Open-access Desbravando os sertões paulistas, séculos XVI a XIX

Exploring the São Paulo backlands, 16th to 19th centuries

Resumo:

O processo de colonização de São Paulo consistiu num contínuo movimento de expansão da fronteira demográfica e econômica rumo ao oeste. Desde o Século XVI, as terras foram ocupadas de maneira legal ou informal. Busca-se, neste texto, discutir os processos de incorporação dessas terras na economia da cana-de-açúcar e do café.

Palavras-chaves: Colonização; Estrutura fundiária; Fronteira demográfica; Fronteira econômica

Abstract:

The colonization process of São Paulo consisted of a continuous expansion movement of the demographic and economic frontier towards the West. Since the 16th century, the land has been occupied legally or informally. This paper aims to discuss the processes of incorporation of these lands in the economy of sugar cane and coffee.

Keywords: Colonization; Land structure; Demographic frontier; Economic frontier

O processo de ocupação do território paulista, iniciado no século XVI e concluído somente em meados do XX, ainda carece de maiores investigações. A ocupação progressiva, possível graças à dizimação da população indígena, ainda é mal conhecida. Amplos contingentes de europeus, indígenas e africanos foram parte contínua do movimento de expansão colonial rumo ao interior, além dos incontáveis colonos que migraram internamente e participaram desse avançar da fronteira demográfica e da fronteira econômica1. Para o período colonial as terras foram incorporadas à economia por via da concessão de títulos de sesmaria, para os mais aquinhoados, ou pela pura e simples posse, não documentada, para o restante da população. Os inventários post-mortem disponíveis a partir de finais do século XVI deixam claro que a terra, posto que abundante, não tinha grande valor econômico. Tal ausência de valorização tem sido atribuída, também, à ocorrência de uma agricultura bastante modesta até pelo menos a segunda metade do século XVIII, quando se implanta a lavoura da cana-de-açúcar. Mesmo sem valor, a terra era alvo de acirrada disputa, e os conflitos registrados nos autos da Justiça o comprovam.

Uma historiografia mais recente chegou a apontar que São Paulo chegou a contar com uma importante agricultura de trigo no século XVII, que produzia farinha para um mercado colonial que eventualmente alcançava Angola (MONTEIRO, 1994, p. 99-128). Para além disso, tinha-se o cultivo de gêneros alimentícios - basicamente milho, feijão e mandioca - e uma pecuária que chega a se expandir para o sul, no rumo de Curitiba, mas essencialmente voltada para o abastecimento local e, por vezes, suprindo outros pontos da América portuguesa. Ao longo do século XVII, essa agricultura assentava-se fortemente sobre a mão-de-obra indígena, central para a consolidação de alguns latifúndios agrícolas.

Embora tenhamos uma respeitável coleção de testamento e inventários preservada desde finais do século XVI, e algumas amostras de livros de notas de tabeliães, ainda resta por analisar o funcionamento do mercado de terras, por mais modesto que fosse. Consideramos, portanto, que a terra, apesar de seu baixo valor, era negociada e disputada na Justiça, mesmo quando se tratava de áreas diminutas. Havia, portanto, um mercado, em um contexto que, costumeiramente, levava à carência de espaço agrícola e impulsionava a expansão em busca de novas terras. Adquiridas por sesmaria ou posse, as propriedades rurais dos mais diversos tamanhos podiam ser transferidas por herança e dote, mas igualmente podiam ser objeto de negociação, mesmo sem se dispor de um título legal de propriedade.

A concessão de sesmarias durante o período de sua vigência, até 1822, foi analisada detalhadamente por Nelson Nozoe. O levantamento dos títulos constatou que teria havido solicitação de um total de 1762 cartas de sesmarias. Distribuídas ao longo do tempo, percebe-se que houve maiores volumes de pedidos nos intervalos de 1600-1649, 1720-1749 e 1780-1789 (NOZOE, 2009, p. 3). O primeiro período pode ser identificado com o momento de forte ampliação da captura de indígenas, e de busca de novas áreas para explorar com essa mão-de-obra. De fato, é nesse período que temos a fundação de duas novas vilas no planalto - Moji das Cruzes (1611) e Santana de Parnaíba (1625) -, consequência da expansão agrícola que desembocaria na introdução da lavoura do trigo (MONTEIRO, 1994, p. 99-128). A forte demanda por sesmarias vem comprovar que os colonos desejavam novos espaços para plantar, num momento em que a resistência indígena nas circunvizinhanças da vila de São Paulo havia desaparecido. Territórios tornavam-se disponíveis para serem solicitados às autoridades, ou mesmo apossados por aqueles sem condições de justificar uma sesmaria. O trigo seria implementado graças à percepção de que sua farinha teria mercado.

Ainda de acordo com John Monteiro, o trigo teria seu momento de expressão entre 1640 e 1680, após o que, com a queda da captura de índios, entraria em decadência e desapareceria da paisagem paulista. Não é, portanto, simples coincidência que as solicitações de sesmaria na segunda metade do século XVII despencassem: lavrar tornara-se menos interessante.

O segundo momento de grande expansão da concessão de cartas de sesmarias, 1720-1749, coincide com o auge da mineração. Ao ouro da capitania de Minas Gerais somam-se outras jazidas, mais a oeste. A descoberta do minério em Goiás e o consequente crescimento do tráfego pelo chamado Caminho de Goiás levou o governador Rodrigo César de Menezes a conceder, ao longo do extenso trajeto dessa estrada, diversas sesmarias. Muitos dos agraciados eram ocupantes de cargos na administração da capitania, e muito provavelmente não tinham qualquer interesse em explorar uma sesmaria em local tão ermo. Era um esforço para consolidar uma infraestrutura mínima de apoio aos viandantes, reforçando o movimento natural de instalação de pousos, que em sua maioria não foram, todavia, resultado dessas sesmarias. Seja como for, a capitania de São Paulo, a partir de princípios do século XVIII, teve sua economia agrícola de certa maneira reavivada, pois havia, na região das minas, um crescente mercado consumidor de gêneros básicos. Portanto, paulistas passaram a solicitar novas terras, onde pudessem instalar lavouras com uma força de trabalho ainda centrada nos indígenas, mas já com uma presença mais significativa de africanos. A primeira metade do XVIII foi, portanto, um período de crescimento demográfico, inevitavelmente relacionado a uma economia de abastecimento que se avolumava, como demonstrou Marcílio (MARCÍLIO, 2000, p. 72).

O terceiro período de significativo número de sesmarias concedidas está na década de 1780-1789, momento em que a lavoura da cana-de-açúcar principiava a ganhar fôlego no Oeste paulista, criando uma forte demanda por novas áreas de cultivo e por escravos. Multiplicavam-se os engenhos de açúcar, que buscavam se instalar, nesse primeiro momento, nas regiões dos municípios de Itu e Jundiaí. A partir de então o movimento de expansão da fronteira econômica a oeste da capitania tomaria grande impulso, como se percebe pela criação de novos municípios, após um hiato de quase um século.

Resta muito difícil conhecer a estrutura fundiária de nossas vilas no passado colonial, pois as fontes são escassas. Excepcionalmente pode-se encontrar, em raras listas nominativas de habitantes, informações que permitam traçar um quadro mais preciso desta realidade. É o caso da lista de habitantes de Sorocaba para o ano de 1772; localidade com expressivo contingente de pequenos lavradores, aos quais se somam pequeno número de latifúndios dedicados à pecuária ou contando com um engenho de açúcar. Para esta lista, houve uma preocupação inédita em descrever a condição jurídica das terras exploradas por cada domicílio sorocabano. Os dados são impressionantes: 70,3% de terras próprias, 21,6% de terras alheias ou a favor, 4,4% de terras devolutas e 3,6% de terras aforadas. Para um total de 522 fogos, 29,7% (155 casos) afirmam ocuparem terras que não são suas. Embora possamos supor que dentre as descritas como próprias talvez estivessem incluídas situações de posses não contestadas, mesmo assim a constatação de que quase um terço dos domicílios estava lavrando terras que não lhes pertencia já aponta para uma concentração fundiária2.

É preciso tentar distinguir as posses em duas categorias distintas. Há indícios de que famílias sem maiores recursos, por vezes chamadas de roceiros, se estabeleciam em algum local que julgavam propício para sobreviverem por meio de uma lavoura modesta. Eram aqueles que abriam um pequeno roçado, onde plantavam milho, mandioca, feijão, e levavam sua vida. Esgotada a fertilidade desse roçado, deslocavam-se para outro ponto, vizinho ou não, onde pudessem abrir novo roçado, e novamente plantar. Este modelo, tradicionalmente descrito como de coivara, era baseado em prática indígena. E, portanto, não era uma ocupação ampla, larga, mas apenas suficiente para prover às necessidades do grupo doméstico e, quando possível, obter algum excedente, passível de ser vendido no mercado da vila mais próxima. Este mínimo excedente permitia a compra daquilo que a terra não fornecia: sal, ferramentas, algum tecido, enfim, as mais básicas demandas.

Tais humildes grupos domésticos, compostos por pais, filhos e eventuais agregados, eram em grande número na sociedade colonial, e não tinham qualquer acesso a uma terra titulada, documentada com papéis que dessem segurança jurídica. Por vezes conseguiam reunir recursos e comprar, por escritura particular, os pequenos lotes que necessitavam. Mas podiam ser pressionados pelos poderosos, caso sua posse interessasse a estes. E nem sempre estabeleciam suas lavouras em terras devolutas, pois podiam acertar com um grande proprietário para ocupar um pedaço do latifúndio, em troca de fornecer força de trabalho quando demandada. Serviam, por vezes, como vigilantes do grande proprietário, pois, ao receberem autorização para ocupar terras nos extremos dos latifúndios, atuavam como marcadores de que ali havia um dono. Transformavam-se, assim, em agregados, em indivíduos submetidos ao poder e à proteção dos poderosos grandes proprietários. Caso perdessem esta vinculação, por um conflito qualquer, por uma deslealdade, corriam o risco de perder a posse, expulsos. Nesses casos, tinham a opção de mudar de local, seja se agregando em terras alheias, de outro proprietário, ou se deslocando rumo às terras devolutas da fronteira demográfica, onde a concorrência pelo solo ainda era baixa.

Infelizmente tais posseiros não eram descritos enquanto tais nas listas nominativas. Estas se preocupavam, fundamentalmente, em apontar indivíduos ou famílias agregados no interior de um grupo doméstico, ou seja, sob uma mesma unidade produtiva. Mas não indicavam, via-de-regra, estes posseiros, e suas famílias, que também eram agregados de alguém por terem autorização para explorar um naco de terra, mas que produziam para si próprios, e não para o efetivo dono da terra. As listas os descreviam, então, como lavradores, agricultores ou roceiros, ou como alguém que “planta para o gasto”, mas sem indicar a subordinação. Mas, felizmente, por vezes nos deparamos com exceções. As listas de habitantes da vila de São Luiz do Paraitinga, no vale do Paraíba, são pródigas em indicar, nos anos de 1824 e 1825, de modo excepcional, o fato de as pessoas de um domicílio viverem a favor de terceiros: “Planta para o gasto a favor de sua mãe; Planta para o gasto a favor do Sargento Mor José Pereira; Planta para o gasto a favor de Manuel Ignacio; Planta para o gasto a favor do Capitam mor”. A eles são contrapostos outros fogos, onde era informado que “Planta para o gasto em terras próprias”3. Portanto, vislumbra-se que a falta de acesso à terra era fato, apesar de uma antiga tradição historiográfica afirmar que a terra era muito barata e abundante. De fato, eram de baixo preço, como se atesta pelos inventários post-mortem; mas não eram efetivamente abundantes: se assim o fosse, não teríamos tanta gente dependendo de terra ou favores alheios, ou entrando em conflito por elas.

Outros posseiros, no entanto, eram indivíduos poderosos. Tomavam posse de uma grande gleba, para posteriormente solicitar uma sesmaria, quando então alegavam que ali estavam há muitos anos, ou décadas, cultivando. Nesses casos, embora certamente explorassem somente um pequeno quinhão, apenas o suficiente para marcar presença, consideravam como suas áreas bem mais amplas. Um jurista do século XIX, ao tratar das posses, fez uma comparação entre estas e as sesmarias: “sesmarias são verdadeiros latifúndios; mais extensos, porém, ainda eram as posses de terras, cujas divisas os posseiros marcavam de olhos, nas vertentes, ou onde bem lhes aprazia” (RIBAS, 1883, p. VIII). No caso, o comentário não dizia respeito, obviamente, às pequenas posses, mas sim àquelas em formato de latifúndio, promovidas com intenções outras.

Muitos desses grandes posseiros acabavam, portanto, solicitando sesmarias. Não necessariamente, contudo, tais sesmarias seriam transformadas em latifúndios produtivos, tal como um engenho de açúcar. Pelo contrário, apenas tinham a posse confirmada, e assim permaneciam, sem nem mesmo obterem a validação final em Lisboa, que alguns estudos informam ocorrer em menos de 20% dos casos (ALVEAL, 2019, p. 240). E, por fim, a vendiam. No Cadastro de Terras de 1818 para a vila de Piracicaba percebemos que a maioria dos vendedores não eram de famílias reconhecidas como das principais da terra. Eram, isso sim, posseiros, ou uma minoria de sesmeiros que não haviam efetivamente explorado a concessão régia para fins comerciais4.

A concessão de sesmarias foi o único instrumento legal para garantir grandes lotes de terras, necessários para o funcionamento de um engenho de açúcar. A implantação de sua unidade de produção - moenda, fornalhas, tachos, tendais, canaviais, senzalas - significava um grande investimento, o que exigia, a princípio, alguma segurança na titulação fundiária. De uma maneira geral, buscava-se terras consideradas propícias ao cultivo da cana-de-açúcar, dentro de uma concepção de que a terra que hoje denominamos roxa não seria boa para essa cultura. Solos um pouco mais arenosos eram mais desejados, ainda mais por conta de não serem cobertos por mata muito densa, que era encontrável justamente sobre as manchas de terra roxa. Teria sido esta a razão, segundo Saint-Hilaire, para que as terras de Campinas, vizinhas de Itu, principal centro açucareiro do Oeste paulista, fossem por um bom tempo evitadas para a instalação de engenhos (SAINT-HILARE, 1976, p. 109). Além disso, cabe ressaltar que, até certo momento, retirar a cobertura de mata cerrada dessas terras roxas provavelmente deve ter sido considerado muito trabalhoso.

Seja como for, instalar um engenho exigia, inicialmente, dispor de terras. E, obviamente, de capitais mínimos para investir, embora a maioria dos senhores de engenho não tivesse os recursos para de imediato instalar uma unidade de grandes dimensões. Pelo contrário, a expectativa era crescer com o passar dos anos. Já tivemos oportunidade de apontar que senhores de engenho no Oeste paulista somente alcançavam a posse de 40 ou mais escravos numa faixa etária média de 50 anos de idade. Ou seja, num contexto de mortalidade bastante elevada e esperança de vida relativamente baixa, de aproximados 36 anos de idade, era preciso sobreviver além da média para lograr se tornar um importante produtor de açúcar (BACELLAR, 1997, p. 141).

Nesse sentido, nem todos os senhores de engenho representavam a continuidade de gerações de antepassados instalados nas mesmas terras do oeste. Pelo contrário, surpreende a constatação de que grande parte dos engenhos registrados no Cadastro de Terras de 1818, abrangendo as vilas de Itu, Jundiaí, Porto Feliz e Piracicaba, tinha suas terras adquiridas por compra (69,2%), contra um contingente bem menor das adquiridas por herança ou dote (17,0%) e somente 6,3% por sesmaria5. Ou seja, o instituto das sesmarias não era o foco central do processo de instalação de engenhos. Explica-se: a tendência central era se conceder sesmarias em terras devolutas, ou ao menos com poucos posseiros instalados. Por consequência, de uma maneira geral as sesmarias estavam mais próximas da fronteira demográfica do que da fronteira econômica. Uma quantidade expressiva de sesmarias era solicitada sob o argumento de que os autores da demanda já estavam instalados há anos ou décadas naquele local, o que servia como justificativa para o pedido. Mas, via-de-regra, argumentava-se que se desejava instalar alguma atividade econômica mais sólida, seja pensando na agricultura da cana-de-açúcar ou na pecuária, havendo, portanto, interesse em obter o título legal da terra. Segundo Angelo Carrara, ao analisar a concessão de sesmarias em Minas Gerais, “as cartas de sesmarias devem ser consideradas como garantias a posses já lançadas ou a terras compradas” (CARRARA, 2001, p. 84). De fato, toda solicitação de sesmaria inclui a menção a uma presença prévia do solicitante ou de seus pais no local desejado, mantendo roças e animais. Ou a menção a antecessores, de quem se havia comprado a terra. Eram, portanto, terras ainda não fortemente integradas ao espaço econômico do açúcar, ainda não incorporadas à fronteira econômica.

Surpreende, nesse sentido, o fato de engenhos em Piracicaba, região mais avançada de expansão açucareira, também serem majoritariamente instalados em terras adquiridas por compra em 18186. Ou seja, os senhores de engenho não haviam sido os primeiros a ali chegarem, posto que a vila fora mandada fundar pelo governador Morgado de Mateus, em 1767, por conta de interesses estratégicos militares (BACELLAR, 2017).

Não podemos esquecer, no entanto, que estas aquisições por compra devem ser tratadas com certo cuidado. Estes futuros senhores de engenho, com sua força econômica e política, tinham condições de se impor sobre pequenos posseiros, pioneiros em desbravar aquelas paragens, obrigando-os, sob ameaça, a vender, provavelmente a preços depreciados, suas terras não demarcadas. Encontramos alguns processos judiciais que comprovam que sesmarias costumeiramente chegavam a ser solicitadas ignorando-se a presença de posseiros, embora a legislação buscasse garantir alguns direitos a estes, prevendo que os sesmeiros resguardassem tais posses, excluindo-as da área de demarcação da sesmaria:

Diz Domingos Marques Requeixo morador da vila de Sorocaba que ele suplicante a vinte e três anos que (vive) na paragem chamada Campina que se achava deserta sem povoador nenhu aonde entrou o suplicante estabelecer o seo citio, e cultivando (...), sem a isto lhe por embarasso pesoa alguma, e por que o suplicante hé hum pobre nunca pode tirar por sesmarias para mayor descansso e sucego seo, teve quem lhe advertisse que cuidasse em (tirar), porque querendo outro qualquer tirar por sesmaria ficava sempre o suplicante senhor de seo cultivado e de seu citio, como assim sucedeo, (... há) dous anos fazer João da (Silva) Franco hú requerimento ao Senhor General D. Luis desta capitania em que lhe pedia mandasse lhe dar as ditas terras por cesmaria em que estava o suplicante estabelecido, não fizeram mençam de seo citio e nem de suas lavoras 7.

Processos assim são inúmeros, demonstrando que os poderosos podiam demandar uma sesmaria simplesmente passando por cima de eventuais roceiros pobres, mesmo que estes estivessem estabelecidos há muito tempo com suas pequenas lavouras.

Diz João Rolim de Moura da vila de Sorocaba que elle suplicante se ve oprimido, zombado, escarnecido de Claudio de Madureira Calheiros da mesma vila por ocasião de uma sesmaria que Vossa Excelenticima como tão justo, recto, e (...) dispensador consedeu ao suplicante negando ao suplicado que ao mesmo tempo pedia as mesmas terras com a diferença, que o suplicado (o fez) em prejuízo de muitos pobres que nelas se achão arranchados e o suplicante por isso mesmo as pedio (aliviar) tão grande dano, e fazer com que aquelles povoadores possuicem as suas terras com legitimo (...), ficando-se com o resto que estava desocupado, e com efeito com essa clauzula foi passada a sesmaria, e se acha bem cumprida com húa partilha a satisfação dos mesmos povoadores, mas o suplicado não satisfeito com hum horror de terras que possui não só no distrito da dita villa, como também em varias partes desta capitania, e não obstante a negar-lhe Vossa Excelencia repetidas vezes a data destas, e (...) dela ao suplicante, atropelando todas as (leis) deste distrito, e da razão, mandou derrubar mato na parte que pertence ao suplicante (...). queimar e plantar a rossa, (...) e preparando para fazer nova rossa, e o que mais he, ameaça ao suplicante por todo acto possessório que fizer naquelas terras.

Neste caso, o suplicado, usurpador de terras obtidas por sesmaria, era nada menos que o poderoso capitão-mor de Sorocaba, Cláudio de Madureira Calheiros. O suplicante, homem de menor poder econômico, mas não um pobre miserável, reclama que é legítimo possuidor de título de sesmaria, mas que não tinha forças para persistir enfrentando o capitão-mor:

Tudo isto faz cabedal no poder de hum homem que se preza de ser soberbo porque conhecendo a impossibilidade do suplicante de sustentar por largo tempo demandas, que ele pode eternizar, por isso não tem (...) fazer sua vontade sem temor nem receyo algum, porque tem muito dinheiro, como elle dis, para atrair a sua vontade daqueles, por conta dos quais corre o bom sucesso nas açoins ordinárias (...).

Na sua réplica, o capitão-mor acusa o suplicante de falso pobre, mas propõe uma espécie de acordo:

Pois se o suplicado por pobre e affectado humilde mereceo a piedade de Vossa Excelencia, não a desmereceu o suplicante por opulento e rico porque a mesma Magestade que atende compassiva a pobreza dos seos vassalos, não deixa de atender a opulencia dos mesmos, por ser desta proveniente a dos seus erarios. Não clama porem o suplicante pella nulidade da dita sesmaria, por não ver sufocada a ambição do suplicado. Sim clama que com elle se pratique o indefectível custume praticado em todas as sismarias, pois havendo algum cultivador antes da concepção delas, com elle se repartem, satisfazendo pro rata a despeza dos mesmos...8

O capitão-mor Cláudio de Madureira Calheiros surge em diversos outros processos sob a mesma acusação, com a advertência de que era “acostumado” a tais atos:

Dis Lucrecia de Almeyda viuva desta villa que estando ella de posse pacifica de mais de dez, vinte, trinta, quarenta e mais annos por (seus) antepossuidores de hua escrava e terras sitas para alem do Rio Sorocaba (...), estando lavrando por sy e sua família sem contradição de pessoa algua, o Capitão-Mor Claudio de Madureira Calheiros, também desta vila, nos princípios deste prezente mes de novembro e ano, foy nas ditas terras e as mandou rossar e derrubar, e a 25 do dito mez mandou queimar e a 26 mandou (...) principiar a plantar. Espoliando a suplicante de sua posse e fazendo posseciarios nas referidas terras da suplicante, cometendo o Intredito vende vis, ao que he acostumado porque no ano pretérito nas mesmas terras elle fes outra semelhante força e esbulho (...).

A disputa por terras envolvia diversos atores das mais variadas condições econômicas, desde o paupérrimo posseiro até o poderoso capitão-mor. E, nos casos envolvendo o capitão-mor de Sorocaba, nem sempre se disputavam terras para a implantação de engenhos, já que a vila, nessa década de 1780, produzia pouco açúcar, contando tão somente com unidades de menor expressão e baixa produtividade. O capitão-mor era negociante de tropas, mas tinha à época um engenho, e este servia como justificativa para sua cobiça sobre essas terras:

Por não ter elle supliante em aquella vila terras suficientes para sustentação de seus filhos e avultado número de escravos que tem, pois constando a escriptura das terras do seo engenho de duzentas e sincoenta braças de testada, e meya legua de certão, achão se estas tão abatidas, que apenas servem para plantação de canas, procurou em aquelle entorno terras devolutas aonde sem prejuízo de terceiro pudesse estender as suas plantaçoins (...). 9

Curioso, neste caso, é a argumentação de que suas terras estavam “abatidas”, não mais servindo para nada, exceto a cana-de-açúcar. Ou seja, demandava uma enorme sesmaria para singelamente ampliar, por exceção, suas lavouras de alimentos! Em outras palavras, apesar de a argumentação nos parecer fraca, é possível considerar que a atividade de plantio de gêneros básicos da alimentação tinha certo peso econômico para a atividade de um engenho.

Muitas das disputas pela via judicial ou fora dela eram, na passagem do século XVIII para o XIX, por áreas para instalação de engenhos. Disputa que certamente se agudizou, a partir da década de 1790, quando os preços internacionais do açúcar explodiram após a saída do mercado da enorme produção de Saint Domingue. Um engenho exigia terras e topografia apropriadas para a sua instalação. O que era necessário? Solos considerados aptos para receber a cana-de-açúcar, que era plantada manualmente e podia ser colhida por alguns anos, antes de se esgotar a fertilidade. Como não havia a prática da adubação, era preciso dispor de terras de reserva para a expansão dos canaviais. Era fundamental, também, dispor de espaço para a lavoura de gêneros alimentícios básicos: mandioca, milho, feijão eram os principais. Os engenhos paulistas sempre produziam os alimentos básicos, sem solução de continuidade; em alguns casos, o volume dessas safras secundárias era expressivo, o que leva a crer que talvez fossem também destinadas ao mercado10. Não há indícios de inflexão na produção de alimentos em função dos preços do açúcar, tal como se detectou para engenhos do Recôncavo Baiano (BARICKMAN, 2003). Segundo a lista nominativa de Itu para 1836, o alferes Fernando Paes de Barros, senhor de engenho, colheu, apenas de milho, uma safra de 84.630 kg, grande o suficiente para acreditarmos que vendia boa parte. É um volume maior que o próprio açúcar que colhera (14.700 kg), e maior que a safra de feijão (12.090 kg) e de arroz (7.254 kg). Não à toa, o autor da lista o identificou como “Lavrador, Tropeiro e Senhor de Engenho”. Todos os demais senhores de engenho de 1836 também produziam safras consideráveis de feijão, tal como Francisco de Paula Campos (18,7 toneladas), Antonio Leite de Sampaio (31,7 toneladas) e José Serino de Almeida (58 toneladas)11.

Além das terras lavráveis, era necessário dispor de espaço para a manutenção de pastos. Animais vacuns para o transporte da lenha e cana, cavalgaduras, e mulas que compunham tropas de transporte: todos necessitavam de uma boa área de pastos, que eram nativos, não plantados, e que, portanto, suportavam poucos animais por hectare. E, por fim, era preciso contar com reservas de matas. A princípio não para transformar em lotes de cultivo de cana, mas principalmente para contar com uma boa reserva de madeira, destinada a prover a lenha tão necessária ao funcionamento dos engenhos. Durante os longos meses de safra e produção do açúcar, as fornalhas desses engenhos se constituíam em vorazes consumidoras de lenha, exigindo toda uma complexa programação para seu corte, secagem e transporte até a moenda. Quanto mais distante essas matas, mais complicado era o processo de abastecimento. Por fim, se o engenho era movido a água, era preciso contar com ela em condições de ser aproveitada, em função da topografia. Caso contrário, adotava-se a tração animal.

Alguns senhores de engenho conseguiam estruturar todo o complexo dentro de uma única propriedade. Outros, no entanto, contavam com mais de uma, complementar, não necessariamente vizinhas. Mesmo assim, é possível detectar casos em que o problema de abastecimento de lenha ocorria; talvez a propriedade não contasse com suficiente reserva de matas, tornando necessário buscar o abastecimento em áreas mais afastadas, dificultando e mesmo inviabilizando a manutenção das fornalhas.

A questão da terra é essencial para entendermos o processo de ocupação territorial do Oeste paulista. Como nem toda terra disponível era apta para o negócio açucareiro, permaneciam, às margens dos grandes engenhos, uma multiplicidade de pequenos proprietários, em sua maioria posseiros, com muito poucos ou nenhum escravo, baseados em agricultura familiar. Em torno dos engenhos paulistas proliferavam números variados de lavradores de cana, os chamados partidistas. Ainda não se dispõe de alguma análise mais ampla nesse tema, exceto alguns trabalhos clássicos sobre a presença desses partidistas no cenário do açúcar nordestino (SCHWARTZ, 1988; FERLINI, 2003). Mas as listas nominativas de habitantes, fonte fundamental para entenderemos a realidade fundiária das décadas finais da colônia em São Paulo, indicam a ocorrência dessa categoria. Muitos desses lavradores de cana, quando recenseados, eram filhos ou parentes de algum senhor de engenho, que receberam um dote de terras dentro da propriedade paterna, e ali começavam sua vida como fornecedores anexos do engenho, antes de alcançarem os meios de erguer engenho próprio.

Em Itu, de acordo com a lista de habitantes de 1801, havia 112 engenhos de açúcar e somente catorze partidistas, muitos dos quais filhos ou parentes próximos - filho, genro, sogro - do proprietário de engenho. Mais tarde, em 1830, os engenhos eram 94 e os partidistas somente dois, ambos de filhos que moíam sua cana no engenho paterno. Em Campinas havia, em 1800, 34 engenhos e 18 partidistas, proporção bem mais elevada; dez anos mais tarde, em 1810, eram 60 engenhos e somente 6 partidistas12. A primeira data, para Campinas, provavelmente reflete uma realidade de muito recente instalação de engenhos, em um contexto de terras ainda abundantes, que abriam espaço para a instalação desses plantadores de cana. Apenas dez anos mais tarde já constatamos uma presença bem menor de partidistas, igualando a realidade campineira à de Itu, com a frequência desses indivíduos reduzidos a cerca de 10% no número de engenhos. Portanto, tudo leva a crer que plantadores de cana eram possíveis quando havia disponibilidade de espaço fundiário. Como grande parte desses lavradores de cana tinham parentesco com os senhores de engenho, é bem possível que ocupassem porções de terra dos mesmos engenhos aos quais estavam economicamente atrelados.

Dentro deste contexto, engenhos proliferaram no Oeste paulista, especialmente a partir da década de 1790, após a rebelião escrava na ilha caribenha de Saint Domingue. A possibilidade de vender o açúcar no mercado mundial, apesar das dificuldades de transporte locais - especialmente a transposição da Serra do Mar13, convenceu a muitos indivíduos a investir na indústria açucareira. Em Itu, os engenhos eram em número de 24 em 1773, passam a 61 em 1798; para o mesmo intervalo, a produtividade média por engenho passou de 207 arrobas para 765 arrobas14, comprovando que, além de mais numerosos, eram de maior envergadura a partir do momento em que a demanda internacional explodira. Até 1848, conforme a clássica baliza proposta por Petrone (1968), o açúcar paulista iria dominar a balança comercial da capitania/província de São Paulo, a despeito das inevitáveis inflexões dos preços no mercado externo, especialmente quando das guerras napoleônicas.

O interesse em implantar novos engenhos esbarrava, no entanto, nas limitações da topografia e das possibilidades de aquisição de terras nas mais antigas vilas do Oeste paulista. Esta realidade levou a um avanço das fronteiras demográficas e econômicas rumo às novas terras mais distantes da capital, com a consequente criação de novas vilas. O sucesso do açúcar, e posteriormente do café, foi bastante favorecido pela existência de uma fronteira demográfica bastante próxima, que podia dar vazão à demanda por mais terras agriculturáveis. Esta demanda estava intimamente relacionada às necessidades sucessórias das famílias ligadas ao açúcar. Os filhos de um senhor de engenho, ao chegarem à idade adulta, transformavam-se, em certo sentido, em um problema para os pais. Como encaminhá-los na vida, como garantir que se tornassem, também, senhores de engenho?

Pudemos demonstrar, já há mais de duas décadas, que a pujança do mercado atlântico do açúcar possibilitou que se aproveitasse da abundância de terras a oeste para direcionar os filhos (BACELLAR, 1997). Como o complexo de moagem e preparação do açúcar era indivisível, o máximo que se podia fazer, quando as terras do engenho paterno eram suficientemente amplas, era instalar um ou outro filho em frações da fazenda, de modo a iniciarem suas vidas como partidistas de cana (ou, mais tarde, como cafeicultores) e, posteriormente, lograssem erguer novo engenho (ou fazenda de café). Mas tal operação exigia uma disponibilidade de espaço agrário viável no interior da fazenda paterna, coisa que na maioria dos casos não era possível. A solução, portanto, estaria em outra direção.

Estes antigos senhores de engenho se esforçavam, desta feita, em transmitir o engenho para um único herdeiro, que compraria os quinhões hipotéticos, não demarcados, de seus irmãos e irmãs, preservando a integralidade da unidade de produção, com suas terras, canaviais, pastos e reservas florestais. Os irmãos que vendiam quinhões, por seu turno, buscavam terras mais baratas e mais próximas da fronteira demográfica, para lá reiniciar o processo pelo qual seus pais haviam passado: desbravar, plantar canas, construir a moenda e seus anexos e, principalmente, antes de tudo isso, possuir um mínimo de mão-de-obra escrava. Dotes recebidos pelos cônjuges eram um auxílio bem-vindo.

Esses filhos que avançavam rumo à fronteira demográfica podiam, até 1822, solicitar uma sesmaria. Ou, também, comprar terras. Temos indícios bastante consistentes de que velhas sesmarias, não exploradas, eram oferecidas para esta nova geração de jovens investidores. Estes não eram pioneiros no mapeamento e identificação dos melhores espaços, os mais férteis, para um projeto de engenho, pois haviam sido precedidos por esses antigos sesmeiros ou posseiros. O projeto teria que ser de compra, e esta era garantida pelo quinhão vendido ao irmão que ficara com o engenho paterno. A terra vendida na região açucareira, por ser mais cara, permitia a compra de área maior no rumo da fronteira demográfica.

Portanto, constata-se que a elite açucareira e escravista que surge na segunda metade do século XVIII, e especialmente em sua última década, assumiu a disponibilidade de uma fronteira demográfica próxima para estabelecer um projeto de reprodução de sua condição econômica e social, empurrando a geração dos filhos para o rumo do sertão. As novas terras incorporadas serviam como autêntica válvula de escape para o processo sucessório, permitindo que as novas gerações encontrassem um espaço para instalação. Este processo viria a se repetir durante as gerações seguintes, mas já ao final do século XIX as famílias dos cafeicultores enfrentavam outra qualidade de problemas na passagem entre as gerações: a transição demográfica. É justamente nesse momento que a mortalidade geral cai, mantendo-se, no entanto, a natalidade ainda elevada. Como resultado, um número bastante elevado de filhos que alcança a idade adulta, criando núcleos familiares bastante extensos, e complicando-se o processo de transmissão de fortunas. A solução, embora ainda não investigada a contento, foi de encaminhar parte dos filhos para carreiras liberais, especialmente o Direito, e para atividades urbanas ligadas à industrialização.

Quando o café começa a penetrar no Oeste paulista, são justamente estas famílias de produtores de açúcar que iriam investir cada vez mais no novo produto agrícola de exportação. Por ocasião da partilha de alguns engenhos, após o falecimento do proprietário, surpreendemos alguns filhos ocupando quinhões da propriedade paterna não mais com lavouras de cana-de-açúcar, mas sim com talhões de café ainda jovens.

Sitio do Salto Grande. Contem tres estabelecimentos: Engenho de assucar, pertencente ao proprietário, e dois de Caffe, sendo um pertencente a Antonio de Camargo Campos, e outro a Jose de Campos Penteado Jr., em sociedade com seu irmão Francisco de Campos Andrade, todos filhos do Proprietário 15.

Ou seja, a introdução da nova lavoura teria se dado, ao que tudo indica, também no interior dos engenhos, na passagem de uma geração para outra: o pai ainda firme no negócio do açúcar, os filhos ousando na nova cultura. E este processo se repetiria, também, para com os filhos que migravam rumo à fronteira demográfica: a partir de dado momento, que supomos situar-se em torno da década de 1850, passaram a abrir fazendas dedicadas ao café, e não mais para a cana-de-açúcar.

Curiosamente, o café foi bastante precoce ao menos na vila de Itu. Segundo a lista de habitantes de 1798, havia seis fogos que já o cultivavam, colhendo respectivamente seis, quatro, quatro, duas e duas arrobas, e um que não informava o volume. Todos eram senhores de engenho e afirmavam colher para o gasto, exceto um, Gabriel da Silva, declarado pobre, e que plantava em terras alheias, mas que vendia na praça as quatro arrobas de café colhidas. Lavouras minúsculas, surpreendentes por já existirem nessa data, mas que por razões ainda não muito claras não atraíram a atenção dos ituanos, que preferiram investir seus esforços na cana-de-açúcar.

O café retornaria com vigor para as vilas do Oeste paulista décadas mais tarde, como reflexo da explosão da cafeicultura no vale do Paraíba. A produção açucareira perderia seu vigor, embora jamais tenha desaparecido por completo, ficando aninhada em várias áreas onde o café parece não ter se dado bem. É o caso, por exemplo, da vila de Porto Feliz, que manteve, ao longo da segunda metade do século XIX, uma produção açucareira importante, que levaria inclusive à instalação de famoso engenho central (MEIRA, 2010).

Ao longo de toda a segunda metade do século XIX o café iria se expandir progressivamente para o interior paulista, permitindo a criação de inúmeros novos municípios. Notável nesse processo é que a cafeicultura teve condições para ultrapassar a barreira da distância que chegara, em certos momentos, a frear a expansão açucareira. A despeito das inflexões do mercado externo do açúcar, tinha-se muito claramente a percepção de que transportar caixas do gênero a longas distâncias incorria no risco inerente ao transporte em lombo de mulas. O açúcar, como se sabe, é frágil sob condições adversas de clima, especialmente a umidade, que pode deteriorar sua qualidade. Enfrentava, assim, uma concorrência desleal com o café, cujos grãos suportavam melhor as inclemências do clima.

Mas rapidamente essa questão perdeu grande relevância, a partir do momento em que se instalam as primeiras ferrovias, grandes incentivadoras da expansão cafeeira, mas que também permitiriam a instalação de engenhos em terras mais distantes do porto de Santos. Mas é o café o grande beneficiado com a nova forma de transporte. Já em finais do século XIX, temos grandes lavouras de café instaladas nos limites da terra roxa na província, com destaque para Jaú na região mais central e Ribeirão Preto a noroeste. A clássica e pioneira análise de Pierre Monbeig traça um notável panorama desse processo de desbravamento territorial através da cafeicultura (MONBEIG, 1984). É nesse contexto que pudemos observar como se processou o acesso à terra para a introdução e ampliação da cafeicultura.

A região denominada Alta Mogiana foi alcançada pelo café e pela ferrovia na década de 1880. A região é atravessada, desde princípios do século XVIII, pelo Caminho de Goiás. Ao longo do restante desse século e de quase todo o XIX, fazendas foram instaladas a partir das margens dessa estrada. As sesmarias iniciais concedidas a partir da abertura da rota não vingaram em sua grande maioria, pois a decadência do ouro goiano diminui o trânsito pelo Caminho ainda no século XVIII. Somente a partir da década de 1800 começaram a surgir as primeiras glebas apossadas por indivíduos migrantes vindos do Sul-mineiro (BACELLAR, 1999).

Quando se elabora o Cadastro de Terras de 1855, a região já estava relativamente subdividida, com as fazendas originais, imensas e pouco exploradas, bastante fracionadas16. Em geral, tinha-se uma economia de pecuária, com um tanto de lavoura de alimentos. A chegada do café na década de 1880 foi promovida por indivíduos vindos de outras partes da Província de São Paulo, especialmente do já decadente Vale do Paraíba, e por migrantes do sul mineiro (MONBEIG, 1984, p. 133-137). Depararam-se com uma realidade de intensa fragmentação territorial, fruto de cerca de um século de divisões provocadas pelos processos sucessórios. Para se estruturar uma fazenda viável para a cafeicultura, os recém-chegados, vindos com capital, entabularam um esforço de reunião dessa multiplicidade de lotes.

Como muitas dessas glebas originais tinham origem em pura posse, a pressão da cafeicultura, estabelecendo uma cobiça sobre as terras do Noroeste paulista, acabou resultando, desde a década de 1870, na multiplicação de processos de demarcação judicial dessas posses, tornando-as mais seguras para possível venda. Por outro lado, muitas dessas grandes glebas de princípios do século XIX encontravam-se não somente pulverizadas entre múltiplos herdeiros, mas com problemas para a localização de alguns destes. Em diversos casos a partilha ficara em estado de “pró-indivisa”, ou seja, os herdeiros haviam sido contemplados somente com uma parte ideal, não demarcada, das terras paternas. Herdava-se uma percentagem, por vezes diminuta e economicamente inviável, que acabava esquecida e abandonada pelo herdeiro. Eram pequenos lotes que podiam ser compostos de terras de má qualidade, ou sem água, o que impedia sua exploração.

Desta maneira, os interessados em montar uma fazenda para plantar café se viam obrigados a comprar, por vezes, quinhões de dimensões bastante díspares, nem sempre demarcados, para tentar montar um espaço viável à exploração econômica pela cafeicultura. Como exemplo, José Maximiano Junqueira buscou reunir lotes da antiga fazenda Bananal, efetuando a compra de nove deles entre 1881 e 1897 (BACELLAR, 1999, p. 113). Casos como este são vários, e sugerem que o estabelecimento de engenhos de açúcar e posteriormente das fazendas de café, quando do avanço da fronteira econômica, repetia um mesmo ciclo: o de adquirir terras dos indivíduos pioneiros, que haviam desbravado as terras quando do avanço da fronteira demográfica. Este modelo parece haver funcionado de maneira bastante repetida desde o princípio da colonização, embora os dados para o século XVII sejam bastante rarefeitos. Caberia, assim, explorar mais a fundo os poucos livros de notas desse século, e os mais abundantes para os seguintes, para buscar identificar, com mais detalhes, as negociações entabuladas por pequenos e grandes proprietários de terras, com títulos e sem títulos. Caberia, também, avançar sobre as ações cíveis do Judiciário, lamentavelmente de difícil acesso na atualidade por conta da má política arquivística do Tribunal de Justiça de São Paulo, que dificulta enormemente o acesso do pesquisador aos processos do passado. Ali estão as demandas, os conflitos, as argumentações jurídicas, que possibilitam um aprofundamento na história de constituição de nossa rede fundiária, e uma maior explicitação das estratégias familiares para controle das terras produtivas paulistas.

Referências

  • BACELLAR, C. A. P. As famílias de povoadores em áreas de fronteira da Capitania de São Paulo na segunda metade do século XVIII. Revista Brasileira de Estudos Populacionais, v. 34, n.3, p. 549-565, 2017.
  • BACELLAR, C. A. P. Os senhores da terra. Família e sistema sucessório entre os senhores de engenho do Oeste paulista, 1765-1855. Campinas: CMU/Unicamp, 1997.
  • BACELLAR, C. A. P. Uma rede fundiária em transição. In: BRIOSCHI, L. R.; BACELLAR, C. A. P. (orgs.). Na Estrada do Anhanguera: uma visão regional da história paulista. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 1999, p. 91-116.
  • BARICKMAN, B. J. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
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  • FERLINI, V. L. A. Terra, trabalho e poder: o mundo dos engenhos no Nordeste colonial. Bauru, SP: Edusc, 2003.
  • MARCÍLIO, M. L. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista, 1700-1836 São Paulo: Hucitec/Edusp, 2000.
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  • MEIRA, R. B. Banguês, engenhos centrais e usinas: o desenvolvimento da econômica açucareira em São Paulo e sua correlação com as políticas estatais (1875-1941). São Paulo: Alameda, 2010.
  • MONBEIG, P. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo São Paulo: Editora Hucitec/Editora Polis, 1984.
  • MONTEIRO, J. M. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
  • NOZOE, N. H. Faço saber aos que esta minha carta de sesmaria virem ...: estudo sobre a distribuição temporal da concessão de terras rurais na Capitania de São Paulo, 1568-1822. In: VIII Congresso brasileiro de História Econjômica e 9ª Conferência internacioanal de história de empresas, 2009. Anais.., Campinas: ABPHE - Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica, 2009.
  • PETRONE, M. T. S. A Lavoura canavieira em São Paulo: expansão e declínio (1765-1851). São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968.
  • RIBAS, J. A. Da posse e das ações possessórias Rio de Janeiro: Ed. Laemmert, 1883.
  • SAINT-HILAIRE, A. Viagem à Província de São Paulo Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1976.
  • SCHWARTZ, S. B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

Notas

  • 1
    Adoto aqui as definições de fronteira de José de Souza Martins, que diferencia uma fronteira demográfica, impulsionada por uma frente de expansão movida por populações ainda não incluídas na economia de mercado, e uma fronteira econômica, que lhe segue, impulsionada por uma frente pioneira que traz consigo os agentes da modernização. (MARTINS, 1996).
  • 2
    APESP, Lista nominativa de Sorocaba, 1772.
  • 3
    APESP, Listas nominativas de São Luiz do Paraitinga, 1824 e 1825.
  • 4
    APESP, Cadastro de Terras de Piracicaba, 1818.
  • 5
    APESP. Cadastro de Terras de Itu, Jundiaí, Porto Feliz e Piracicaba, 1818.
  • 6
    . APESP, Cadastro de Terras de Piracicaba, 1818.
  • 7
    APESP, Autos Cíveis de Sorocaba, nº ordem 3884, ação de Domingos Marques Requeixo contra João da (Silva) Franco, Sorocaba, 5 de abril de 1788.
  • 8
    APESP, Autos Cíveis de Sorocaba, nº de ordem 3879, ação de João Rolim de Moura contra Cláudio de Madureira Calheiros, Sorocaba, abril de 1780.
  • 9
    APESP, Autos Cíveis de Sorocaba, nº de ordem 3882, ação de D. Lucrecia de Almeida contra Cláudio de Madureira Calheiros, Sorocaba, 7 de fevereiro de 1783.
  • 10
    As listas nominativas de habitantes informam uma contínua produção de alimentos no interior dos engenhos a partir do ano de 1798. Uma década mais tarde, essa informação se torna escassa, não pela diminuição desse tipo de plantio, mas sim pelo pouco interesse em se registrar tal informação.
  • 11
    APESP, Lista nominativa de Itu para 1836.
  • 12
    Agradeço a meu orientando Carlos Eduardo Nicolette pelas informações referentes a Campinas.
  • 13
    Não é por mera coincidência que o novo caminho pela Serra do Mar, a famosa Calçada do Lorena, foi concluída justamente em 1792.
  • 14
    Cf. as listas nominativas de habitantes de Itu para 1773 e 1798.
  • 15
    Sítio do Salto Grande, do Alferes José de Campos Penteado. Cadastro de Terras de Campinas, 1855, título 69.
  • 16
    APESP, Cadastro de Terras de Ribeirão Franca, 1855.
  • Nota do Editor
    A revista História (São Paulo) agradece à FAPESP pelo apoio financeiro, na modalidade Auxílio à Pesquisa – Publicações/Periódicos (Processo n. 2020/04324-9), para a publicação deste artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    15 Out 2019
  • Aceito
    01 Mar 2020
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