos olhares sobre as cerâmicas arqueológicas da Amazônia. In: BARRETO, C.; LIMA, Helena P.; BETANCOURT, C. J. (orgs.). Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese. Belém: IPHAN/Museu Paraense Emílio Goeldi, 2016. p. 19-31. ). Roosevelt (2014ROOSEVELT, A. C. The great anaconda and woman shaman: A dangerous and powerful ancestral spirit from creation to today. In: BARONE-VISIGALI, D. (org.). Colocataires d’Amazonie: Hommes, animaux et plantes de part et d’autre de l’Atlantique. Paris: Parution, 2014. p. 1-20.) pensa que a origem desta Tradição esteja na ilha de Marajó e, deste modo, interpreta os relatos indígenas da expansão da cobra-canoa da foz de um grande rio, subindo-o e povoando-o a partir da expansão da Tradição Polícroma da Amazônia a partir de Marajó em sentido aos Andes. Segundo esta mesma autora, na fase Joanes da arte monumental marajoara, a mulher xamã anaconda está representada em efígies das urnas funerárias, em que porta elaborados brincos e roupas com desenhos de serpente. Em um vasilhame cerâmico do estilo Pacoval da fase marajoara, entre os séculos X e XI AD, a mulher xamã tem em seus braços desenhos da pele de anaconda, que também decora seu vestuário (ROOSEVELT, 1991ROOSEVELT, A. C. Moundbuilders of the Amazon: Geophysical Archaeology on Marajo Island, Brazil. Studies in Archaeology. San Diego: Academic Press, 1991., 2014ROOSEVELT, A. C. The great anaconda and woman shaman: A dangerous and powerful ancestral spirit from creation to today. In: BARONE-VISIGALI, D. (org.). Colocataires d’Amazonie: Hommes, animaux et plantes de part et d’autre de l’Atlantique. Paris: Parution, 2014. p. 1-20.) (ver Figura 3). Apesar de Schaan (2001SCHAAN, D. P. Estatuetas antropomorfas marajoara: o simbolismo de identidades de gênero em uma sociedade complexa amazônica. Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi. Belém, v. 17, n. 2, p. 437-477, 2001., 2008SCHAAN, D. P. A arte da cerâmica marajoara: encontros entre o passado e o presente. Habitus, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 99-117, jan./jul., 2008.) não discutir os aspectos mitológicos da Anaconda com profundidade, a autora enfatiza que “os animais representados na cultura material são justamente aqueles mais provavelmente relacionados à história cultural do grupo, cuja representação os ajuda a memorizar e reviver essa história em ocasiões festivas e ritualísticas” (p. 6). Ao estudar a iconografia marajoara, Schaan (2008SCHAAN, D. P. A arte da cerâmica marajoara: encontros entre o passado e o presente. Habitus, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 99-117, jan./jul., 2008.) relatou a grande quantidade de partes fragmentadas do corpo das cobras, como cauda, cabeça, e pele, o que foi interpretado como um animal importante na história cultural do grupo.

Barreto (2008BARRETO, C. N. G. Meios místicos de reprodução social: arte e estilo na cerâmica funerária da Amazônia Antiga. Tese (Doutorado em Arqueologia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.) chama a atenção para o fato de que alguns elementos iconográficos amazônicos sejam, na verdade, pan-amazônicos, cuja simbologia está baseada na relação dos animais e seres humanos a partir do corpo como ação social e transformadora, cujos elementos povoam as narrativas e mitos indígenas. Nesse sentido, estas narrativas mitológicas, que povoam tanto o passado como o presente das comunidades indígenas, fazem-na pensar em uma “arte indígena amazônica geral com variações regionais e estilos regionais” (BARRETO, 2008BARRETO, C. N. G. Meios místicos de reprodução social: arte e estilo na cerâmica funerária da Amazônia Antiga. Tese (Doutorado em Arqueologia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008., p. 22).

Figura 3 -
Vasilhame cerâmico marajoara com representação de serpentes anacondas em alusão à mulher xamã. Cortesia de Anna C. Roosevelt.

Oliveira (2016OLIVEIRA, E. A serpente de várias faces: estilo e iconografia da cerâmica Guarita. In: BARRETO, C.; LIMA, Helena P.; BETANCOURT, C. J. (orgs.). Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese. Belém: IPHAN/Museu Paraense Emílio Goeldi, 2016. p. 373-382.), em sua dissertação de mestrado, menciona rapidamente que as narrativas associadas aos mitos sobre a cobra-canoa dizem respeito à criação de várias atividades culturais, dentre elas a arte e a cerâmica. Na recente obra “Cerâmicas arqueológicas da Amazônia”, organizada por Cristiana Barreto et al. (2016BARRETO, C.; LIMA, H. P.; BETANCOURT, C. J. Novos olhares sobre as cerâmicas arqueológicas da Amazônia. In: BARRETO, C.; LIMA, Helena P.; BETANCOURT, C. J. (orgs.). Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese. Belém: IPHAN/Museu Paraense Emílio Goeldi, 2016. p. 19-31. ), buscou-se uma nova síntese sobre o complexo processo de uso das cerâmicas pelos povos amazônicos. A parte II do livro tem o sugestivo nome “Subindo o Amazonas na Cobra Canoa”, um trocadilho/metáfora que faz menção ao mito da cobra-canoa. No que tange à composição total dos artigos, 39 capítulos apresentados, somente um trata da presença de serpentes na imagética dos artefatos cerâmicos: “A serpente de várias faces: estilo e iconografia da cerâmica Guarita”, de Erêndira OliveiraOLIVEIRA, E. Potes que encantam. Estilo e agência na cerâmica polícroma da Amazônia Central. Dissertação (Mestrado em Arqueologia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. . Apesar de a autora considerar a importância da serpente nos mitos amazônicos e citar estudos em que este animal é recorrente em modelos ontológicos, não se menciona o mito da cobra-canoa, cuja ontologia é a que pode responder a vários questionamentos que são feitos ao longo do texto. Talvez seja necessário que nós, arqueólogos, dialoguemos mais com a longa duração indígena, estabelecendo um diálogo mais profícuo com a etnografia indígena e a Etnologia.

As estearias entram em cena

As estearias são sítios arqueológicos formados por palafitas pré-coloniais na região estuarina do Maranhão (NAVARRO, 2013NAVARRO, A. G. O povo das águas: carta arqueológica das estearias da porção centro-norte da baixada maranhense. Cadernos de Pesquisa, v. 20, n. 3, p. 57-64, 2013., 2016NAVARRO, A. G. O complexo cerâmico das estearias, Maranhão. In: BARRETO, C.; LIMA, H. P.; BETANCOURT, C. J. (orgs.). Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese. Belém: IPHAN/Museu Paraense Emílio Goeldi, 2016. p. 158-169., 2017NAVARRO, A. G.; COSTA, M. L.; SILVA, A. S. N. F.; ANGÉLICA, R. S.; RODRIGUES, S. S.; GOUVEIA NETO, J. C. O muiraquitã da estearia da Boca do Rio, Santa Helena, Maranhão: estudo arqueológico, mineralógico e simbólico. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 12, n. 3, p. 869-894, 2017., 2018aNAVARRO, A. G. New evidence for late first-millennium AD stilt-house settlements in Eastern Amazonia. Antiquity, v. 92, n. 366, p.1586-603, 2018a. , 2018bNAVARRO, A. G. Morando no meio de rios e lagos: mapeamento e análise cerâmica de quatro estearias do Maranhão. Revista de Arqueologia, vol. 31, n. 1, p.73-103, 2018b.). Essas palafitas são formadas de madeira de boa resistência que formam os esteios sobre os quais as aldeias eram edificadas. Do início da era comum até o século XII, moradias em palafitas foram comuns nas bacias hidrográficas de alguns rios da Baixada Maranhense, como o Turiaçu e o Pindaré-Mearim (ver Figura 4).

Figura 4 -
Esteios do sítio Coqueiro na época da seca.

Estas sociedades palafíticas alcançaram seu auge no século IX e X AD e compartilharam uma cultura material uniforme, i.e., artefatos que se caracterizam de certa forma homogeneamente, sendo acordelada, muito bem confeccionada, com temperos de espículas de esponjas, cauixi, minerais e cacos moídos (NAVARRO, 2016NAVARRO, A. G. Arte e estilo nas estearias maranhenses. Arquivos do Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG, v. 25, n. 1-2, p. 102-124, 2016., 2018aNAVARRO, A. G. New evidence for late first-millennium AD stilt-house settlements in Eastern Amazonia. Antiquity, v. 92, n. 366, p.1586-603, 2018a. , 2018bNAVARRO, A. G. Morando no meio de rios e lagos: mapeamento e análise cerâmica de quatro estearias do Maranhão. Revista de Arqueologia, vol. 31, n. 1, p.73-103, 2018b.). Quanto à filiação étnica destes grupos, esta permanece desconhecida. Embora algumas crônicas coloniais registrem, ainda que suscintamente, grupos que viviam em palafitas no atual Pará (DANIEL, 2004DANIEL, J. Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas: 1722-1776. Vol. 1. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004 [1757-1776].; D’ÉVREUX, 2008D’ÉVREUX, Y. Continuação da História das coisas mais memoráveis acontecidas no Maranhão nos anos 1612 e 1614. Tradução de Cézar Augusto Marques, Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2008. ), elas não foram mencionadas para a atual região em que estão os vestígios arqueológicos. Nimuendajú (1946NIMUENDAJÚ, C. The Eastern Timbira. American Archaeology and Ethnology, n. 41. Berkeley: University of California Press, 1946.) registra somente grupos do tronco Tupi e Macro-Jê, na referida região, como os Guajajara e Gamela, respectivamente.

Grande parte dos sítios arqueológicos fica na bacia do rio Turiaçu. Este rio é parte da chamada Região Hidrográfica Atlântico Nordeste Ocidental, contemplando os Estados do Maranhão e Pará. Suas coordenadas geográficas situam-se entre 0º30’S e 6º45’S e 47º45’W a 42º00’W, com uma superfície de 268.897 km², sendo 90% da área pertencente ao Maranhão. É formada pelas bacias hidrográficas dos rios Itapecuru, Munim, Gurupi, Pericumã e do próprio Turiaçu. Os afluentes deste rio formam corpos d’água caudalosos com características amazônicas e que desaguam no litoral maranhense na costa de rias, onde há uma exuberante vegetação de manguezal (CRH, 2006CADERNO DA REGIÃO HIGDROGRÁFICA. Atlântico Nordeste Ocidental. Ministério do Meio Ambiente. Secretaria de Recursos Hídricos. Brasília: MMA, 2006. ) (ver Figura 5).

Figura 5 -
Rio Turiaçu.

O rio Turiaçu possui 720 km de extensão e possui forma sinuosa, lembrando os típicos rios amazônicos, se não o próprio. Trata-se de uma típica região geográfica, de transição entre os biomas de floresta tropical e cerrado. O clima é o megatérmico chuvoso com temperatura média de 27º centígrados e com alto índice pluviométrico, em torno de 1800 mm³ (ANA, 2005AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS (ANA), Ministério do Meio Ambiente. Disponibilidade e Demandas de Recursos Hídricos no Brasil. Brasília: 2005. 134 p. ). Faz parte da Área de Proteção Ambiental (APA) da Baixada Maranhense, com total de 1.775.035,9 hectares, criada pelo decreto 11.900 de 11 de junho de 1991 e reeditado em 05 de outubro de 1991. Na nascente do rio existe uma demarcação de terra indígena de 530.525 hectares povoada pelos grupos Ka’apor, Awá Guajá e Teneheteara, todos pertencentes à família linguística Tupi-guarani (CRH, 2006CADERNO DA REGIÃO HIGDROGRÁFICA. Atlântico Nordeste Ocidental. Ministério do Meio Ambiente. Secretaria de Recursos Hídricos. Brasília: MMA, 2006. ).

Embora Navarro (2016NAVARRO, A. G. O complexo cerâmico das estearias, Maranhão. In: BARRETO, C.; LIMA, H. P.; BETANCOURT, C. J. (orgs.). Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese. Belém: IPHAN/Museu Paraense Emílio Goeldi, 2016. p. 158-169.) tenha mencionado que alguns motivos iconográficos encontrados nas vasilhas cerâmicas tenham correspondência com a pele de alguns animais, como as serpentes, faltou um aprofundamento sobre o mito da cobra-canoa, pois, àquele momento, não se havia objetivado tratar o tema de forma mais sistemática, e sim elencar os elementos característicos ou definidores da iconografia das estearias.

Ocorre que um dos principais temas de cerâmicas datadas no auge destas sociedades são desenhos de cor preta pintados sobre um engobo de cor creme (bicrômicos), e às vezes, associados também à pintura vermelha (policrômica). Um elemento iconográfico que se destaca é a presença de desenhos curvilíneos pretos ou em forma de ganchos que se encaixam uns aos outros (Figura 6).

Figura 6 -
Vasilhame com desenho de ganchos em preto remetendo à pele da anaconda.

Na Figura 1 é possível notar esses mesmos ganchos na pele da anaconda. Esta iconografia é recorrente em quase todos os sítios de tipos estearias. Apesar de abstratos, a iconografia possui um ordenamento de leitura em faixas horizontais, preenchendo todo o espaço interno do vasilhame. Isso poderia se relacionar ao que Gombrich (1999GOMBRICH, E. Meditações sobre um cavalinho de pau ou as raízes da forma artística. In: GOMBRICH, E. Meditações sobre um cavalinho de pau e outros ensaios sobre a teoria da arte. São Paulo: EDUSP, 1999. p. 1-11.) chama de “imagem conceitual”, ou seja, a representação do desenho estaria mais associada à ideia que ele representa do que ao objeto em si. A predominância da cor preta poderia corroborar a sugestão de que estas imagens corresponderiam às manchas pretas que a serpente sucuri (Eunectes murinus) apresenta em seu dorso, assim como também interpretou Roosevelt (2014ROOSEVELT, A. C. The great anaconda and woman shaman: A dangerous and powerful ancestral spirit from creation to today. In: BARONE-VISIGALI, D. (org.). Colocataires d’Amazonie: Hommes, animaux et plantes de part et d’autre de l’Atlantique. Paris: Parution, 2014. p. 1-20.) em seu estudo sobre as anacondas e mulheres-xamãs. Nesse sentido, estamos de acordo com Ribeiro (1986RIBEIRO, B. Prefácio. In: RIBEIRO, D. (ed.). Suma Etnológica Brasileira, vol. 3, Arte Índia. Petrópolis: Vozes/FINEP, 1986. p. 11-13., p. 10) quando explica que, “na medida em que a arte expressa enredos místicos, e em que define posições destacadas na organização social, ela condensa e vincula diversas esferas da vida social, propiciando a reprodução da sociedade e da cultura”.

No entanto, um vasilhame quase inteiro, com a mesma iconografia, levou-nos a refinar o embasamento teórico para interpretar o mito da cobra-canoa. Trata-se de uma vasilha em forma de meia-calota, ou seja, artefatos que são interpretados, pela sua forma, como utensílios utilizados para servir alimentos (BURKE et al. 1972BURKE, C.; ERICSON, J.; READ, D. Research Design: the Relationships Between the Primary Functions and the Physical Properties of Ceramic Vessels and Their Implications for Ceramic Distributions on an Archaeological Site. Anthropology UCLA, n. 3, p. 84-95, 1972.). Pode-se perceber que a forma esférica do vasilhame cria um efeito óptico para a visualização do corpo de uma serpente que parece circundar o próprio artefato. Com uma cabeça triangular e um corpo grosso, salpicada com suas típicas manchas dorsais, esta inequívoca imagem de uma sucuri foi considerada o “elo perdido” para a interpretação dos desenhos com os típicos ganchos pretos sem a forma clara do réptil, somente como “conceito”, assim definida por Gombrich (1988) (ver Figuras 7 e 8).

Figura 7 -
Uma anaconda figurada num vasilhame cerâmico das estearias.

Figura 8 -
A anaconda do vasilhame anterior desenhada.

Em recente trabalho, Panachuk et al. (2019PANACHUK, L.; PROUS, A.; ABREY, T. H. Os gestos de produção da pintura em cerâmica nos sítios da Baixada Maranhense: apontamentos preliminares. In: NAVARRO, A. G. (org.). A Civilização lacustre e a Baixada Maranhense: da Pré-História dos campos inundáveis aos dias atuais. São Luís: EDUFMA, 2019. p. 389-432.) estudaram estes vasilhames e descobriram um padrão de desenho bastante rígido com controles de pinceis, realizado por alguém com grande destreza na pintura, possivelmente uma mulher mais velha. Se a preocupação é representar o mito de longa duração da cobra-canoa, faz sentido o cuidado tido pelo artista ao pintar o suporte cerâmico. Nesse sentido, no que tange aos aspectos simbólicos, a cerâmica foi o principal veículo de disseminação destas mensagens mitológicas. Utilizando autores como Sahlins (1968SAHLINS, M. D. Tribesman. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1968.), Geertz (1989GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.) e Marconi e Presotto (2009MARCONI, M. de A.; PRESOTTO, Z. M. Antropologia: uma introdução. São Paulo: Atlas, 2009. ), Navarro (2016NAVARRO, A. G. O complexo cerâmico das estearias, Maranhão. In: BARRETO, C.; LIMA, H. P.; BETANCOURT, C. J. (orgs.). Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese. Belém: IPHAN/Museu Paraense Emílio Goeldi, 2016. p. 158-169., p. 102) interpretou estes vasilhames como veículos de mensagem cosmológica “que servem para comunicar valores sociais, políticos e religiosos de uma determinada sociedade, para eles mesmos, como forma de coesão social e/ou estratégia de controle, ou para demonstrar estes mesmos valores a outras sociedades, como forma de identidade étnica”.

Coletas de superfície localizadas em duas estearias do rio Turiaçu, Cabeludo e Boca do Rio, evidenciam uma grande quantidade de artefatos pintados com alusão à pele da anaconda. Em recente estudo, Navarro (2018aNAVARRO, A. G. New evidence for late first-millennium AD stilt-house settlements in Eastern Amazonia. Antiquity, v. 92, n. 366, p.1586-603, 2018a. , 2018bNAVARRO, A. G. Morando no meio de rios e lagos: mapeamento e análise cerâmica de quatro estearias do Maranhão. Revista de Arqueologia, vol. 31, n. 1, p.73-103, 2018b.) sugeriu que cada estearia possui um conjunto maior de esteios que coincide também com o local de coleta da maioria das peças pintadas, estatuetas e muiraquitãs. Nesse sentido, estes espaços poderiam corresponder aos locais destinados à coletividade da aldeia, onde se realizariam as festividades e reuniões do grupo. Nessas reuniões, em meio a comes e bebes, a memória do mito ancestral da cobra-canoa pôde ter sido entoada pelos povos das estearias (ver Figuras 9 e 10).

Figura 9 -
A estearia do Cabeludo e a dispersão de cerâmica polícroma no maior núcleo de esteios do sítio, possivelmente o espaço coletivo das festividades. Acervo LARQ.

Desse modo, a cerâmica também pode ser interpretada com uma linguagem visual, ou seja, “um veículo portador de mensagens inteligíveis para os seus usuários” (RIBEIRO, 1986RIBEIRO, D. Apresentação. In: RIBEIRO, D. (ed.). Suma Etnológica Brasileira, vol. 3, Arte Índia. Petrópolis: Vozes/FINEP, 1986. p. 9-10., p. 9). Esta abordagem insere os estudos de arte indígena dentro da Antropologia Simbólica, uma vez que é interpretada como “fatos de comunicação” (RIBEIRO, 1986, p. 11). Ela serve como mediadora entre textos visuais e verbais, cujo resultado é uma “melhor compreensão da etnoestética: a linguagem do conjunto artefactual de um grupo indígena como meio de comunicação visual” (RIBEIRO, 1986RIBEIRO, D. Apresentação. In: RIBEIRO, D. (ed.). Suma Etnológica Brasileira, vol. 3, Arte Índia. Petrópolis: Vozes/FINEP, 1986. p. 9-10., p. 12).

Este achado provocou, também, um refinamento nos conceitos teóricos utilizados para definir os estudos de arte em sociedades indígenas, uma vez que “apesar da grande diversidade de manifestações, as artes indígenas não são criadas para ser contempladas” (VAN VELTHEM, 1998VAN VELTHEM, L. H. Arte indígena: referentes sociais e cosmológicos. In: GRUPIONI, Luis Donisete B. (org.) Índios no Brasil. São Paulo: Global Editora, 1998. p. 83-92.). Estamos de acordo com Guss (1990GUSS, David. To weave and sing. Art, symbol, and narrative in the South American rainforest. Berkeley: University of California Press, 1990.) ao postular a relação entre mito e artefatos, explicando que os objetos atuam como “subtextos” que fornecem um entendimento do funcionamento da sociedade aproximando-a às suas origens. Nesse sentido, Gow (1999GOW, P. A geometria do corpo. In: NOVAES, A. (org.). A outra margem do Ocidente. São Paulo: Cia. das Letras, 1999. p. 299-315., p. 302) explica que os artefatos imitam os objetos primevos, e por isso faz-se necessário que sejam reproduzidos da forma mais fiel possível aos artefatos primordiais, visto que são “cópias dos elementos presentes nesses tempos”. O conceito acima citado remete ao que Gell (1998GELL, A. Art and agency: an anthropological theory. Oxford: Clarendon Press, 1998.) viria a chamar de encantamento do objeto. Essa mesma orientação teórica fez Van Velthem (1998VAN VELTHEM, L. H. Arte indígena: referentes sociais e cosmológicos. In: GRUPIONI, Luis Donisete B. (org.) Índios no Brasil. São Paulo: Global Editora, 1998. p. 83-92., p. 17) considerar que os artefatos Wayana são “retratos dos seres primordiais ou daquilo que permite identificá-los”. Assim, os objetos seriam “corpos providos de cabeças, membros, seios, troncos, genitais que revelam características antropomórficas, zoomórficas ou especificamente sobrenaturais, atestando desta forma a sua origem” (VAN VELTHEM, 1998VAN VELTHEM, L. H. Arte indígena: referentes sociais e cosmológicos. In: GRUPIONI, Luis Donisete B. (org.) Índios no Brasil. São Paulo: Global Editora, 1998. p. 83-92., p. 17).

Figura 10 -
A estearia da Boca do Rio e a dispersão de cerâmica polícroma no maior núcleo de esteios do sítio, possivelmente o espaço coletivo das festividades. Acervo LARQ.

Cabe salientar que não se trata somente da representação dos seres ancestrais, mas como bem lembrou Lagrou (2010LAGROU, E. Arte ou artefato? Agência e significado nas artes indígenas. Proa - Revista de Antropologia e Arte, v. 1, n. 2, pp. 1-26, 2010.), o objeto remete à ideia de agência ou o poder dos efeitos que estes artefatos produzem, mais que a sua própria imagem. Desse modo, os artefatos apresentariam características que tiveram agência em tempos imemoráveis. Nesse sentido, trata-se da própria caracterização icônica, ou seja, da semântica e sua associação visual, o que aproximaria esta abordagem aos estudos semióticos de Pierce (1977PIERCE, C. Semiótica. São Paulo: Perspectiva. 1977.) e Munn (1973MUNN, N. Walbiri iconography. Graphic representation and cultural symbolism in a central Australian society. Londres: Oxford University Press, 1973.). Logo, a serpente representada dentro do vasilhame cerâmico seria a própria sucuri navegando no rio em sua canoa, i.e., uma alusão pétrea aos tempos primordiais do mito da cobra-canoa. Talvez tenha sido utilizada, também, como recipiente para bebida em rituais envolvendo temas da criação. Reichel-Dolmatoff (1971RIBEIRO, B. A mitologia pictórica dos Desãna. In: VIDA, L. (org.). Grafismo indígena. São Paulo: Studio Nobel/FAPESP/Edusp, 2000. p. 435-452. ) registrou entre os Desana um vasilhame cerâmico com desenho de sucuri para consumo da bebida yajé, proveniente da planta alucinógena Banisteriopsis caapi.

Desse modo, o rio Turiaçu pôde ter sido interpretado pelos indígenas como um microcosmo similar aos mitos de criação apresentados ao longo deste artigo envolvendo o rio Amazonas, em que a sinuosidade de seu corpo hídrico representou o corpo colossal de uma anaconda ou sucuri sobrenatural, a mulher xamã ou a mãe de todos os peixes, divindade criadora. Nesse sentido, cada estearia pôde ter sido criada, mitologicamente falando, pela grande anaconda que percorria o seu curso numa canoa e ia povoando seu curso navegável. Este mundo aquático, semelhante ao do Amazonas, encontrou um terreno fértil para a propagação deste mito.

Nesse sentido, retomando a proposta deste artigo, um estudo interdisciplinar entre a Arqueologia e a Etnologia, uma vez apresentados os dados arqueológicos do suporte cerâmico das estearias e sua associação com o mito da cobra-canoa, como explicar a presença dessas expressões em locais e sociedades diferentes? Uma adequada resposta etnológica seria dada por Lévi-Strauss (1970LÉVI-STRAUSS, C. A estrutura dos Mitos. In: LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970.), que versa sobre a mitologia promover uma análise comparativa das culturas. A essência fundamental de cada sociedade, portanto, seria expressa nos mitos, entendidos como “... parte integrante da língua; é pela palavra que ele se nos dá a conhecer, ele provém do discurso. Se queremos perceber os caracteres específicos do pensamento mítico, devemos, pois, demonstrar que o mito está simultaneamente, na linguagem e além dela” (LÉVI-STRAUSS, 1970LÉVI-STRAUSS, C. A estrutura dos Mitos. In: LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970.:228).

O mito para Lévi-Strauss (1978LÉVI-STRAUSS, C. Mito e significado. Lisboa: Edições 70, 1978.) é uma experiência sensorial, mais que experiência histórica particular de uma sociedade qualquer, pois “o mundo sensorial é um mundo ilusório, ao passo que o mundo real seria um mundo de propriedades matemáticas que só podem ser descobertas pelo intelecto e que estão em contradição total com o testemunho dos sentidos” (LÉVI-STRAUSS, 1978LÉVI-STRAUSS, C. Mito e significado. Lisboa: Edições 70, 1978., p. 11).

Sendo assim, a linguagem arqueológica das cerâmicas das estearias fomentaria um discurso da perpetuação do mito da cobra-canoa na Amazônia, sendo sensivelmente rememorada, pois:

... um mito diz respeito, sempre, a acontecimentos passados: antes da criação do mundo ou durante os primeiros tempos... Mas o valor intrínseco atribuído ao mito provém de que estes acontecimentos, que decorrem supostamente em um momento do tempo. Formam também uma estrutura permanente. Esta se relaciona simultaneamente ao passado, ao presente e ao futuro (LÉVI-STRAUSS, 1970, p. 229LÉVI-STRAUSS, C. A estrutura dos Mitos. In: LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970.).

Sobre esta questão temporal, Lévi-Strauss faz uma importante observação na obra “Mito e significado” (1978) em que:

Não ando longe de pensar que, nas nossas sociedades, a História substitui a Mitologia e desempenha a mesma função, já que para as sociedades sem escrita e sem arquivos a Mitologia tem por finalidade assegurar, com um alto grau de certeza - a certeza completa é obviamente impossível -, que o futuro permanecerá fiel ao presente e ao passado (LÉVI-STRAUSS, 1978LÉVI-STRAUSS, C. Mito e significado. Lisboa: Edições 70, 1978., p. 51).

Conclusão

Lévi-Strauss (1984LÉVI-STRAUSS, Claude. Palabra dada. Madri: Espasa-Calpe, 1984.) destaca a cultura na interação humana com o ambiente enquanto conjunto de relações por meio de fenômenos simbólicos, representados por crenças e narrativas no fomento à imaginação, que traçam marcas na memória. Os mitos, portanto, fornecem explicações do sistema cultural. São formas próprias de se entender o mundo. Contém histórias de criação e explicam todos os elementos necessários para se compreender o universo. Os mitos são, portanto, parte de uma longa tradição cultural (TURNER, 1970TURNER, V. The Forest of Symbols: aspects of Ndembu Ritual. Ithaca: Cornell University, 1970.). Estes mitos são, também, uma decodificação da visão de mundo indígena a partir de “conceitos cosmológicos e ecológicos de cada cultura” (RIBEIRO, 1986RIBEIRO, D. Apresentação. In: RIBEIRO, D. (ed.). Suma Etnológica Brasileira, vol. 3, Arte Índia. Petrópolis: Vozes/FINEP, 1986. p. 9-10., p. 13).

O mito da cobra-canoa é um tema da etnologia de muitos povos indígenas da Amazônia, e revela aspectos diversos da vida social, cosmologia, xamanismo e dimensões ecológicas destes povos (VIDAL; SILVA, 1992VIDAL, L.; LOPES DA SILVA, A. Antropologia estética: enfoques teóricos e contribuições metodológicas. In: VIDAL, L. (org.). Grafismo Indígena. Estudos de antropologia estética. São Paulo: Studio Nobel/ Fapesp/Edusp, 1992. p. 279-293.).

Existem diversas versões do mito. Dentro desse contexto, concordamos com Turner (1971TURNER, V. The Ritual Process: structure and anti-structure. Nova York: Aldine De Gruyter, 1971.) quando afirma que os símbolos são respostas emocionais e cognitivas, unidades de significado que representam a estrutura cultural em que estão organizados. Compreender a relação cognitiva entre significado simbólico e objeto ou lugar, portanto, pode traçar a conexão com a estrutura social. Cada símbolo tem o que Turner (1971TURNER, V. The Ritual Process: structure and anti-structure. Nova York: Aldine De Gruyter, 1971.) chama de multivocalidade do significado: indivíduos ou grupos podem interpretar o símbolo diferentemente porque eles estão acessando em diferentes pontos de polarização de significado.

A canoa em forma de corpo diz respeito a uma das principais discussões atuais indígenas, a corporalidade, um ponto de referência das sociedades amazônicas, em torno dos quais “giram as mitologias, a vida cerimonial e a organização social” (SEEGER; DA MATTA; VIVEIROS DE CASTRO, 1979SEEGER, A; DA MATTA, R.; VIVIEROS DE CASTRO, E. A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. Boletim do Museu Nacional. Série Antropologia, v. 32, p. 2-19, 1979.). Os corpos, portanto, são culturalmente fabricados (BARRETO, 2008BARRETO, C. N. G. Meios místicos de reprodução social: arte e estilo na cerâmica funerária da Amazônia Antiga. Tese (Doutorado em Arqueologia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.).

O conteúdo deste texto alertou que se quisermos compreender, de fato, uma história de longa tradição indígena, é necessário que a relação com a etnologia das terras baixas da América do Sul seja reforçada. Isto leva, forçosamente, a uma proposta do vestígio material à luz das cosmologias ou ontologias indígenas. Nesse sentido, os estudos dos mitos e simbologias adjacentes tornam-se fundamentais para delinear este contexto.

O uso de uma metodologia baseada na comparação da cultura material com as cosmologias indígenas registradas nas fontes orais e escritas levou a um resultado satisfatório para as estearias maranhenses. Um motivo iconográfico curvilíneo recorrente em vasilhames cerâmicos destes sítios arqueológicos foi interpretado como sendo as manchas negras da anaconda ou sucuri amazônica (Eunectes murinus). Como bem assinalou Lévi-Strauss (1970LÉVI-STRAUSS, C. A estrutura dos Mitos. In: LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970.), a iconografia da cerâmica arqueológica das estearias poderia ser interpretada como uma linguagem, uma memória primeva mítica da anaconda representando a ancestralidade humana na Amazônia. Um desenho completo do animal, com as mesmas formas iconográficas, foi observado em uma destas vasilhas.

Esses símbolos podem estar associados à cobra-canoa, um dos mais proeminentes mitos ainda presentes nas sociedades amazônicas. Nesse sentido, o próprio vasilhame pode ser uma alusão à canoa, sendo que a cobra está desenhada dentro dele, ou seja, tripulando a embarcação, assim como relatado no mito. Desse modo, o referido mito pode ser de origem civilizadora em que se está perpetuando a história do ensinamento da pesca e a alimentação de peixes por parte da anaconda. Este mito somente foi exitoso em decorrência do meio aquático abundante no qual as sociedades indígenas amazônicas estão inseridas. Nesse sentido, Reichel-Dolmatoff (1976REICHEL-DOLMATOFF, G. Cosmology as Ecological Analysis: A View from the Rain Forest. Man, v. 11, n. 3, p. 307-318, 1976.) está correto ao postular que os mitos amazônicos são, também, uma resposta ecológica a processos culturais adaptativos.

Comparações etnográficas com os Desana indicam um possível uso destes vasilhames para o consumo de bebidas alucinógenas utilizadas em rituais de xamanismo. A própria forma das cerâmicas, em geral representando cálices ou cuias cerâmicas pouco profundas, indicam o consumo de líquidos nesses recipientes. Beber nestes utensílios, portanto, seria rememorar o mito primevo e perpetuá-lo socialmente. Nesse sentido, a iconografia dos vasilhames cerâmicos não seria somente do desenho da cobra, mas, sim, a própria memória da vida ancestral em cores, perpetuando a história mítica a que está atrelada.

Dentro desse contexto, o rio Turiaçu, local onde estão localizadas as estearias, poderia ser a representação do próprio rio Amazonas, um microcosmo reproduzido em sua variação regional. Seu curso sinuoso, semelhante aos cursos d’água da Amazônia, poderia emular o corpo da anaconda ou sucuri que, ao servir de condução para a canoa, permitiu à grande anaconda que povoasse com aldeias os diversos pontos de sua extensão. Assim, o próprio rio é a metáfora de transformação corpórea, que, unido à transmutação da anaconda em uma canoa, deram sentido às cosmologias indígenas da Amazônia cuja principal característica é esta ontologia da corporalidade e seu desdobramento xamânico.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer à Profa. Dra. Anna C. Roosevelt, da University of Illinois Chicago, pelo incentivo em escrever este artigo e pelo acesso a sua biblioteca. Agradeço ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) pela autorização e renovações da coleta arqueológica através do processo 01494.000442/2013-37. À Fullbright Commission pela bolsa concedida na modalidade Visiting Professor Award na University of Illinois Chicago. Às instituições onde pesquisei: Smithsonian Institution (Washington), Penn Museum (Filadélfia) e American Museum of Natural History (Nova York). À Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Estado do Maranhão (FAPEMA) pela concessão de diversos editais que fomentaram as pesquisas das estearias. Ao CNPq pela bolsa de produtividade (Processo 308271/2018-1).

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    Declaração de financiamento: A pesquisa contou com financiamento da FAPEMA (Proc. ACERVOS-02637/17 Edital 12/2017) e Bolsa de Produtividade em Pesquisa CNPq nível 2 (Processo 308271/2018-1).

Editado por

Editores:

Karina Anhezini e André Figueiredo Rodrigues

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    29 Out 2019
  • Aceito
    05 Jan 2020
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